Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9073/21.1T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: SEGURADORA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
LESADO
DANO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
CRITÉRIOS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
QUANTUM DOLORIS
INCAPACIDADE FUNCIONAL
Data do Acordão: 01/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: SUMÁRIO RETIFICADO POR DESPACHO, DA SRA. CONSELHEIRA RELATORA, DE 17-02-2025
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário : Por estar em causa a fixação de um valor indemnizatório relativo a danos não patrimoniais, por recurso a critérios de equidade, a revista está restrita à apreciação da manifesta desrazoabilidade da valoração dos parâmetros utilizados, circunstância não verificada no caso concreto, em que o Tribunal efectuou uma ponderação adequada dos parâmetros balizadores da equidade – art.º 494.º do Código Civil –  o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem, nomeadamente as lesões físicas sofridas pela autora em virtude do acidente e os padecimentos que futuramente suportará, ao fixar tal indemnização no montante de €35.000,00 (trinta e cinco mil euros).
Decisão Texto Integral:

Recorrentes: Fidelidade – Companhia de Seguros, SA, ré

AA, autora

Recorridos: AA, autora

Fidelidade – Companhia de Seguros, SA, ré



*


I – Relatório

I.1 –

Fidelidade – Companhia de Seguros, SA intentou recurso de revista do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 4 de Junho de 2024, que julgou a apelação parcialmente procedente, e alterou o valor indemnizatório fixado em 1.ª instância como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela autora/apelante em consequência directa e necessária do acidente em apreço e das lesões físicas que por tal razão sofreu, para o montante de €35.000,00 (trinta e cinco mil euros) e no mais confirmou a decisão recorrida.

A recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1. Face aos factos provados nos presentes autos e que a Ré não põe em causa, a indemnização pelo dano biológico, na vertente dos danos não patrimoniais, não pode, nem deve, ultrapassar a quantia de 15.000,00 €.

2. Com efeito, vindo provado que

- a Autora tinha 69 anos de idade à data do acidente,

- o tempo de doença da Autora pelas lesões sofridas foi de nove meses,

- a Autora sofreu um traumatismo da perna direita, com luxação da anca e fractura do acetábulo,

- a Autora sofreu um quantum doloris de grau 5 numa escala de 0 a 7.

- a Autora ficou afectada de um défice funcional permanente na integridade físico-psíquica da Autora de 15 Pontos,

- existe compatibilidade do défice com outras profissões da área da preparação técnico-profissional da Autora,

- a Autora tem um dano estético permanente de 3 Pontos numa escala de 0 a 7,

- as lesões da Autora têm uma repercussão na actividade desportiva e de lazer, quantificável num grau 2 numa escala de 0 a 7,

O que foi tido em consideração – e bem – pelo Tribunal recorrido para a fixação do montante indemnizatório,

3. É manifesto que a indemnização pelo dano biológico, na vertente dos danos não patrimoniais, deve ser fixada em 15.000,00 €, como acima se referiu.

4. Merecendo os danos não patrimoniais da Autora a tutela do direito – embora não sejam muito graves, têm a gravidade suficiente para deverem ser indemnizados – para a fixação do montante indemnizatório há que atender à gravidade do dano, o qual deve medir-se em termos de um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos, como ensina o Prof. Antunes Varela (“Das Obrigações em Geral”).

5. Por outro lado, tal montante indemnizatório deve ser fixado equitativamente, o que significa aplicação do justo ao caso concreto, ou seja, atender aos padrões geralmente adoptados na jurisprudência, ter em consideração o valor da moeda e da economia (conjuntura económica) e sem esquecer a situação do lesado (Prof. Antunes Varela – obra citada).

6. Finalmente, há que ter presente que a indemnização por danos não patrimoniais, tal como determina a lei, não pode constituir fonte de enriquecimento,

7. Por isso e tendo em consideração as indemnizações fixadas para casos semelhantes (tal como acima referido) e atendendo às dificuldades da actual conjuntura da economia portuguesa, entende a Ré que a indemnização justa, equitativa e conforme à lei, pelo dano biológico da Autora, na vertente dos danos não patrimoniais, não pode, nem deve, ultrapassar o montante de 15.000,00 €, tal como decidiu o Tribunal de 1ª Instância.

8. Assim, a condenação em quantia superior, constitui violação do disposto nos arts. 494º, 496º, 562º, 564º e 566º do Cod. Civil, pelo que, na revogação do douto acórdão recorrido, deve ser fixada em 15.000,00 € a indemnização pelo dano biológico da Autora, na vertente dos danos não patrimoniais.

Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Ex.ªs doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, nos termos expostos, como é de lei e de

JUSTIÇA!.

