Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARGARIDA BLASCO | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM CONCURSO DE INFRAÇÕES CONCURSO APARENTE BEM JURÍDICO PROTEGIDO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA HOMICÍDIO QUALIFICADO HOMICÍDIO TENTATIVA NON BIS IDEM ARMA DE FOGO AGRAVAÇÃO MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA PARCELAR PENA ÚNICA | ||
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Data do Acordão: | 03/11/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | JULGADO O RECURSO PARCIALMENTE IMPROCEDENTE. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - Quando se está perante a prática de crimes – violência doméstica e homicídio - cujo bem jurídico tutelado pelas respectivas normas incriminadoras é distinto, não se pode considerar estar perante um único crime cometido na pessoa da assistente. II - Assim, os bens protegidos tutelados pela norma incriminadora do crime de violência doméstica do artigo152.º, do CP assentam na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, punindo as condutas que lesam esta dignidade, quer na vertente física, quer na vertente psíquica. III - Por seu lado, o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime de homicídio dos arts. 131.º e 132.º do CP é o da inviolabilidade da vida humana, sendo o direito à vida. IV - Desta forma, o crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, cometidos pelo recorrente assumem autonomia, encontrando-se tais crimes numa relação de concurso real efectivo, pelo que devem ser autonomizados, tal como o fez o acórdão recorrido, estando-se perante uma pluralidade de processos resolutivos, com violação de bens jurídicos diferentes. V - Perante o quadro factual assente, verifica-se que o crime de homicídio qualificado na forma tentada, que tutela um bem jurídico distinto e resulta de uma diferente resolução criminosa, ganha autonomia e está numa relação de concurso efectivo, e não apenas aparente, com o crime de violência doméstica. E, ao nível do bem jurídico, a primeira das actuações do recorrente (que integra, como vimos, o crime de violência doméstica) viola não apenas a saúde, seja ela física, psíquica e mental, mas, antes a integridade pessoal, ligado à defesa da dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimensões, da sua ex-namorada A outra, a segunda actuação (que integra o crime de homicídio qualificado na forma tentada), atenta contra a vida da mesma. Destarte, estamos perante uma pluralidade de processos resolutivos, com violação de bens jurídicos diferentes. Razão pela qual foram e devem ser autonomizados. VI - Destacando-se os actos que materializam a tentativa de homicídio daqueles que integram a prática do crime de violência doméstica, descortinando-se diferentes sentidos de ilicitude, com pluralidade de bens jurídicos afectados e pluralidade de resoluções criminosas, há concurso efectivo entre os crimes de homicídio na forma tentada e de violência doméstica. Pelo que, o crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, cometidos pelo recorrente assumem autonomia, encontrando-se tais crimes numa relação de concurso real efectivo, pelo que bem andou o acórdão recorrido. VII - Da violação do princípio ne bis in idem, quanto à agravação do crime de homicídio qualificado (agravação pelo uso da arma de fogo, por referência ao artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23-02). VIII- O uso ou porte de arma não é elemento constitutivo do crime de homicídio. Sendo um crime de execução livre, a respectiva conduta típica matar pode ser levada a cabo por qualquer meio. IX - Nos termos do art. 40.º do CP, que dispõe sobre as finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no art. 71.º, do mesmo diploma. X - Como se tem reiteradamente afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no art. 18.º, n.º 2, da CRP. A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos – adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva. XI - A projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pelas necessidades de protecção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas (finalidade de prevenção geral) e de ressocialização (finalidade de prevenção especial), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, avaliada, em concreto, por factores ou circunstâncias relacionadas com este e com a personalidade do agente, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele (arts. 40.º e 71.º, n.º 1, do CP). XII - Como se tem reafirmado, para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o citado art. 71.º, n.º 2, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, os factores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e de prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e, assim, avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e)], com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial. XIII - Há que, como se acentuou, ponderar as exigências antinómicas de prevenção geral e de prevenção especial, em particular as necessidades de prevenção especial de socialização “que vão determinar, em último termo, a medida da pena”, seu “critério decisivo”, com referência à data da sua aplicação, tendo em conta as circunstâncias a que se refere o art. 71.º, do CP, nomeadamente, as condições pessoais do agente e a sua situação económica e a conduta anterior e posterior ao facto, especialmente quando esta tenha em vista a reparação das consequências do crime, que relevam por esta via. XIV - Em síntese: A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização, de harmonia com o disposto com os artigos citados - 40.º e 71.º - , deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade humana do delinquente. XV - Quanto ao crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, nºs. 1 e 2, alíneas b) e i), 22.º e 23.º, do CP e 86.º, n.ºs 3 e 4, da Lei 5/2006, de 24.02 - mínimo de 3 anos, 2 meses e 12 dias e máximo de 21 anos 10 meses e 2 dias, o recorrente foi condenado na pena de 10 (dez) anos de prisão. XVI - Quanto ao crime de homicídio simples agravado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, n. º1, 22.º, 23.º, do CP e 86.º, nºs. 3 e 4, da Lei 5/2006, de 24.02 - mínimo de 2 anos, 1 mês e 18 dias e máximo de 14 anos, 2 meses e 20 dias, o recorrente foi condenado na pena de 5 (cinco) anos de prisão. XVII - No caso em apreço, verifica-se que a pena única abstractamente aplicável ao arguido, se situa, no seu limite mínimo, em 10 anos de prisão, e, no seu limite máximo, em 17 anos de prisão. XVIII - Ora, atentas as considerações supra efectuadas quanto à determinação da medida da pena e a fixação da pena única, e nos termos do art. 77. °, n.ºs 1 e 2 do CP, a pena única de 12 anos de prisão é a adequada, proporcional e justa no caso em concreto. | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 75/20.6JAFAR.S1 Recurso penal Arguido preso[1]
Acordam, precedendo conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça I. 1. No âmbito dos autos supra referenciados, do Juízo Central Cível e Criminal …. – J…., com a intervenção do tribunal colectivo, por acórdão de 27.11. 2020, foi decidido: A – Parte Penal: • Absolver o arguido AA da prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punido (p. e p.) pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, n. º1, 132.º, n.º 1 e 2, alíneas h) e i) e artigos 22.º, 23.º do Código Penal (CP); • Condenar o arguido pela prática de um crime de crime de violência doméstica, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão e nas penas acessórias de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica e de proibição de contacto com a assistente BB pelo período de 5 (cinco) anos; • Condenar o arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, nºs. 1 e 2, alíneas b) e i), 22.º e 23.º, do CP e 86.º, n.ºs 3 e 4, da Lei 5/2006, de 24 de Fevereiro, (na pessoa de BB), na pena de 10 (dez) anos de prisão; • Condenar o arguido pela prática de um crime de homicídio simples agravado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, n. º 1, 22.º, 23.º do CP e 86.º nºs. 3 e 4, da Lei 5/2006, de 24 de Fevereiro, (na pessoa de CC) na pena de 5 (cinco) anos de prisão; • Em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condenar o arguido AA na pena única de 14 (catorze) anos de prisão, e nas penas acessórias de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica e de proibição de contacto com a assistente BB pelo período de 5 (cinco) anos. B – Parte Civil: 1- Julgar parcialmente procedente o pedido deduzido pela assistente BB e, em consequência, • Condenar o arguido/demandado a pagar-lhe o que se vier a apurar em sede de liquidação quanto a danos patrimoniais emergentes relacionados com perdas remuneratórias e a danos patrimoniais futuros com despesas relativas a assistência médica e medicamentosa relacionada com as sequelas de que aquela ficou a padecer em consequência da sua actuação. • Condenar o arguido/demandado a pagar-lhe a quantia de 50 000,00€ (cinquenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora à taxa legal, contados desde a presente data até integral pagamento; • Absolver o arguido/demandado do demais peticionado; 2- Julgar parcialmente procedente o pedido deduzido pela assistente CC e, em consequência, • Condenar o arguido/demandado a pagar-lhe o que se vier a apurar em sede de liquidação quanto a danos patrimoniais emergentes relacionados com perdas remuneratórias e a danos patrimoniais futuros com despesas relativas a assistência médica e medicamentosa relacionada com as sequelas de que aquela ficou a padecer em consequência da sua actuação. • Condenar o arguido/demandado a pagar-lhe a quantia de 20 000,00€ (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora à taxa legal, contados desde a presente data até integral pagamento; • Absolver o arguido/demandado do demais peticionado. 2. Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido para o Tribunal da Relação ……, que apresentou as seguintes conclusões à sua motivação de recurso que aqui se transcrevem: (…) A) Quanto ao crime de Violência Doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal. 1 - Conforme resulta do art. 152º do Código Penal, o crime de violência doméstica estabelece uma pena abstracta que deixa de ser aplicável se pena mais grave couber "por força de outra disposição legal". 2 - Relativamente à assistente BB o arguido foi condenado por este crime e pelo crime de homicídio qualificado agravado na forma tentada em 2 anos e 10 anos respetivamente. 3 - De onde resulta ser entendimento do tribunal a quo que estes crimes estão em concurso real. 4 - Deste entendimento discorda o arguido, pois cremos tratar-se de um concurso aparente. 