Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3519/23.1T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃOJSTJ000
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: INVENTÁRIO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE APELAÇÃO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
NOTÁRIO
REGIME DE SUBIDA DO RECURSO
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
PARTILHA DA HERANÇA
CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS
ADJUDICAÇÃO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DA LEALDADE PROCESSUAL
PRINCÍPIO PRO ACTIONE
PRINCÍPIO DA PREVALÊNCIA DA SUBSTÂNCIA SOBRE A FORMA
Data do Acordão: 06/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :

I – Ao inventário instaurado no cartório notarial, após 01.01.2020, sendo-lhe aplicável o RIN, conforme resulta do seu artigo 4.º, a impugnação da decisão notarial interlocutória proferida após a decisão de saneamento do processo (que não integre qualquer uma das tipologias decisórias a que se refere o n.º 2 do artigo 644.º do CPC, ou o n.º 2 do artigo 1123.º do mesmo CPC), não é susceptível de apelação autónoma, devendo ser feita conjuntamente com o recurso de apelação da sentença homologatória da partilha.


II - Infringe os princípios da confiança e lealdade processual considerar que a inadequada interposição autónoma do recurso da decisão notarial conduz à impossibilidade de conhecer do respectivo objecto, atento o teor da decisão notarial ao consignar que “as decisões proferidas pelo notário na fase da partilha apenas sobem a final com o que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha”, declarando, porém, que “o recurso interposto fica a aguardar o que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha.”, por tal posição ser susceptível de ter criado na recorrente a confiança, fundada, de que, uma vez interposto tal recurso, não teria de reiterar a sua intenção de impugnar o despacho interlocutório.


III - Tal circunstância, conjugada com a interpretação do conteúdo das alegações da apelação interposta da sentença homologatória (na qual a recorrente replica, em grande parte, a pretensão recursiva autonomamente deduzida), orientada pelo princípio pro actione, permitem concluir no sentido de a pretensão de impugnação da decisão interlocutória se mostrar acoplada à de impugnação da sentença homologatória da partilha.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – relatório


1. Nos autos de inventário para partilha dos bens deixados por AA e BB, que correu termos no Cartório Notarial de CC, sendo cabeça-de-casal DD, a interessada EE veio recorrer para este tribunal do acórdão da Relação que não admitiu o recurso interposto da decisão da notária de 22.12.2002 e julgou improcedente a apelação interposta da sentença homologatória da partilha.


Pedindo que seja ordenada a descida do processo ao Tribunal da Primeira Instância, “que deverá fazer acompanhar o recurso apresentado da sentença e o relativo ao Despacho em 22 de dezembro de 2022, proferido pela Sr.ª Notária que indeferiu o pedido da Recorrente, de anulação da adjudicação dos bens realizada na conferência de interessados”, conclui a Recorrente nas suas alegações (transcrição):


a) Entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa que a decisão intercalar transitou em julgado pois o recurso interposto pela ora Recorrente não foi apresentado conjuntamente com o recurso da sentença homologatória da partilha.


b) Não concorda a Recorrente com a posição assumida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pois o recurso apresentado foi o da sentença e da decisão intercalar. Pois,


c) A Recorrente em 18 de janeiro de 2023, através de requerimento registado em www.inventarios.pt com o número .....74 apresentou recurso, dirigido ao Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, tendo a Sr.ª Notária, proferido despacho no sentido de que as decisões proferidas pelo notário na fase da partilha apenas sobem a final com o que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha, mais indicando que “…o recurso interposto fica a aguardar o que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha.”


d) A sentença proferida, veio simplesmente decidir que “... homologo por sentença a partilha constante do acordo exarado na conferência de interessados, ocorrida em 03/11/2022 (acta com a referência .......17) – artigo 5.º do regime anexo à Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro.”


e) Em 23 de maio de 2023, a Recorrente, apresentou recurso desta sentença, para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual foi admitido e subiu nos próprios autos.


f) Neste recurso era, ainda, indicado que o recurso da decisão proferida pela Sra. Notária, interposto em 18 de janeiro de 2023, deveria subir com o recurso da sentença.


g) Mais era indicado, no capítulo III, que “A Recorrente por requerimento a Fls..., requereu à Sr.ª Notária, depois de indicar que tinha apresentado a sua declaração negocial em erro “ (ponto 44).


h) E que no capítulo I é identificado o erro na Declaração Negocial (pontos 1 a 32)


i) Afigura-se claro que de acordo com a conclusão vertida no recurso, e que se encontra na alínea Z, onde se refere que “Foi proferido Despacho em 22 de dezembro de 2022, pela Sr.ª Notária que indeferiu o pedido da Interessada, ora Recorrente, EE, de anulação da adjudicação dos bens realizada na conferência de interessados, tendo sido apresentado recurso relativamente a esse indeferimento, pelo que deve o mesmo subir com o presente recurso.”, que se pretendia recorrer efetivamente daquele despacho.


j) Sendo que no recurso apresentado, considerava-se ter ocorrido um erro na declaração, afetando, deste modo, a ata de conferência de interessados, devendo esta ser anulada e marcada nova conferência.


k) Ora, fica assim patente, que o recurso anteriormente apresentado (18 de janeiro de 2023) deveria subir com o recurso apresentado da sentença e ser apreciado pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, o que não ocorreu, mostrando-se assim desrespeitado o estabelecido no artigo 1123.º do CPC.


l) Não transitou, assim, a decisão intercalar em julgado, devendo ser apreciado o erro na declaração que foi alegado.