A A., AA, notificada do recurso de revista interposto pela ré para o Supremo Tribunal de Justiça do apresentou recurso subordinado, ao abrigo do preceituado no artº 633º, nº. 1, do Código de Processo Civil, que encerra com as seguintes conclusões:

1. Não é excessiva a indemnização de 35.000,00 € concedida à autora a título do dano biológico na vertente de danos não patrimoniais, passados, presentes e futuros, tanto mais que a idade desta era de apenas 63 anos e ficou com sequelas que afetam dramaticamente o seu estilo de vida (não pode sequer agachar-se, tem dores residuais na anca afetada e teve de mandar adaptar a sua casa de banho!).

2. Ao afirmar na sua contestação que a franquia estabelecida na apólice não era aplicável ao caso dos autos, por ter sido transferida, a ré declarou implicitamente não desejar servir-se dessa franquia e de ser responsabilizada pelo total da indemnização devida à autora;

3. Consequentemente não há lugar à dedução da quantia de 5.000,00 € ao montante indemnizatório devido à Autora.

4. Vindo provado que a Autora ficou com sequelas, nomeadamente um défice funcional permanente de 15 pontos, que a incapacitam para o exercício da sua atividade profissional habitual, que perdeu o emprego e não voltou ao trabalho, deve a mesma ser indemnizada pela perda de salários e subsídios desde o acidente até pelo menos à data em que atingiu a idade da sua reforma, no indicado montante de 15.782,41 €,

5. Não apenas até à data da consolidação médico legal das lesões sofridas, por isso significar apenas, do ponto de vista médico-legal, que ela foi considerada curada nessa data e não é de esperar uma evolução positiva das sequelas.

6. O douto acórdão recorrido violou, assim, as disposições legais que ficam citadas, em especial os artºs 46º, 575º, 573º e 574º do CP Civil, bem como os artºs 219º e sgs, 364º- nº 2 562º e 566º do Cod. Civil.

Pelo exposto e pelo muito que doutamente será suprido por V. Exª.S, deve negar-se provimento ao recurso da ré, e dar-se provimento ao recurso da autora, revogando-se o douto acórdão recorrido na parte em que manda deduzir à indemnização devida à autora a franquia de 5.000,00 € estabelecida na apólice do seguro, e concedendo à autora os salários e subsídios perdidos em razão do acidente e suas sequelas, no referido montante 15.782,41 €, mantendo-se tudo o mais, como é de justiça.

A ré respondeu ao recurso subordinado indicando existir dupla conforme relativamente às duas questões suscitadas nesse recurso o que torna inadmissível a revista, mas caso seja admitido, entende carecer o recurso de fundamento.


*


I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recurso principal interposto pela ré é admissível nos termos do disposto no art.º 671, n.º 1 do Código de Processo Civil.

O recurso subordinado interposto pela autora é inadmissível nos termos do disposto no art.º 671.º, n.º 1 e 3 do Código de Processo Civil dada a convergência de decisões e fundamentação das instâncias relativamente aos dois segmentos decisórios objecto de recurso subordinado – montante indemnizatório correspondente às perdas salariais e dedução da franquia prevista no contrato de seguro a cargo da segurada no montante indemnizatório.

A convergência de fundamentação e decisão no que aos referidos segmentos decisórios está expressa nas seguintes passagens do acórdão recorrido:

«1.ªquestão - Da indemnização a título de diferenças salariais durante o tempo de incapacidade temporária.

A este propósito pode ler-se na decisão recorrida que: “A autora peticionou, também, a condenação da ré a pagar-lhe as perdas salariais que alega ter sofrido por ter ficado impossibilitada de trabalhar devido à queda. A este propósito, foi alegado na petição inicial, «que a autora deixou de receber, desde outubro de 2019 (exclusive), a quantia de €10.699,00 até outubro de 2020 + €779,00 por cada mês seguinte, ou seja. vezes 8 meses até junho, inclusive de 2021», «e continuará a ter perdas salariais até retomar o trabalho ou ser reformada, do que se dará conhecimento nos autos». A autora faz menção aos montantes recebidos da Segurança Social e da ré, referindo que essas quantias deverão ser descontadas ao valor dos salários não recebidos.

Caso não tivesse ocorrido o acidente, desde a data em que ocorreu o acidente até à data da alta, ou seja, 03.09.2020 (data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pela autora em consequência do acidente), a autora receberia, previsivelmente, a quantia líquida de €6.346,80 (9 x €705,20), a título de vencimento.

Relativamente a esse período, a autora não auferiu vencimento, mas provou-se que a autora recebeu €4.549,23 da Segurança Social e €421,35 da ré, o que perfaz €4.970,58.

Consequentemente, a título de perdas salariais, a autora poderá exigir da ré a diferença, i. e., €1.376,22 (€6.346,80 - €4.970,58 = €1.376,22)”.