5 - O citado art. 152º do Código Penal faz aplicação do denominado princípio da subsidiariedade, no âmbito do chamado concurso impróprio, aparente ou normativo. 6 - Entendimento este que resulta do Acórdão de 4 Jun. 2013, Processo 237/12 Tribunal da Relação de Évora “CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. HOMICÍDIO QUALIFICADO. SUBSIDIARIEDADE. A tentativa de homicídio pode constituir ato de materialização de violência doméstica, quer do ponto de vista objetivo, por constituir ato suscetível de afetar a saúde da vítima, quer subjetivo, na medida em que o dolo de homicídio pressupõe o dolo necessário ou eventual de lesão à saúde da vítima enquanto bem jurídico complexo tutelado pelo tipo legal de violência doméstica. Se os factos que integram o tipo legal de homicídio qualificado na forma tentada integram o conjunto de factos que materializam a violência doméstica, este crime será punido em concurso aparente, uma vez verificada a relação de subsidiariedade entre ambos os tipos legais, tal conduz à punição do arguido pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, absolvendo-se o arguido do crime de violência doméstica.” 7 - Razões pelas quais deveria o arguido ter sido absolvido do crime de violência doméstica p.p. no art. 152º do Código Penal, tanto mais que os factos consubstanciadores deste crime imputados ao arguido ocorreram escassos dias antes da prática dos factos consubstanciadores do crime de homicídio na forma tentada. 8 - Ao condenar o arguido o Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação do citado art. 152º do Código Penal, pois não levou em conta a sua aplicação subsidiária. B) Quanto aos crimes de homicídio na forma tentada praticados nas pessoas das assistentes BB e CC. 9 - O Tribunal a quo considerou que ambos os crimes de homicídio tentado, o simples e o qualificado, deveriam ser agravados pelo uso da arma de fogo, por referência ao art. 86.º n.º 3 da Lei n.º 5/2006 de 23/02, que dispõe que “as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”. 10 - Com o devido respeito, teremos de discordar da agravação quanto ao crime de homicídio qualificado na forma tentada praticado na pessoa da assistente BB. 11 - Há entendimentos jurisprudenciais, divergentes do adaptado pelo tribunal a quo, pois, consideram que tal agravação no caso do homicídio qualificado consiste numa dupla agravação em violação do princípio ne bis in idem. 12 - Entendimento este que se defende e consequentemente, deverá ser revogado o acórdão também nesta parte, com os respetivos efeitos ao nível da pena, quanto ao homicídio qualificado na forma tentada, praticado na pessoa da assistente BB. Quanto à medida das penas 13 - Sem prejuízo do supra exposto, também o arguido não se conforma com as penas concretas aplicadas em ambos os crimes de homicídio na forma tentada, o qualificado e o simples, de 10 e 5 anos de prisão respectivamente. 14 - Bem como não se conforma com a pena única de 14 anos de prisão resultante do cúmulo jurídico. 15- Isto porque o Tribunal a quo levou em conta circunstâncias agravantes e desconsiderou as que militam a favor do arguido e estão patentes no próprio relatório social. 16 - Ao decidir desta forma o tribunal a quo violou as disposições dos artigos 40º, 71º, 77º e 78º todos do Código Penal. 17 - É certo que o arguido no passado já foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, praticado na pessoa de uma outra companheira que teve e que tal condenação não poderia deixar de ser considerada em desfavor do arguido na determinação da medida concreta da pena no presente processo. 18 - No entanto, e conforme resulta do relatório social é um individuo trabalhador, e dispõe de adequada integração sócio residencial, revelando-se um individuo respeitado na respetiva comunidade, pelo que tem boas expetativas de ressocialização, acrescentamos nós. 19 - Conforme resulta também do relatório social é um individuo que tem algumas dificuldades em lidar com a frustração. 20 - Estado de frustração em que se encontrava à data dos factos pois tinha regressado da …. para fazer vida com a assistente BB, deixando para trás um emprego que lhe que proporcionava uma boa qualidade de vida. 21 - Expetativa de vida em comum que se frustrou. 22 - Para lidar com esse estado o arguido procurou apoio medico e à data dos factos estava a ser medicado com ansiolíticos e antidepressivos, conforme informação constante dos autos prestada pelo centro de saúde. 23 - Pelo exposto e considerando as molduras penais dos crimes em questão, entendemos como justas, adequadas e proporcionais as seguintes penas: a- Pela prática do crime de homicídio qualificado tentado praticado na pessoa da assistente BB - 8 anos de prisão. b – Pela prática do crime de homicídio simples agravado na forma tentada praticado na pessoa da assistente CC - 4 anos de prisão c – Em cúmulo jurídico, a pena única não superior a 10 anos de prisão, que entendemos ser justa, se considerarmos o efeito ressocializador que a pena deve ter e não apenas o efeito punitivo. Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas. Senhores Juízes Desembargadores doutamente suprirão, deve o presente recurso ser considerado procedente, e consequentemente: A) Absolver-se o arguido do crime de violência doméstica. B) Condenar-se o arguido pela prática do crime de homicídio qualificado tentado (não agravado), praticado na pessoa da assistente BB, na pena de 8 anos de prisão. C) Condenar-se o arguido pela prática do crime de homicídio simples agravado na forma tentada, praticado na pessoa da assistente CC, na pena de 4 anos de prisão D) Em cúmulo jurídico, condenar-se o arguido na pena única não superior a 10 anos de prisão. E) Mantendo-se no demais o acórdão recorrido. (…). 3. O recurso foi admitido por despacho de 4.01.2021, onde se determinou a sua remessa a este Supremo Tribunal de Justiça, por se entender que versando apenas sobre matéria de direito e tendo sido fixadas penas superiores a 5 anos de prisão, o recurso sobe imediatamente per saltum para este Tribunal, nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos do disposto nos artigos 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, al. a), 408.º, nº.1, al. a) e 432.º, nº.1, al. c), todos do CPP. 4. O Ministério Público veio responder ao recurso no sentido da improcedência do recurso alegando em síntese que: (…) 1.ª - Os crimes de homicídio qualificado na forma tentada e de violência doméstica em que é ofendida BB encontram-se numa relação de concurso efectivo. 2.ª - Inexiste fundamento legal para afastar a aplicação da agravação do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 24 de Fevereiro, ao crime de homicídio qualificado tentado em que é ofendida BB. 3.ª - As penas parcelares dos crimes de homicídio na forma tentada e a pena conjunta em que o recorrente foi condenado adequam-se aos critérios emergentes dos artigos 40.º, 71.º e 77.º do Código Penal e não merecem reparo. (…) 5. A assistente CC veio responder ao recurso nos seguintes termos que se transcrevem: (…) 1.ª O dolo é necessário e não é eventual. 2.ª O objectivo - os motivos e os fins - do arguido era causar a morte da assistente BB. 3.ª O arguido era caçador, com conhecimento de armas e de munições. Com prática e experiência de tiro. 4.ª O arguido formou o propósito de causar a morte da BB com muita antecedência, refletindo sobre a situação e preparou, minuciosamente, o acto. 5.ª Escolheu a hora de saída, que era às 24 horas; porque a maioria das pessoas já estava a dormir, tinha maiores probabilidades de sucesso no seu propósito de matar a assistente BB. 6.ª A assistente BB teria menos condições de defesa, porque não havia ninguém no espaço público e o arguido, também teria mais condições para se dissimular e escapar impune. 7.ª Emboscou-se e esperou que a assistente BB saísse do lar e empreendesse o regresso à respectiva residência, como sucedeu. 8.ª A assistente BB saiu do…. e caminhava, acompanhada da assistente CC, ao lado uma da outra, juntas, à conversa, dirigindo-se para o parque de estacionamento, onde estava estacionado o veículo da CC, no qual se transportariam. 9.ª Quando passavam, à frente do arguido, no seu campo ideal de tiro, o arguido apontou a arma de caça às duas e disparou 3 tiros. 10.ª O arguido fez os disparos a uma distância em que os chumbos iam já espalhados, de forma a abrangerem todo o espaço físico que as assistentes ocupavam, pelo que sabia e representou em consciência esta factualidade, até devido à sua qualidade de caçador, pelo que está preenchido o elemento intelectual do dolo necessário. 11.ª O arguido quis tal acção, pelo que está, igualmente, preenchido o elemento volitivo do dolo necessário. 12.ª O arguido atingiu a assistente CC na perna e no braço esquerdos. O braço esquerdo está à altura e próximo do coração. 13.ª A morte da assistente CC surge, ao arguido, não como meramente possível, mas, sim, como “altamente provável”, se não mesmo “certa”. 14.ª A assistente CC caminha, ao lado da assistente BB, junto a esta, os chumbos vão dispersos e ocupando um raio de acção que abrange todo o espaço físico que elas ocupam; pelo que era, previsível, com toda a certeza, que o arguido ia atingir a assistente CC, como atingiu. 15.ª A probabilidade de acertar, no corpo da assistente CC, em zonas vitais, surge como certa, porque está junta ao alvo e todo o espaço físico ocupado pelas duas está dentro do campo de impacto dos projécteis, pelo que o arguido sabia que, para causar a morte da assistente BB, causava, necessariamente, a morte da assistente CC. 16.ª O arguido agiu com dolo necessário. 17.ª O tipo de culpa do arguido é doloso – dolo necessário. 18.ª A conduta do arguido revela especial censurabilidade, porque lhe era, insuportavelmente, indiferente matar a assistente CC, desde que lograsse atingir o seu objectivo criminoso – a morte da assistente BB. 19: ª O arguido revela uma personalidade muito desvaliosa, que está documentada na factualidade praticada. 20.ª O arguido agiu “com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados” (artigo 132.º n.º 2 alínea j) do Código Penal) e por “motivo torpe ou fútil” (artigo 132.º n.º 2 e) in fine do Código Penal). 21.ª O arguido, ao tentar causar a morte da assistente BB, quando sabe e quer que provoca, necessariamente, a morte da assistente CC é um acto repugnante / um acto perverso. 22.ª O arguido nada tinha contra a assistente CC, pelo que, ao não se importar de matar a assistente CC, no referido contexto, o arguido revelou uma intensa perversidade e perigosidade. 23.