Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2359/23.2T8MTS.P1-A.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: VALOR DA CAUSA
DESPACHO DO RELATOR
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECLAMAÇÃO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 05/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :

I. A previsão do art. 629º, nº 2, al. d), do CPC circunscreve-se aos casos em que o valor da causa exceda a alçada da Relação, mas em que esteja excluído o recurso de revista por motivo estranho a essa alçada;


II. Será necessário, para que o recurso seja admissível, que, para além da contradição jurisprudencial, o valor da causa exceda a alçada da Relação e que a sucumbência do recorrente seja superior a metade dessa alçada.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 2359/23.2T8MTS.P1- A.S1


Reclamação - artº 643º do CPC


152/24


Autor: AA


Ré: Teijin Automotive Technologies Portugal, S.A


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


Nos presentes autos de reclamação deduzida ao abrigo do disposto no artº 643º do CPC, foi proferida, pela Relatora no Tribunal da Relação, nos termos do nº 4 desse artigo, a seguinte decisão:


“Dispõe o n.º 1 do art. 629º do CPC que “o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (…)”.


Quer isto dizer que, regra geral, apenas são recorríveis as decisões proferidas em causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e em que, cumulativamente, a desfavorabilidade, para o recorrente (valor da sucumbência), seja de valor superior a metade da alçada do tribunal “a quo”.


Em conformidade com a enunciada regra, e considerando que, em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de 30.000,00€ e a dos tribunais de 1.ª instância é de 5.000,00€ (cfr. art. 44º, n.º 1 da Lei n.º Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário) , para a decisão ser suscetível de recurso é necessário – no caso de recurso para o Supremo – que o valor da ação onde aquela foi proferida seja superior a 30.000,00€, e, além disso, que a parte desfavorável (valor da sucumbência) dessa decisão seja superior a 15.000,00€.


Há, porém, regras especiais, no caso ao disposto no art. 79º, do C.P. Trabalho que elenca as decisões da área laboral que admitem sempre recurso para a Relação, figurando na alínea a) as ações em que esteja em causa a determinação da categoria profissional, o despedimento do trabalhador por iniciativa do empregador, independentemente da sua modalidade, a reintegração do trabalhador na empresa e a validade ou subsistência do contrato de trabalho.


No caso “sub judice”, o valor da acção foi fixado na sentença em € 2.000,00, nos termos do art. 98-P, nº1 do C.P.Trab e art.12º, nº1, al. e) do RCP, e não foi impugnado na apelação interposta pelo Autor.


Assim, sendo o valor da acção inferior ao valor da alçada dos tribunais de 1ª instância, a apelação da sentença para a Relação foi admitida mercê da citada norma do art. 79º do C.P.Trabalho, mas tal norma já não permite a revista para o Supremo Tribunal de Justiça.


Destarte, não cabe revista nos termos gerais do acórdão proferido, porquanto o valor da acção não excede o valor da alçada da Relação em vigor à data da propositura da ação e que é de € 30.000,00.


Porém, o Recorrente interpôs o recurso com base no fundamento específico da alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC.


Segundo o indicado normativo:


“Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:


a) - ……………………………………………………………………


b) - ………………………………………………………………………


c) - ………………………………………………………………………


d) – Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.


O citado normativo, consagra uma das excepções à regra do n.º 1 do art. 629º do CPC, que se aplica, nas palavras de António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, C.P.Civil Anotado, 2º edição, p. 780 “nos casos em que, apesar de existir um bloqueio à intervenção do Supremo por via de algum impedimento legal, o acórdão da Relação está em contradição com outro acórdão da Relação (ou do próprio Supremo) relativamente ao modo como foi resolvida alguma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação material (STJ 24/11/16, 571/15). É o que ocorre em matéria de procedimentos cautelares, atento o art. 370, n.º 2 (…) ou de processos de jurisdição voluntária, quando esteja em causa um juízo de legalidade (art. 988º, n.º 2, a contrario). Em tais circunstâncias, admite-se o recurso de revista, o qual encontra justificação na necessidade de superar a referida contradição jurisprudencial”.


E não obstante a letra da lei se reportar apenas à contradição entre acórdãos das Relações, a melhor interpretação da al. d) do art. 629.º, n.º 2, do CPC, é no sentido de incluir também os casos em que o acórdão recorrido se encontra em contradição com acórdão do STJ .


E depois de assinalarem as incongruências existentes entre a letra do proémio do n.º 2 e o teor da sua al. d), acrescentam os citados autores, ob. cit. p. 781 que, “a partir da consideração da parte final da al. d), formou-se um largo consenso no sentido de que a admissibilidade do recurso à luz deste preceito excepcional não dispensa em caso algum (diferentemente das als. a) e c)) as exigências previstas no n.º 1 quanto ao valor da causa e quanto à medida da sucumbência (…)”.


Com efeito, tem sido essa a orientação do Supremo Tribunal de Justiça, como se alcança dos acórdãos de 11/11/2014 (relator Abrantes Geraldes), de 26/03/2015 (relator Manuel Tomé Soares Gomes), de 02/06/2015 (relator Fonseca Ramos), de 17/11/2015 (relator Gabriel Catarino), de 23/06/2016 (relator Manuel Tomé Soares Gomes), de 24/11/2016 (relator Manuel Tomé Soares Gomes) e de 24/11/2016 (relator António Piçarra), todos disponíveis in www.dgsi.pt.


Vai também neste sentido, a posição adotada por Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de processo Civil, 2017, 4ª ed. Almedina, quando, a propósito do normativo em apreço, escreve que:


«Ao invés do que do que faria supor a integração da alínea no proémio do n.º 2, a admissibilidade do recurso, por esta via especial, não prescinde da verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade em função do valor da causa ou da sucumbência, pois só assim se compreende o seguimento normativo referente ao “motivo estranho à alçada do tribunal”».


E esse é também o entendimento acolhido por Miguel Teixeira de Sousa, em comentário ao Ac. do STJ 2/6/2015 (189/13.9TBCCH-B.E1.S1), que pode ser consultado no blogippc.blogspot., datado de 24/06/2015, onde se refere, além do mais, que “o regime instituído no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC não se basta com uma mera contradição entre acórdãos das Relações, pelo que o preceito só é aplicável nos casos em que, apesar de a revista ser admissível nos termos gerais, se verifica uma irrecorribilidade estabelecida pela lei”, podendo dizer-se que “este preceito estabelece uma recorribilidade para acórdãos que são recorríveis nos termos gerais e irrecorríveis por exclusão legal”. Isto porque, “[a]tendendo à exclusão da revista por um critério legal independente da relação do valor da causa com a alçada do tribunal, há que instituir um regime que permita que o STJ possa pronunciar-se (e, nomeadamente, uniformizar jurisprudência) sobre” tais matérias, sendo “precisamente essa a função do disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC”.


Mais conclui o aludido autor que:


- O art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC – à semelhança do que sucede com o art. 14.º, n.º 1, do CIRE – não dispensa que a revista seja admissível nos termos gerais, isto é, não dispensa que, atendendo à conjugação do valor da causa com a alçada da Relação, a revista seja admissível; pelo contrário: o citado preceito pressupõe que a revista a que garante a recorribilidade com base numa oposição de julgados seja admissível nos termos gerais;


- O art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC afasta uma irrecorribilidade legal, pois que garante, em caso de conflito jurisprudencial, a recorribilidade de um acórdão da Relação que não é recorrível por uma exclusão legal.


