Proc. n.º 19538/17.4T8LSB.L1.S1 (Revista)
4.ª Secção
LD\JG\CM
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
I
AA intentou a presente ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra “AUCHAN PORTUGAL HIPERMERCADOS, S.A.”.
Juntou cópia da decisão do seu despedimento pela empregadora.
Realizada a audiência de partes e gorada a tentativa de conciliação das mesmas, a empregadora, notificada para o efeito, apresentou o articulado a motivar o despedimento e juntou o processo disciplinar.
A trabalhadora contestou e deduziu reconvenção.
Procedeu-se a julgamento, vindo a ser proferida sentença, datada de 11 de junho de 2019, que integrou o seguinte dispositivo:
«Por tudo o que se deixou dito, nos termos das disposições legais citadas, declaro ilícito o despedimento da trabalhadora e, em consequência, condeno a empregadora:
a) - A pagar à trabalhadora uma indemnização correspondente a 30 dias de remuneração base por cada ano completo ou fração de antiguidade, acrescida de juros legais a partir do trânsito em julgado da presente sentença e até integral pagamento, a liquidar, se necessário, em execução de sentença;
b) – A pagar à trabalhadora as retribuições que deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da presente sentença, aí se incluindo a retribuição das férias, subsídio de férias e subsídio de Natal, deduzidas das importâncias previstas nas alíneas a) e c) do nº 2 do art. 390º do CT, acrescidas de juros legais a partir da data do referido trânsito em julgado e até integral pagamento, a liquidar, se necessário, em execução de sentença;
c) – A pagar à trabalhadora o montante de € 2.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescido de juros legais a partir do trânsito em julgado da presente sentença e até integral pagamento.
*
Custas pela empregadora e trabalhadora na proporção do decaimento, que fixo em 4/5 para a primeira e 1/5 para a segunda.
Fixo à causa o valor de € 30 000,01 – art. 98.º -P, n.º 2 do CPT.»
Inconformada com esta decisão, dela apelou a Ré para o Tribunal da Relação de Lisboa que, com um voto de vencido, julgou o recurso nos seguintes termos:
«Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença, declarando-se lícito o despedimento e absolvendo-se a Empregadora do pedido formulado pela Trabalhadora.
Custas pela Trabalhadora.»
Irresignada com o assim decidido, recorre, agora de revista para este Supremo Tribunal, a Autora integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:
«a) O presente recurso é interposto do douto Acórdão da Relação de Lisboa, que, com voto de vencido, revogou a sentença de 1.ª Instância, declarou lícito o despedimento e absolveu a Empregadora do pedido formulado pela Trabalhadora.
b) O comportamento infracional imputado à trabalhadora cinge-se a: “…na qualidade de cliente do estabelecimento pertencente à sua empregadora, no decurso das suas compras, a trabalhadora pegou num vestido, numa embalagem de cuecas e em dois batons e levou os para o provador para experimentar. Experimentou os batons, tendo aberto uma das embalagens. E, em seguida, a trabalhadora passou pelo corredor dos produtos de bebé e deixou os dois batons (que experimentara) junto a um dos produtos de bebé que esteve a ver.”
c) O douto Acórdão recorrido errou ao decidir haver justa causa de despedimento da trabalhadora por violação por parte desta do dever geral de boa-fé a que se reporta o art.º 126.º do CT e do dever de lealdade previsto no art.º 128.º/1-f).
d) A recorrente - que exercia as funções de escriturária na sede da recorrida em Lisboa – na veste de cliente e consumidora da loja Jumbo de ..., no decorrer das suas compras, pegou num vestido, numa embalagem de cuecas e em dois batons e levou-os para o provador para experimentar (Factos provados L e M).
e) Uma das embalagens dos batons já estava aberta, abriu a outra e experimentou os dois batons (Factos provados O).
f) Naturalmente que a recorrente não deveria ter aberto uma embalagem que estava fechada, é uma atitude reprovável. Mas, se o estabelecimento tivesse - como qualquer perfumaria tem - junto a cada batom o respetivo “tester”, isto é, uma amostra para que a cliente possa verificar a sua cor real, a recorrente não teria tido necessidade de abrir a embalagem para os experimentar, pois muitas vezes a cor do batom é diferente da apresentada na embalagem.
g) No entanto, tal comportamento, embora censurável, não implica – como sustenta o Acórdão recorrido - a quebra irremediável do princípio da confiança “que é apanágio da relação laboral”.
h) A apreciação da gravidade do comportamento da recorrente, para o efeito da ponderação da justa causa de despedimento, há de aferir-se em função do circunstancialismo que o rodeia. Será expectável que, depois do sucedido e das consequências reais na sua vida prática, a trabalhadora volte a ter um comportamento semelhante? Que volte a abrir e experimentar batons em algum outro estabelecimento da Auchan, quer enquanto cliente de loja quer enquanto funcionária? Um juízo de prognose credível não deverá extrapolar a realidade dos factos - assim, uma ideia de que a trabalhadora poderá daqui para a frente ser desleal não poderá proceder.
i) O comportamento da recorrente tem de ser analisado na perspetiva da sua projeção sobre o vínculo laboral, à luz das funções desempenhadas pela trabalhadora, e à possibilidade de estas subsistirem sem lesão irremediável da relação de trabalho.
j) Recorrendo a critérios de razoabilidade no entendimento de um bom pai de família, o comportamento da recorrente não assume gravidade bastante que torne praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral, no sentido de ser inexigível à empregadora a manutenção do vínculo laboral.
k) Pelo que o douto acórdão recorrido ao considerar existir justa causa de despedimento, violou o disposto no n.º 1 do art.º 351.º do Código de Trabalho, pois a conduta da trabalhadora recorrente não conduz à inexigibilidade da manutenção da relação laboral, na medida em que a continuidade do contrato de trabalho não representa, em termos objetivos, uma "insuportável e injusta imposição ao empregador".
l) O douto Acórdão recorrido violou também o disposto no n.º 3 do artigo 351.º do Código de Trabalho, que estabelece que a gravidade do comportamento do trabalhador não pode aferir-se em função do critério subjetivo do empregador, mas sim na perspetiva de um bom pai de família, ou seja de um empregador normal, norteado por critérios de objetividade e razoabilidade, devendo atender-se no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre os trabalhadores e os seus companheiros e às demais circunstâncias que, no caso, se mostrem relevantes.