ª O homicídio cometido, na forma tentado, contra a assistente CC, face à factualidade descrita é qualificado, porque o dolo é necessário. 24.ª Contudo, há que ter presente que as alíneas e) e j) do artigo 132.º n.º 2 do Código Penal se referem aos fins e aos motivos prosseguidos pelo arguido e não aos actos de execução, ou seja, está antes da prática de actos de execução. 25.ª A qualificação é compatível com a tentativa e com o dolo eventual, porque é necessário separar os exemplos-padrão referentes aos actos de execução e os que se reportam aos fins e motivos do arguido, razão por que não existe nenhum fundamento jurídico ou dogmático para afastar a qualificação do crime perpetrado contra a assistente CC. 26.ª A determinação da pena, em concreto, deve fazer-se em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção geral e de prevenção especial, de acordo com o disposto no artigo 71.º n.º 1 do Código Penal, em articulação com o disposto no artigo 40.º do mesmo código. 27.ª É necessário construir o substrato para medir e fixar, em concreto, a pena a aplicar ao arguido; no qual entram o tipo de ilícito, o tipo de culpa, as necessidades de prevenção geral e especial e todas as circunstâncias relevantes que não fazendo parte do tipo deponham a favor ou contra o arguido, de acordo com o disposto no artigo 71.º n.º 2 do Código Penal. 28.ª Tais circunstâncias podem ser agrupadas em factores que se prendem com a execução do facto (alíneas a), b), c) e e) do artigo 71.º n.º 2 do Código Penal), com a personalidade do arguido (alíneas d) e f) do artigo 71.º n.º 2 do Código Penal), com a conduta anterior e com a conduta posterior (alínea e) do artigo 71.º n.º 2 do Código Penal) ao ilícito típico cometido . 29.ª O ilícito - típico é um homicídio qualificado pelas alíneas e) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, pois preenche tais exemplos-padrão, e, por via dos mesmos e não só, preenche a cláusula geral prevista no n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal; sendo que o homicídio é ainda agravado devido à utilização da arma de caça e das respectivas munições. 30.ª As graves consequências para a vítima, consubstanciadas nas graves lesões e sequelas físicas e psíquicas infligidas e na permanência do chumbo no corpo da assistente, que é um corpo estranho, tóxico e com potencial de agente cancerígeno. 31.ª A culpa do arguido é a medida da censurabilidade e da indiferença aos valores, aos bens jurídicos e às normas jurídicas vigentes, relevando-se adequadamente os sentimentos, os motivos e os fins que exprimiu na prática da factualidade. 32.ª A pena deve ser adequada à gravidade do crime para se conseguir o restabelecimento da confiança da comunidade na eficácia da tutela jurídico-penal do bem jurídico vida. 33.ª Os factos praticados, os sentimentos, os motivos e os fins que exprimiu nos mesmos revelam que a carência de socialização é enorme 34.ª Deve considerar-se o grau de ilicitude, o modo de execução, a gravidade das consequências, a intensidade da vontade no dolo, os sentimentos manifestados na preparação do crime, os fins e os motivos que determinaram o arguido a praticar o crime. 35.ª O arguido revelou, nos factos praticados e nas suas circunstâncias, uma personalidade muito desvaliosa, que revela notória incapacidade para pautar os seus actos pelo respeito dos bens jurídicos, dos valores e das normas jurídicas vigente, pelo que merece um juízo de intensa censura e reprovação. 36.ª Devem também relevar a condenação anterior que sofreu, as mensagens que enviou à assistente BB, antes do crime, e a minuciosa preparação do crime. 37.ª Devem ainda relevar as mensagens que enviou, após o crime, à assistente BB e as declarações que prestou, no Hospital ….., ao médico psiquiatra sobre os motivos dos seus actos. 38.ª O arguido não evidenciou o mais leve assomo de arrependimento e não interiorizou a gravidade dos seus actos e a gravidade das suas consequências. 39.ª A pena de prisão foi fixada em 5 anos de prisão. 40.ª Face ao supra exposto, a única critica de que é passível esta pena é que ela é demasiado baixa, ou seja, desproporcionada e desadequada face à responsabilidade jurídico-criminal do arguido. Nestes termos deve considerar-se infundado o recurso interposto, pelo arguido, na parte em que se reporta à assistente CC, e confirmado o douto acórdão do Juízo Central Cível e Criminal ….., mantendo-se a pena de 5 anos aplicada ao arguido pelo crime perpetrado contra a assistente CC.(…) 6. Subiram os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, onde a Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer nos termos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, no sentido do parcial provimento do recurso, no tocante à redução da pena única aplicada para 12 (doze) anos de prisão, mantendo-se, no demais, o acórdão recorrido. 7. Cumprido o disposto no n.º 2, do artigo 417.º do CPP, nada foi dito. 8. Colhidos os vistos, de acordo com o exame preliminar, foram os autos presentes a conferência.
II.
9. O objecto do recurso reporta – se ao exame das seguintes questões: ii. da violação do princípio ne bis in idem, quanto à agravação do crime de homicídio qualificado (agravação pelo uso da arma de fogo, por referência ao artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23/02); iii. da medida da pena – parcelares e em cúmulo. 10. São os seguintes os factos provados no acórdão recorrido (transcrição): (…). Da Acusação Pública: 1. O arguido AA e a vítima BB (doravante BB) mantiveram um relacionamento amoroso, sem coabitação, entre Novembro de 2019 e data não concretamente apurada mas situada no início do mês de Fevereiro de 2020. 2. Em datas não concretamente apuradas, mas sitas entre o mês de Novembro de 2019 e o início do mês de Fevereiro de 2020, o arguido AA disse à vítima BB que pretendia “fazer vida” com a mesma, fazendo planos relativos à sua relação, o que BB considerava ser ainda prematuro. 3. A partir de meados do mês de Fevereiro de 2020, a vítima BB retomou um relacionamento amoroso com DD. 4. Entre as 0h33 do dia 18 de Fevereiro e as 16h40 do dia 22 de Fevereiro de 2020, o arguido telefonou à vítima BB 58 (cinquenta e oito) vezes. 5. No dia 22 de Fevereiro de 2020, pelas 17h06, o arguido recebeu uma mensagem escrita remetida pela vítima BB com o teor: “Boa tarde, não me voltes aprocurar que eu estou com o meu namorado e vamos ficar justo”. 6. Acto contínuo, pelas 17h18 e 17h20, o arguido respondeu às mensagens da arguida, referindo-lhe: - “Sabes vai se acabar mesmo tudo de uma ves podes querer” - “Eu não estou a acreditar eu vou acabar comigo”. 7. Entre as 17h14 e as 21h32 do dia 22 de Fevereiro de 2020, o arguido telefonou à vítima BB 8 (oito) vezes. 8. Seguidamente, pelas 21h32, a vítima BB enviou uma mensagem escrita ao arguido com o teor: - “Por favor não me ligues mais é nem me mandes mensagens esquece me eu voltei para o meu namorado se continuares sou obrigadas a fazer queixa” 9. Após, entre as 21h34 do dia 22 de Fevereiro e as 2h32 do dia 23 de Fevereiro de 2020, o arguido telefonou à vítima BB 40 (quarenta) vezes. 10. No dia 23 de Fevereiro, pelas 8h00, o arguido AA dirigiu-se ao “….”, sito no Loteamento …., na ….., local de trabalho das vítimas BB e CC (doravante CC). 11. Nas referidas circunstâncias de lugar e de tempo, através de uma janela exterior, o arguido visualizou a vítima BB a tomar café na máquina automática que no local se encontra. 12. Seguidamente, pelas 08h07, o arguido enviou uma mensagem escrita à vítima BB com o texto: - “Eu já te vi a tirar o café”. 13. Entre as 08h31 e as 23h12 do dia 23 de Fevereiro de 2020, o arguido telefonou à vítima BB 17 (dezassete) vezes. 14. Paralelamente, entre as 08h58 e as 19h17 de 23 de Fevereiro de 2020, o arguido enviou 4 (quatro) mensagens à vítima, designadamente, mas não só: - “Por favor não me fasssas fazer uma asneira” - “Andas te a gosar comigo lembra te que tens uma filha” 15. Entre as 13h25 do dia 24 de Fevereiro e as 18h48 do dia 26 de Fevereiro de 2020, o arguido telefonou à vítima BB 13 (treze) vezes. 16. Simultaneamente, no período compreendido entre as 12h57 do dia 24 de Fevereiro e as 21h24 do dia 26 de Fevereiro de 2020, o arguido enviou 68 (sessenta e oito) mensagens à vítima BB, designadamente, mas não só: - “Disme só a verdade não pesso mais nada por favor assim vou acabar por fazer uma ageneira” - “Olha vás ter uma má nuticia em breve para que dizias que me amavas tanto se era mentira e tu andavas a falar com ele muito obrigado por o par de cornos” - “Vais te arrepender” - “Um dia quando esse dia vai acabar em pouco tempo se calhar é já” - “Talves um dia pagues po o que tens feito” - “Eu perdoute mas o que pode acontecer não sei” - “Não tenho picha para ti é isso eu sabia” - “Olá anja linda hoje já não vais mais falar comigo eu sei mas amanham já é tarde” - “Eu não tiro isto da cabeça”. 17. Em hora não concretamente apurada, mas anterior às 0h00 do dia 27 de Fevereiro de 2020, o arguido, munido da espingarda caçadeira de marca “….”, modelo “…..”, com o n.º de série ….., devidamente carregada, deslocou-se ao …“…..”, ficando no seu exterior a aguardar a saída de BB. 18. Seguidamente, pelas 0h12 do dia 27 de Fevereiro, o arguido AA enviou à vítima BB uma mensagem escrita com o teor: - “Hoje já não falas comigo ok” 19. Pelas 0h20 as vítimas BB e CC saíram conjuntamente … “….” por um portão lateral reservado a funcionários, dirigindo-se ambas ao veículo automóvel da vítima CC, estacionado a 50 (cinquenta) metros do portão. 20. Acto contínuo, o arguido AA, colocando-se atrás das vítimas, sem que as mesmas o vissem, efectuou três disparos na direcção das mesmas, atingindo BB na face, pescoço, tronco e membros superiores e CC no antebraço, mão esquerda, e coxa direita. 21. Após, o arguido fugiu do local em direcção à sua habitação sita na Rua …, em …., onde se refugiou na garagem anexa à habitação, no interior do veículo de matrícula …-…-GA. 22. Seguidamente, em hora não concretamente apurada, mas nos minutos anteriores às 3h00, com a finalidade de colocar termo à sua própria vida, o arguido ingeriu uma quantidade indeterminada da substância química “Ciper”, uma solução emulsionante para desinfestação de locais e alojamento de animais. 23. O arguido foi imediatamente transportado para o Hospital ….. já em estado de inconsciência. 