Ora, vem agora a autora/apelante defender que foi de €15.782,41 a diferença entre os salários perdidos até à reforma da autora e os subsídios recebidos da S.S, e da ré, pelo que deve ser indemnizada em igual quantia.

Está provado nos autos que:

- o sinistro em apreço nos autos ocorreu a 29.11.2019;

- a data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pela autora em consequência do acidente é fixável em 03.09.2020;

- o período de défice funcional temporário total em consequência do acidente é fixável num período de 24 dias;

- o período de défice funcional temporário parcial em consequência do acidente é fixável num período de 256 dias;

- o período de repercussão temporária na actividade profissional total em consequência do acidente é fixável num período de 280 dias;

- à data do acidente, a autora era funcionária da Obra diocesana ..., exercendo funções no Centro Social de ..., no ..., com a categoria de Ajudante de Ação Direta 1.ª, ocupando-se da prestação de cuidados de saúde e limpeza a idosos auferindo uma retribuição mensal líquida de € 705,20;

- em consequência do acidente, a autora deixou de receber o salário da Obra diocesana ..., a partir do mês de dezembro de 2019, inclusive;

- após o acidente, a autora não mais retomou o seu trabalho no Centro Social de ..., da Obra diocesana ...;

- a autora é beneficiária do Instituto da Segurança Social, I.P., através do Centro Distrital ..., inscrita sob o n.º .........95 e em consequência do acidente acima referido, a autora recebeu do Instituto da Segurança Social, I.P., Centro Distrital ..., a título de subsídio de doença, relativo ao período de 02.12.2019 a 09.06.2021, a quantia de €9.676,06; e, a título de prestação compensatória de subsídio de Natal e de Férias do ano de 2020, a quantia de €918,00; sendo que o valor recebido pela autora a título de subsídio de doença, relativo ao período de 02.12.2019 a 03.09.2020 foi de €4.549,23;

- a autora recebeu subsídio da Segurança Social desde 02.12.2019 até novembro de 2022, quando atingiu a idade da reforma e se reformou;

- por conta das perdas salariais, a autora recebeu da ré a quantia de €421,35.

Logo vendo este complexo fáctico provado nos autos, manifesto é de concluir que não assiste razão ao ora peticionado pela autora/apelante.

Na verdade, desde a data do sinistro até à data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pela autora em consequência do acidente, ou seja, até 03.09.2020, previsivelmente a mesma auferiria como remuneração pelo seu trabalho a quantia total líquida de €6.346,80 (9 meses x €705,20) e não os recebeu da sua entidade patronal.

Todavia, e por via desse período de incapacidade (doença) a autora recebeu da Segurança Social a quantia de €4.549,23 e da ré, a quantia de €421,35, no total de €4.970,58. Logo, a título de diferenças salariais durante o tempo de incapacidade temporária, a autora apenas tem a receber da ré por via da presente ação a quantia de €1.376,22 (€6.346,80 - €4.970,58 = €1.376,22), exatamente o que foi determinada na sentença sob recurso.

Pelo que sem necessidade de outros considerandos, improcedem as respetivas conclusões da apelante.

5.ªquestão – Da franquia contratualmente estabelecida.

Sobre esta questão pode ler-se na decisão recorrida, além do mais, que: “Através da presente ação, a autora demandou a Fidelidade - Companhia de Seguros, S. A. – não demandou a sociedade Pingo Doce - Distribuição Alimentar, S.A., proprietária do hipermercado onde ocorreu a queda –, invocando que «o Pingo Doce assumiu a responsabilidade da queda sofrida pela autora e participou esse acidente à ré Fidelidade, para quem se achava transferida essa responsabilidade, por contrato de seguro titulado pela apólice AG...10, em vigor na data do acidente» (art.ºs 56.º a 59.º da petição inicial).

(…)

No caso em análise, provou-se que foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil entre Jerónimo Martins, SGPS, S.A. e Fidelidade - Companhia de Seguros, S. A. (ora ré) (contrato designado por «RC Exploração - Estabelecimento», sendo a abreviatura RC reveladora de que se trata de um seguro de responsabilidade civil, o que é confirmado pelo clausulado da respetiva apólice: a apólice n.º RC......03, com o teor que consta do documento 1 apresentado com a contestação da ré), que estava em vigor à data do acidente, pelo qual foi assumido pela Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A. (ora ré) «o pagamento de indemnizações que sejam legalmente exigíveis ao Segurado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, causados a terceiros em consequência de atos os omissões do Segurado, bem como dos seus empregados, assalariados ou mandatários, no exercício da atividade ou na qualidade expressamente referida nas Condições Especiais ou Particulares da apólice», abrangendo as empresas e/ou sociedades do Grupo Jerónimo Martins, entre elas a sociedade Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A.