m) Acresce que a Recorrente, não se limitou a requerer a subida do recurso, pois alegou a ausência de apreciação pela Sr.ª Notária do erro relatado, a Insuficiência de elementos na conferência de interessados e Erro na Declaração Negocial.


n) Ou seja, alegou matérias cuja apreciação já se tinha requerido anteriormente.


o) Pelo que deve ser dado provimento, ao presente recurso, e ordenada a remessa do processo ao Tribunal de 1.ª Instância, que deverá promover a subida ao Tribunal da Relação de Lisboa dos Recursos apresentados da sentença final e da decisão intercalar proferida pela Sr.ª Notária.


p) Aceita a Recorrente que a sentença de mérito, absorve o conteúdo do acordo de partilha, mas não se limita a esse facto, verifica também a sua validade. Ou seja, atribui a validade ao Mapa de partilha.


q) A própria lei fala em decisão homologatória da partilha, ou seja, com esta homologação está a sentença a considerar conforme todo o procedimento da partilha.


r) Assim, a sentença, ao considerar todo o procedimento da partilha efetuado de modo correto, homologa o mapa da mesma, e por esse motivo é suscetível de recurso.


s) Como se indicou anteriormente, e se reitera da leitura da conferência de interessados resulta à saciedade que a Recorrente se encontrava na mesma em erro, sendo este notório.


t) Com efeito, a Recorrente, esteve efetivamente na conferência de interessados ocorrida em 03 de novembro de 2022, e foi surpreendida pela proposta apresentada pelo Cabeça de Casal, que indicou atribuir ao imóvel o valor de cerca de € 30.000,00.


u) A Recorrente, surpreendida com a proposta, e desconhecendo o valor dos imóveis na zona onde se localiza o mesmo, acabou por aceitar o valor indicado.


v) A Recorrente tem como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade, e não tem nem nunca teve qualquer função na área imobiliária.


w) O valor proposto para o imóvel, foi o valor patrimonial, mas fixado em 2018, encontrando-se aquele valor claramente desajustado.


x) Com efeito, para um imóvel daquela tipologia, os valores variam entre € 159.000,00 € e € 172.000,00, pelo que o valor indicado se encontra desadequado, pois trata-se de um imóvel com área privativa de 50,65 m2, com 2 divisões, localizado em ..., a escassos minutos a pé de uma estação do metropolitano, e junto à zona conhecida como ....


y) A declaração negocial apresentada pela Recorrente, foi efetuada, no entanto, em erro, pois não só desconhecia qual o valor dos imóveis naquela zona, como também julgava que poderia continuar a habitar no mesmo.


z) Pelo exposto, a declaração negocial apresentada ocorreu em erro, devendo ser ordenada a anulação da ata de conferência de interessados de 03 de novembro de 2022, e consequentemente a sentença, objeto de recurso, pois se tivesse consciência do valor atual do imóvel, e que teria que deixar o mesmo, a Recorrente nunca teria aceite o acordo, sendo a referida conferência de interessados anulável.”.


2. Não foram apresentadas contra-alegações.


II - APRECIAÇÃO DO RECURSO


De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC), mostra-se submetida à apreciação deste tribunal a seguinte questão:

Da admissibilidade do recurso da decisão notarial de indeferimento do pedido de anulação de adjudicação dos bens realizada em conferência de interessados


1. Os factos


O tribunal a quo considerou provado o seguinte circunstancialismo fáctico:


1. Em 09.04.2021, DD requereu junto do Cartório Notarial de CC, que se procedesse a inventário para partilha dos bens das heranças de AA e BB, que foram casados entre si, indicando como interessada EE, tendo o processo sido aí registado com o n.º ....21;


2. Por despacho da senhora notária de 19.04.2021, foi nomeada cabeça-de-casal a interessada EE, que foi citada na sua própria pessoa e constituiu mandatário nos autos;


3. Por despacho da senhora notária de 20.01.2022, foi a referida EE removida do cargo de cabeça-de-casal e nomeada, em sua substituição, a interessada e requerente do inventário DD;


4. Em 25.01.2022, a cabeça-de-casal juntou a relação de bens, que não foi objecto de qualquer reclamação;


5. Por despacho da senhora notária de 22.09.2022, notificado às partes, foi designada data para a realização da conferência de interessados, nos seguintes termos: «(…) designa-se o dia 03 de novembro de 2022 pelas 14:30 horas para a realização da conferência de interessados Notifiquem-se os interessados para comparência pessoal no dia referido, podendo fazer-se representar por mandatário com poderes especiais ou confiar o mandato a qualquer outro interessado, sob pena de lhes ser aplicável a multa prevista no artigo 28º da Portaria 278/2013 na redação dada pela Portaria 46/2015 de 23 de fevereiro. Notifiquem-se igualmente para comparência pessoal, e com a mesma cominação, os respetivos cônjuges dos interessados, salvo se o regime de casamento que entre eles vigore for o da separação de bens, caso em que apenas será necessária a presença se, de entre os bens a partilhar, constar a casa de morada de família respetiva. A conferência destina-se a deliberar sobre: a) A composição total ou parcial dos quinhões dos interessados e o valor porque devem ser adjudicados os bens que os integram; a indicação dos bens que devem ser objeto de sorteio; e o eventual acordo na venda de bens da herança e na distribuição do produto da alienação pelos interessados ou, não havendo deliberação sobre estas matérias, deliberar sobre quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha. b) A aprovação do passivo da herança e forma de cumprimento dos legados. c) Os pedidos de adjudicação de bens indivisíveis; e, eventualmente d) Quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha. Notifiquem-se os interessados com a advertência de que: a) A conferência pode ser adiada, por determinação do notário ou a pedido de qualquer interessado, por uma só vez, se faltar algum dos convocados e houver razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões. b) A deliberação dos interessados presentes, relativa a questões cuja resolução possa influir na partilha, vincula os demais que, devidamente notificados, não tenham comparecido na conferência.