m) O douto Acórdão recorrido desvalorizou por completo os quase vinte anos de esforço e dedicação da recorrente ao seu trabalho, um passado impoluto, tendo recebido sempre boas avaliações na avaliação de desempenho anual (Facto provado AA), para valorar apenas uma infração isolada e irrefletida ocorrida num dia de compras, fora do exercício da suas funções, fora do seu horário e local de trabalho, o que limita de forma considerável o impacto dos factos praticados pela trabalhadora sobre a relação de trabalho.
n) O entendimento sufragado pelo douto Acórdão recorrido violou ainda o princípio da proporcionalidade estabelecido no n.º 1 do art.º 330.º do Código de Trabalho que estatui que a sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator.
o) Sendo o despedimento a sanção disciplinar mais grave, esta só se pode considerar justificada nos casos em que o comportamento do trabalhador seja de tal forma grave em si e nas suas consequências que nenhuma outra sanção corretiva ou conservatória se revele adequada, o que manifestamente não é o caso.
p) A sanção de despedimento aplicada à trabalhadora recorrente sempre teria de ser considerada manifestamente desproporcional e excessiva, logo, ilícita.
q) Por tudo o exposto, o douto Acórdão recorrido ao considerar a licitude do despedimento da recorrente, violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 351.º, nºs 1 e 3; 330.º e 381, al. b) todos do Código de Trabalho.»
A recorrida respondeu ao recurso integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:
«1.O Tribunal da Relação, no seu Acórdão ora recorrido, fez uma acertadíssima, justa e adequada interpretação e aplicação das seguintes normas: 126.º, n.ºs 1 e 2; 128.º, n.º 1, alínea f); 351.º, n.ºs 1, 2 e 3; 330.º, n.º 1; 389.º, n.º 1, alínea a); 390.º, n.ºs 1 e 2; e 391.º, todas do Código do Trabalho.
2. Para o efeito considerou o douto Acórdão recorrido que «Ponderando critérios de razoabilidade e objetividade não é exigível a um empregador razoável que mantenha uma trabalhadora ao seu serviço se a mesma quebra, deste modo, a relação de confiança que preside ao contrato. A manutenção do contrato, tendo presentes estas circunstâncias, traduzir-se-ia numa insuportável e injusta imposição ao empregador, pois, como é unanimemente defendido o contrato de trabalho assenta numa base de confiança recíproca entre as partes. Razões pelas quais o despedimento se nos afigura como adequado e proporcional em presença da conduta perpetrada.»
3. No caso concreto em discussão está apenas a questão da gravidade da conduta perpetrada pela trabalhadora Recorrente, tendo-se dado como certa a violação do dever de lealdade.
4. Não se poderá olvidar a argumentação suportada também numa apreciação jurídico-penal da conduta, nomeadamente o eventual preenchimento dos tipos de crime de furto e dano, o que sustenta a gravidade (suficiente para efeitos de despedimento) dos factos provados no processo em sede de julgamento [nomeadamente, das alíneas O), Q), S), T) e W) dos Factos Provados].
5. A gravidade da conduta da trabalhadora Recorrente funda-se, pois, na verificação do crime de furto, pelo facto de a utilização de artigos (considerado, para estes efeitos, como um bem consumível) se ter consubstanciado, em bom rigor, numa verdadeira subtração dos mesmos — sendo, assim, irrelevante que a recorrida os tenha recolocado num corredor [alínea O) dos Factos Provados].
6. Doutrina e jurisprudência penal sustentam que, para a verificação do crime de furto, «a subtração também pode ser realizada pelo consumo da coisa». (.) Neste sentido, decidiu Relação de Lisboa que constitui furto o consumo de bens alimentares à venda numa loja pelo empregado sem autorização do empregador (TRL, de 16.7.1986, in CJ, XI, 4, 178).
7. A Recorrente, ao rasgar as embalagens dos artigos, utilizando-os, praticou o crime de dano, mesmo que, a final, não se tenha apropriado dos mesmos.
8. Segundo o mencionado art.º 212.º do Código Penal, «[q]uem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa».
9. A inutilização da coisa consiste na supressão ou diminuição da utilidade da mesma. Concretiza-se aqui que a utilização daqueles os tornou inutilizáveis para qualquer outro cliente que os pretendesse adquirir e, consequentemente, para a própria loja, que já não os poderia vender.
10. Por questões óbvias que se prendem sobretudo com a falta de higiene proveniente da possível contaminação dos artigos (batons) com saliva ou outras substâncias indesejáveis, a sua utilização pode ser concebida como um «acrescento de substância perturbadora à coisa», o que, nas palavras de COSTA ANDRADE, basta para se considerar preenchido o tipo objetivo do crime. (.).
11. O carácter diminuto (ou mesmo inexistente) do prejuízo patrimonial não é razão suficiente para o afastamento do crime de dano. Não assume relevância o maior ou menor valor do produto danificado e subtraído. A relevância centra-se na atitude propriamente dita.
12. Da Relação de Lisboa, de 17.9.2014, extrai-se que: «A lei prescinde da necessidade que a destruição, danificação, desfiguração ou inutilização da coisa, causada pelo comportamento, atinja um determinado valor patrimonial para ter a conduta como ilícita». Não será nunca que por ter valor diminuto, o dano causado aos artigos não consubstancia um crime.
13. O facto de a trabalhadora ter procedido, posteriormente, ao pagamento poderia apenas ter consequências jurídico-penais, p. ex. dispensa de pena [art.º 70.º/1, alínea b), C. Penal].
14. Está em causa a quebra da relação de confiança motivada pelo comportamento grave e culposo da trabalhadora Recorrente, verificando-se a “impossibilidade prática da subsistência da relação laboral” ao estar-se “perante uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, suscetível de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele” – cf. Ac. STJ, de 21/04/2014.
15. Em recente Acórdão este STJ recordou que “A subsistência do contrato é aferida no contexto de um juízo de prognose em que se projeta o reflexo da infração e do complexo de interesses por ela afetados na manutenção da relação de trabalho, em ordem a ajuizar da tolerabilidade da manutenção da mesma” – Ac. do STJ de 28.01.2016, proc. 1715/12.6TTPRT.P1.S1. Daí que nos termos do n.º 3 do art.º 351.º do CT se deva atender na apreciação da justa causa, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
16. Quanto ao exercício de funções no local de trabalho, mesmo no contexto em que praticou os factos, a trabalhadora infringiu, pelo menos, os seguintes deveres, todos do CT: (i) de boa fé (art.º 126.º/1); (ii) de colaboração com vista à obtenção da maior produtividade (art.º 126.º/2); (iii) de obediência [art.º 128.º/1, alínea e)]; (iv) de promover ou executar os atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa [artigo 128.º/1, alínea h)].