24. Como consequência directa da acção do arguido, a vítima BB sofreu dores, perda de consciência e lesões, nomeadamente: ferida com perda de substância da face anterior do braço esquerdo e mão direita; chumbos no maxilar inferior, junto à glândula tiroideia; traumatismo torácico com enfisema celular subcutâneo da parede ântero-lateral direita do terço superior do tórax e vertente posterior do ombro esquerdo; traumatismo intra torácico com infiltração do mediastino anterior, contusão pulmonar e laceração pulmonar (1/3 anterior superior direito e ½ inferior do pulmão esquerdo) com hemotórax bilateral e colocação de dreno torácico esquerdo; pneumoperitoneu no hipogastro anterior; traumatismo do diafragma esquerdo; trauma da junção do corpo e causa do pâncreas; hematoma sub capsular do baço; polo inferior do rim esquerdo; e traumatismo endoluminal do reto. 25. Como consequências permanentes da conduta do arguido, a vítima BB ficou com: dor e limitação da mobilidade da mão direita e ombro esquerdo; deformação do braço esquerdo permanente; desfiguração da figura feminina por cicatrizes múltiplas na face, tórax, e membros superiores; fractura dentária; dores; tonturas; esquecimento; diarreia e tenesmo com dores umbilicais. 26. As lesões referidas no ponto anterior determinaram à vítima BB a afetação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional pelo período de noventa e quatro dias. 27. Como consequência directa da acção do arguido, a vítima CC sofreu dores e lesões no antebraço, mão esquerda, e coxa direita, que lhe provocaram: onze cicatrizes arroxeadas eutróficas dispersas pela região anterior do antebraço, cicatriz arroxeada eutrófica com 0,2 cm na região anterior do 1/3 médio do braço, e cicatriz arroxeada eutrófica com 2x1 cm no 1/3 médio da coxa. 28. As lesões referidas no ponto anterior determinaram à vítima CC a afetação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional pelo período de quarenta e seis dias. 29. O arguido AA atuou com o intuito logrado de disparar três cartuchos de chumbo de caçadeira no corpo da vítima BB, em zonas de alto risco para a vida da vítima, bem sabendo que tal conduta poderia provocar a morte da mesma. 30. Agiu, assim, o arguido AA, com o propósito de pôr termo à vida da vítima BB, bem sabendo que actuava contra a sua ex-namorada, e que sobre si impendia um dever acrescido de respeito para com aquela, bem como um dever acrescido de não atentar contra o seu bem-estar físico e vida, não obstante, quis actuar da forma por que o fez, com o propósito de alcançar tal resultado, que apenas não logrou conseguir por factos alheios à sua vontade. 31. Sabia o arguido que as expressões que dirigiu a BB eram aptas a atingir a sua honra, consideração e dignidade pessoal, e a causar-lhe medo, perturbação, inquietação e humilhação, e, não obstante, quis actuar da forma por que o fez, com o propósito de alcançar tal resultado, que também logrou conseguir, bem sabendo que, na qualidade de ex-namorado da vítima, sobre si impendia um dever acrescido de respeito para com aquela, bem como um dever acrescido de não atentar contra o seu bem-estar físico e psíquico. 32. Com a conduta descrita, o arguido, de forma consciente, livre, e voluntária, representou e quis dirigir à vítima BB aquelas expressões, bem sabendo que tais expressões, com prenúncio de prática de um mal futuro contra a sua vida e/ou integridade física, eram aptas, como foram e são, a provocar medo e inquietação. 33. Sabia ainda o arguido AA que, ao controlar a vítima BB de forma directa e indirecta, presencialmente e através de telefonemas e mensagens para o telemóvel da mesma, dirigindo-lhe os comentários acima referidos, sempre de forma reiterada, com o propósito concretizado de, com tais expressões e condutas, impor a sua presença na vida da vítima e amedrontá-la, o que conseguiu, originava-lhe um receio constante das suas reacções, coarctando dessa forma a sua liberdade de determinação, nomeadamente a de movimentos, e bem assim perturbando o descanso e tranquilidade da vítima, resultados que previu e quis, bem sabendo ainda que tais condutas eram aptas a produzir tal efeito. 34. O arguido AA atuou também com o intuito logrado de disparar três cartuchos de chumbo de caçadeira em direcção ao corpo da vítima CC, em zonas de alto risco para a vida da vítima, bem sabendo e tendo consciência que tal conduta poderia provocar a morte da mesma, conformando-se com esse resultado. 35. Ao agir da forma descrita, designadamente fazendo uso da espingarda caçadeira que detinha na sua posse, o arguido provocou de forma determinante os ferimentos e lesões corporais passíveis de serem letais nos corpos das vítimas BB e CC. 36. Bem sabia e não podia ignorar o arguido que o meio utilizado para tentar pôr termo à vida das vítimas encerrava um potencial de perigosidade muito superior aos meios normalmente utilizados para atentar contra a integridade física e que, pelas suas características, diminuía significativamente as possibilidades de reacção e defesa das vítimas. 37. Para tanto, não se coibiu o arguido de atentar contra as vítimas de noite, quando estas se encontravam de costas para si, que não sabiam da sua presença no local, bem sabendo que assim as vítimas tinham as suas capacidades de defesa muito diminuídas, do que se prevaleceu para atingir o seu objectivo, que apenas não logrou conseguir por factos alheios à sua vontade. 38. Em todos os factos descritos o arguido agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento. Da Acusação Particular 39. A assistente CC é trabalhadora da …….., desempenhando as suas funções profissionais no …. da mesma ….. denominado “…..” com a categoria …... 40. As suas funções profissionais eram exercidas, por turnos, sendo um desses turnos das 16,00 horas às 24,00 horas. 41. No dia 26/02/2020, a assistente CC iniciou as referidas funções, no …., às 16,00 horas e terminou-as às 24,00 horas. 42. No mesmo …. trabalhava, também, exercendo idênticas funções, a ofendida BB. 43. Em 26/02/2020, a BB iniciou, igualmente, o turno às 16,00 horas e terminou-o às 24,00 horas. 44. O arguido AA foi caçador, o que lhe proporcionou conhecimentos e prática de tiro. 45. BB chegou a ir ao Posto da Guarda Nacional Republicana …. pedir informações face às ameaças do arguido AA. 46. O arguido AA estava emboscado quando efectuou os disparos. 47. O arguido AA atingiu, com o primeiro disparo, a coxa direita da assistente CC. 48. Em virtude dos disparos de que foi vítima, CC sofreu as seguintes lesões: - Membro superior esquerdo : 1 crosta correspondente a porta de entrada do projétil com 0,2 cm na região anterior do 1/3 médio do braço com equimose arroxeada inferior a crosta com 4 x 2 cm; 11 crostas correspondentes às portas de entrada dos projéteis distribuídas na região anterior de toda extensão do antebraço; 2 crostas correspondentes a porta de entrada do projétil localizadas na região palmar da mão entre os dedos indicador e polegar e acima do dedo anelar; -Membro inferior direito: escoriação com 1 x 1 cm no 1/3 médio externo da coxa. (…). Mais se provou que: 76. Do registo criminal do arguido consta condenação na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período sob condições, pela prática em 26/12/2016 de crime de violência doméstica, tendo a mesma transitado em julgado a 13/09/2017 -Proc. 126/16…..; 77. Foi elaborado pela DGRSP relatório social ao Arguido, donde se extrai que: «AA encontra-se preso preventivamente, à ordem dos presentes autos, desde finais do mês de fevereiro pp, revelando adaptação às normas e regras que enformam o universo penitenciário. Detém apoio familiar, nomeadamente da progenitora, octogenária, a qual, ainda que impossibilitada presentemente de aceder à visita face a queda sofrida, continua a proceder ao aprovisionamento do respetivo cartão de recluso, propiciando ao filho meios monetários para a aquisição de itens no bar e cantina de reclusos do Estabelecimento Prisional. À data da prisão integrava o agregado monoparental da progenitora, mantendo residência na localidade de …, ….., de onde é natural. No ano transato manteve trabalho por cerca de 3-4 meses como …., na …, atividade gratificante e bem paga que cessou face ao seu regresso ao país, ao que indica para travar conhecimento pessoal com BB, com quem mantinha contacto virtual através da rede social, Facebook. Após o regresso retomou o trabalho na área …, …. e …., através de firma de trabalho temporário. Segundo afirma encontrava-se a efetuar tratamento medicamentoso para a depressão, situação de saúde decorrente da alteração relativa à sua vida profissional/económica com o regresso a Portugal. Ao longo da sua vida ativa o arguido enquadrou-se na área ….., inicialmente como …, profissão desenvolvida também pelo progenitor, tendo progredido igualmente noutras áreas referentes à …., nomeadamente na …., profissão que tem exercido maioritariamente. O advento da crise económica que atravessou os diversos setores produtivos e em especial o … determinou redução significativa do trabalho, o qual passou a efetuar a espaços e em forma …., alternando com algum trabalho, de natureza sazonal, na ….. e na ……. O arguido constitui-se o elemento mais velho de uma fratria de dois. A irmã tem constituído agregado autónomo, encontrando-se desde há alguns anos estabelecida no …... AA apresenta indicadores de exposição a um processo de socialização estruturado e um enquadramento familiar e social normativo, tendo beneficiado de um ambiente familiar de coesão e afetividade entre os seus elementos. Frequentou o ensino na idade própria, tendo concluído a designada 4.ª Classe. Em regime noturno concluiu o 6.º ano de escolaridade. Cumpriu o S.M.O., por cerca de 16 meses, em ….., tendo na altura, com 19 anos, contraído casamento. Esta união, da qual resultou o nascimento do filho EE, perdurou por cerca de seis anos. A ex-cônjuge afastou-se da zona de residência com o menor, impossibilitando AA o contacto e a manutenção de laços afetivos com este filho, mantendo-se na atualidade a inexistência de proximidade relacional entre ambos. Com cerca de 25 anos uniu-se maritalmente a FF, união que perdurou por cerca de 9 anos, e da qual resultou o nascimento do filho mais novo GG, de 27 anos de idade. Após a separação e durante algum tempo o filho ainda permaneceu consigo no agregado dos avós maternos. Mantém com este filho um relacionamento afetivamente próximo, ainda que o mesmo desde o final da adolescência tenha voltado a residir com a progenitora, estabelecida noutra zona do país. Relativamente às duas uniões assinaladas que manteve não existe qualquer reporte a situações de violência durante os períodos de coabitação. Contudo, no ano de 2016 vivenciou novo relacionamento afetivo, sem coabitação, o qual foi marcado pela conflituosidade devido a ciúmes que o arguido manifestava relativamente aquela, tendo resultado a abertura de processo de violência doméstica contra AA. Dispõe de adequada integração sócio residencial, revelando-se um individuo respeitado na respetiva comunidade. Contudo, AA apresenta em contexto familiar algumas dificuldades em lidar com a frustração, revelando quando contrariado, vocabulário e atitudes menos corretas/imponderadas com os familiares. (…). 