Atualize-se o valor do processo de inventário de acordo com o valor resultante da relação de bens apresentada € 32.332,40»;


6. No dia 03.11.2022 realizou a conferência de interessados, com a presença das interessadas DD e EE o marido desta última e as mandatárias das interessadas (sendo a mandatária da interessada EE, por teleconferência), constando da respectiva acta o seguinte:


«(…) Explicados os motivos da presente diligência teve a mesma início com o seguinte resultado:


Não houve oposição, reclamação ou impugnação quanto ao inventário, relação de bens ou valores porque as mesmas foram relacionadas.


As interessadas, por acordo, compuseram o quinhão respetivo da seguinte forma:


Acordaram em adjudicar à interessada EE o sofá em tecido, com três lugares, com marcas de uso no valor de € 40,00 e a televisão LCD no valor de € 120,00 vendo o restante do seu quinhão hereditário preenchido com o dinheiro das tomas.


Acordaram em adjudicar à interessada DD os restantes bens móveis e ainda o imóvel relacionado como verba 6, tudo no valor global de € 32.172,40, devendo a mesma prestar de tornas o que levar a mais do que competir.


Ficando, assim, adjudicados todos os bens, foram as presentes pessoalmente notificadas para, em vinte dias, proporem o mapa da partilha nos termos do artigo 1120º do CPC aditado pela Lei 117/2019 de 13 de setembro, fiando ainda a requerente pessoalmente notificada para juntar aos autos o DUC e respetivo comprovativo de pagamento devido pela remessa dos autos ao Tribunal para que seja proferida sentença homologatória da partilha. Não havendo outro assunto a tratar foi encerrada a diligência e lavrada a presente ata»;


7. Apenas a interessada DD apresentou proposta de mapa da partilha;


8. No dia 18.12.2022, a interessa EE apresentou requerimento, dirigido à senhora notária, com o seguinte teor:


«…tendo tomado conhecimento do teor da Ata da Conferência de Interessados, vem expor e Requer conforme se segue:


I-Valor do Imóvel e Tornas a fixar


1. A Requerente aquando da Conferência de Interessados, ocorrida em 03 de novembro de 2022, foi surpreendida pela proposta apresentada pelo Cabeça de casal.


2. Colocada perante a questão do valor a atribuir ao imóvel, a Requerente aceitou fixar o valor do imóvel em €32.172,40.


3. Em face do valor fixado ao imóvel, aceitou que lhe fossem prestadas tornas.


4. A declaração negocial apresentada pela Requerente, foi efetuada, no entanto, em erro.


5. Com efeito a Requerente desconhecia o valor dos imóveis naquela zona.


6. Sendo que para imóvel daquela tipologia, os valores variam entre € 159.000,00 € e € 172.000,00, conforme documentos n.ºs 1, 2, 3 e 4, que se juntam.


7. O valor indicado do imóvel foi referido em erro e encontra-se claramente desajustado, pois trata-se de um imóvel com área privativa de 50,65 m2, com 2 divisões, localizado em ..., a escassos minutos a pé de uma estação do metropolitano, e junto a ....


8. A valor atribuído ao imóvel, pela Requerente, ocorreu em profundo erro, cuja consciência só ocorreu quando verificou o valor dos imóveis à venda em ....


9. Para esse erro previsivelmente contribuiu a ausência presencial da sua mandatária, o que dificultou o contacto com a mesma.


10. Ora a Requerente, realizou uma errada representação da realidade, o que leva a que a declaração que emitiu não esteja de acordo com a sua vontade, o que configura a existência de um "erro obstáculo", conforme bem descreve o Dr. Pedro Nunes de Carvalho em "Considerações acerca do erra em sede de patologia da Declaração Negociar”.


11. No mesmo sentido se pronuncia o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 67/14.4T8OHP-A.C1, que salienta que "I – O erro na declaração, ou erro obstáculo, existe quando, não intencionalmente v.g., por inadvertência, engano ou equívoco, a vontade declarada não corresponde a uma vontade real do autor, existente, mas de sentido diverso.


II- Existe erro obstáculo sobre a identidade da coisa que constitui objeto da declaração - error in corpore, quando a indicação ou a descrição que dela se faz, leve a identificar uma coisa diferente da que o declarante pretende".


III- Contudo, a relevância do erro obstáculo, para que o negócio seja anulável, carece:


-Que para o declarante seja essencial o elemento sobre o qual incidiu o erro, de tal forma que, se deste se tivesse apercebido, não teria celebrado o negócio;


- Que o declaratário conheça ou não deva ignorar a essencialidade do elemento sobre o qual incidiu o erro para o declarante."


12. Ora, no caso concreto se a Requerente tivesse consciência do valor atual do imóvel nunca tinha aceite o acordo, e desconhecia que naquela audiência iria ser discutido aquele facto.


13. Por outro lado, a Requerente não trabalha, nem nunca trabalhou na área imobiliária, pelo que desconhecia o valor do mesmo, e não lhe pode ser imputado qualquer obrigação de o saber.


14. Como refere Pedro Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2010, 6 edição, págs. 658/659) "a vontade negocial pode estar viciada na sua formação, no processo de volição e de decisão, por deficiência de esclarecimento......e a parte cuja vontade tenha sido perturbada pode, se assim o desejar, libertar-se do negócio viciado, procedendo à sua anulação".