17. Donde resulta que estes deveres – que constituem o cerne da infração – são postos em causa quer a trabalhadora tivesse praticado os factos em serviço, quer tendo praticado os factos fora do tempo de trabalho.
18. Pese embora o estabelecimento em causa (loja Jumbo de ...) não constitua o local de trabalho da trabalhadora (que é na Sede, em Lisboa), nem sequer se pode dizer tratar-se de local alheio ao empregador, ou à relação de trabalho, porquanto aquele estabelecimento pertence à empresa.
19. Mostra-se no caso concreto violado o dever geral de boa fé com expressão concretizada na violação do especial dever de lealdade.
20. O caso não se enquadra totalmente naquela realidade da justa causa externa (cuja relevância disciplinar, ainda assim, os tribunais já afirmaram): a circunstância de a trabalhadora ter praticado a conduta infratora em estabelecimento da empregadora como que reposiciona a infração no contrato de trabalho, intensificando a gravidade da conduta.
21. Embora não se encontrando em funções, a trabalhadora colocou-se numa situação em que o seu comportamento extracontratual influencia a sua postura na relação laboral relevando disciplinarmente.
22. O dever de lealdade é, a par do de obediência, o mais importante dos deveres acessórios do trabalhador, surgindo com a celebração do contrato de trabalho e mantendo-se ao longo da respetiva execução, “incluindo nas situações de não prestação da atividade de trabalho, seja em sede de execução normal do contrato, seja em situações de suspensão do contrato.” Configura-se como um dever orientador geral da conduta do trabalhador no cumprimento do contrato. Daí o relevo de condutas extralaborais e o da perda de confiança para efeitos de justa causa de despedimento, bem como a exigência da correção nos comportamentos tendo em vista os interesses da própria organização em que se insere o trabalhador. (.)
23. Não merece reparo o Acórdão ora recorrido, ao considerar proporcional e adequada a sanção aplicada, designadamente quando a própria trabalhadora diz que experimentou os artigos (…) [(não gostou) «dos batons»)] (…) «que abriu»», e (…) «abriu, experimentou, não gostou e por isso, não levou», quando esses produtos eram da empregadora.
24. Existe um nexo de causalidade entre os comportamentos da trabalhadora e seus efeitos
sobre o contrato de trabalho que o Tribunal da relação e bem considerou.
25. O caso concreto apresenta-se dotado de uma tal gravidade que, por si só e independentemente do valor dos objetos danificados põe em causa, de uma forma que se considera irreversível, a base de confiança que se exige na execução das suas funções.
26. É possível saber a partir dos Factos Provados que a trabalhadora causou efetivo dano e consequente quebra à empregadora (além de ter praticado atos de execução com vista à concretização de tal intento). Deu-se como certa na sentença a quo a violação do dever de lealdade.
27. O Acórdão recorrido teve em consideração a conduta inaudita da trabalhadora, não a amparando, esclarecendo de forma lúcida e nítida não ser exigível que a empresa Recorrida, perante um tal comportamento, se tivesse bastado com a aplicação de uma qualquer sanção conservatória.
28. Tudo ponderado, estamos perante crise contratual irremediável, não se vendo fundamento que possa pôr em causa a validade da sanção de despedimento, ou o Acórdão que a confirma. O Acórdão recorrido deve ser mantido, pois fez uma acertada, justa e equilibrada interpretação e aplicação do disposto das normas indicadas em 1. destas conclusões.
29. Não pode a trabalhadora Recorrente desvalorizar, desconsiderar, olvidar, desmemoriar, e muito menos omitir, o subterfúgio de que se serviu, com arte e frieza, no próprio ato que tudo fez consumar: após o uso, o produto vem a ser colocado de modo disfarçado num linear/prateleira de artigos de bebé aí sendo recolhido pela vigilante…! Servindo-nos das palavras acertadas e conclusivas do Acórdão recorrido, «a deslealdade consumara-se e, com ela, a relação de confiança ficou minada».
30. Deverá, pois, confirmar-se procedente a apelação que revogou a sentença da primeira instância, considerando que o despedimento foi lícito e que não é desproporcional face aos factos praticados, que são graves e merecedores de tal sanção.
31. O recentíssimo acórdão do STJ, de 06-03-2019, conclui em II. e III. do sumário: «II. Para além do montante em causa, que nunca poderia ser muito elevado, dado o valor individual de cada bilhete (bilhete de transporte da Carris não entregue ao passageiro após recebimento do preço), o que releva é mesmo a quebra da relação de confiança que está na base das funções desempenhadas pelo trabalhador. III. A violação dessa relação de confiança (dever de fidelidade) é de tal maneira grave que torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, daí que a sanção disciplinar aplicada de despedimento com justa causa seja adequada e proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do trabalhador. (.)».
32. E ainda deste Venerando Tribunal, o Ac. de 22-04-2009: «VIII – No circunstancialismo descrito, a inexistência de prejuízos, como a perda de clientes por parte da ré ou do próprio cliente da ré (pois o autor veio, posteriormente, a pagar os produtos subtraídos (.) em nada diminui a culpa ou a ilicitude dos comportamentos do autor para efeitos de se perspetivar, à luz dos critérios de um empregador normal, a quebra do estado de confiança, assente na honestidade, indispensável à subsistência da relação laboral.»
33. Tudo conjugado, bem andou o Tribunal da Relação de Lisboa ao julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença, declarando lícito o despedimento e absolvendo a Empregadora, aqui Recorrida, do pedido formulado pela trabalhadora, Recorrente.»
Termina referindo que «deve o recurso de Revista ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão sumária recorrida proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Assim decidindo farão Vossas Excelências, Venerandos Conselheiros, a costumada JUSTIÇA!»