13. Apreciemos. 14. Da figura do crime de violência doméstica e de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, (concurso real/aparente), e, absolvição da prática do crime de violência doméstica. Comecemos por analisar a pretensão do recorrente AA quando defende que os crimes de violência doméstica e de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, pelos quais foi condenado, e cometidos na pessoa da assistente BB, estão em concurso aparente, e não em concurso real como decidiu o Tribunal. Para tal alega o recorrente: (…) 1 - Conforme resulta do art. 152º do Código Penal, o crime de violência doméstica estabelece uma pena abstracta que deixa de ser aplicável se pena mais grave couber "por força de outra disposição legal". 2 - Relativamente à assistente BB o arguido foi condenado por este crime e pelo crime de homicídio qualificado agravado na forma tentada em 2 anos e 10 anos respetivamente. 3 - De onde resulta ser entendimento do tribunal a quo que estes crimes estão em concurso real. 4 - Deste entendimento discorda o arguido, pois cremos tratar-se de um concurso aparente. 5 - O citado art. 152º do Código Penal faz aplicação do denominado princípio da subsidiariedade, no âmbito do chamado concurso impróprio, aparente ou normativo. 7 - Razões pelas quais deveria o arguido ter sido absolvido do crime de violência doméstica p.p. no art. 152º do Código Penal, tanto mais que os factos consubstanciadores deste crime imputados ao arguido ocorreram escassos dias antes da prática dos factos consubstanciadores do crime de homicídio na forma tentada. 8 - Ao condenar o arguido o Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação do citado art. 152º do Código Penal, pois não levou em conta a sua aplicação subsidiária. (…). Recorde-se o que a este respeito se diz no acórdão recorrido: “(…) No caso dos autos, em suma provou-se que, numa actuação reiterada, ao longo de, pelo menos, nove dias, telefonou incessantemente a BB, sua ex-namorada, a qualquer hora do dia e da noite, remeteu-lhe mensagens com ameaças veladas, dirigidas à própria mas também à filha, humilhantes, ofensivas, de nada servindo os apelos da Assistente para que a deixasse em paz, chegando a ir espreitá-la ao local de trabalho, fazendo questão que ela o visse. Esta obsessão do arguido em retomar aquela relação a qualquer custo ou impedir que a Assistente dele se afastasse e prosseguisse com a sua vida, reflectiu-se na liberdade de acção e autonomia da mesma, retirando-lhe paz de espírito, sentindo-se humilhada, perseguida, passando a viver em sobressalto em qualquer local que se encontrasse e a qualquer hora do dia. Donde, não restam dúvidas que a descrita actuação do arguido comprometeu de forma sério o bem-estar psíquico da vítima, propósito esse visado pelo mesmo. Ou seja, agiu com dolo directo. Pelo que, inexistindo causas de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, será o arguido condenado pelo crime de violência doméstica de que vem acusado (…)”. E, mais adiante, diz que: “(…) No caso concreto, dúvidas inexistem pelo preenchimento do tipo objectivo e subjectivo do crime em análise relativamente às duas vítimas, porquanto está demonstrado que o Arguido, munido da espingarda de caça, calibre 12, municiada com três cartuchos, efectuou três disparos na direcção das mesmas, atingindo-as ao nível das coxas/tronco/cabeça, só não lhes causando a morte por motivos exteriores à sua acção e intenção (art. 22º nºs. 1 e 2 a) e b) do Cód. Penal) (…)”. Estamos perante a prática de crimes – violência doméstica e homicídio - cujo bem jurídico tutelado pelas respectivas normas incriminadoras é distinto, não podendo considerar-se estarmos perante um único crime cometido na pessoa da assistente BB. Assim, os bens protegidos tutelados pela norma incriminadora do crime de violência doméstica do artigo152.º, do CP assentam na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, punindo as condutas que lesam esta dignidade, quer na vertente física, quer na vertente psíquica. Por seu lado, o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime de homicídio dos artigos 131.º e 132.º do CP é o da inviolabilidade da vida humana, sendo o direito à vida (…) “um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto “(…)[2] . Desta forma, o crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, cometidos pelo recorrente AA assumem autonomia, encontrando-se tais crimes numa relação de concurso real efectivo, pelo que devem ser autonomizados, tal como o fez o acórdão recorrido, estando-se perante uma pluralidade de processos resolutivos, com violação de bens jurídicos diferentes. Pelo que bem andou o acórdão recorrido. 15. Em abono do decidido no acórdão, vejamos ainda[3]. Com a incriminação das condutas previstas no artigo 152.º, do CP, com base no qual o arguido foi condenado, visa-se, no essencial, proteger a dignidade humana, tutelando quer a integridade física da pessoa, quer a sua integridade psíquica, defendendo, de uma maneira abrangente, a saúde da vítima, quando esta tem ou tenha mantido com o arguido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (n.º 1, alínea b). Na génese de tal incriminação está, assim, de forma decisiva, a tutela da pessoa humana na sua irrenunciável dimensão de liberdade e dignidade. Está, por isso, directamente abrangida pelo âmbito da protecção dispensada por aquela norma penal, não só a integridade física propriamente dita, mas a saúde da pessoa ofendida, na sua globalidade e, enquanto tal, abrangendo o bem-estar físico, psíquico e mental, enquanto elemento essencial, indispensável à "mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade"[4]. Nos termos do artigo 26.º, n.º 2, da CRP, “a lei garantirá a dignidade pessoal” e, face ao artigo 25.º, “a integridade moral e física das pessoas é inviolável” e “ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos”. Trata-se da tutela constitucional de um direito organicamente ligado à defesa da pessoa individualmente considerada, cuja proclamação faz resultar para cada um de nós a legítima expectativa de, ao conformar-se e dispor de si mesmo, nas múltiplas formas de interacção social, não vir a ser agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por meios físicos ou morais[5]. É essa evidência, devidamente sublinhada nas sociedades modernas, que permite um alargado consenso no sentido da reprovação de quaisquer actos - acções ou omissões - que, de forma directa ou indirecta, visam infligir sofrimento físico, sexual ou psíquico, seja através de castigos corporais, de privações de liberdade, de ofensas sexuais, ou por qualquer outra via, a qualquer ser humano, tendo por objectivo e/ou como efeito intimidá-lo, puni-lo, humilhá-lo ou simplesmente mantê-lo sob controle, ou recusar-lhe a inerente dignidade humana ou a sua autonomia sexual. Este crime abarca, assim, condutas que se traduzam em violência física, psicológica, verbal ou sexual, correspondendo aos maus tratos físicos as ofensas à integridade física simples, enquanto os maus tratos psíquicos, decorrentes, nomeadamente, de humilhações, provocações, molestações, e outros, podem ser concretizados através de ameaças, mesmo que não configurem o crime de ameaça, de coacção simples, ou dos crimes contra a honra (difamação e injúrias). Tal como acontece com o crime de maus tratos, relativamente ao qual se autonomizou o de violência doméstica, entre este e o crime de ofensas corporais simples (artigo 143.º), o crime de ameaça (artigo 153.º), o crime de difamação (artigo 180.º), ou o crime de injúria (artigo 181.º), “existe uma relação de especialidade, só se aplicando, portanto, a pena estabelecida para aquele” (maus tratos ou violência doméstica, consoante as circunstâncias), sendo o concurso, aparente[6] . Com a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4/9, o legislador quis pôs fim à querela jurisprudencial e doutrinal existente sobre se a conduta teria de ser reiterada ou não, definindo que o conceito de maus tratos pode ser preenchido com uma conduta isolada, dispensando a reiteração. Todavia, não é toda e qualquer conduta[7]. Em especial, quando esta traduz um comportamento isolado, exige-se uma gravidade notoriamente acrescida e com efeitos nefastos para a vítima, ao nível da sua dignidade como pessoa. Com reiteração ou não[8], as concretas circunstâncias em que ocorreu a conduta é que serão determinantes para, a partir delas, se apurar se os factos ilícitos cometidos, valorados à luz do relacionamento entre agressor e vítima, são susceptíveis de constituir um verdadeiro atentado à dignidade desta, para além de ofenderem a integridade física ou a honra, ou atentarem contra a liberdade ou a autodeterminação sexual. Ou seja, é essencial que fique demonstrado que a conduta ilícita “atingiu o âmago da dignidade da pessoa ou o livre desenvolvimento da sua personalidade”, de molde a poder concluir-se que, com tal actuação, o agressor tratou a vítima como mera “coisa” ou “objecto” e não como sua igual, como pessoa livre, titular de direitos que está obrigado a respeitar. Entre as situações previstas no mencionado tipo legal, uma das que com maior frequência se verifica é, precisamente, a dos maus tratos físicos e psíquicos ao cônjuge, ao ex-cônjuge, ao namorado/a, ou a pessoa com quem tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges. Quanto aos sujeitos protegidos com a incriminação há, com a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4/9, um alargamento incluindo-se no tipo legal da violência doméstica, o ex-cônjuge, os unidos de facto e ex-unidos de facto do mesmo sexo, ainda que sem coabitação[9] - tendo o legislador pretendido incluir as relações familiares pretéritas e aquelas que não assentam em laços familiares ao tempo da consumação do facto[10]. Pode, assim, dizer-se que o bem jurídico protegido é a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental que pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade pessoal do indivíduo. A panóplia de acções que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se, pois, em maus tratos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente. No fundo, a ratio do preceito deriva da especial relação entre o agente e o ofendido e não está, pois somente na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional, mas sim e também na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. Se em tempos passados, se