15. Também Manuel A. Domingues de Andrade, in (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 9ª reimpressão, Coimbra, 2003, pág. 233), caracteriza o erro nos moldes seguintes: "[o] erro-vício consiste na ignorância (falta de representação exacta) ou numa falsa ideia (representação inexacta), por parte do declarante, acerca de qualquer circunstância de facto ou de direito que foi decisiva na formação da sua vontade, por tal maneira que se ele conhecesse o verdadeiro estado das coisas não teria querido o negócio, ou pelo menos não o teria querido nos precisos termos em que o concluiu".


16. Pelo que se compreende que a Requerente se encontre em erro.


17. Sucede que o imóvel não foi adquirido pela Requerente mas sim pelos seus pais 18. A Requerente por outro lado vive no imóvel, que integra a herança, sendo aquele a sua casa de família, pelo que terá direito de preferência na adjudicação do mesmo, direito esse que pretende exercer.


19. Assim, e tendo em consideração que a aceitação da proposta ocorreu em erro, deve ser ordenada o cancelamento da adjudicação, e em consequência:


a) Ser ordenada a realização de uma avaliação do imóvel, e após esse facto, serem determinadas as tornas caso exista efetivamente obrigação das mesmas serem prestadas;


b) Caso o pedido de avaliação seja indeferido, desde já a Requerente indica que o imóvel tem o valor de pelo menos € 70.000,00, disponibilizando-se para efetuar o pagamento de metade a título de tornas»;


9. Por requerimento de 19.12.2022, a interessada DD requereu o desentranhamento do referido requerimento, por ser intempestivo e carecer de fundamento legal;


10. Por despacho da senhora notária de 22.12.2022, foi organizado o mapa da partilha, de acordo com as adjudicações feitas na conferência de interessados;


11. Ainda por despacho da senhora notária de 22.12.2022, foi decidido que:


«Por requerimento registado em www.inventarios.pt com o número .....69 de documento veio a interessada EE alegar, em suma, erro na sua declaração negocial de aceitação do valor atribuído por acordo ao imóvel; desconhecimento de que na audiência iria ser discutido aquele facto; pretensão de exercer o direito de preferência na adjudicação do imóvel por nele residir vindo, ainda, requerer seja ordenada avaliação do imóvel e, em caso de indeferimento desta ultima pretensão seja fixado ao imóvel o valor de € 70.000,00 disponibilizando-se para efetuar o pagamento de metade a titulo de tornas.


Por requerimento registado na referida plataforma com o número .....82 de documento veio a cabeça de casal, DD requerer o desentranhamento do requerimento suprarreferido por ser intempestivo e carecer de fundamento legal.


Cumpre tomar posição;


Em 03 de novembro de 2022 pelas 14:30 minutos realizou-se neste Cartório Notarial a Conferência de Interessados previstas no artigo 1111º do CPC aditado pela lei 117/2019 de 13 de setembro.


Nessa conferência, para a qual foram expedidas às interessadas as notas postais que se encontram registadas nos autos, encontravam-se presentes não só as interessadas como ainda o cônjuge da requerente FF e as ilustres mandatárias das mesmas.


Do despacho de agendamento da conferência de interessados que acompanhava a notificação para comparência pessoal constava:


(…) Na conferência as interessadas chegaram a acordo nos termos que constam da Ata da Conferência e que se transcrevem:


(…) Assim,


As interessadas, acompanhadas das suas ilustres mandatárias, puseram fim ao processo, por acordo, na referida conferência de interessados.


A fracção em apreço tem um VPT de € 30.612,40.


Notificada a interessada EE da relação de bens para, em trinta dias, querendo, reclamar da relação de bens ou impugnar o valor dado aos mesmos, nada velo dizer ou peticionar.


Em sede de conferência de interessados, e na impossibilidade de obter acordo, a Lei ainda permite que os interessados requeiram a avaliação dos bens e/ou, nos casos em que a mesma é admissível, o pedido de adjudicação de bens nos termos dos artigos 1114° e 1115° do CPC.


Não foi o caso dos presentes autos, uma vez que as interessadas coadjuvadas pelas respetivas mandatárias, alcançaram o acordo que consta do Ata pelo que, tendo precludido o seu direito não pode agora a interessada vir aos autos, sob o manto do erro da declaração negocial, requerer a avaliação do imóvel e a sua adjudicação.


Como se retira da Ata da diligência, no final da mesma foram as ilustres mandatárias notificadas:


“….. Ficando, assim, adjudicados todos os bens, foram as presentes pessoalmente notificadas para, em vinte dias, proporem o mapa da partilha nos termos do artigo 1120º do CPC aditado pela Lei 117/2019 de 13 de setembro, fiando ainda a requerente pessoalmente notificada para juntar aos autos o DUC e respetivo comprovativo de pagamento devido pela remessa dos autos ao Tribunal para que seja proferida sentença homologatória da partilha……”


Termos em que se nega provimento à pretensão da requerente e se determina o prosseguimento dos autos»;


12. Em 18.01.2022, a interessada EE apresentou requerimento pelo qual interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho referido no n.º 11;


13. Por despacho da senhora notária de 23.02.2023, foi decidido:


«Por requerimento registado em www.inventarios.pt com o número .....74 de documento veio a Interessada EE interpor recurso da decisão proferida por este Cartório Notarial em despacho datado de 22 de dezembro de 2022 registado na referida plataforma com o número .....50 de documento.


Notificada, velo a interessada DD apresentar as suas contra-alegações com os fundamentos que constam do seu requerimento registado com o número .....11 de documento.