Neste Tribunal foi o processo remetido ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo de Trabalho, vindo o Exm.º Procurador Geral Adjunto a proferir proficiente parecer, pronunciando-se no sentido da concessão da revista e integrando a seguinte síntese conclusiva:
«Retomando o caso presente, há que reconhecer que o comportamento da recorrente, é sem dúvida merecedor de ser sancionado.
Dever-se-á, porém, ter em conta, o conteúdo do mencionado art. 351.° do CT.
Assim, desde logo se constata, não ter existido qualquer prejuízo para a ré, uma vez que trabalhadora procedeu ao pagamento dos produtos que inutilizou, os quais se reportam, aproximadamente, ao valor de € 20,00.
Por outro lado, trata-se de uma trabalhadora que ao longo de 20 anos desenvolveu a sua prestação laboral para a ré sem que lhe haja sido instaurado qualquer procedimento disciplinar.
Há que tomar em conta, a necessidade de considerar a panóplia de sanções sem caráter extintivo oferecidas pelo art.328.° do CT, algumas de caráter económico que, em épocas de crise económica como aquela em que vivemos, mostram ser meios sancionatórios bastantes para prevenir futuros comportamentos desviantes, quer do trabalhador a quem forem aplicadas (efeito sancionatório), bem como de efeito preventivo em relação aos demais, sob pena também, de se banalizar a aplicação da medida mais gravosa, o despedimento.
Por outra banda, como se disse, a sanção disciplinar deverá ser proporcional à gravidade da conduta infracional, ponderadas as respetivas consequências, e ao grau de culpa do infrator, ambas aferíveis pelo padrão do "bonus pater familiae".
Por tudo quanto fica dito, afigura-se-nos que o despedimento levado a cabo pela ré se apresenta como uma medida desproporcionada.
Por esta razão, emite-se parecer no sentido de ser concedida revista, declarando-se o despedimento ilícito, nos termos do já citado art. 381.° do CT, revogando-se, em consequência o acórdão em análise, antes devendo ser repristinada a sentença proferida na 1.ª instância.»
Notificado este parecer às partes, veio a Ré pronunciar-se sobre o mesmo, reafirmando a sua posição no processo.
Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 3, e 639.º do Código de Processo Civil, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, está em causa na presente revista saber
se os factos imputados à Autora integram justa causa de despedimento.
II
As instâncias fixaram a seguinte matéria de facto:
«A) – Em 26/06/2017, foi elaborada a nota de culpa de fls. 8 a 13 do processo disciplinar apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
B) – Na mesma data, a trabalhadora foi notificada da nota de culpa, referida em A), conforme declaração aposta na carta de fls. 7 do processo disciplinar apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, através da qual lhe foi também comunicada a sua suspensão preventiva, sem perda de retribuição, até à conclusão do processo disciplinar.
C) - A trabalhadora respondeu à nota de culpa, referida em A), nos termos expressos no articulado de fls. 16 a 18 do processo disciplinar apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
D) – Em 07/08/2017, foi elaborado o relatório e decisão final de fls. 28 a 46 do processo disciplinar apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que aplicou à trabalhadora a sanção disciplinar de despedimento, alegando justa causa.
E) – A trabalhadora foi notificada do relatório e decisão final, referido em D), por carta cuja cópia consta de fls. 27 do processo disciplinar apenso e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 07/08/2017 e recebida em 09/08/2017, conforme aviso de receção de fls. 48 do mesmo processo disciplinar, cujo teor aqui se dá, igualmente, por integralmente reproduzido.
F) – A trabalhadora era funcionária da empregadora e exercia, à data dos factos, funções na sede da empregadora, em ….
G) – A empregadora tem como atividade, entre outras, o comércio a retalho em supermercados e hipermercados, designados por Jumbo e Pão de Açúcar.
H) – Em 15/12/2005, a trabalhadora assinou o documento cuja cópia consta de fls. 14 do processo disciplinar apenso e que aqui se dá por integralmente reproduzida, onde, além do mais, pode ler-se:
“(…) confirmo ter recebido, lido e compreendido o conteúdo do Código de Conduta do Grupo Auchan, versão de maio de 2005 e comprometo-me a respeitar todos os princípios nele abordados”.
I) - A trabalhadora recebeu da empregadora diversas formações, entre outubro de 1988 e maio de 2017, para o melhor desempenho no exercício das suas funções, conhecendo a importância e responsabilidade inerentes às mesmas.
J) - De entre as ações de formação ministradas à trabalhadora, destaca-se a de Responsabilidade Social, que incidiu sobre o conceito de responsabilidade social no âmbito da política e das práticas implementadas pela Empresa.
K) - As funções da trabalhadora são, ainda, desempenhadas nas condições e termos previstos no seu contrato de trabalho.
L) - No dia 19 de junho de 2017, quando a vigilante BB foi fazer a pausa do colega, também vigilante, CC, na central de vigilância, pelas 10:30, foi-lhe pedido por aquele para acompanhar uma cliente que tinha entrado para um dos provadores da Loja … de ….
M) - No decurso das suas compras, a trabalhadora pegou num vestido, numa embalagem de cuecas e em dois batons e levou-os para o provador para experimentar.
N) - Quando a trabalhadora saiu do provador, pousou o referido vestido e, na mão direita, segurava outro artigo.
O) – A trabalhadora experimentou os batons, tendo aberto uma das embalagens.
P) - A trabalhadora pousou o artigo que segurava na mão direita na cadeirinha do carrinho de compras que serve para as crianças se sentarem.
Q) – Em seguida, a trabalhadora passou pelo corredor dos produtos de bebé e deixou os dois batons junto a um dos produtos de bebé que esteve a ver.
R) - A vigilante BB deslocou-se ao local onde a trabalhadora havia largado os artigos, para recolher as embalagens que a trabalhadora lá tinha deixado.
S) - Já no local, a vigilante BB reparou que as embalagens estavam danificadas, rasgadas (não havendo hipótese de recuperação), originando quebra de produtos.
T) - Os dois artigos de maquilhagem correspondiam a dois batons, agora sujos e inutilizados, pois haviam sido usados.
U) - Pelas 12:00h, já na sala de apoio, a trabalhadora foi questionada pela BB, vigilante, se tinha corrido tudo bem ou se tinha havido qualquer casualidade no interior da loja.
V) - A trabalhadora confirmou que tinha aberto uma embalagem de cuecas, que provou ter pago.
W) - A trabalhadora admitiu ter rasgado as embalagens dos batons, utilizando-os.