A tal contrato são aplicáveis os preceitos do atual regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, (art.º 2.º, n.º 1 deste diploma).

Lidas as condições particulares da apólice do contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado entre Jerónimo Martins, SGPS, S.A. e Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., verifica-se que foi convencionada uma franquia no valor de €5.000,00 por sinistro (não é de mais relembrar que a ré reconhece que «tal contrato de seguro abrangia as empresas e/ou sociedades do Grupo Jerónimo Martins, entre elas a sociedade Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A.», art.º 3.º da contestação).

As partes estabeleceram uma franquia, como permite o art.º 49.º, n.º 3 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro. Segundo este preceito legal, «as partes podem fixar franquias, escalões de indemnização e outras previsões contratuais que condicionem o valor da prestação a realizar pelo segurador».

A franquia constitui um valor que, em caso de acidente (ou sinistro, na linguagem da atividade seguradora), é descontado ao montante indemnizatório garantido e a pagar pelo segurador ao lesado, ficando o pagamento de tal valor a cargo do segurado (dito de outro modo, o valor da franquia é devido pelo segurado ao lesado). De acordo com a definição inscrita no art.º 1.º das condições gerais da apólice aplicável ao presente caso, a franquia é a «importância que, em caso de sinistro, fica a cargo do Segurado e cujo montante ou forma de cálculo se encontra estipulado nas Condições Particulares». A franquia pode ser um valor fixo (por exemplo, 1.000 euros) ou uma percentagem (por exemplo, 10% do capital seguro). In casu, a franquia foi fixada em €5.000,00, por sinistro.

(…)

Como estamos perante um seguro de responsabilidade civil facultativo, em que vigora com amplitude o princípio da liberdade contratual (art.º 405.º do Código Civil), impõe-se, em primeiro lugar, analisar o que foi convencionado no contrato de seguro.

In casu, verificamos que inexiste qualquer cláusula no contrato de seguro sobre a oponibilidade ou inoponibilidade da franquia ao lesado.

Não sendo a questão regulada no contrato, haverá que procurar resposta nas normas legais.

(…)

No presente caso, como o contrato de seguro é um contrato a favor de terceiro, entendemos que deverá ser procurada solução no disposto no art.º 449.º do Código Civil.

Segundo este preceito, «são oponíveis ao terceiro, por parte do promitente, todos os meios de defesa derivados do contrato, mas não aqueles que advenham de outra relação entre promitente e promissário».

Por isso, o promitente (in casu, a ré), pode opor ao terceiro (in casu, à autora) todos os meios de defesa derivados do contrato, designadamente, aqueles que dizem respeito ao seu conteúdo, como é o clausulado sobre a franquia.

Pelo exposto e em síntese, no caso sub judice, atendendo ao referido contrato de seguro de responsabilidade civil, incide sobre a ré a obrigação de indemnizar a autora pelos danos por esta sofridos em consequência da queda, mas descontando o valor da franquia estipulada no contrato de seguro, ou seja, €5.000,00”.

Vem agora a autora/apelante defender que não há lugar ao desconto de €5.000,00 fixados nas Condições Particulares da apólice. Mais dizendo que, “A Fidelidade referiu-se ao seguro nos art.ºs 2 a 5 da sua contestação, afirmando expressamente no art.º 5.º: “O capital seguro é de 10.000,00 € por ocorrência e agregado anual, com uma franquia a cargo da segurada de 5.000,00€ por sinistro – transferida e, portanto, não aplicável ao caso dos autos.”

Não aplicável ao caso dos autos … por transferida – diz a ré.

Esta afirmação, produzida na contestação, foi tacitamente aceite pela autora – que não a impugnou e não foi retirada – vincula a ré, ex vi do disposto no art.º 46.º do CP. Civil.

Ao aplicá-la ao caso dos autos, o Mm.º juiz não terá atentado na referida afirmação da ré e a sua vinculação.

Na verdade, a autora ou a impugnava ou a aceitava (ainda que tacitamente). Não tinha outra posição: sendo evidente que não iria impugnar uma afirmação da ré que a beneficiava”

Mais uma vez não lhe assiste razão.

Na verdade, o nosso ordenamento jurídico não reconhece uma noção de contrato de seguro, todavia, a doutrina tem definido este negócio jurídico como “o contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto”, como refere José Vasques, in “Contrato de Seguro”, pág. 94.