Deste modo, e revertendo ao caso dos autos, considerando-se que a al. d) do n.º 2 do art. 629º do CPC – ao permitir a admissibilidade do recurso de revista no caso de o acórdão recorrido estar em oposição com outro – não dispensa a verificação das condições gerais de admissibilidade de recurso, entre as quais figura a relação entre o valor da causa (e da sucumbência) e a alçada, interpretação que acolhemos, temos de concluir que o acórdão desta Relação proferido em 29.1.2024 de Janeiro de 2024 não pode ser objecto de recurso de revista, pois o valor da causa(€ 2.000,00) fica contido dentro do valor da alçada da Relação (€ 30.000,00).


Ademais, no caso vertente, tão pouco se verifica o factor determinante da admissibilidade da revista prevista na citada alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º, consistente no não cabimento de recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal de que se recorre, no caso o Tribunal da Relação. Com efeito, não há qualquer limitação legal ao recurso nos termos gerais no âmbito da acção especial de impugnação da regularidade e licitude. A invés, existe a norma do art. 79º, n1, al.a) do C.P.Trabalho que assegura o recurso para a Relação independentemente do valor da acção e da sucumbência, atenta a relevância social do despedimento. Porém, quanto ao recurso de revista aplicam-se os requisitos gerais do nº1 do artigo 629.º do CPC, ou seja, em função do valor da causa e da sucumbência.


Nesta conformidade, quer por inadmissibilidade do recurso em função do valor do processo, quer por inverificação do requisito do não cabimento de recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal de que se recorre, ao abrigo do disposto no art. 629.º, n.ºs 1 e 2, al. d) do CPC, não se admite o recurso de revista interposto pelo autor em 21.2.2024”.


É desta decisão que vem interposta, pelo Autor /recorrente, a presente reclamação, nos seguintes termos:


1. A decisão sob reclamação insere-se numa corrente jurisprudencial que, fazendo uma interpretação restritiva e abrogante da al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, considera que essa norma não dispensa, para efeitos de admissibilidade do recurso, as exigências previstas no n.º 1 do mesmo preceito legal quanto ao valor da causa ou da sucumbência.


2. Com o devido respeito, a interpretação acolhida no despacho reclamando, apesar de ter a favor a opinião dominante no Supremo Tribunal de Justiça, contraria frontalmente os elementos histórico, liberal e finalístico ou teleológico da norma da al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC.


É o que se intentará demonstrar.


3. Em matéria de recorribilidade, o princípio geral é o de que qualquer decisão judicial pode ser impugnada por meio de recurso (art. 627.º, n.º 1, CPC) – cfr., Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, 1989, pg. 39 e ss.


4. Todavia, uma categoria de decisões ou uma concreta decisão podem não recorríveis em razão, nomeadamente, da irrelevância económica do valor da acção ou do decaimento (art. 629.º, n.º 1, do CPC).


5. Assim, em princípio, só admitem recurso ordinário as decisões proferidas em causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre.


6. Em matéria cível, a alçada dos Tribunais da Relação é de € 30.000,00 (art. 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).


7. No entanto, a lei estatui garantias de recorribilidade de certas decisões em que desconsidera o valor da causa, fazendo-o para qualquer recurso nos termos do n.º 2 do art. 629.º do CPC.


8. Prevêem-se nas alíneas do n.º 2 do art. 629.º os fundamentos que tornam o recurso admissível, independentemente do valor da causa ou da sucumbência.


9. Por outras palavras, a norma do n.º 2 do art. 629.º dirige-se aos casos em que a causa não tem valor que, em princípio, admita o recurso, prevendo-se aqui a sua admissão excepcional.


10. Em qualquer uma das hipóteses tipificadas no n.º 2 do art. 629.º, seja qual for o valor da causa ou da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação ou para o Supremo, sendo que o recurso de revista nem sequer é condicionado pela existência de uma situação de dupla conforme.


11.Ou seja, as normas contidas no n.º 2 do art. 629.º consagram casos de recorribilidade absoluta, a que não se aplica a limitação quantitativa prevista no n.º 1 do mesmo preceito legal


12.A fórmula ínsita no segmento inicial do proémio do art. 629.º, n.º 2 (“independentemente do valor da causa ou da sucumbência”) não suscita a mínima dúvida ou reserva quanto à irrelevância do valor da causa, para efeitos de recorribilidade de alguma das decisões previstas nas suas diferentes alíneas: a sua inequívoca liberalidade significa, e só pode significar, a dispensa da exigência de que o valor do processo exceda o da alçada do tribunal a quo.


13.O advérbio “sempre” utilizado no corpo do n.º 2 do art. 629.º reforça a ideia da irrelevância do valor da causa e da sucumbência em qualquer um dos casos previstos nas suas alíneas.


14.Outra interpretação esvaziaria de sentido ou função útil essa expressão adverbial, pois sempre é…sempre.


15.Consequentemente, sob pena de insanável contradição – em derrogação da presunção de que na fixação do sentido e alcance da lei o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do CC) – a al. d) do n.º 2 do art. 629.º não deve ser interpretada no sentido de a admissibilidade do recurso depender da exigência de o valor da causa exceder a alçada do tribunal recorrido, prevista no n.º 1 da mesma disposição legal.


16.Os elementos gramatical e sistemático do n.º 2 do art. 629.º – que surge como contraponto e excepção à norma do n.º 1 – são concludentes no sentido de impedirem as limitações à recorribilidade decorrentes do valor da causa e da sucumbência.


17.A al. d) do n.º 2 do art. 629.º repristina o n.º 4 do art. 678.º do CPC de 1961, na versão introduzida pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março, que havia sido suprimida pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto.


18.A norma do n.º 4 do art. 678.º do CPC de 1961 tinha o seguinte teor:


É sempre admissível recurso do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se a orientação nele perfilhada estiver de acordo com a jurisprudência anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça”.


19.Sobre o art. 764.º do CPC de 1961 – que é o antecedente mais remoto da al. d) do n.º 2 do art. 629.º do NCPC – dizia Lopes Cardoso que “assim, não pode entender-se, como se pretendeu, ser também indispensável, para a admissibilidade do recurso para o tribunal pleno, que, no caso, o valor da causa exceda a alçada da Relação” (CPC Anotado, 1967, pgs. 962-963).


20.Comentando a al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro sustentam assertivamente que perante “os antecedentes históricos da norma e os próprios termos do seu enunciado contido na alínea (já não no proémio), devemos concluir que aqui não se prevê apenas um fundamento de admissibilidade do recurso” independentemente do valor da causa e da sucumbência”, mas sim um fundamento de admissibilidade absoluta do recurso, ou seja, de admissibilidade independente dos valores referidos no n.º 1, como resulta do mencionado proémio, e independentemente do motivo especial (estranho à alçada) de irrecorribilidade a que o acórdão estaria sujeito, como resulta do corpo da alínea. (Primeiras Notas ao CPC, vol. II, 2014, pg. 20).


21.A norma em apreço deve, pois, ser interpretada no sentido de consagrar um caso de recorribilidade absoluta, a que não se aplica, não só a limitação quantitativa prevista no n.º 1 do mesmo preceito, mas também qualquer outra disposição legal que vede especialmente o recurso.


22.A referência ao motivo estranho à alçada é feita no pressuposto de que, encontrando-se ab initio ultrapassada a questão da relevância do valor da causa ou da sucumbência, conforme expresso no proémio, ainda assim não seria admissível o recurso por qualquer outro motivo (estranho à alçada), como é o caso dos procedimentos cautelares.


23.Ou seja, na al. d) do n.º 2 do art. 629.º são abrangidas, quer as decisões de que só pelo valor da causa ou da sucumbência não seria admitido o recurso, quer aquelas de que é excluído o recurso seja qual for o valor da causa ou do decaimento – cfr., J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, vol. III, pg. 19, em comentário às normas homólogas do art. 678.º do Código anterior.