Cumpre tomar posição;


O regime dos recursos em processos de inventário que tenham sido instaurados após 01 de janeiro de 2020 e estejam a correr em Cartórios Notariais encontra-se previsto no artigo 4º do Regime de Inventário Notarial, Regime este aprovado em anexo à Lei 117/2019 de 13 de setembro, nos termos do seu artigo 2°.


De acordo com o artigo 4º do RIN é igualmente aplicável o regime previsto no artigo 1123° do CPC, aditado pela já referida Lei.


Ora, por força da aplicação deste regime, e conforme o disposto no artigo 1123° n° 2 al. c) e n° 5 as decisões proferidas pelo notário na fase da partilha apenas sobem a final com o que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha.


No caso dos autos a interessada EE não deduziu impugnação ou reclamação, nem do despacho determinativo da partilha, nem do mapa da partilha.


Assim, o recurso interposto fica a aguardar o que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha».


14. Por despacho da senhora notária de 30.03.2022, foi decidido:


«Nos presentes autos de inventário abertos para partilha dos bens deixados por óbito de AA e BB, tendo as interessadas chegado a acordo nos termos enunciados na Ata da Conferência de Interessados e tendo sido proferido despacho que retém o recurso entreposto até àquele que vier a subir com a sentença homologatória da partilha;


Remete-se, nos termos do artigo 5º do Regime do Inventário Notarial aprovado em anexo à Lei 117/2019 de 13 de setembro, e cumprido o disposto no artigo 7º o presente processo ao tribunal para que seja proferida sentença homologatória da partilha».


15. Remetidos os autos ao Juízo Local Cível ..., foi, em 25.04.2023, proferida a sentença recorrida, com o seguinte teor:


«Nos presentes autos de inventário para partilha de bens a que se procede por óbito de AA e BB, homologo por sentença a partilha constante do acordo exarado na conferência de interessados, ocorrida em 03/11/2022 (acta com a referência .......17) – artigo 5.º do regime anexo à Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro.


Custas em conformidade com o disposto no artigo 1130.º do Cód. Processo Civil (artigo 2.º, n.º1, do regime anexo à Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro).


Registe e notifique».


2. O direito


A factualidade fixada evidencia que no âmbito do inventário para partilha dos bens deixados por óbito de AA e BB, que correu termos no Cartório Notarial de CC, após a realização da conferência de interessados1, a aqui Recorrente apresentou, em 18.12.2022, requerimento dirigido à senhora notária, no qual, invocando erro na sua declaração negocial de aceitação do valor atribuído por acordo ao imóvel, manifestou a sua pretensão de exercer o direito de preferência na adjudicação do imóvel, por nele ter residido, requerendo, ainda, que fosse ordenada a avaliação de tal bem.


A senhora notária proferiu (em 22-12-2022) despacho a indeferir tal pretensão, tendo a Requerente interposto recurso (em 18-01-2023) para o Tribunal da Relação de Lisboa.


Sobre tal pretensão recursória foi proferida decisão notarial, que determinou que o recurso ficaria a aguardar aquele que viesse a ser interposto da sentença homologatória da partilha.


Resulta ainda dos autos que, remetido o processo a tribunal (Juízo Local Cível ...), nos termos do artigo 5.º, do Regime do Inventário Notarial, aprovado em anexo à Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro (doravante designada RIN), foi proferida (em 25.04.2023) sentença homologatória da partilha constante do acordo exarado na conferência de interessados, que foi objecto de apelação por parte da interessada EE (interposta em 23.05.2023).


Mostrando-se delineados os contornos da acção, cabe apreciar a questão colocada pela Recorrente ao insurgir-se relativamente à decisão do tribunal a quo que concluiu pela inadmissibilidade do recurso do despacho notarial que indeferiu o requerimento da interessada EE apresentado em 18.12.2022.


O tribunal a quo fez assentar a sua decisão de inadmissibilidade do recurso, interposto autonomamente a 18-01-202, invocando as disposições conjugadas dos artigos 4.º, n.º2, alínea c), do RIN, e n.º 5 do artigo 1123.º do CPC, entendendo que o despacho notarial de indeferimento era apenas impugnável com o recurso de apelação da sentença homologatória da partilha, tendo, por isso transitado em julgado. Refere nesse sentido:


(…) a interessada EE só poderia impugnar a decisão interlocutória de 22.12.2022, que é posterior ao saneamento, no recurso da sentença homologatória da partilha, alargando o âmbito do recurso a tal despacho, em vez de o circunscrever à decisão final. Ora, no requerimento de interposição de recurso, a recorrente refere, apenas, que «(…) vem, com Apoio Judiciário, notificada da homologação por sentença da partilha constante do acordo exarado na conferência de interessados, interpor recurso da referida sentença, para o Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do art.º 4.º n.º 2 al. b) e c) do Regime do Inventário Notarial e artigo 1123.º n.º 2 al. c) do CPC» (sublinhado nosso). Nas alegações (arts. 44.º a 52.º) e conclusões do recurso (conclusões z) e aa)), a recorrente limita-se a requerer a subida - e, portanto, a apreciação - do recurso interposto em 18.01.2023, sem referir que pretende, também, recorrer do despacho interlocutório de 22.12.2022. Daqui decorre, manifestamente, que a única decisão recorrida é a sentença homologatória da partilha.”