E como é sabido, o contrato de seguro é um negócio formal, que tem de ser reduzido a escrito, sendo um contrato sinalagmático, oneroso, de execução continuada, aleatório e, em regra, de adesão, chamando-se apólice ao documento que o consubstancia e dela devendo constar todas as condições estipuladas entre as partes. E assim na fixação do conteúdo de qualquer negócio jurídico interessa, antes do mais, analisar os termos do acordo que os respetivos outorgantes firmaram ao abrigo da liberdade contratual ditada pelo art.º 405.º do C.Civil, mormente no contrato de seguro, os termos desse acordo terão de constar da respetiva apólice, já que, esta exigência legal de documento, constitui elemento do contrato, isto é, uma formalidade ad substantiam, cfr. art.º 364.º n.º 1 do C.Civil - Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.

Sendo que na interpretação das cláusulas do contrato de seguro há que chamar à colação o regime geral constante do C.Civil – mormente os art.ºs 236.º e segs, com as especificidades decorrentes do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (DL n.º 446/85, de 25.10) e das normas do DL n.º 72/2008, de 16.04 - Regime Jurídico do Contrato de Seguro.

Ora, está provado nos autos que:

- entre Jerónimo Martins, SGPS, S.A. e Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. (ora ré) foi celebrado um acordo designado «contrato de seguro de Responsabilidade Civil», em vigor à data do acidente (29.11.2019), titulado pela apólice n.º RC......03, com o teor que consta do documento 1 apresentado com a contestação da Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A. (ora ré), o qual se dá aqui por integralmente reproduzido;

- pelo qual foi transferido para a Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A. (ora ré) «o pagamento de indemnizações que sejam legalmente exigíveis ao Segurado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, causados a terceiros em consequência de atos e omissões do Segurado, bem como dos seus empregados, assalariados ou mandatários, no exercício da atividade ou na qualidade expressamente referida nas Condições Especiais ou Particulares da apólice», abrangendo as empresas e/ou sociedades do Grupo Jerónimo Martins, entre elas a sociedade Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A.;

- tendo sido convencionada uma franquia de €5.000,00, por sinistro.

Estamos perante um contrato de seguro de responsabilidade civil facultativo.

Decorre do preceituado no n.º 3 do art.º 49.º do D.L. n.º 72/2008, de 16.04 - Regime Jurídico do Contrato de Seguro – que as partes podem fixar franquias, escalões de indemnização e outras previsões contratuais que condicionem o valor da prestação a realizar pelo segurador – o que sucedeu no contrato de seguro em apreço. Ou seja, as partes contratantes do mesmo estabeleceram uma franquia ao capital seguro, e tratando-se de uma parcela da indemnização, em princípio, ficará exclusivamente a cargo do segurado e que será deduzida do valor a pagar pela seguradora ao lesado.

No contrato de seguro em apreço nos autos, verificamos que no seu art.º 1.º das Condições Gerais consta:

O montante desse franquia foi estipulado em €5.000,00 por sinistro, cfr. Condições Particulares da apólice.

Ora, José Vasques, in “Contrato de Seguro”, pág. 309, explica que a franquia é uma dedução ao montante indemnizatório, um desconto que tem de incidir sobre quem o recebe e que normalmente é o segurado. A franquia tem por fundamento o estímulo à prudência do segurado e a eliminação a responsabilidade do segurador em pequenos sinistros, obstando aos custos administrativos inerentes.

Segundo Meneses Cordeiro, in “Manual de Direito Comercial”, pág. 819, franquia consiste na “margem não-coberta pela indemnização e que fica a cargo do segurado”.

Em suma, a franquia corresponde à quantia a suportar pelo tomador do seguro, em caso de sinistro, quantia essa que pode ser fixa ou variável (percentagem) previamente estabelecida na apólice de seguro.

Refere-se no Ac. do STJ, de 20.02.2021, in www.dgsi.pt que “V- No contrato de seguro facultativo, no montante indemnizatório garantido e a pagar não se inclui a franquia; o valor desta é devido pelo segurado ao lesado. VI - A franquia funciona como estímulo à atitude prudente do segurado, é elemento de cálculo do prémio, e diminui a possibilidade de o segurador se ocupar de sinistros de pequeno valor”.

No Ac. da Rel. de Évora de 7.01.2016, in www.dgsi.pt, explicita-se, além do mais, a razão de ser da aplicação de uma franquia ao segurado, ou seja, “A franquia tem como escopo (e como seu essencial fundamento) o estímulo à prudência do segurado e a eliminação da responsabilidade do segurador em pequenos sinistros, obstando aos custos administrativos inerentes. No seguro facultativo (…), as partes podem introduzir no contrato as cláusulas que tiverem por convenientes, desde que não ofendam a lei ou interesses de ordem pública. Inclui-se nessas cláusulas admissíveis aquela que, restringindo a garantia do seguro, estabelece uma certa franquia dos prejuízos indemnizáveis”.