X) - A trabalhadora solicitou permissão para efetuar o pagamento dos artigos (no total de € 25,17), o que veio a acontecer.
Y) – À data do despedimento, a trabalhadora auferia o vencimento base de € 960,00, acrescido de subsídio de alimentação no valor de € 5,40 por cada dia efetivo de trabalho.
Z) - A trabalhadora nunca praticou qualquer infração disciplinar.
AA) - Tendo recebido sempre boas avaliações na avaliação de desempenho anual.
AB) – A trabalhadora sentiu-se injustiçada com o despedimento.
AC) – O despedimento deixou-a psicologicamente perturbada, tendo que recorrer a consultas de psiquiatria e psicologia e tendo que tomar medicamentos.
AD) – O agregado familiar da trabalhadora, composto pelo casal e dois filhos de 14 e 15 anos de idade, não tem outros rendimentos para além da retribuição proveniente de trabalho dependente.
AE) - A trabalhadora tem crises de choro constantes e ansiedade.
AF) – A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), concedeu à empregadora a autorização cuja cópia consta de fls. 190 a 192 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, para a utilização do sistema de videovigilância.
AG) – No Sistema de Solidariedade e Segurança Social, foram registadas em nome da trabalhadora, no período de agosto de 2017 a dezembro de 2018, as remunerações e/ou equivalências discriminadas no extrato de fls. 197 e 198 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.»
III
1 – As instâncias dividiram-se relativamente ao sentido da resposta a dar à questão que constitui o objeto do presente recurso.
Assim a 1.ª instância considerou que o despedimento da Autora era ilícito com a seguinte fundamentação:
«Pode ler-se na referida sentença a seguinte fundamentação:
“A empregadora, em face dos factos descritos na nota de culpa, referida e dada por reproduzida em A), que deu como provados no relatório e decisão final, referido e dado por reproduzido em D), concluiu que a trabalhadora, com a sua conduta, violou o Código de Ética e Conduta da empregadora e os deveres previstos na alínea f) do nº 1 do art. 128º e na alínea e) do nº 2 do art. 351º, ambos do CT, constituindo, nos termos do nº 1 do art. 351º, do mesmo diploma legal, justa causa de despedimento, porquanto pela sua gravidade e consequências, torna impossível a subsistência da relação de trabalho.
Ora, os factos trazidos aos autos pela empregadora, acima referidos, são claramente insuficientes, salvo melhor opinião, para se chegar à conclusão a que chegou na decisão de despedimento.
E dos factos provados não pode, sempre salvo melhor opinião, desde logo inferir-se, como fez a empregadora, que dos mesmos resulte a quebra irremediável da relação de confiança que deve existir entre o trabalhador e a respetiva empregadora, de modo a justificar-se a aplicação da sanção disciplinar mais gravosa.
É que, haverá que ter em conta o critério da proporcionalidade da sanção a aplicar ao caso concreto.
Não tendo, por outro lado, ficado provado que, até à instauração do presente processo disciplinar, a trabalhadora tenha sido alvo de qualquer sanção disciplinar.
É certo que a conduta da trabalhadora é censurável, na perspetiva do cliente normal, colocado na situação em que a mesma se encontrava.
Impendendo sobre a trabalhadora um dever acrescido de boa conduta, atenta a sua condição de empregada da empregadora.
No entanto, apesar de censurável, tal conduta não encerra a gravidade que teria se a trabalhadora se tivesse apropriado dos artigos em causa e se estivesse no exercício de funções no seu local de trabalho.
E atendendo à ausência de antecedentes disciplinares e ao leque de sanções abstratamente aplicáveis, sempre seria possível, sem deixar de punir a conduta, optar por uma sanção conservatória do vínculo laboral.
Assim, a aplicação da sanção de despedimento ao comportamento da trabalhadora, plasmado nos factos provados, mostra-se desproporcionada à gravidade de tal comportamento, não se mostrando, assim, preenchida, salvo melhor opinião, a cláusula geral constante do nº 1 do art. 351º, do CT.
Pelo que, terá que ser considerado improcedente o motivo justificativo do despedimento e, em consequência, tal despedimento ser considerado ilícito, nos termos do disposto no art. 381, al. b), do CT.”»
2 - A decisão recorrida, por seu turno, orientou-se em sentido diverso com os seguintes fundamentos:
«No caso concreto mostra-se violado o dever geral de boa-fé (Artº 126º/1 do CT) com expressão concretizada na violação do especial dever de lealdade previsto no Artº 128º/1-f) do CT.
Dispondo-se aqui que o trabalhador deve guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios, este é um dever que não se esgota nas condutas identificadas no segmento final da alínea em análise.
Trata-se de um dever com dimensão ampla, abrangendo “um aspeto pessoal e um aspeto organizacional, que incluem a relevância de condutas extralaborais do trabalhador e deveres de cuidado com os interesses da organização.” (Acórdão da RLx de 11/10/2017, in www.dgsi.pt).
Está, por isso, e conforme afirmámos em acórdão recente – proferido no âmbito do Proc.º 1561/18.3CSC-A - intimamente conexionado com a permanência da confiança entre as partes, razão pela qual se a conduta do trabalhador é de molde a abalar ou destruir tal confiança, criando a dúvida sobre a futura idoneidade do mesmo, a violação assume enorme relevância e, por outro lado, com a correção de comportamentos aferida esta pelo interesse da organização.
Conforme sustenta Maria do Rosário Palma Ramalho o dever de lealdade é, a par do de obediência, o mais importante dos deveres acessórios do trabalhador, surgindo com a celebração do contrato de trabalho e mantendo-se ao longo da respetiva execução, “incluindo nas situações de não prestação da atividade de trabalho, seja sem sede de execução normal do contrato, seja em situações de suspensão do contrato”. Tem uma dimensão restrita e uma outra, ampla. E, em sentido amplo configura-se como um dever orientador geral da conduta do trabalhador no cumprimento do contrato, entroncando no dever geral de cumprimento pontual dos contratos, mas também nas características muito específicas do contrato de trabalho, a saber, o envolvimento pessoal do trabalhador no vínculo e a própria componente organizacional do contrato. Daí o relevo de condutas extralaborais e o da perda de confiança para efeitos de justa causa de despedimento, bem como a exigência de correção nos comportamentos tendo em vista os interesses da própria organização em que se insere o trabalhador (Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, 6º Edição, Almedina, 285 e ss.).