24.Vale isto por dizer que não há fundamento para uma interpretação correctiva da al. d) do n.º 2 do art. 629.º, restringindo a recorribilidade dos acórdãos da Relação aos casos em que o recurso para o Supremo não seria admissível por motivo estranho à alçada.


25.Na verdade, não faz sentido que, estabelecendo o proémio do n.º 2 do art. 629.º a admissibilidade irrestrita do recurso (“independentemente do valor da causa ou da sucumbência, é sempre admissível recurso”), se venha a entender que o pressuposto do valor da causa por ele expressamente afastado afinal possa valer para efeito de excluir a recorribilidade no caso da contradição jurisprudencial prevista na sua alínea d).


26.A este propósito, discreteiam certeiramente J. Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre:


Como dissemos, ao ser eliminado o recurso para o tribunal pleno na revisão de 1995-1996, manteve-se, no campo da revista (art. 678-4) a solução do art. 764-4 do CPC de 1961, mas a norma foi eliminada pela Reforma dos Recursos Cíveis, sem que se perceba a razão de tal eliminação. Repristinou-a o CPC de 2013. A fórmula utilizada (“independentemente do valor da causa ou da sucumbência, é sempre admissível recurso”) não parece que devesse suscitar dúvidas quanto à irrelevância do valor da causa para o efeito da admissibilidade do recurso. Pelo contrário: a norma repristinada limitava-se, no n.º 4 do art. 678.º do CPC de 1961, a dizer que “[era] sempre admissível recurso…”, enquanto a do n.º 2 (competência e caso julgado) dizia que o recurso era “sempre admissível, [fosse] qual [fosse] o valor da causa” e a do n.º 5 (arrendamento) que tal aconteceria até à Relação “independentemente do valor da causa e da sucumbência”. Perante as dúvidas levantadas por estas diferenças de redacção, a redacção unificadora da nova norma não parece que possa ser considerada inflectida.


Por sua vez, o “sempre” que nesta era utilizado, inexistente no velho art. 764.º, inculcava já a ideia de irrelevância do valor da causa e da sucumbência. Ora, o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal não pode ser considerado pelo intérprete (art. 9-2 CC)” (CPC Anotado, vol. III, 3.ª ed., 2022, pgs. 32-33).


27.Como se diz no voto de vencido (Maria dos Prazeres Bizarro Beleza) do Ac. STJ de 14.9.2023, proferido no Proc. n.º 4544/15, “(…) a letra, a história e a função do preceito (a al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC) impõe uma interpretação que não exija que o valor da causa na qual foi proferida a decisão recorrida seja superior à alçada da Relação, desde logo, porque um dos pressupostos expressamente exigidos para a admissibilidade do recurso é a de que o motivo da impossibilidade da revista seja “estranho à alçada do tribunal” (vd., também, o voto de vencido da Senhora Juíza Conselheira Ana Paula Boularot no AC. STJ de 2.6.2015, Proc. n.º 189/13).


28.A razão de ser desta norma de admissibilidade é a de garantir, em casos em que não haveria acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (seja em razão do valor da causa ou outro motivo), o papel uniformizador do Supremo Tribunal.


29.A admissão do recurso torna-se uma exigência em função da existência de oposição de julgados dos Tribunais da Relação, assim se salvaguardando os princípios da igualdade dos cidadãos perante a lei (art. 13.º da CRP), da certeza e da segurança jurídica.


30.A admissibilidade do recurso com fundamento em conflito jurisprudencial, independentemente do valor da causa e da sucumbência, em linha com a valorização das funções do Supremo enquanto órgão jurisdicional que se quer virado para a criação de jurisprudência que possa cimentar os factores de certeza e da segurança jurídica.


31.Para efeitos de admissibilidade do recurso ao abrigo da al. d) do 629.º do CPC, o que releva é a contradição jurisprudencial em si mesma.


32.Não é compreensível que, por exemplo, a revista seja admissível num procedimento cautelar de valor inferior à alçada da Relação, mas não seja numa qualquer outra acção com esse mesmo fundamento.


33.Com efeito, está por demonstrar, e nem sequer é demonstrável que, por definição, a necessidade de uniformizar jurisprudência em face de contradição de decisões da Relação seja maior ou diferente num procedimento cautelar do que na acção subjudice.


34.A intervenção do Supremo radica na necessidade de resolver a problemática jurídica sobre que recai o conflito jurisprudencial, sendo indiferente a importância económica da causa: em tese geral, o relevo da contradição é o mesmo em todas as situações, independentemente do valor do processo.


35.Ademais, a irrecorribilidade de um acórdão da Relação por razões que se prendem com o valor da causa é um caso de exclusão legal (art. 629.º, n.º 1, CPC) tal qual, v.g., a inadmissibilidade da revista de decisão da 2.ª instância proferida num procedimento cautelar, pelo que introduzir um “distinguo” entre motivos excludentes é violador das regras gerais que regem a interpretação da lei e o princípio da igualdade ínsito no art. 13.º da CRP.


36.Não é, pois, convincente o argumento de que a resolução de conflitos jurisprudenciais deve ser reservada aos casos em que o valor da causa o permita, o qual não se coaduna com a economia da reforma dos recursos cíveis, votada à finalidade de melhor garantir a função uniformizadora do Supremo.


37.Se a admissibilidade do recurso ao abrigo da al. d) do n.º 2 do art. 629.º tem como justificação o objectivo de garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução contradições verificadas entre acórdãos da Relação em matérias em que a apreciação pelo Supremo é vedada por lei como, por exemplo, em sede de procedimentos cautelares (art. 370.º, n.º 2, do CPC), expropriações (art. 66.º, n.º 5, do CE) e insolvência (art. 14.º, n.º 1, do CIRE) –, então essa razão deve valer para os casos em que a revista é legalmente excluída por motivos atinentes à alçada.


38.De igual modo, com o devido respeito pela opinião contrária, é falacioso o argumento de que se sempre que se verificasse uma contradição entre acórdãos da Relação a revista “ordinária” seria admissível não havia nenhuma necessidade de prever para a mesma situação a revista excepcional (art. 672.º, n.º 1, al. c) do CPC).


39.Com efeito, é jurisprudência pacífica que a admissibilidade excepcional da revista é uma via processual que só se abre quando o único obstáculo à aceitação da revista é o previsto no n.º 3 do art. 671.º do CPC (dupla conformidade das decisões das instâncias) – cfr., Acs. STJ de 14.4.2015, de 4.6.2016, de 15.9.2016 e de 3.11.2016, Processos n.ºs 512/14, 205/14, 1848/12 e 2411/15, respectivamente.


40.Nas palavras do Ac. STJ de 20.12.2017, “o recurso de revista excepcional não constitui uma modalidade extraordinária de recurso, mas antes um recurso ordinário de revista, criado pelo legislador, na reforma operada ao Código de Processo Civil, com vista a permitir o recurso nos casos em que o mesmo não seja admissível em face da dupla conformidade de julgados, nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC, e desde que se verifique um dos requisitos consagrados no art. 672.º, n.º 1, do mesmo Código. Por conseguinte, a sua admissibilidade está igualmente dependente das condições gerais de admissão do recurso de revista, como sejam o valor da causa e o da sucumbência, exigidas nos termos enunciados pelo n.º 1 do art. 629.º do CPC”.


41.Temos assim que o recurso de revista excepcional, pressupondo uma situação de dupla conforme, nos termos em que esta é definida pelo n.º 3 do art. 671.º do CPC, exige, para a sua admissão, o preenchimento dos requisitos gerais de admissibilidade da revista normal.


42.Ou seja, a revista excepcional pressupõe que – à parte a questão da dupla conforme – a revista normal seria admissível, nomeadamente em razão do valor da causa, pois, de outro modo, pela via da excepcionalidade, abria-se um caminho mais lato do que o próprio da revista normal.