considerou que o bem jurídico protegido era apenas a integridade física, constituindo o crime de maus tratos uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, hoje, uma tal interpretação redutora é, manifestamente, de excluir. Não se pode deixar de entender que através deste preceito se tutela um bem jurídico diferente daqueles que são protegidos por outras incriminações que a conduta do agente pode, eventualmente, também ter preenchido, como sejam a integridade física e outras diferentes dimensões da liberdade. As condutas típicas que integram o elemento objectivo do tipo do ilícito em causa, podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (ofensas corporais voluntárias simples) e maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças mesmo que não configuradoras, em si, do crime de ameaças). Inclui, além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (coagindo a vítima a praticar actos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de acção, de movimentação, etc.), que, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. Assim, o que se pretende criminalmente proibir são aqueles maus-tratos conducentes à violação ostensiva da saúde física ou psíquica das pessoas que integram aquelas relações familiares ou análogas, ou então de coabitação, podendo ainda abarcar a afectação da sua privacidade, seja ao nível da sua liberdade pessoal, em geral, ou da sua autodeterminação, em particular. Nesta conformidade, podemos assentar e partindo do bem jurídico aqui tutelado que os maus tratos proibidos pelo crime de violência doméstica têm sempre subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, de modo a eliminar ou a limitar claramente a sua condição humana, reduzindo-a praticamente à categoria de “coisa” ou “objecto”[11]. A actual definição típica, por incluir também agora castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, suscita questões de qualificação jurídica, revestindo-se de alguma complexidade determinar se perante a factualidade considerada provada de que se dispuser, se deve entender que o agente praticou o crime de violência doméstica, ou, se praticou, antes, crimes de tipo comum. Dito por outras palavras, no ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada “da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima. Em última instância, é ainda o conceito de integridade pessoal (física e psíquica) comum ao crime de ofensa à integridade física simples, com a particularidade de, aqui, ser outra a caracterização da agressão e da actuação do agressor, estabelecidas, ambas, em função do "ambiente e da imagem global do facto" indiciador de um maior desvalor da acção e de um potencial perigo de prejuízos sérios para a saúde e para o bem-estar da vítima. O importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física ou psíquica de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si só, constitui um "risco qualificado que a situação apresenta para a saúde física ou psíquica da vítima". Nesse caso, impõe-se a condenação pelo crime de violência doméstica, do artigo 152°, do CP. Se não, a situação integrará a prática de um dos vários crimes comuns. Quanto ao elemento subjectivo, estas incriminações só se preenchem com a intenção dolosa, em todas as suas modalidades previstas no artigo 14. ° do CP (dolo directo, necessário ou eventual). Assumindo que a violência doméstica é essa agressão levada a cabo de modo variado à autodeterminação da vítima que fica afectada pelos vários comportamentos tipificados não parece intransponível que esse ataque possa ser tido como dirigido à dignidade da pessoa e que seja esse um dos âmbitos de tutela que se visa assegurar. 16. No caso dos autos, provou-se que, numa actuação reiterada, ao longo de, pelo menos, nove dias, telefonou incessantemente a BB, sua ex-namorada, a qualquer hora do dia e da noite, remeteu-lhe mensagens com ameaças veladas, dirigidas à própria mas também à filha, humilhantes, ofensivas, de nada servindo os apelos da assistente para que a deixasse em paz, chegando a ir espreitá-la ao local de trabalho, fazendo questão que ela o visse. Esta obsessão do arguido em retomar aquela relação a qualquer custo ou impedir que a assistente dele se afastasse e prosseguisse com a sua vida, reflectiu-se na liberdade de acção e autonomia da mesma, retirando-lhe paz de espírito, sentindo-se humilhada, perseguida, passando a viver em sobressalto em qualquer local que se encontrasse e a qualquer hora do dia. Donde, não restam dúvidas que a descrita actuação do arguido comprometeu de forma sério o bem-estar psíquico da vítima, propósito esse visado pelo mesmo. Ou seja, agiu com dolo directo. Pelo que, inexistindo causas de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, bem andou o acórdão recorrido em condenar o arguido pelo crime de violência doméstica de que vem acusado. 17. Vejamos agora o que nos diz o crime de homicídio, para avaliarmos se os crimes em causa se encontram numa relação de concurso real, como o entendeu o Tribunal, ou de concurso aparente, como entende o arguido. 18. De acordo com o disposto no artigo 131.º, do CP “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.” A tentativa é punível – artigo 23.º, do CP. O crime de homicídio previsto no supracitado preceito legal tem como escopo a protecção da vida humana. Trata-se de um crime material ou de resultado que se consuma quando o agente, com a sua conduta, causa a morte a outrem, ou seja, quando a conduta daquele agente é causa adequada e directa da morte ocorrida, sendo que o artigo 10.º, do CP consagra a teoria da causalidade adequada com vista à imputação objectiva do resultado ao agente. Necessário se torna que a acção seja, em abstracto, idónea a produzir o resultado típico e que tal resultado seja uma consequência normal de tal actuação. E para aferir da existência de tal nexo de adequação, como refere o Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1º Vol., pág. 328 e seguintes) “o juiz se deve deslocar mentalmente para o passado, para o momento em que foi praticada a conduta e ponderar, …, se, dadas as regras da experiência e o normal acontecer dos factos (…), a acção praticada teria como consequência a produção do resultado», de tal modo que, “se entender que a produção do resultado era previsível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação não deverá ter lugar” tendo em consideração as regras da experiência comum e os especiais conhecimentos do agente. A nível subjectivo trata-se de um crime doloso, que pode assumir qualquer das suas modalidades – directo, necessário ou eventual – cfr. artigo 14º, do CP. No caso concreto, não se suscitam dúvidas quanto ao preenchimento do tipo objectivo e subjectivo do crime em análise relativamente às duas vítimas, porquanto está demonstrado que o arguido, munido da espingarda de caça, calibre 12, municiada com três cartuchos, efectuou três disparos na direcção das mesmas, atingindo-as ao nível das coxas/tronco/cabeça, só não lhes causando a morte por motivos exteriores à sua acção e intenção (artigo 22.º, nºs. 1 e 2, alíneas a) e b) do CP). A nível do dolo, verifica-se que o arguido actuou: - Com dolo directo, quanto à vítima BB (artigo 14º, nº.1, do CP), ou seja, o resultado morte foi o propósito que alimentou a sua actuação; - Com dolo eventual quanto à vítima CC, ou seja, representando o resultado morte como uma consequência possível da sua actuação, conformando-se com essa mesma possibilidade (nº.3, da citada disposição legal). 19. Dito isto, e com base na factualidade assente, vejamos[12]. Com a prática do crime de violência doméstica o recorrente quis atingir a vítima BB na “dignidade pessoal”, causar-lhe “medo, perturbação, inquietação e humilhação” (facto provado 31), perturbar “o descanso e tranquilidade” (facto provado 33), e impor “a sua presença na vida da vítima” (facto provado 33). E, com a prática do crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, o recorrente quis “pôr termo à vida” da assistente BB (facto provado 30). Ora, perante este quadro factual, verifica-se que o crime de homicídio qualificado na forma tentada, que tutela um bem jurídico distinto e resulta de uma diferente resolução criminosa, ganha autonomia e está numa relação de concurso efectivo, e não apenas aparente, com o crime de violência doméstica. E, ao nível do bem jurídico, a primeira das actuações do recorrente (que integra, como vimos, o crime de violência doméstica) viola não apenas a saúde, seja ela física, psíquica e mental, mas, antes a integridade pessoal, ligado à defesa da dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimensões, da sua ex-namorada A outra, a segunda actuação (que integra o crime de homicídio qualificado na forma tentada), atenta contra a vida da mesma. Destarte, estamos perante uma pluralidade de processos resolutivos, com violação de bens jurídicos diferentes. Razão pela qual foram e devem ser autonomizados. Em conclusão: destacando-se os actos que materializam a tentativa de homicídio daqueles que integram a prática do crime de violência doméstica, descortinando-se diferentes sentidos de ilicitude, com pluralidade de bens jurídicos afectados e pluralidade de resoluções criminosas, há concurso efectivo entre os crimes de homicídio na forma tentada e de violência doméstica. Pelo que, o crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, cometidos pelo recorrente AA assumem autonomia, encontrando-se tais crimes numa relação de concurso real efectivo, pelo que bem andou o acórdão recorrido. Improcede, desta forma, nesta parte, a pretensão do recorrente. 20. Da violação do princípio ne bis in idem, quanto à agravação do crime de homicídio qualificado (agravação pelo uso da arma de fogo, por referência ao artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23/02). Discorda o recorrente do Tribunal, quando este utiliza a agravação pelo uso da arma de fogo quanto aos crimes de homicídio na forma tentada praticados nas pessoas das assistentes BB e CC, por referência ao artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02. Para tal alega alguma jurisprudência, divergente do entendimento do tribunal recorrido, que considera que tal agravação no caso do homicídio qualificado consiste numa dupla agravação em violação do princípio ne bis in idem. Razão pela qual deverá ser revogado o acórdão nesta parte, com os respetivos efeitos ao nível da pena, quanto ao homicídio qualificado na forma tentada, praticado na pessoa da assistente BB[13]. Vejamos. Dispõe o artigo 86.º, nºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, que: “3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma. 4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.”