Este é um dever que comporta, por um lado, “uma faceta subjetiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam)” e, por outro “uma faceta objetiva, que se reconduz à necessidade do ajustamento da conduta do trabalhador ao princípio da boa fé no cumprimento das obrigações” (António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 12ª Ed., Almedina, 233).
Apresentada, em traços gerais, a relevância do cumprimento do dever de lealdade, bem como a extensão deste dever, centremo-nos no caso concreto!
Provou-se que, na qualidade de cliente do estabelecimento pertencente à sua empregadora, no decurso das suas compras, a trabalhadora pegou num vestido, numa embalagem de cuecas e em dois batons e levou-os para o provador para experimentar. Experimentou os batons, tendo aberto uma das embalagens. E, em seguida, a trabalhadora passou pelo corredor dos produtos de bebé e deixou os dois batons (que experimentara) junto a um dos produtos de bebé que esteve a ver. Ambas as embalagens se mostraram danificadas, rasgadas (não havendo hipótese de recuperação), originando quebra de produtos. Os dois artigos de maquilhagem correspondiam a dois batons, agora sujos e inutilizados, pois haviam sido usados.
Com esta conduta a Trabalhadora danificou as embalagens e apropriou-se dos batons para efeitos de uso imediato. A utilização dos batons tornou-os inutilizáveis para terceiros, inviabilizando a respetiva aquisição e venda. Para além de que o produto ficou irremediavelmente contaminado.
Não assume relevância o maior ou menor valor do produto danificado e subtraído.
A relevância centra-se na atitude propriamente dita. Isto mesmo foi afirmado pelo STJ no Ac. de 6/03/2019 quando ali se refere que o que releva é mesmo a quebra da relação de confiança que está na base das funções desempenhadas pelo trabalhador (Procº 14897/17.1T8LSB). Este é, aliás, o sentido da jurisprudência dos tribunais superiores que, desde há muito, vem afirmando a prevalência do valor da confiança sobre o do valor do prejuízo. É assim que, repetidamente se afirma que a inexistência de prejuízos em nada diminui a culpa ou a ilicitude dos comportamentos para efeito de os perspetivar à luz dos critérios de um empregador normal, antes se dando relevo à quebra do estado de confiança, assente na honestidade, indispensável à subsistência da relação laboral (Ac. do STJ de 22/04/2009, Refª 08S3083 e 09S0153).
Esta atitude da Trabalhadora legitima o Empregador a esperar conduta semelhante se a ocasião se proporcionar e, com isso, está irremediavelmente abalado o princípio da confiança que é apanágio da relação laboral.
Repare-se no subterfúgio utilizado – após o uso, o produto vem a ser colocado de modo disfarçado numa prateleira de artigos de bebé aí sendo recolhido pela vigilante.
É certo que a trabalhadora admitiu ter rasgado as embalagens dos batons, utilizando-os e solicitou permissão para efetuar o pagamento dos artigos (no total de € 25,17), o que veio a acontecer.
Porém, a deslealdade consumara-se e, com ela, a relação de confiança ficou minada.
Também não assume relevância a circunstância de o comportamento não ter ocorrido em ambiente laboral, pois, como acima dissemos, o dever de lealdade subsiste para além do contexto empresarial.
(…)
Não podemos abstrair, na concatenação de todos os factos, da circunstância de o contrato de trabalho implicar envolvimento pessoal do trabalhador e limitação de condutas, bem como que a confiança pessoal é um valor maior no âmbito da relação jurídica de emprego.
Impossível não considerar definitivamente abalada a confiança que preside à celebração e manutenção do contrato de trabalho e, com ela, violado não só o dever geral de boa-fé a que se reporta o Artº 126º do CT, como este especial dever de lealdade previsto no Artº 128º/1-f).
Salienta-se que a trabalhadora recebera formação centrada na responsabilidade social no âmbito da política e das práticas implementadas pela Empresa, estando ciente da importância e responsabilidade inerentes às suas funções. Por outro lado, o salário que auferia é revelador de um grau de responsabilidade que não se centra nos mínimos. Assim, não obstante a sua antiguidade, reportada a 1988 e, bem assim, as avaliações de desempenho, impunha-se-lhe outro comportamento.
Ponderando critérios de razoabilidade e objetividade não é exigível a um empregador razoável que mantenha uma trabalhadora ao seu serviço se a mesma quebra, deste modo, a relação de confiança que preside ao contrato. A manutenção do contrato, tendo presentes estas circunstâncias, traduzir-se-ia numa insuportável e injusta imposição ao empregador, pois, como é unanimemente defendido o contrato de trabalho assenta numa base de confiança recíproca entre as partes.
Razões pelas quais o despedimento se nos afigura como adequado e proporcional em presença da conduta perpetrada.
Procede, deste modo, a questão que nos ocupa.»
3 - Da análise da factualidade dada como provada resulta, em síntese, o seguinte:
- A trabalhadora era empregada da entidade empregadora desde, pelo menos, 1988;
- A trabalhadora não tinha antecedentes disciplinares à data da prática dos factos;
- As funções da trabalhadora eram administrativas e eram desempenhadas na sede da Entidade Empregadora, em …;
- Os factos pelos quais lhe foi movido o procedimento disciplinar que lhe determinou o despedimento, ocorreram num dos hipermercados da Ré, quando a trabalhadora não se encontrava a trabalhar, mas antes quando andava a fazer compras, perto da sua casa;
- Os únicos factos que determinaram o despedimento da trabalhadora, foram a abertura de uma embalagem de batom e a experimentação desse batom e de outro que já se encontraria aberto, no interior da loja, deixando-os depois aos dois numa prateleira;
- A trabalhadora pagou as compras que havia efetuado - roupa interior - e saiu sem trazer, nem pagar os batons em causa, mas tendo, com a sua experimentação, inutilizado os mesmos;
- Confrontada pela vigilante com o ocorrido, a trabalhadora ofereceu-se para pagar os batons que danificou, o que fez.
Daqui se retira que a Autora não estava nem no local, nem no tempo de trabalho e que era apenas mais uma cliente daquela superfície comercial, quando os factos ocorreram.
Não estava, pois, no exercício da sua profissão, mas na posição de cliente.
Os factos não decorrem, deste modo, do exercício das funções de natureza administrativa da Autora, nem têm uma relação direta com esse exercício.