43.Diferentemente, o n.º 2 do art. 629.º visa acautelar as situações em que, por razões que se prendem com a alçada do tribunal recorrido, o recurso não seria admissível.


44.Se não fosse esse o intuito do legislador não haveria nenhuma necessidade de prever para a situação de contradição jurisprudencial a revista excepcional (art. 672.º, n.º 1, al. c) do CPC), pelo que não faz sentido que relativamente à al. d) do n.º 2 do art. 629.º se exija o preenchimento dos requisitos gerais de admissibilidade da revista.


45.Só assim é possível compatibilizar o art. 672.º, n.º 1, al. c) e o art. 629.º, n.º 2, al. d), ambos do CPC.


46.Significa isto que a admissibilidade da revista, ao abrigo da al. d) do n.º 2 do art. 629.º, sempre que se verifique uma contradição entre acórdãos das Relações não retira espaço à revista excepcional baseada nessa mesma contradição, já que a admissibilidade desta última, pressuponde uma situação de dupla conforme, exige o preenchimento dos requisitos gerais de recorribilidade, nos quais se inclui o de o valor da causa o permitir.


Pelo Relator foi proferido despacho a confirmar o despacho reclamado, não admitindo o recurso de revista interposto pelo Autor.


Inconformado, reclamou o Recorrente para a Conferência, referindo o seguinte:


1. A decisão reclamanda limita-se a seguir o entendimento dominante no STJ, sem proceder à mínima reflexão critica sobre a justeza dessa orientação, que, aliás, se confina à reprodução da argumentação do STJ de 11.11.2014 (Abrantes Geraldes).


2. O acolhimento automático dessa corrente de opinião é bem patente na total desconsideração dos argumentos do reclamante – maxime a doutrina a que é feita expressa referencia na reclamação - , que não são sequer enfrentados e rebatidos.


3. Por certo que uma orientação jurisprudencial maioritária não pode ser ignorada, mas daí não se segue que deva ser acolhida de uma forma mecânica e acrítica, sob pena de se tornar imune a qualquer reapreciação.


4. No direito, como na vida, nada é definitivo nem se pode dar como adquirido para todo o sempre.


5. Na verdade, abundam os exemplos de inflexões a entendimentos até então consolidados, assim se abrindo caminho para o papel criador da jurisprudência.


6. Veja-se o caso emblemático do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido a propósito do conceito de terceiros do art. 5.º do CRP, que veio revogar jurisprudência antes uniformizada.


7. O adágio popular de que “ não reconsidera quem não considera” tem pertinência acrescida no que toca aos tribunais, aos quais compete, mormente o Supremo Tribunal de Justiça, fazer o Direito aplicado.


8. A decisão sob reclamação, replicando o entendimento dominante, leva a cabo uma interpretação restritiva e abrogante da norma da al. d) do n.º 2 do art. 629.º CPC, que faz tábua rasa do proémio desse mesmo preceito legal, o qual se vê; assim, transmutado em letra morta,


Vejamos.


9. Em matéria de recorribilidade, o princípio geral é o de qualquer decisão judicial pode ser impugnada por meio de recurso (art. 627.º, n.º 1, do CPC) – cfr., Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, 1989, pg. 39.


10.Todavia, uma categoria de decisões ou uma concreta decisão podem não ser recorríveis.


11.Está sujeito a irrecorribilidade um universo de decisões típicas previstas pelo legislador. Essa irrecorribilidade pode ser absoluta ou operar apenas quanto ao recurso para o STJ.


12.São absolutamente irrecorríveis as decisões de indeferimento do requerimento de inversão do contencioso (art. 370.º, n.º 1, in fine, CPC), os despachos de mero expediente ou os proferidos no uso legal de um poder discricionário (art. 630.º, n.º 1, CPC), as decisões de simplificação ou agilização processual, de adequação formal e as prolatadas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do art. 195.º (art. 630.º, n.º 2, CPC), as decisões proferidas sobre impedimentos, suspeições ou escusas e recusas na prova pericial (art. 471.º, n.º 3, CPC), o despacho que julga o requerimento de prorrogação do prazo para contestar (art. 596.º, n.º 6, CPC), os despachos de convite ao aperfeiçoamento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados (art. 590.º, n.ºs 2, al. b) e c), e n.º 7, CPC), a decisão do Tribunal a quo que não admita o recurso ou retenha a sua subida (art. 641.º, n.º 5, CPC) e o despacho saneador que, por falta de elementos, relegue para final a decisão da matéria que lhe cumpra conhecer (art. 595.º, n.º 4, CPC).


13.Já são apenas irrecorríveis para o STJ, a decisão que aprecie incompetência relativa (art. 105.º, n.º 4, CPC), as decisões proferidas nos procedimentos cautelares e a decisão que defira o requerimento de inversão do contencioso (art.370.º. n.º 2, CPC)


14.A par destes casos de irrecorribilidade, uma concreta decisão pode não ser recorrível em razão do valor da causa ou do decaimento (art. 629.º, n.º 1, CPC),


15.Assim, em princípio, só admitem recurso ordinário as decisões proferidas em causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre.


16.No entanto, a lei estatui garantias de recorribilidade de certas decisões em que desconsidera o valor da causa, fazendo-o para qualquer recurso, seja na Relação seja no Supremo (art. 629.º, n.º 2, CPC)


17.Nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 629.º CPC prevêem-se as situações que tornam o recurso admissível, independentemente do valor da causa ou da sucumbência.


18.Nessas situações tipificadas, apesar de a causa ter valor inferior à alçada do tribunal de que se recorre, a lei admite excepcionalmente o recurso.


19.Tendo a impugnação como fundamento e objecto alguma das hipóteses previstas no n.º 2 do art. 629.º, é sempre admissível recurso para a Relação ou para o Supremo, seja qual for o valor da causa ou da sucumbência.


20.Sendo que o recurso de revista nem sequer é condicionado pela ocorrência de uma situação de dupla conforme.


21.Ou seja, as normas contidas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 629.º consagram hipóteses de recorribilidade absoluta, a que não se aplica a limitação quantitativa do valor da causa ou da sucumbência prevista no n.º 1 da mesma disposição legal.


22.É mister não perder de vista que o n.º 2 do art. 629.º do CPC constitui uma excepção ao princípio da irrecorribilidade nas causas de valor inferior à alçada do tribunal de que se recorre.


23.Tratando-se, como efectivamente se trata de uma norma excepcional, não faz sentido ver na al. d) do n.º 2 do art. 629.º uma excepção que derroga…a própria excepção consagrada no proémio desse preceito legal.


24.Por outras palavras, sendo a regra da irrecorribilidade excepcionada no n.º 2 do art. 629.º do CPC, a vontade do legislador não pode ter sido, sob pena de contradição nos próprios termos, de introduzir na al. d) uma excepção a esse regime excepcional de admissibilidade do recurso.


25.A fórmula ínsita no segmento inicial do proémio do art. 629.º, n.º 2 (“independentemente do valor da causa ou da sucumbência”) não suscita a mínima dúvida ou reserva quanto à irrelevância do valor da causa, para efeitos de recorribilidade de alguma das decisões previstas nas suas diferentes alíneas: a sua inequívoca literalidade significa, e só pode significar, a dispensa da exigência de que o valor do processo exceda o da alçada do tribunal a quo.


26.O advérbio “sempre” utilizado no corpo do n.º 2 do art. 629.º reforça a ideia da irrelevância do valor da causa e da sucumbência em qualquer um dos casos previstos nas suas alíneas.


27.Outra interpretação esvaziaria de sentido ou função útil essa expressão adverbial, pois sempre é…sempre.