. Como se pode verificar, a agravação prevista no n.º 3, apenas é afastada em duas situações: 1.ª - Se o uso ou porte de arma for elemento constitutivo do tipo legal de crime; 2.ª - Se a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma. Da factualidade assente no acórdão recorrido - factos 17 a 20[14] - verifica-se que o recorrente AA atentou contra a vida da assistente BB com uma arma de fogo, de tipo espingarda, de funcionamento semiautomático, calibre 12, com um cano de alma lisa com 71 centímetros de comprimento, sendo que esta arma está classificada como arma da classe D (artigo 3º, nº 6, al. a), da Lei nº 5/2006, de 23.02). O uso ou porte de arma não é elemento constitutivo do crime de homicídio. Sendo um crime de execução livre, a respectiva conduta típica matar pode ser levada a cabo por qualquer meio. Diz o acórdão recorrido nesta parte e transcreve-se: (…) Já no que respeita à vítima BB, de acordo com a imputação feita na acusação importa aferir se estão preenchidas as circunstâncias previstas nas alíneas b), h) e i), ou seja, ter sido o crime cometido: - contra pessoa de outro sexo com quem o agente tenha mantido uma relação de namoro, - com recurso a meio particularmente perigoso, e/ou - com utilização de meio insidioso. Quanto à segunda qualificativa, respeitante ao uso de espingarda caçadeira, apesar da sua elevada letalidade, estamos perante um meio comummente utilizado na prática deste tipo de crime, não podendo, por isso, ser considerado como um meio particularmente perigoso, susceptível de aumentar o sofrimento da vítima. Já quanto às outras duas qualificativas, as mesmas têm-se por verificadas analisando na globalidade a actuação do arguido. Com efeito, a actuação do arguido em relação à sua ex-namorada não surgiu no “calor” de uma discussão, de uma afronta ou provocação. Não, foi pensada, preparada de forma a surpreendê-la, sendo, por isso, merecedor de especial censurabilidade. Por outro lado, como se refere no Ac. STJ 30-11-2011, Proc. 238/10.2JACBR.S1, disponível em www.dgsi.pt, «A noção de meio insidioso não é unívoca, girando sempre à volta de uma ideia que envolve elementos materiais e circunstanciais, estes ligados a uma certa imprevisibilidade da acção. Por outras palavras, poderá dizer-se que a subsunção não pode ficar-se por uma interpretação que se quede pela consideração apenas do meio utilizado, da forma como é executado o facto, atendendo à natureza do instrumento, mas antes tendo em consideração uma visão mais abrangente, completa, em que entra a imagem global do facto, o que é dizer no caso, apreciar os factos na sua globalidade, analisar a conduta no seu conjunto, avaliar a atitude do agente, o que será avaliado em função das específicas nuances do evento e do pleno das circunstâncias enformadoras do concreto sucesso submetido a juízo. Na análise a efectuar há que ter presente, por um lado, a “natureza do meio/instrumento/arma, que é utilizado”, e por outro, averiguar as “circunstâncias acompanhantes”, isto é, o real, o naturalístico modo de execução do facto, e o conjunto concreto de circunstâncias em que aquela concreta arma/meio/instrumento de agressão, no caso de bens eminentemente pessoais, foi utilizada: a distância a que o agressor se encontrava da vítima (a curta distância, com disparo à queima roupa, ou não), a situação em que esta se encontrava (prevenida ou desprevenida, desprotegida, descuidada, indefesa, com possibilidade de resistência ao agressor ou não), a zona do corpo atingida, o momento e o local escolhido para a agressão, com actuação em espaço fechado, ou aberto, com ou sem espera, com ou sem emboscada, com ou sem estratagema, com ou sem traição, com ou sem perfídia, disfarce, surpresa, dissimulação, engano, abuso de confiança, ou distracção da vítima, ou não, de forma subreptícia, ou não, de forma imprevista ou não, com ataque súbito, inesperado, sorrateiro, ou não, com ou sem possibilidade de a vítima oferecer resistência, enfim, todo o conjunto de factores envolventes e circunstâncias acompanhantes/determinantes do evento letal, ou quase letal, no traço de um desenho panorâmico, de uma imagem multifacetada, de supervisão, de síntese, a final, de um retrato vivencial, de uma fotografia, guardadora de eventos ocorridos, condensada, definida, a juzante, com todos os contornos e pormenores, independentemente dos retoques, e que mais do que a natureza da arma ou instrumento utilizado, indiciam o meio utilizado naquele analisado concreto agir, como particularmente perigoso ou insidioso» Ora, o arguido actuou de noite, esperando a saída da sua ex-namorada do local de trabalho, emboscado de forma a que não fosse percebida a sua presença, efectuou três disparos quando a mesma se encontrava de costas, e que a atingiram ao nível do tronco e cabeça. Pelo que, consideramos estarmos perante um grau de culpa agravado em virtude de o arguido ter actuado de forma insidiosa. Acresce ainda que ambos os crimes de homicídio na forma tentada não podem deixar de ser agravados pelo uso da arma de fogo, por referência ao art. 86.º n.º 3 da Lei n.º 5/2006 de 23/02, (…) Como bem se observa no acórdão do STJ de 31.03.2011, disponível in www.dgsi.pt, a agravação de que aqui se trata encontra o seu fundamento num maior grau de ilicitude do facto, e por isso tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, “traduzindo reacção do legislador à proliferação de condutas criminosas praticadas com armas”, que vêm causando forte alarme social. E não obstante alguma jurisprudência das Relações, que não acompanhamos, defender que no crime de homicídio qualificado não deverá lugar a tal agravação, pela nossa parte seguimos o entendimento do STJ, designadamente no Ac. STJ de 25-10-2017, Proc. 1504/15.PBCSC.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt, aí se enfatizando «(…) a propósito da questão da sobredita agravação, (…) que, como o STJ vem também dizendo, aliás uniformemente, nada obsta a que, mesmo no quadro do homicídio qualificado, possa ser convocada essa agravante geral. (…). Em suma e inexistindo causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa temos de concluir ter o Arguido cometido, em autoria material e em concurso real, um crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, na pessoa de BB, e um crime de homicídio simples agravado, na forma tentada, na pessoa de CC. (…). Posto isto, entende-se não existir fundamento legal para afastar a agravação prevista no artigo 86.º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23.02, porquanto o uso de arma não é elemento do crime de homicídio, e não leva ao preenchimento do tipo qualificado do artigo 132.º, do CP. Também quanto a esta questão, improcede a alegação do recorrente. 21. Da medida da pena – parcelares e em cúmulo. Discorda o recorrente da medida das penas concretas aplicadas em ambos os crimes de homicídio na forma tentada, o qualificado e o simples, de 10 e 5 anos de prisão respectivamente. Bem como não se conforma com a pena única de 14 anos de prisão resultante do cúmulo jurídico. Entende que o Tribunal levou em conta circunstâncias agravantes e desconsiderou as que militam a favor do arguido e estão patentes no próprio relatório social. Ao decidir desta forma o tribunal violou as disposições dos artigos 40.º, 71.º, 77.º e 78.º todos do CP. É certo que o arguido no passado já foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, praticado na pessoa de uma outra companheira que teve e que tal condenação não poderia deixar de ser considerada em desfavor do arguido na determinação da medida concreta da pena no presente processo. No entanto, e conforme resulta do relatório social é um individuo trabalhador, e dispõe de adequada integração sócio residencial, revelando-se um individuo respeitado na respetiva comunidade, pelo que tem boas expetativas de ressocialização. Conforme resulta também do relatório social é um individuo que tem algumas dificuldades em lidar com a frustração. Estado de frustração em que se encontrava à data dos factos pois tinha regressado da ….. para fazer vida com a assistente BB, deixando para trás um emprego que lhe que proporcionava uma boa qualidade de vida. Expetativa de vida em comum que se frustrou. Para lidar com esse estado o arguido procurou apoio médico e à data dos factos estava a ser medicado com ansiolíticos e antidepressivos, conforme informação constante dos autos prestada pelo centro de saúde. Pelo que pugna pela aplicação das seguintes penas, que entende como justas, adequadas e proporcionais: a - Pela prática do crime de homicídio qualificado tentado praticado na pessoa da assistente BB - 8 anos de prisão. b - Pela prática do crime de homicídio simples agravado na forma tentada praticado na pessoa da assistente CC - 4 anos de prisão c - Em cúmulo jurídico, a pena única não superior a 10 anos de prisão, que entendemos ser justa, se considerarmos o efeito ressocializador que a pena deve ter e não apenas o efeito punitivo. 22. Previamente, diremos o seguinte: Nos termos do artigo 40.º do CP, que dispõe sobre as finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no artigo 71.º do mesmo diploma. Como se tem reiteradamente afirmado, este regime encontra os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva[15]. 23. A projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pelas necessidades de protecção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas (finalidade de prevenção geral) e de ressocialização (finalidade de prevenção especial), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, avaliada, em concreto, por factores ou circunstâncias relacionadas com este e com a personalidade do agente, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele (artigos 40.º e n.º 1 do 71.º do CP). Como se tem reafirmado, para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, n.º 2, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os factores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de protecção do bem jurídico ofendido, mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e de prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se, aqui, o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e)], com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial[16]. 