É quanto a este entendimento que a Recorrente se insurge, defendendo que a decisão intercalar não transitou em julgado, sustentando que no recurso interposto da sentença homologatória da partilha, “era indicado que o recurso da decisão proferida pela Sra. Notária, interposto em 18 de janeiro de 2023, deveria subir com o recurso da sentença. g) Mais era indicado, no capítulo III, que “A Recorrente por requerimento a Fls..., requereu à Sr.ª Notária, depois de indicar que tinha apresentado a sua declaração negocial em erro “ (ponto 44). h) E que no capítulo I é identificado o erro na Declaração Negocial (pontos 1 a 32).”


Defende, ainda, a Recorrente que se afigura “claro que de acordo com a conclusão vertida no recurso, e que se encontra na alínea Z, onde se refere que “Foi proferido Despacho em 22 de dezembro de 2022, pela Sr.ª Notária que indeferiu o pedido da Interessada, ora Recorrente, EE, de anulação da adjudicação dos bens realizada na conferência de interessados, tendo sido apresentado recurso relativamente a esse indeferimento, pelo que deve o mesmo subir com o presente recurso.”, que se pretendia recorrer efetivamente daquele despacho. j) Sendo que no recurso apresentado, considerava-se ter ocorrido um erro na declaração, afetando, deste modo, a ata de conferência de interessados, devendo esta ser anulada e marcada nova conferência.”.


E remata fazendo sobressair que não se limitou a requerer a subida do recurso, tendo ainda alegado a ausência de apreciação pela senhora notária “do erro relatado, a Insuficiência de elementos na conferência de interessados e Erro na Declaração Negocial.”


Vejamos.


2.1 Do regime recursório aplicável


Está em causa inventário instaurado no cartório notarial, após 01.01.2020, sendo-lhe, por isso, aplicável o RIN, conforme resulta do seu artigo 4.º, onde se estatui: “1 - A decisão do notário que, nos termos do artigo anterior, não decretar a suspensão do processo e não remeter os interessados para os meios judiciais pode ser impugnada por qualquer dos interessados diretos na partilha, mediante recurso interposto para o tribunal competente. 2 - O regime dos recursos é o seguinte: a) O recurso previsto no número anterior sobe imediatamente e tem efeito suspensivo da marcha do processo; b) O recurso previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo anterior sobe imediatamente e em separado dos autos de inventário, sem efeito suspensivo da marcha do processo; c) Aos recursos interpostos das restantes decisões proferidas pelo notário no decurso do processo é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime previsto no artigo 1123.º do Código de Processo Civil. 3 - Os recursos das decisões proferidas pelo notário são interpostos no prazo de 15 dias a contar da notificação da decisão, devendo o requerimento de interposição do recurso incluir a alegação do recorrente. 4 - A decisão do notário de remessa dos interessados para os meios judiciais não pode ser posta em causa pelo juiz.”


O regime do inventário notarial actualmente em vigor é um regime em que, como sublinha Lopes do Rego, “se assegura uma muito mais efetiva tutela do direito ao recurso, remetendo-se nomeadamente para o regime instituído no art. 1123.º do CPC, com a consequente admissibilidade de apelações autónomas da decisão de saneamento do processo”, constituindo uma evolução face àquele que era considerado “um deficiente regime recursório” instituído no artigo 76.º, do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de Março2.


No que toca ao regime recursivo consagrado no artigo 4.º, do RIN, observam Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres:


a) O n.º 1 estabelece o regime da impugnabilidade da decisão do notário que não suspenda oficiosamente o processo, quando estiver pendente causa prejudicial ou quando surja uma questão prejudicial essencial (- art. 3.º, n.º 1, RIN), ou que sustente, quando se trate de questão prejudicial não essencial (art. 3.º, n. º2, RIN), que é competente para dirimir a matéria em litígio, por a sua natureza ou simplicidade factual e jurídica não implicarem a necessidade de decisão judicial em acção própria.


Perante esta situação, qualquer dos interessados que tenha ficado vencido tem legitimidade para interpor recurso para o tribunal competente (cf. art. 2.º, n.º4, RIN). O recurso sobe imediatamente e tem efeito suspensivo da marcha subsequente do inventário notarial (n.º2, al. a)).


b) O n.º 2, al. b), visa assegurar as garantias das partes nos casos em que o notário, com base na simplicidade da questão controvertida, se considerou competente para dirimir um litígio sobre a delimitação do activo ou do passivo do acervo hereditário (art. 3.º, n.º 2, al. b), RIN). Estando em causa (apesar da invocada simplicidade da matéria litigiosa) a resolução de um litígio sobre questão de direito privado por uma entidade desprovida de natureza judicial, as garantias das partes impõem que a decisão possa ser submetida à apreciação do juiz. O recurso sobe imediatamente e em separado dos autos principais, mas sem que a sua interposição deva paralisar o andamento do inventário (n. n.º 2, al. b)).


c) Quanto às restantes decisões tomadas pelo notário no decurso do processo, o n.º 2, al. c), remete para o regime previsto no - art. 1123.º. Esta remissão implica que as decisões proferidas pelo notário na fase de saneamento do processo são passíveis de recurso autónomo, com o qual sobem as impugnações de quaisquer decisões proferidas até esse momento (art. 1123.º, n.os. 2, al. a), e 4).


As decisões proferidas pelo notário na fase da partilha, nomeadamente no decurso da conferência de interessados e na organização do mapa da partilha, apenas sobem, em regra, a final, no momento em que, depois de solucionadas todas as questões suscitadas quanto à elaboração do mapa da partilha, se determine a remessa dos autos a juízo, para que seja proferida a decisão homologatória da partilha (art. 1123.º, n. os 2, al. c), e 5).3.