28.Consequentemente, sob pena de insanável contradição – em derrogação da presunção de que na fixação do sentido e alcance da lei o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do CC) – a al. d) do n.º 2 do art. 629.º não deve ser interpretada no sentido de a admissibilidade do recurso depender da exigência de o valor da causa exceder a alçada do tribunal recorrido.


29.Os elementos gramatical e sistemático do n.º 2 do art. 629.º – que surge como contraponto e excepção à regra do n.º 1 – são concludentes no sentido de impedirem as limitações à recorribilidade decorrentes do valor da causa e da sucumbência.


30.A al. d) do n.º 2 do art. 629.º repristina o n.º 4 do art. 678.º do CPC de 1961, na versão introduzida pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março, que havia sido suprimida pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto.


31.A norma do n.º 4 do art. 678.º do CPC de 1961 tinha o seguinte teor:


É sempre admissível recurso do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se a orientação nele perfilhada estiver de acordo com a jurisprudência anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça”.


32.Sobre o art. 764.º do CPC de 1961 – que é o antecedente mais remoto da al. d) do n.º 2 do art. 629.º do NCPC – dizia Lopes Cardoso que “assim, não pode entender-se, como já se pretendeu, ser também indispensável, para a admissibilidade do recurso para o tribunal pleno, que, no caso, o valor da causa exceda a alçada da Relação” (CPC Anotado, 1967, pgs. 962-963).


33.Comentando a al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro sustentam assertivamente que perante “os antecedentes históricos da norma e os próprios termos do seu enunciado contido na alínea (já não no proémio), devemos concluir que aqui não se prevê apenas um fundamento de admissibilidade do recurso” independentemente do valor da causa e da sucumbência”, mas sim um fundamento de admissibilidade absoluta do recurso, ou seja, de admissibilidade independente dos valores referidos no n.º 1, como resulta do mencionado proémio, e independentemente do motivo especial (estranho à alçada) de irrecorribilidade a que o acórdão estaria sujeito, como resulta do corpo da alínea. (Primeiras Notas ao CPC, vol. II, 2014, pg. 20).


34.A norma em apreço deve, pois, ser interpretada no sentido de consagrar um caso de recorribilidade absoluta, a que não se aplica, não só a limitação quantitativa prevista no n.º 1 do mesmo preceito, mas também qualquer outra disposição legal que vede especialmente o recurso.


35.A referência ao motivo estranho à alçada é feita no pressuposto de que, encontrando-se ab initio ultrapassada a questão da relevância do valor da causa ou da sucumbência, conforme expresso no proémio, ainda assim não seria admissível o recurso por qualquer outro motivo (estranho à alçada), como é o caso dos procedimentos cautelares.


36.Ou seja, na al. d) do n.º 2 do art. 629.º são abrangidas, quer as decisões de que só pelo valor da causa ou da sucumbência não seria admitido o recurso, quer aquelas de que é excluído o recurso seja qual for o valor da causa ou do decaimento – cfr., J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, vol. III, pg. 19, em comentário às normas homólogas do art. 678.º do Código anterior.


37.Consequentemente, não há fundamento para uma interpretação correctiva da al. d) do n.º 2 do art. 629.º, que restrinja a recorribilidade aos casos em que a decisão recorrida foi proferida em causa de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre.


38.Na verdade, não faz sentido que, estabelecendo o proémio do n.º 2 do art. 629.º a admissibilidade irrestrita do recurso (“independentemente do valor da causa ou da sucumbência, é sempre admissível recurso”), se venha a entender que o requisito do valor da causa por ele expressamente afastado afinal possa valer para efeito de excluir a recorribilidade no caso da contradição jurisprudencial prevista na sua alínea d).


39.Advertindo para a incoerência de tal interpretação correctiva ou abrogante, “ao arrepio da melhor doutrina firmada desde 1961”, dizem J. Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre:


Como dissemos, ao ser eliminado o recurso para o tribunal pleno na revisão de 1995-1996, manteve-se, no campo da revista (art. 678-4) a solução do art. 764-4 do CPC de 1961, mas a norma foi eliminada pela Reforma dos Recursos Cíveis, sem que se perceba a razão de tal eliminação. Repristinou-a o CPC de 2013. A fórmula utilizada (“independentemente do valor da causa ou da sucumbência, é sempre admissível recurso”) não parece que devesse suscitar dúvidas quanto à irrelevância do valor da causa para o efeito da admissibilidade do recurso. Pelo contrário: a norma repristinada limitava-se, no n.º 4 do art. 678.º do CPC de 1961, a dizer que “[era] sempre admissível recurso…”, enquanto a do n.º 2 (competência e caso julgado) dizia que o recurso era “sempre admissível, [fosse] qual [fosse] o valor da causa” e a do n.º 5 (arrendamento) que tal aconteceria até à Relação “independentemente do valor da causa e da sucumbência”. Perante as dúvidas levantadas por estas diferenças de redacção, a redacção unificadora da nova norma não parece que possa ser considerada irreflectida.


Por sua vez, o “sempre” que nesta era utilizado, inexistente no velho art. 764.º, inculcava já a ideia de irrelevância do valor da causa e da sucumbência. Ora, o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal não pode ser considerado pelo intérprete (art. 9-2 CC)” (CPC Anotado, vol. III, 3.ª ed., 2022, pgs. 32-33).


40.Como se diz no voto de vencido (Maria dos Prazeres Bizarro Beleza) do Ac. STJ de 14.9.2023, proferido no Proc. n.º 4544/15, “(…) a letra, a história e a função do preceito (a al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC) impõem uma interpretação que não exija que o valor da causa na qual foi proferida a decisão recorrida seja superior à alçada da Relação, desde logo, porque um dos pressupostos expressamente exigidos para a admissibilidade do recurso é a de que o motivo da impossibilidade da revista seja “estranho à alçada do tribunal (vd., também, o voto de vencido da Senhora Juíza Conselheira Ana Paula Boularot no AC. STJ de 2.6.2015, Proc. n.º 189/13).


41.Para além da letra e dos antecedentes históricos da al. d) do n.º 2 do art. 629.º CPC, também o elemento racional ou finalístico depõe no sentido da interpretação aqui propugnada.


42.A razão de ser desta norma é a de garantir, nos casos em que não haveria acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (seja em razão do valor da causa ou outro motivo), o papel uniformizador do Supremo Tribunal.


43.A admissão do recurso torna-se uma exigência em função da existência de oposição de julgados dos Tribunais da Relação, assim se salvaguardando os princípios da igualdade dos cidadãos perante a lei (art. 13.º da CRP), da certeza e da segurança jurídica.


44.A admissibilidade do recurso com fundamento em conflito jurisprudencial, independentemente do valor da causa e da sucumbência, está em linha com a valorização das funções do Supremo enquanto órgão jurisdicional que se quer virado para a criação de jurisprudência que possa cimentar os factores de certeza e de segurança jurídica.


45.Para efeitos de admissibilidade do recurso ao abrigo da al. d) do 629.º do CPC, o que releva e basta é a contradição jurisprudencial em si mesma.


46.Não é demais insistir que a ratio da al. d) do n.º 2 do art. 629.º CPC é a de garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução os conflitos de jurisprudência entre Acórdãos da Relação verificados em processos que não poderiam ser apreciados pelo Supremo em valor da causa da sucumbência ou de motivo estranho à alçada.


47.Á luz dos cânones interpretativos, não é razoável nem plausível sustentar que, tendo o legislador firmado no n.º 2 do art. 629.º uma regra de admissibilidade absoluta do recurso, independentemente do valor da causa, viesse introduzir na al. d) uma restrição baseada precisamente na regra legal das alçadas.


48.Vistas as coisas em termos de unidade do sistema, a necessidade de superação pelo Supremo Tribunal de Justiça de contradições jurisprudenciais não pode ser colocada na dependência do valor da causa.