Por outro lado, à luz da matéria de facto dada como provada, tais factos materializam apenas a danificação dos batons em causa, cujo valor a Autora prontamente pagou à Ré, não sofrendo esta qualquer prejuízo juridicamente relevante.
São deste modo destituídas de fundamento especulações sobre intenções de apropriação dos produtos em causa que, de resto, não têm qualquer suporte na factualidade dada como provada.
Não pode esquecer-se que, no domínio penal, em termos de demonstração dos elementos subjetivos de qualquer infração, eles hão-de decorrer da materialidade objetiva dada como provada por dedução e com base nas regras da experiência.
Realce-se também que não é possível a concretização da ilicitude da conduta imputada à Autora, como elemento da infração, sem se tomar em consideração a dimensão material (o valor material) dos produtos destruídos e a existência ou não de qualquer prejuízo material para o lesado decorrente da conduta em causa.
Cumpre então considerar se o despedimento é a sanção proporcionalmente adequada para a conduta que é imputada à Autora e que decorre da matéria de facto dada como provada.
Na verdade, para saber se o comportamento da A. é consubstanciador de justa causa para o despedimento, há primeiramente que ter presente que o despedimento só deve ocorrer em ultima ratio, isto é, quando todas as outras sanções disciplinares conservatórias não se revelam proporcionais e adequadas à gravidade da conduta do trabalhador – art.º 330.º do Código do Trabalho. Não é todo e qualquer comportamento de um trabalhador que possa constituir infração disciplinar, que é justificativo de despedimento.
Como afirma Maria do Rosário da Palma Ramalho, in Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 5.ª Edição, pág. 761:
«Os princípios gerais norteadores da aplicação das sanções disciplinares são o princípio da proporcionalidade, o princípio da processualidade, o princípio da celeridade e o princípio da cumulação da responsabilidade disciplinar com outras fontes de responsabilidade do trabalhador.
(…)
O princípio da proporcionalidade entre a infração e a sanção disciplinar é consagrado no artigo 330.º, n.º 1 do Código do Trabalho. Este princípio impõe ao empregador que proceda a um juízo de adequação entre a infração cometida e sanção a aplicar, com base na gravidade da infração e no grau de culpa do trabalhador.
Em desenvolvimento desde o princípio no âmbito do despedimento, o art.º 351.º, n.º 3 determina que a apreciação da infração disciplinar tenha em conta, no âmbito da empresa, o grau de lesão dos interesses do empregador, as suas relações com o trabalhador, e entre este e os colegas, e as demais circunstâncias relevantes no caso. Embora esta norma reporte especificamente à apreciação da infração disciplinar que consubstancia justa causa para despedimento, ela fornece critérios gerais para a aferição da gravidade do facto e da culpabilidade do trabalhador em qualquer infração disciplinar.»
É, assim, obrigação de qualquer entidade empregadora, perante uma infração disciplinar cometida pelo trabalhador, usar da proporcionalidade à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator, conforme disposto pelo art.º 330.º, n.º 1 do Código do Trabalho, e, nessa conformidade, aplicar a sanção mais adequada e proporcional à gravidade da infração, ficando a sanção do despedimento reservada para os casos de maior gravidade, que comprometam em definitivo a manutenção da relação laboral. O que acontece, desde logo, devido à própria proteção constitucional do trabalho, - art.º 53.º da Constituição da República Portuguesa - que proíbe os despedimentos sem justa causa.
Conforme decorre do n.º1 do art.º 351.º do Código do Trabalho, «Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho».
Exige-se, assim, que o comportamento do trabalhador seja culposo, grave em si mesmo, ou pelas suas consequências e que torne impossível a manutenção da relação de trabalho, no sentido de não ser exigível ao empregador que mantenha a trabalhar para si, alguém que teve um comportamento tão grave.
A gravidade do comportamento do comportamento do trabalhador é inerente à ilicitude do mesmo, ou seja, exige-se que esse comportamento seja portador de contrariedade com a normatividade vigente no contexto laboral em que as funções do trabalhador são exercidas.
Como afirma Maria do Rosária da Palma Ramalho, na obra citada, na pág. 955: “Assim, relativamente ao elemento subjetivo da justa causa é exigido que o comportamento seja ilícito, grave e culposo. Estes requisitos justificam as seguintes observações: i) A exigência da ilicitude do comportamento do trabalhador não resulta expressamente do art.º 351.º, n.º 1, mas constitui um pressuposto geral do conceito de justa causa para despedimento, uma vez que, se a atuação do trabalhador for lícita, ele não incorre em infração que possa justificar o despedimento”.
Acrescentando em seguida: “A exigência da gravidade do comportamento decorre ainda do princípio geral da proporcionalidade das sanções disciplinares, enunciado no art.º 330.º, n.º 1 do Código do Trabalho e oportunamente apresentado: sendo o despedimento a sanção disciplinar mais forte, ela terá que corresponder a uma infração grave; se o comportamento do trabalhador, apesar de ilícito e culposo, não revestir particular gravidade, a sanção a aplicar deverá ser uma sanção conservatória do vínculo laboral.”
A esta luz, tem de haver uma real valoração da factualidade apurada, da gravidade da mesma, bem como do grau de culpa do infrator, sob pena de sempre que estivermos perante uma infração disciplinar cometida por um trabalhador, não serem sequer ponderadas as sanções conservatórias, independentemente do contexto em que se desenrolem os factos, dos antecedentes do trabalhador, do prejuízo que possa ter causado para a empresa, do reconhecimento do mérito que o trabalhador tenha vindo a obter ao longo dos anos, da antiguidade do mesmo.
Note-se que conforme decorre do n.º 3 do art.º 351.º do Código do Trabalho “3 - Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.”
Deste modo, todo um contexto global tem de ser apreciado. E, como refere a norma, há também que atender às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
No caso dos autos, duas das circunstâncias que assumem relevância, são o facto de a trabalhadora não estar nem no seu tempo de trabalho, nem no seu local de trabalho, sendo que como conforme se referiu no acórdão de 22 de fevereiro de 2017, proferido no processo n.º 4614/14.3T8VIS.C2.S1: “A noção de justa causa de despedimento, consagrada no artigo 351.º, n.º 1, do Código de Trabalho de 2009, pressupõe um comportamento culposo do trabalhador, violador de deveres estruturantes da relação de trabalho, que pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral”.