Na situação em apreço, a decisão notarial de 22.12.2023 foi proferida após a conferência de interessados, na mesma data em que foi proferido despacho sobre o modo como deveria ser organizada a partilha, sendo, pois, posterior ao saneamento da causa (cfr. artigos 1110.º, n.º1 e 1120.º, n.º1, do CPC, aplicáveis por remissão do disposto no artigo 2.º, n.º1, do RIN).


Como fez notar o acórdão recorrido, a decisão notarial em causa, não se inserindo na tipologia decisória a que se reporta o n.º 1 do artigo 4.º do RIN, assume enquadramento na alínea c) do n.º 2 daquele normativo, aplicando-se-lhe o regime previsto no artigo 1123.º do CPC, nos termos da qual “1 - Aplicam-se ao processo de inventário as disposições gerais do processo de declaração sobre a admissibilidade, os efeitos, a tramitação e o julgamento dos recursos. 2 - Cabe ainda apelação autónoma: a) Da decisão sobre a competência, a nomeação ou a remoção do cabeça de casal; b) Das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha; c) Da sentença homologatória da partilha. 3 - O juiz pode atribuir efeito suspensivo do processo ao recurso interposto nos termos da alínea b) do número anterior, se a questão a ser apreciada puder afetar a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas na conferência de interessados. 4 - São interpostos conjuntamente com a apelação referida na alínea b) do n.º 2 os recursos em que se pretendam impugnar decisões proferidas até esse momento, subindo todas elas em conjunto ao tribunal superior, em separado dos autos principais. 5 - São interpostos conjuntamente com a apelação referida na alínea c) do n.º 2 os recursos em que se impugnem despachos posteriores à decisão de saneamento do processo.


No que se reporta ao recurso de apelação, em face da remissão ínsita ao n.º 1 do artigo 1123.º, do CPC, cabe conjugar as especificidades do regime recursório geral previsto nos artigos 644.º e seguintes, do CPC, com as especialidades impostas pelo processo de inventário.


Uma primeira delimitação a reter com relevância para o caso é a que se estabelece entre as decisões que admitem recurso autónomo e aquelas cuja impugnação é diferida.


Retira-se da remissão constante do n.º 1 do artigo 1123.º do CPC, que são suscetíveis de recorribilidade autónoma: as decisões que, por razões de mérito ou de forma, ponham termo ao processo de inventário (artigo 644.º, n.º1, alínea a), do CPC); as decisões que, sem porem termo ao processo de inventário, decidam questões de mérito; as decisões previstas no artigo 644.º, n.º2, do CPC; as decisões relativamente às quais exista um interesse autónomo diferenciado do resultado alcançado através da homologação da partilha (644.º, n.º4, do CPC)4.


Já para as decisões cuja apelação autónoma “não resulte das normas específicas do processo de inventário ou das regras gerais (cf., por exemplo, as constantes do art. 644.º), resta aguardar pelo momento processualmente oportuno para a interposição do recurso (n.os 4 e 5), que é o do eventual recurso da decisão de saneamento do processo (art. 1110.º, n.os 1 e 2) ou da sentença homologatória da partilha (art. 1122.º, n.º1).”5


Efectivamente, como bem salienta Carla Câmara, “todas as demais decisões, que não as suscetíveis de recurso autónomo e, assim, que se não reconduzam ao disposto nos artigos 4.º do Regime do Inventário Notarial, 1123.º, n.º 2, e 644.º, do CPC, apenas são impugnáveis, verificados os demais pressupostos de recorribilidade, no recurso da decisão final. Não havendo recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão, podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito em julgado da decisão final (artigo 644.º, n.os 2 e 3, do CPC).”6


Assim, em face do regime legal recursivo inerente ao inventário notarial, não pode deixar de se concluir que a decisão notarial de indeferimento da pretensão da interessada EE consubstancia uma decisão interlocutória (ela não conheceu de mérito, não colocou termo ao processo de inventário ou a um incidente processado autonomamente - cfr. artigo 644.º, n.º1, do CPC), que não integra qualquer uma das tipologias decisórias a que se refere o n.º 2 do artigo 644.º do CPC, ou o n.º 2 do artigo 1123.º do mesmo CPC, não sendo, por isso, susceptível de apelação autónoma.


Neste conspecto, uma vez que a decisão notarial impugnada foi proferida após a decisão de saneamento do processo, o recurso da mesma deveria ter sido interposto conjuntamente com o de apelação da sentença homologatória da partilha.


Este entendimento foi também defendido pelo tribunal a quo, que considerou que a decisão notarial interlocutória em crise não se mostrava suscetível de recurso autónomo, sendo impugnável juntamente com o recurso interposto da sentença homologatória da partilha, competindo ao Tribunal da Relação o conhecimento do mesmo.


Cumpre realçar, quanto à questão de saber qual o tribunal hierarquicamente competente para conhecer dos recursos interpostos das decisões notariais interlocutórias insusceptíveis de impugnação autónoma (tribunal de 1.ª instância ou tribunal da Relação), que sufragamos a posição de ser o tribunal da Relação o competente para o efeito. Na verdade, como bem sublinha Tomé d`Almeida Ramião, “Quanto às decisões proferidas pelo notário após o momento de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha, sendo inaplicável a alínea c) do n.º 2 do artigo 1123.º, já que compete ao juiz a prolação da sentença homologatória da partilha, pode questionar-se se os recursos de decisões posteriores podem ser interpostos conjuntamente com o recurso que for interposto dessa sentença, competindo ao Tribunal da Relação conhecer do recurso dessas decisões, ou se o recurso deve ser interposto autonomamente para o tribunal da comarca competente, visto que a este se atribui a competência para apreciar os recursos interpostos de decisões do notário (n.º 4 do artigo 2.º). Estamos em presença de decisões interlocutórias que não são recorríveis autonomamente, mas juntamente com o recurso que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha. Assim sendo, parece que a melhor solução aponta no primeiro sentido, ou seja, de que compete ao Tribunal da Relação conhecer desses recursos.”7.