49.É o próprio conflito jurisprudencial, em si e por sí, que justifica e determina o objecto latitudinário de evitar a propagação do erro de direito, e, dessa forma, garantir o principio da igualdade dos cidadãos perante a lei.


50.Sendo a finalidade da al. d) do n.º 2 do art. 629.º CPC evitar a cristalização de orientações jurisprudenciais contraditórias ao nível dos Tribunais da Relação, a leitura correcta dessa norma é a de que o legislador quis assegurar a admissibilidade do recurso, quer a decisão não fosse, em princípio, recorrível por razões atinentes ao valor do processo, quer a causa da exclusão de recorribilidade fosse ditada por motivo estranho à alçada do tribunal recorrido.


51.A irrecorribilidade das decisões proferidas em causas de valor inferior à alçada do tribunal é um caso de irrecorribilidade legal, que, na sua etiologia, em nada difere da irrecorribilidade por motivo estranho à alçada.


52.Uma vez que a regra de irrecorribilidade fundada no valor da causa foi afastada pelo proémio do n.º 2 do art. 629.º, quis o legislador precisar que essa excepção se aplicava também aos casos em que a causa de exclusão residisse em motivo estranho à alçada.


53.Com efeito, não é compreensível nem justificável que, por exemplo, a revista seja admissível num procedimento cautelar de valor inferior à alçada da Relação, mas já não o seja, com fundamento nessa regra da alçada, num processo em que se mostre verificada uma oposição entre acórdãos do 2.º grau.


54.Está por demonstrar, e nem sequer é demonstrável, que, por definição, a necessidade de uniformizar jurisprudência em face da contradição de decisões da Relação tenha menos relevância jurídica do que quando está em causa a violação das regras da competência internacional, da competência em razão da matéria ou da hierarquia, a ofensa de caso julgado e decisões respeitantes ao valor da causa ou proferidas contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.


55.Pelo que não tem justificação lógica nem racional descortinar na al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC uma limitação de recorribilidade que não existe nas demais alíneas dessa norma.


56.O acesso ao Supremo é justificado pela necessidade de resolver a problemática jurídica sobre que recai o conflito jurisprudencial, sendo indiferente a importância económica da causa; o relevo da contradição é o mesmo em todas as situações, independentemente do valor do processo.


57.Por isso mesmo, o legislador quis tornar claro, na esteira da legislação pregressa, a admissibilidade do recurso com fundamento em contradição entre acórdãos da Relação, quer a decisão não fosse, em princípio, recorrível por razão atinentes ao valor da causa, que a causa de exclusão de recorribilidade fosse ditada por motivo estranho à alçada do tribunal recorrido.


58.Como assinalam J. Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, “(…) o relevo a considerar, nos casos que o STJ normalmente não julga, pode ser o da problemática jurídica em causa e não o da importância económica da causa” (CPC Anotado, vol. 3.º, 3.ª ed. pg. 34).


59.Não deve, pois, colher o argumento de que a resolução de conflitos jurisprudenciais é reservada aos casos em que o valor da causa o permita, o que, aliás, não se coaduna com a economia da reforma dos recursos cíveis, que é votada consabidamente à finalidade de melhor garantir a função uniformizadora do Supremo.


60.Citando Armindo Ribeiro Mendes, “é manifestamente contra legem” a interpretação que “a jurisprudência maioritária do STJ, com aplauso de Teixeira de Sousa e Abrantes Geraldes” faz da al. d) do n.º 2, do art. 629.º do CPC (Prontuário do Direito de Trabalho, tomo II, 2022, pg. 121).


61.De igual modo, é falacioso, com o devido respeito pela opinião contrária, o argumento de que se a revista fosse admissível sempre que se verificasse uma contradição entre acórdãos da Relação não haveria necessidade de prever para a mesma situação a revista excepcional (art. 672.º, n.º 1. C) do CPC).


62.Na verdade, a hipótese prevista na al. d) do n.º 2 do art. 629.º é distinta da contemplada na al. c) do n.º1 do art. 672.º.


63. (Diga-se parenteticamente que essa natureza distintiva foi claramente sublinhada no requerimento de reclamação (cfr., arts. 39.º a 44.º), pelo que é incompreensível a imputação ao reclamante de “confundir os regimes processuais derivados, por um lado, do artigo 629.º, n.º 2, alínea d) e, por outro, dos artigos 671.º, n.º 3 e 672.º, número 1, alínea c) ambos do Código de Processo Civil, dado uns e outros serem distintos (…))”.


64.É precisamente por causa dessa diferença de previsão, assinalada claramente pelo aqui reclamante, que não oferece qualquer préstimo a invocação do art. 672.º, n.º 1, al c) para justificar a interpretação restritiva do art. 629.º, n.º 2, al. d).


65.Com efeito, “quando o Acórdão da Relação se integra nas situações excepcionais do n.º 2 do art. 629.º não faz sentido apelar aos requisitos da revista excepcional, sendo admissível a revista independentemente da dupla conforme – cfr., Ac. STJ de 11.1.2017, P. 68/13.


66.É jurisprudência pacífica que a admissibilidade excepcional da revista ao abrigo da al. c) do n.º 1 do art. 672.º do CPC é uma via processual que apenas se abre quando o único obstáculo à aceitação do recurso é a existência da “dupla conforme” prevista no n.º 3 do art. 671.º do CPC – cfr., v.g., Acs. STJ de 14.4.2015, de 4.6.2016, de 15.9.2016 e de 3.11.2016, Processos n.ºs 512/14, 205/14, 1848/12 e 2411/14 respectivamente.


67.No dizer certeiro do Ac. STJ de 20.12.2017, “o recurso de revista excepcional não constitui uma modalidade extraordinária de recurso, mas antes um recurso ordinário de revista, criado pelo legislador, na reforma operada ao Código de Processo Civil, com vista a permitir o recurso nos casos em que o mesmo não seja admissível em face da dupla conformidade de julgados, nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC, e desde que se verifique um dos requisitos consagrados no art. 672.º, n.º 1, do mesmo Código.


Por conseguinte, a sua admissibilidade está igualmente dependente das condições gerais de admissão do recurso de revista, como sejam o valor da causa e o da sucumbência, exigidas nos termos enunciados pelo n.º 1 do art. 629.º do CPC”.


68.Temos assim que o n.º 1 do art. 672.º do CPC permite, verificadas as situações tipificadas nas suas alíneas, o recurso de revista nos casos em que o único obstáculo à admissão da revista reside na existência de uma situação de dupla conforme, pressupondo, portanto, o preenchimento dos requisitos gerais de recorribilidade.


69.Ou seja, pressupõe que – à parte a questão da dupla conforme – a revista normal seria admissível, nomeadamente em razão do valor da causa, pois, de outro modo, pela via da excepcionalidade, abria-se um caminho mais lato do que o próprio da revista “ordinária”.


70.Diferentemente, o n.º 2 do art. 629.º do CPC, visa garantir a admissibilidade do recurso nos casos em que o mesmo não seria admissível por o valor da causa ser inferior à alçada do tribunal de que se recorre.


71.Daí que para a situação de contradição jurisprudencial prevista na al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC não se exija o preenchimento dos requisitos gerais de admissibilidade da revista: só neste quadrante interpretativo é possível compatibilizar o art. 672.º, n.º 1, al. c) e o art. 629.º, n.º 2, al. d), ambos do CPC.


72.É, pois, de concluir que a admissibilidade da revista, ao abrigo da al. d) do n.º 2 do art. 629.º não retira espaço à previsão da al. c) do n.º 1 do art. 672.º, já que a admissibilidade da revista ao abrigo desta última norma, tendo como pressuposto uma situação específica (dupla conforme), exige, ao contrário da primeira, o preenchimento dos requisitos gerais de recorribilidade, nos quais se inclui o de o valor da causa o permitir.