Em suma, no contrato de seguro de responsabilidade civil facultativo, como é o contrato em apreço nos autos, e nada tendo sido estipulado pelas partes em contrário, o valor da franquia será deduzido do montante indemnizatório apurado e a pagar pela seguradora ao lesado.

“In casu” e como já se deixou consignado e decorre do preceituado no n.º1 do art.º 364.º do C.Civil, a prova do contrato de seguro em apreço decorre do documento que o titula e foi junto aos autos pela ré/apelada com a sua contestação, ou seja, a apólice é o documento que prova o teor do contrato de seguro e faz prova plena do teor de tal contrato. Tal documento não foi objeto de qualquer impugnação por parte da autora/apelante, cfr. art.º 374.º do C.Civil, pelo que a sua força probatória decorre do preceituado no art.º 376.º do C.Civil.

Como bem se conclui na decisão recorrida “A franquia constitui um valor que, em caso de acidente (ou sinistro, na linguagem da atividade seguradora), é descontado ao montante indemnizatório garantido e a pagar pelo segurador ao lesado, ficando o pagamento de tal valor a cargo do segurado (dito de outro modo, o valor da franquia é devido pelo segurado ao lesado)”.

Ora, a autora/apelante não demandou conjuntamente com a ré/seguradora o segurado - as empresas e/ou sociedades do Grupo Jerónimo Martins, entre elas a sociedade Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A., pelo que por via da presente ação não pode ser ressarcida pelo valor da franquia que tem de ser descontada na indemnização a lhe ser paga pela ré/apelada.

Improcedem assim as respetivas conclusões da apelante.»

I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. Indemnização por danos não patrimoniais.

I.4 - Os factos

O acórdão recorrido considerou provados e relevantes para a decisão do recurso os seguintes factos:

1. No dia 29.11.2019, cerca das 20:00 horas, AA (ora autora) deslocou-se ao hipermercado Pingo Doce Matosinhos - ..., sito em ..., pertencente à sociedade Pingo Doce - Distribuição Alimentar, S.A., a fim de proceder à compra de produtos alimentares e outros, expostos à venda, com intuito de lucro, pela referida sociedade.

2. Dentro da loja do hipermercado, a sociedade Pingo Doce - Distribuição Alimentar, S.A. explorava um serviço de bar, à disposição dos clientes que pretendessem tomar um café ou outra bebida, com ou sem ingestão de alimento sólido.

3. A ora autora havia ido tomar café e, quando regressava, escorregou e caiu desamparada no pavimento do hipermercado.

4. O tempo estava de chuva e o pavimento do hipermercado destinado à circulação dos clientes, no local onde a autora caiu, estava molhado e escorregadio.

5. A queda deveu-se exclusivamente ao pavimento estar molhado e escorregadio, pois que a autora usava o calçado habitual e já por ali passara imensas vezes, em outras ocasiões e com os mesmos cuidados de sempre, sem quaisquer outros incidentes.

6. Após a queda, a autora foi socorrida de imediato por uma funcionária do Pingo Doce e, de seguida, pelos Bombeiros, que a conduziram de ambulância ao Hospital 1.

7. Devido à queda, a ora autora sofreu traumatismo do membro inferior direito, com luxação da anca e fractura da parede anterior do acetábulo.

8. No Hospital 1, foi sedada e sujeita a redução fechada da luxação.

9. A autora permaneceu no Hospital 1 nos dias 29 e 30.11.2019, a receber tratamento.

10. No dia 30.11.2019, a autora foi transferida do Hospital 1 para o Hospital 2, onde foi assistida e submetida a uma TAC, regressando depois à sua residência, onde ficou acamada cerca de 3 semanas, ao cuidado de seus filhos.

11. A ré prestou à autora assistência médica e medicamentosa, suportando o pagamento de tratamentos prestados à autora, tendo a autora sido tratada em clínicas independentes contratadas pela ré.

12. Em Janeiro de 2020, em consequência do acidente, a autora apresentava:

a. Edema exuberante da cabeça femoral direita, prolongando-se até à região inter-trocantérica;

b. Perda de substância da cartilagem de revestimento da margem anterior e lateral do tecto acetabular, com exposição da cortical óssea, associado a derrame articular de médio volume;

c. Degenerescência da vertente anterior do tecto acetabular;

d. Formações geódicas subcondrais na vertente anterior e superior do tecto a cetebular;

e. Alterações inflamatórias crónicas dos tendões dos isquiotibiais;

f. Muita dor e incapacidade;

g. Derrame articular e edema marcado.

13. Devido às lesões decorrentes do acidente, a autora foi submetida a infiltrações.

14. Apesar dos tratamentos e infiltrações a que a autora foi submetida, verificou-se que a anca estava a desenvolver necrose, pelo que foi aconselhada a submeter-se a artroplastia.