24. Dito isto, recorde-se o que ficou exarado no acórdão recorrido: (…). No caso concreto, são as seguintes as molduras abstractas: - prisão de 2 anos, 1 mês e 18 dias a 14 anos, 2 meses e 20 dias para o crime de homicídio simples agravado, tentado; - prisão de 3 anos, 2 meses e 12 dias a 16 anos e 8 meses para o crime de homicídio qualificado agravado, tentado, e - prisão de 1 a 5 anos para o crime de violência doméstica. (…) Assim, há a considerar: - as fortíssimas exigências de prevenção geral quando se nos depara, como no caso, crimes que atentam contra um valor indiscutível e fundamental - individual e socialmente -como é a vida, o bem jurídico primeiro, que sobreleva em relação aos demais, pois é a conditio sine qua non do gozo de todos os outros direitos; por outro lado, são também bastante elevadas as exigências no que ao crime de violência doméstica respeita, constituindo um verdadeiro flagelo nacional, que frequente e infelizmente termina com o cometimento de homicídios, determinando um forte investimento do Estado em campanhas de sensibilização/prevenção e formação; - o modo de actuação do arguido e a sua postura em julgamento, revelando absoluta insensibilidade para com o sofrimento causado às vítimas; - o dolo directo e particularmente intenso no que respeita à sua actuação para com a Assistente BB, atormentando-a ao longo de vários dias e terminando a atentar contra a vida da mesma, sem que o facto de esta estar acompanhada por alguém que nada tinha a ver com a situação o tenha demovido de concretizar o seu propósito; - o dolo eventual no que respeita à sua actuação para com a Assistente CC, mas sem esquecer as circunstâncias da sua acção, a coberto da noite, emboscado, efectuando os disparos quando a vítima se encontrava de costas; - as lesões físicas e psíquicas sofridas pelas Assistentes, bem como as sequelas da mesma natureza de que continuarão a padecer, consoante a respectiva gravidade, tendo de continuar a receber assistência médica/medicamentosa e cirúrgica (no caso de BB); - a forte determinação na prossecução dos seus intentos demonstrada pelo Arguido, quer pelo meio utilizado, quer pelo número de disparos efectuados (três); - o facto de ter registada no seu certificado uma condenação anterior por violência doméstica; - o juízo de prognose altamente desfavorável que é possível realizar porquanto o arguido apresenta uma postura desculpabilizante, de vitimização, ou seja, responsabilizando a Assistente BB pela situação em que ele se encontra, existindo um forte risco de reincidência para com a mesma, - o que resulta do relatório social, supra transcrito. Por tudo o exposto, considera-se que as penas parcelares relativas aos crimes de violência doméstica e homicídio simples agravado, na forma tentada, se devem situar num patamar médio-inferior e, quanto ao crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, se deve situar num patamar médio, por referência às supra mencionadas molduras abstractas. Donde, entende-se adequada a condenação do Arguido nas seguintes penas parcelares: - 2 anos de prisão e penas acessórias de frequência de programa específico de prevenção e proibição de contacto com a Assistente BB pelo período de 5 anos para o crime de violência doméstica; - 10 anos de prisão para o crime de homicídio qualificado, agravado, na forma tentada; - 5 anos de prisão para o crime de homicídio simples, agravado, na forma tentada. (…). Da leitura deste excerto do acórdão recorrido retira-se que o tribunal ponderou todas os factores relevantes para a operação de individualização da pena, nomeadamente, para a definição do grau da culpa. Na determinação da medida concreta da pena, a instância levou em conta e ponderou adequada e fundadamente, todas as circunstâncias concretas em que os crimes foram cometidos, nomeadamente, quanto ao elevado grau de ilicitude dos factos, considerando o modo de execução, o valor do bem jurídico violado – vida - e as suas consequências, a elevadíssima intensidade do dolo, a conduta do arguido anterior e posterior aos crimes, as condições pessoais e económicas do arguido. Para tal baseou-se no que resulta do relatório social quanto à sua situação pessoal. E, também atendeu às elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir relativamente a este tipo de criminalidade contra a vida, e o desassossego que o circunstancialismo em que é praticado, causa na sociedade em geral. Teve ainda em conta, o modo de actuação do arguido, a postura desculpabilizante e de vitimização que assumiu em julgamento, e que presidiram à sua actuação. Bem como atendeu às exigências de prevenção geral: a natureza do bem jurídico atingido e as graves consequências dos seus actos para as vítimas. O facto de o arguido ter praticado pela 1.ª vez este tipo de crime - homicídio, não é primário, tendo antecedentes criminais quanto ao crime de violência doméstica, pelo qual já foi condenado uma vez, o que não pode afastar a afirmação de uma intervenção preventiva. São, pois, elevadíssimas as exigências de prevenção geral. Ora, atentos os critérios do artigo 71º do CP, revelando-se elevado o grau de culpa, prementes as necessidades de prevenção geral, bem como as de prevenção especial, vejamos quais as molduras abstractas de prisão, aplicáveis aos crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 24.02 e as penas concretas em que foi condenado: - quanto ao crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, nºs. 1 e 2, alíneas b) e i), 22.º e 23.º, do CP e 86.º, n.ºs 3 e 4, da Lei 5/2006, de 24 de Fevereiro (BB) - mínimo de 3 anos, 2 meses e 12 dias e máximo de 21 anos 10 meses e 2 dias. Foi condenado na pena de 10 (dez) anos de prisão. - quanto ao crime de homicídio simples agravado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, n. º1, 22.º, 23.º, do CP e 86.º, nºs. 3 e 4, da Lei 5/2006, de 24 de Fevereiro, (CC) - mínimo de 2 anos, 1 mês e 18 dias e máximo de 14 anos, 2 meses e 20 dias. Foi condenado na pena de 5 (cinco) anos de prisão. Perante tudo o que ficou dito, entendemos que não assiste qualquer razão ao arguido/ recorrente, em pretender a diminuição das penas aplicadas, quanto aos crimes de homicídio, tendo o acórdão recorrido apreciado devidamente toda a sua conduta. Pelo que improcede, nesta parte, a pretensão do recorrente. 25. Vistas as penas parcelares aplicadas há que apreciar a medida da pena única. Recorde-se o que dispõe o artigo 77.º n.º 1, do CP, ao estabelecer as regras da punição do concurso: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.” Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo) nem pelo da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e dos singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), é forçoso concluir que, com a fixação da pena conjunta, se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, e não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente[17], como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado. O todo não equivale à mera soma das partes, sendo a valoração conjunta dos factos e da personalidade, a que se refere a 2.ª parte, do n.º 1, do artigo 77.º, do CP. Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma carreira) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. Releva também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização). Um dos critérios fundamentais em sede deste sentido de culpa, numa perspectiva global dos factos, é o da determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal, em relação a bens patrimoniais. Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência, bem como a tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade. Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade, que deve ser ponderado. O concurso de crimes tanto pode decorrer de factos praticados na mesma ocasião, como de factos perpetrados em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes. Por outro lado, o concurso tanto pode ser constituído pela repetição do mesmo crime, como pelo cometimento de crimes da mais diversa natureza. Por outro lado, ainda, o concurso tanto pode ser formado por um número reduzido de crimes, como pode englobar inúmeros crimes. Nos termos do n.º 2, do artigo 77.º do CP, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, e como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. No caso em apreço, verifica-se que a pena única abstractamente aplicável ao arguido, se situa, no seu limite mínimo, em 10 anos de prisão, e, no seu limite máximo, em 17 anos de prisão. Ora, atentas as considerações supra efectuadas quanto à determinação da medida da pena e a fixação da pena única, e nos termos do artigo 77. °, n.ºs 1 e 2 do CP, a pena única de 12 anos de prisão é a adequada, proporcional e justa no caso em concreto. Pelo que procede, nesta parte, a pretensão de redução da pena formulada pelo arguido. 26. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça, que é individual, quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais. III. 27. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em: a) Conceder parcial provimento ao recurso do arguido AA, fixando-se a pena única em 12 (doze) anos de prisão. b) Manter em tudo o mais o acórdão recorrido; c) Sem custas (artigo 513.º do CPP).
11 de Março de 2021 Processado e revisto pela relatora, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP, e assinado eletronicamente pelos signatários subscritores.
Margarida Blasco (Relatora) Eduardo Loureiro
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[2] Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, de Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007, volume I, págs. 446/7. [3] Cfr. Ac. do STJ, no Proc. 193/17.8GARSD.C1. S1, de 21.05.2020, disponível em www.stj.pt/Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos/ Criminal - Ano de 2020. [7] Neste sentido, Augusto Silva Dias defende que este crime visa proteger a integridade corporal, a saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana (Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, Lisboa: AAFDL, 2007, p. 110). [9] Estamos perante um crime de relação, dado que existe um traço de união entre a vítima e o arguido, derivada do casamento, ou relação análoga, de namoro, ou de coabitação. [11] O bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental –, o qual pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge [Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 332.]. Deste modo, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para o preenchimento do tipo legal. «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos» – Plácido Conde Fernandes, Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ n. º8, pág.305. O crime de violência doméstica pressupõe, assim, a existência de maus tratos, físicos ou psíquicos e estes traduzem-se em actos que revelam crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima”. [12] Cfr. Acórdão do STJ no processo 214/18.7PGAMD.S1, de 25.09. 2019, CLEMENTE LIMA, www.stj.pt. |