73.Pelo que não deve proceder o argumento sistemático invocado para justificar a exigência de a admissibilidade do recurso baseado na al. d) do n.º 2 do art. 629.º CPC depender de o valor da causa ser superior à alçada do tribunal recorrido.


74.Também não oferece nenhum contributo válido para a solução da questão decidenda a invocação da jurisprudência constitucional produzida sobre a al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC.


75.Isto pela singela e decisiva razão de que o Tribunal Constitucional apenas se pronuncia sobre a conformidade constitucional da interpretação de uma dada norma, não lhe competindo declarar se tal interpretação é a mais correcta à luz do direito ordinário.


76.Em suma, tendo o recurso como fundamento a al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, a revista é admissível, independentemente do valor da causa ou da sucumbência.


SEM PRESCINDIR


77.Mesmo que se entenda que o art. 629.º, n.º 2, al. d) do CPC só é aplicável se houver um impedimento legal distinto do funcionamento da regra da alçada – o que, data vénia, não se concede – o certo é que, na espécie, se verifica uma exclusão legal da revista por um motivo que nada tem a ver com o valor da causa.


78.Nos termos do disposto na al. a) do art. 79.º do CPT, é sempre admissível recurso para a Relação nas acções em que esteja em causa a determinação da categoria profissional, o despedimento do trabalhador, a sua reintegração na empresa e a validade ou subsistência do contrato de trabalho.


79.Decorre da referida norma o estabelecimento, em princípio, como limite recursivo, o Tribunal da Relação.


80.Significa isto que o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça está vedado, em princípio, por razões diversas da alçada da Relação.


81.Donde, estando excluído por princípio o recurso para o STJ por um motivo legal (impedimento ou restrição) estranho à alçada, a revista interposta a fls… é admissível, mesmo que se adira à linha interpretativa seguida na douta decisão sob reclamação – cfr., a propósito de um caso análogo ao dos autos, o Ac. STJ de 28.3.2019, P. 413/14.


A Ré respondeu.


x


Cumpre apreciar e decidir:


É o seguinte o teor do despacho do Relator:


“Desde já se refere que nada há a censurar ao despacho reclamado, cuja exaustiva e sólida argumentação reflecte a jurisprudência consolidada deste STJ, de que são exemplo os arestos aí citados. Aliás, o próprio Reclamante a reconhece.


Os pressupostos gerais de admissibilidade da revista estão previstos no artigo 629º do C.P.C. (sem prejuízo das decisões que admitem recurso independentemente do valor da causa e da sucumbência nos termos do artigo 629.º, n.º 2, do C.P.C.).


Prevê esse artigo 629º, no seu nº 1, que “o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal (…)”.


Não oferece controvérsia que o valor da presente acção é inferior à alçada do Tribunal da Relação - 30.000,00 € (artigo 44º, nº 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário).


Contudo, e nos termos já citado nº 2 do artº 629º, particularmente a sua alínea d):


“2 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:


(…)


d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.


No sumário do acórdão do STJ de 24-11-2016, disponível em www.dgsi.pt, escreveu-se o seguinte:


I. A interpretação do disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC mais conforme com a razão teleológica que lhe subjaz, com a unidade do sistema recursório de uniformização e como o factor histórico-evolutivo do instituto em referência é no sentido de que a admissibilidade irrestrita de recurso com o fundamento ali previsto se confina aos casos em que o recurso ordinário fosse admissível em função da alçada ou da sucumbência, se não existisse motivo a estas estranho.


(...)


IV. No caso vertente, além de não ocorrer inadmissibilidade de recurso por motivo alheio à alçada do tribunal de que se recorre, nem sequer a revista seria admissível em função do valor da causa ou da sucumbência, pelo que não se verifica o fundamento especial de recorribilidade previsto na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC”.


No acórdão do STJ de 24-05-2022, in www.dgsi.pt, cita-se Abrantes Geraldes, no sentido de que a aplicação do preceito em discussão (al. d) do nº 2 do art. 629º) “se circunscreve aos casos em que se pretenda recorrer de acórdão da Relação proferido no âmbito de acção (ou procedimento) cujo valor excede a alçada da Relação, mas relativamente ao qual esteja excluído o recurso de revista por motivo estranho a essa alçada». Dá como exemplo o caso de um acórdão da Relação proferido num procedimento cautelar, que, em regra (ou seja, por razões que não têm a ver com a alçada), não admite recurso para o STJ (art. 370º, nº 2, do CPC). Para que o recurso seja admissível, será necessário que, para além da contradição jurisprudencial, o valor do procedimento exceda a alçada da Relação e que a sucumbência do recorrente seja superior a metade dessa alçada. Ao invés do que faria supor a integração da alínea no proémio do nº 2, a admissibilidade do recurso, por esta via especial, não prescinde da verificação dos pressupostos gerais da recorribilidade em função do valor da causa ou da sucumbência, pois só assim se compreende o segmento referente ao “motivo estranho à alçada do Tribunal (Recursos em Processo Civil, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, p. 71).


Aí se concluindo que a “previsão do art. 629º, nº 2, al. d), do CPC circunscreve-se aos casos em que o valor da causa exceda a alçada da Relação, mas em que esteja excluído o recurso de revista por motivo estranho a essa alçada, como sucede, por exemplo, com os procedimentos cautelares, relativamente aos quais não se admite, em regra (por razões que não têm a ver com a alçada), nos termos do art. 370º, nº 2, do CPC, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Será necessário, para que o recurso seja admissível, que, para além da contradição jurisprudencial, o valor do procedimento exceda a alçada da Relação e que a sucumbência do recorrente seja superior a metade dessa alçada”.


Lá como aqui, não se verifica uma situação de não admissibilidade do recurso por motivos diferentes do da alçada e, para além disso, o valor da causa é inferior ao da alçada da Relação, razão por que o recurso, mesmo a verificar-se contradição de acórdãos, não pode ser admitido.


Também no mesmo aresto se citam acórdãos do Tribunal Constitucional no sentido de se não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 629.º, n.º 2, alínea d), conjugada com o n.º 1 do artigo 671.º, ambos do Código de Processo Civil, conducente ao sentido de que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, não é admissível quando não se verifiquem os requisitos do artigo 671.º, n.º 1, do CPC.


Por sua vez, no Ac. do STJ de 15-03-2022, in www.dgsi.pt, escreveu-se:


“O art. 629º, 2, d), do CPC, fundamento do recurso interposto pela Recorrente, circunscreve-se aos casos em que se pretende recorrer de acórdão da Relação proferido no âmbito de acção cujo valor excede a alçada da Relação, sem desrespeitar o valor mínimo de sucumbência, e relativamente ao qual, de acordo com o objecto recursivo ou a sua natureza temática, esteja excluído, por regra, o recurso de revista por motivo de ordem legal alheio à conjugação do valor do processo com o valor da alçada da Relação – requisitos cumulativos, desdobrados do pressuposto legal: recurso do acórdão da Relação «do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal».


Na verdade, a al. d) do art. 629º, 2, encontra-se reservada para as situações em que o obstáculo único para a admissibilidade da revista resulta de motivo que transcende a alçada (e a conjugação com a alçada) do tribunal recorrido. Assim, esse pressuposto negativo (e excludente da regra de admissibilidade prevista no proémio do n.º 2 do art. 629º, 2, CPC) implica que o recurso assim fundamentado está circunscrito aos casos em que se pretende recorrer de acórdão da Relação no âmbito de recorribilidade delimitada pelo art. 629º, 1, do CPC mas relativamente ao qual está excluído por princípio o recurso ao STJ por outra motivação legal (impedimento ou restrição) e, sendo esse o caso, em razão da natureza do processo (como sucede, por exemplo, com os procedimentos cautelares, nos termos do art. 370º, 2, e dos processos de jurisdição voluntária, de acordo com o art. 988º, 2, sempre do CPC).