Ora, se é certo que o comportamento da trabalhadora foi culposo, já não podemos afirmar que tenha sido violador de deveres estruturantes da relação de trabalho, quando a trabalhadora não se encontrava a trabalhar, nem tão pouco no seu local de trabalho.
Por outro lado, no que respeita à confiança da Ré na Autora, tal como se referiu no acórdão acima citado, “A subsistência do contrato é aferida no contexto de um juízo de prognose em que se projeta o reflexo da infração e do complexo de interesses por ela afetados na manutenção da relação de trabalho, em ordem a ajuizar da tolerabilidade da manutenção da mesma.
(…)
A impossibilidade de manutenção da relação laboral deve ser apreciada no quadro de inexigibilidade com a ponderação de todos os interesses em presença, existindo sempre que a subsistência do contrato represente uma insuportável e injusta imposição ao empregador.”
Nas palavras de Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, 2009, Almedina, 14.ª Edição, pág. 591: «que significa a referência legal à “impossibilidade prática” da subsistência da relação de trabalho – é que a continuidade da vinculação representaria (objetivamente) uma insuportável e injusta imposição ao empregador» e que «[n]as circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações (pessoais e patrimoniais) que ele supõe seria de molde a ferir de modo desmesurado e violento a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do empregador».
Neste contexto, não se nos afigura demonstrada nos autos a impossibilidade da manutenção da relação de trabalho, nem que a manutenção da mesma revista uma insuportável e injusta imposição para a entidade empregadora.
Com efeito, não obstante a existência do comportamento culposo da trabalhadora, o mesmo não foi suficientemente grave para apagar mais de 30 anos de trabalho exemplar, ao ponto de pôr em causa a confiança da entidade empregadora e a consequente manutenção da relação laboral.
A sanção de despedimento mostra-se, assim, desproporcionada e excessiva quer face à gravidade da conduta, quer face às consequências da mesma, constatando-se que a empregadora deveria antes ter optado por uma sanção conservatória, dessa forma se concluindo pela ilicitude do despedimento.
Na verdade, à luz desses factos não pode afirmar-se que outras sanções menos gravosas não pudessem realizar as finalidades sancionatórias que justificam o ilícito disciplinar laboral e com aptidão para reafirmar a autoridade da normatividade interna definida pela empregadora no contexto da empresa.
Torna-se, deste modo, evidente a falta de proporcionalidade entre a gravidade da conduta apurada, a única relevante para efeitos de decisão, materializada na dimensão dos interesses postos em causa e a culpa com que a Autora atuou e as consequências que decorrem do respetivo despedimento.
Importa que não se esqueça que o despedimento é concebido no sistema jurídico português, como uma sanção, o que só por si, tratando-se de um ato lesivo dum direito fundamental, impõe que, no respeito pelos parâmetros decorrentes do artigo 18.º da Constituição, exista uma situação equilíbrio entre a gravidade da conduta, aferida pela dimensão e relevo dos interesses lesados pela mesma e as consequências imanentes na sanção aplicada.
4 – Nas conclusões do recurso de apelação que interpôs da sentença proferida em 1.ª instância, a Ré insurgiu-se contra as indemnizações fixadas na sentença, nos seguintes termos:
«33. Quanto à indemnização atribuída: a trabalhadora auferia a quantia de € 960,00 a título de retribuição base, pelo que considerando o valor do ordenado mínimo nacional à data do despedimento (€ 557,00) há que afirmar que a trabalhadora auferia uma retribuição próxima do dobro da retribuição mínima mensal garantida, i.e. retribuição acima da média.
34. Pese embora o despedimento tenha sido declarado ilícito com base na improcedência do motivo, que desde o Código de 2009 constitui o segundo fundamento de ilicitude mais grave, o próprio Tribunal a quo afirma que “a conduta da trabalhadora é censurável, na perspetiva do cliente normal, colocado na situação em que a mesma se encontrava”, e que sobre ela impendia “um dever acrescido de boa conduta, atenta a sua condição de empregada da empregadora”.
35. Apesar de assim ser, o Tribunal a quo fixou indemnização mais próxima do limiar máximo do que do limiar mínimo devendo ser reduzida.
36. O critério para fixação do valor da indemnização é: “O tempo decorrido desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial deve ser considerado, sendo razoável que o montante da indemnização seja tanto menor quanto maior for o dos salários intercalares”.
37. E quanto à indemnização por danos não patrimoniais, procedendo a primeira das três questões alegadas em sede de recurso, não deverá, naturalmente, proceder esta, não fazendo sentido a condenação como descrito em c) da sentença, a pagar à A. a quantia de € 2.000,00 a título de indemnização pelos danos morais sofridos em consequência do despedimento (ilícito).
38.Tudo conjugado, mal andou o Tribunal a quo ao condenar a empresa aqui recorrente, e deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser a decisão de que se recorre revogada em toda a linha, decidindo-se pela licitude do despedimento, por proporcional e adequado.»
O Tribunal da Relação, embora tenha identificado as questões suscitadas como questões a decidir: (2ª – A indemnização atribuída deve ser reduzida? e 3ª – A indemnização por danos não patrimoniais não deverá proceder?) não conheceu destas questões, tendo-as considerado prejudicadas.
Face ao sentido da decisão que resulta do presente acórdão, impõe-se a remessa dos autos àquele Tribunal para que conheça destas questões na medida em que o artigo 679.º do Código de Processo Civil excluiu expressamente a aplicação em sede de julgamento do recurso de revista da regra da substituição ao tribunal recorrido, estabelecida no artigo 665.º do mesmo código.
IV
Em face do exposto, acorda-se em conceder a revista e em revogar a decisão recorrida, repristinando-se, no que se refere à declaração de ilicitude do despedimento e à alínea b) do dispositivo, a sentença proferida pela 1.ª instância.
Mais se acorda em determinar a remessa do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa, para que conheça da questão suscitada nas conclusões 33.ª a 38.ª do recurso de apelação interposto pela Ré.
Custas em conformidade com o que vier a ser decidido a final.
Junta-se sumário do acórdão.
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º -A do Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, consigna-se que o presente acórdão foi aprovado por unanimidade, sendo assinado apenas pelo relator.
Lisboa, 8 de julho de 2020
António Leones Dantas (Relator)
Júlio Gomes
Chambel Mourisco