15. A artroplastia consistiu na colocação de prótese total da anca por meio de intervenção cirúrgica, com anestesia geral, que ocorreu em 05.03.2020, no Hospital 3, por conta da ré.

16. Em 08.04.2020 e 10.05.2020, ocorreram luxações da prótese, que foram tratadas e reduzidas com sedação ligeira no Hospital de 2.

17. Devido às lesões e sequelas decorrentes do acidente, a autora sente dores na anca direita, ao subir escadas, ao curvar-se ou ao fazer esforços físicos.

18. Durante o período de convalescença após a artroplastia da anca, a autora teve de sujeitar-se aos cuidados e limitações dos submetidos a tal intervenção, nomeadamente evitar cruzar as pernas, deitar-se para o lado operado, inclinar-se para a frente quando sentada, elevar o joelho mais alto que o nível da coxa, sentar-se em cadeiras ou bancos baixos, rodar sobre a perna operada, pegar ou carregar pesos.

19. Devido às lesões e sequelas decorrentes do acidente, a autora apresenta marcha ligeiramente claudicante; não consegue correr e tem dificuldade em caminhar em terreno irregular ou plano inclinado; tem dificuldade e sente dores na anca na posição de cócoras ou de joelhos e nas posições ortostáticas prolongadas; tem dificuldade nas mudanças de posição e nos cuidados da sua higiene pessoal, como seja tomar banho, lavar os pés e tratar das unhas; sofre dores nas mudanças climatéricas e nas caminhadas prolongadas.

20. Actualmente, a autora apresenta a seguinte situação, sendo as lesões e sequelas a seguir referidas consequência do acidente:

- Membro inferior direito: realiza marcha em bicos de pés com o membro inferior esquerdo, mas não com o direito; muita dificuldade em realizar a marcha em calcanhares; não se consegue agachar; consegue apoiar o joelho no chão. Cicatriz nacarada, de características cirúrgicas, orientada infero-medialmente na região inguinal, medindo 12,5 por 0,2 cm, de maior largura na sua extremidade superior. Amiotrofia da coxa de 5 cm e da perna de 2,5 cm (medidas, respectivamente, a 15 cm dos bordos superior e inferior da patela), relativamente ao membro contralateral.

- Dismetria aparente dos membros inferiores de 1 cm (medido desde a cicatriz umbilical até aos maléolos mediais: à direita 87 cm e à esquerda 88 cm).

Anca: flexão activa dolorosa a partir dos 30.º; abdução da anca 20.º;

adução e extensão mantidas dentro dos parâmetros da normalidade e indolores; rotação externa e interna dolorosas nos últimos graus, mais acentuada na externa, mas sem limitações de amplitude articular.

Joelho: ausência de aparente derrame articular; ligeira crepitação à mobilização, mais acentuada do que no membro contralateral; flexão limitada aos 90.º, a partir dos quais refere queixas álgicas ao nível da anca, mas sem limitação da amplitude articular do joelho. Sem instabilidades ligamentares aparentes. Diminuição da força muscular do membro, comparativamente ao contralateral (grau 4/5).

- Membro inferior esquerdo: anca sem alterações; presença de crepitação à mobilização do joelho, simétrica relativamente ao membro contralateral.

21. A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pela autora em consequência do acidente é fixável em 03.09.2020.

22. O período de défice funcional temporário total em consequência do acidente é fixável num período de 24 dias.

23. O período de défice funcional temporário parcial em consequência do acidente é fixável num período de 256 dias.

24. O período de repercussão temporária na actividade profissional total em consequência do acidente é fixável num período de 280 dias.

25. As dores e demais sofrimentos sentidos pela autora em consequência do acidente são quantificáveis no grau 5, numa escala crescente de 0 a 7.

26. Em consequência do acidente, a autora ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 15 pontos.

27. As sequelas resultantes do acidente são impeditivas da actividade profissional habitual, mas sendo compatíveis com outras profissões da área da preparação técnico profissional da autora.

28. Em consequência do acidente, a autora ficou com um dano estético permanente quantificável no grau 3, numa escala crescente de 0 a 7.

29. Em consequência do acidente, a autora ficou a padecer de lesões com repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, repercussão essa quantificável no grau 2, numa escala crescente de 0 a 7.

30. Em consequência do acidente, a autora irá necessitar de tratamentos médicos regulares (por exemplo, fisioterapia), mediante seguimento clínico pela especialidade de Ortopedia ou Medicina Física e Reabilitação, em frequência a definir por cada médico especialista da área.

31. Em consequência do acidente, a autora irá necessitar de ajudas técnicas permanentes: palmilha de compensação para o membro inferior direito e adaptação do domicílio (adaptação da casa de banho, com remoção da banheira para uma base de duche).