2.2 Da recorribilidade da decisão notarial


Embora se acompanhe a posição assumida no acórdão recorrido quanto ao momento processualmente próprio para impugnar a decisão notarial em crise e quanto ao tribunal competente para conhecer de tal recurso, não podemos secundar a argumentação expendida em que o mesmo se alicerçou para concluir no sentido da inviabilidade de conhecer do objecto de tal recurso, pois a especificidade da situação sob apreciação de não permite considerar que a interposição autónoma do recurso da decisão notarial conduz à impossibilidade de conhecer do respectivo objecto.


Com efeito, uma tal conclusão infringe, a nosso ver, os princípios da confiança e da lealdade processual, tendo em conta o facto de a senhora notária, no despacho de 23.02.2023 (ponto 13 da factualidade assente), ter consignado que “as decisões proferidas pelo notário na fase da partilha apenas sobem a final com o que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha”, declarando que “o recurso interposto fica a aguardar o que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha.” Esta posição de, concomitantemente, reconhecer que o despacho não era suscetível de recurso autónomo, omitir uma decisão de não admissão do recurso e remeter a sua subida para momento posterior, é susceptível de ter criado na Recorrente a confiança, fundada, de que, uma vez interposto tal recurso, não teria de reiterar a sua intenção de recorrer do despacho notarial de 23-02-20238.


Acresce que a situação em causa impõe uma interpretação integrada do comportamento recursório da Recorrente (pela apresentação e teor dos dois recursos interpostos) orientada pelo princípio pro actione, rejeitando uma visão excessivamente formalista das normas processuais, nas palavras do acórdão do STJ de 15-03-2023, por forma a “garantir que serão rigorosamente observadas todas as condições para que a lide processual fique subordinada à salvaguarda da real e substantiva possibilidade de afirmação material das respectivas pretensões, sem a colocação de entraves iníquos, obstáculos de índole processual desproporcionados ou excessivamente formalistas que, as impeçam, diminuam ou dificultem injustificadamente, com primado da substância (verdade material) sobre a forma (verdade estritamente processual)” 9.


Na verdade, no recurso interposto pela interessada EE da sentença homologatória da partilha, a mesma invoca, expressamente, o erro na declaração de aceitação da proposta realizada na conferência, insurgindo-se contra o facto de a sentença homologatória ter desconsiderado a pretensão de avaliação do imóvel que veio a ser adjudicado à cabeça-de-casal (pontos a) a q) das conclusões de recurso).


Assim, ainda que, como o acórdão recorrido salienta, a Recorrente, em tal recurso da sentença homologatória, se limite a peticionar a subida do recurso autonomamente interposto, tal circunstância, conjugada com o conteúdo da segunda impugnação – na qual a interessada replica, em grande parte, a pretensão recursiva já autónoma e previamente deduzida - permitem extrair, por interpretação, à luz dos princípios enunciados e de uma compreensão da lei adjectiva materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva, a pretensão, por parte da interessada, de impugnação da decisão interlocutória de 22.12.2022, acoplando-a à pretensão de impugnação da sentença homologatória da partilha.


Nesse sentido, a revista não poderá deixar de proceder, determinando-se a baixa do processo ao tribunal a quo para apreciação do recurso da decisão notarial interlocutória de 22.12.2022, interposto pela Recorrente a 18-01-2023, que, ao invés do considerado pelo acórdão recorrido, não transitou em julgado.


III - DECISÃO


Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista procedente pelo que se revoga em conformidade o acórdão recorrido determinado a baixa dos autos ao tribunal a quo para tomar conhecimento do recurso da decisão notarial, nos termos indicados.

Custas pela Recorrida.

Lisboa, 25 de Junho de 2024

Graça Amaral (Relatora)

Leonel Serôdio

Luís Espírito Santo




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1. Na conferência, as interessadas DD, cabeça-de-casal, e EE, por acordo, compuseram os quinhões respectivos, adjudicando a esta bens móveis e à interessada DD bens móveis e um imóvel relacionado como verba 6.↩︎

2. Carlos Lopes do Rego, “A recapitulação do inventário”, Julgar online, Dezembro de 2009, p. 5.↩︎

3. Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Coimbra, Almedina, 2020, pp. 180-181.↩︎

4. Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres, obra citada, pp. 138-139.↩︎

5. Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres, obra citada, p. 139.↩︎

6. Carla Câmara, O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial, Coimbra, Almedina, 2021, p. 209.↩︎

7. Tomé d`Almeida Ramião, “O regime dos recursos e as normas transitórias no novo regime do processo de inventário”; p. 52, e-book do Centro de Estudos Judiciários, Maio de 2020, acessível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=8LotKRQOhKg=&portalid=30↩︎

8. “O processo justo, a boa-fé, a confiança e a lealdade processual impõem que os interessados devem poder confiar nas condições de exercício de um direito processual estabelecido em despacho do juiz, sem que possa haver posterior e não esperada projecção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que confiaram no rigor e na regularidade legal do acto do juiz.” – acórdão do STJ de 03.03.2004, Processo n.º 03P4421, acessível através das Bases Documentais do ITIJ↩︎

9. Processo n.º 955/22.4T8VIS-A.C1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