Por outras palavras, a contradição jurisprudencial pugnada pelo art. 629º, 2, d), está apenas prevista para os casos em que, por um lado, o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça está vedado e, por outro lado, está vedado por razões diversas da alçada da Relação, de modo que o impedimento do ou a restrição ao recurso não residem no facto de o valor da acção ou o da sucumbência ser inferior aos limites mínimos resultantes do nº 1 do art. 629º. Ampliaram-se deste modo as possibilidades de serem levadas à cognição do STJ contradições jurisprudenciais em 2.ª instância que, de outro modo, poderiam persistir, pelo facto de, em regra, surgirem em acções em que, apesar de apresentarem valor processual superior à alçada da Relação, não se admite recurso de revista”.


A nível da doutrina temos que Miguel Teixeira de Sousa, sobre o art. 629º, 2, d), (Comentário ao Ac. do STJ de 2/6/2015 (processo n.º 189/13.9TBCCHB.E1.S1): https://blogippc.blogspot.com/2015/06/jurisprudencia-157.html, com data de 24/6/2015 e referência “Jurisprudência 2015 (157) considera que:


“O preceito não tem, de modo algum, o sentido de admitir a revista sempre que haja oposição entre dois acórdãos da Relação, ou seja, não permite a interposição da revista de qualquer acórdão da Relação que esteja em oposição com qualquer outro acórdão da Relação; pressuposto (aliás explícito) da aplicação daquele preceito é que a revista, que seria admissível pela conjugação do valor da causa com a alçada da Relação, não seja afinal admitida “por motivo estranho à alçada do tribunal”, isto é, por um impedimento legal distinto do funcionamento da regra da alçada. Quer dizer: o art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC só é aplicável se houver uma exclusão legal da revista por um motivo que nada tenha a ver com a relação entre o valor da causa e a alçada do tribunal ou, mais em concreto, se a lei excluir a admissibilidade de uma revista que, de outro modo, seria admissível.

(…)

Há uma (boa) razão de ordem sistemática para se entender que o disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC não pode dispensar a admissibilidade da revista nos termos gerais (sendo nomeadamente necessário, para a admissibilidade da revista, que o valor da causa exceda a alçada da Relação). O argumento é muito simples: se todos os acórdãos da Relação em contradição com outros acórdãos da Relação admitissem a revista “ordinária” nos termos do art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC, deixaria necessariamente de haver qualquer justificação para construir um regime de revista excepcional para a contradição entre acórdãos das Relações tal como se encontra no art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC. Sempre que se verificasse uma contradição entre acórdãos das Relações, seria admissível uma revista “ordinária”, não havendo nenhuma necessidade de prever para a mesma situação uma revista excepcional. (…) Visto pela perspectiva contrária: a admissibilidade de uma revista "ordinária" sempre que se verifique uma contradição entre acórdãos das Relações retira qualquer espaço para uma revista excepcional baseada nessa mesma contradição. Assim, a única forma de atribuir algum sentido útil à contradição de julgados das Relações que consta, em sede de revista excepcional, do art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC é pressupor que a revista “ordinária” não é admissível sempre que se verifique essa mesma contradição. Só nesta base é possível compatibilizar a vigência do art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC com a do art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC.


(…)


(…) o regime instituído no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC não se basta com uma mera contradição entre acórdãos das Relações, pelo que o preceito só é aplicável nos casos em que, apesar de a revista ser admissível nos termos gerais, se verifica uma irrecorribilidade estabelecida pela lei. Se se quiser resumir numa fórmula o estabelecido no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC, pode dizer-se que este preceito estabelece uma recorribilidade para acórdãos que são recorríveis nos termos gerais e irrecorríveis por exclusão legal.


Atendendo à exclusão da revista por um critério legal independente da relação do valor da causa com a alçada do tribunal, há que instituir um regime que permita que o STJ possa pronunciar-se (e, nomeadamente, uniformizar jurisprudência) sobre matérias relativas aos procedimentos cautelares e aos processos de jurisdição voluntária. É precisamente essa a função do disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC”


E, contrariamente à argumentação do Reclamante nesse sentido, importa não confundir os regimes processuais derivados, por um lado, do artigo 629.º, número 2, alínea d) e, por outro, dos artigos 671.º, número 3 e 672.º, número 1, alínea c), ambos do Código de Processo Civil, dado um e outro serem distintos, como ressalta desde logo da circunstância do aludido número 3 do artigo 671.º começar por dizer que “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível” [que são os previstos no número 2 do artigo 629.º], não há possibilidade de recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça em cenários de «dupla conforme» [que não se forma para o efeito, se as fundamentações forem essencialmente diferentes ou se houver um voto de vencido por parte de um dos juízes desembargadores subscritor do acórdão da relação], a não ser nos casos elencados no artigo 672.º [revista excepcional]- Ac. do STJ de 24-01-2024, in www.dgsi.pt.


A este propósito escreve Abrantes Geraldes, ob. cit., pg. 75, que «O preceito [artigo 629.º, número 2, alínea d)] não se confunde com o art.º 672.°, n.º 1, al. c), que regula as situações de dupla conformidade decisória. Em primeiro lugar, porque os casos a que se reporta a revista excecional pressupõem precisamente que, em abstrato, seja admitido recurso de revista, quer em função do valor ou da sucumbência, quer em função da ausência de outro impedimento legal, sofrendo a revista apenas uma limitação ~ que não uma exclusão absoluta - por via da dupla conforme. Em segundo lugar, porque a al. d) do n.º 2 do art.º 629.° tem aplicação mesmo quando o acórdão da Relação de que se pretenda recorrer tenha confirmado a decisão da 1.ª instância. Por isso, tratando-se de acórdão incidente sobre decisão final ou sobre decisão que tenha apreciado o mérito, mas que esteja em contradição com outro acórdão da Relação ou do Supremo, é admitida a revista sempre que esta seja vedada por razões diversas da alçada.».


O (extenso) esforço argumentativo do Reclamante em nada põe em causa a argumentação vertida no despacho reclamado, que aliás, como aí se refere, reflecte a jurisprudência consolidada deste STJ, no sentido de que o disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, não pode dispensar a admissibilidade da revista nos termos gerais, sendo nomeadamente necessário, para a admissibilidade da revista, que o valor da causa exceda a alçada da Relação. Aí se preveem os casos em que o valor da causa excede a alçada da Relação, mas em que está excluído o recurso de revista por motivo estranho a essa alçada. Só assim se compreende o segmento referente ao “motivo estranho à alçada do Tribunal”.


Sendo certo que o tribunal deve pronunciar-se sobre as questões que lhe são colocadas e não tem que rebater toda a argumentação expendida pela parte, não é a (sempre legítima) discordância desta que pode afastar a argumentação em que se esteia a aludida jurisprudência consolidada.


Dizer mais do que escreveu no despacho singular seria entrar em repetições inúteis.


Também não tem sentido fazer apelo ao disposto na al. a) do art. 79.º do CPT, o qual, como o próprio Reclamante reconhece, apenas tem aplicação nos recursos para a Relação, daí não se podendo extrapolar para a interpretação por ele defendida.


x


Decisão:


Em face do exposto, acorda-se em desatender a reclamação do Autor e, em consequência, manter o despacho singular.


Custas pelo Autor/reclamante, com 3 UC de taxa de justiça.


Lisboa, 22/05/2024


Ramalho Pinto (Relator)


Mário Belo Morgado


José Eduardo Sapateiro





Sumário (da responsabilidade do Relator)