32. Em consequência do acidente, a autora irá necessitar de tratamentos futuros: revisão da prótese, com eventual necessidade de substituição, de acordo com avaliação por Ortopedia.

33. Devido às lesões causadas pelo acidente, a autora despendeu a quantia de €150,98 na aquisição de uma cadeira sanitária, uma arrastadeira e medicamentos, bem como a quantia de €52,50 para se deslocar aos serviços clínicos da ré.

34. AA (ora autora) nasceu no dia ........1956.

35. À data do acidente, a autora era funcionária da Obra diocesana ..., exercendo funções no Centro Social de ..., no ..., com a categoria de Ajudante de Acção Directa 1.ª, ocupando-se da prestação de cuidados de saúde e limpeza a idosos;

36. Auferindo uma retribuição mensal líquida de €705,20.

37. Em consequência do acidente, a autora deixou de receber o salário da Obra diocesana ..., a partir do mês de Dezembro de 2019, inclusive.

38. Após o acidente, a autora não mais retomou o seu trabalho no Centro Social de ..., da Obra diocesana ....

39. A autora é beneficiária do Instituto da Segurança Social, I.P., através do Centro Distrital ..., inscrita sob o n.º .........95.

40. Em consequência do acidente acima referido, a autora recebeu do Instituto da Segurança Social, I.P., Centro Distrital ..., a título de subsídio de doença, relativo ao período de 02.12.2019 a 09.06.2021, a quantia de €9.676,06; e, a título de prestação compensatória de subsídio de Natal e de Férias do ano de 2020, a quantia de €918,00;

41. Sendo que o valor recebido pela autora a título de subsídio de doença, relativo ao período de 02.12.2019 a 03.09.2020 foi de €4.549,23.

42. A autora recebeu subsídio da Segurança Social desde 02.12.2019 até Novembro de 2022, quando atingiu a idade da reforma e se reformou.

43. Por conta das perdas salariais, a autora recebeu da ré a quantia de €421,35.

44. Entre Jerónimo Martins, SGPS, S.A. e Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A. (ora ré) foi celebrado um acordo designado "contrato de seguro de Responsabilidade Civil", em vigor à data do acidente (29.11.2019), titulado pela apólice n.º RC......03, com o teor que consta do documento 1 apresentado com a contestação da Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A. (ora ré);

45. Pelo qual foi transferido para a Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A. (ora ré) "o pagamento de indemnizações que sejam legalmente exigíveis ao Segurado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, causados a terceiros em consequência de atos e omissões do Segurado, bem como dos seus empregados, assalariados ou mandatários, no exercício da atividade ou na qualidade expressamente referida nas Condições Especiais ou Particulares da apólice", abrangendo as empresas e/ou sociedades do Grupo Jerónimo Martins, entre elas a sociedade Pingo Doce - Distribuição Alimentar, S.A.;

46. Tendo sido convencionada uma franquia de €5.000,00, por sinistro.


***


Factos considerados não provados:

1. Sem prejuízo para o supra-referido em 11), em 06.12.2019, a autora foi observada e assistida nos Serviços Clínicos da ré, por indicação e por conta desta, tendo sido aconselhada a permanecer em repouso na cama até à próxima consulta;

2. Na consulta seguinte à consulta de 06.12.2019, a autora foi aconselhada a deslocar-se em cadeira de rodas e a partir da quarta consulta a usar canadianas;

3. Na consulta subsequente, os Serviços Clínicos da ré mudaram as canadianas e aconselharam a autora a submeter-se a tratamentos de fisioterapia e hidroterapia.

4. Sem prejuízo para o supra-referido em 20) e 28), a cicatriz nacarada, de características cirúrgicas, orientada infero-medialmente na região inguinal, medindo 12,5 por 0,2 cm, de maior largura na sua extremidade superior, de que a autora é portadora, é visível e desfeiante.

5. Devido às lesões e sequelas decorrentes do acidente, a autora ficou a padecer de desvio lateral do eixo mecânico dos membros inferiores, particularmente à direita (à direita 60 mm, à esquerda 9 mm), em relação com desalinhamento em valgo.

6. Devido às lesões e sequelas decorrentes do acidente, a autora nunca mais se sentiu bem dos joelhos: doem-lhe frequentemente, nomeadamente ao descer escadas ou ao caminhar em terreno irregular, impedindo-a de fazer uso dos mesmos.

7. Depois de ter sido operada aos dois joelhos, cerca de 10 anos antes da queda, a autora havia recuperado totalmente a sua capacidade de locomoção, de tal modo que vinha exercendo a sua actividade profissional sem queixas nem restrições.

8. Devido ao acidente e às lesões e sequelas dele decorrentes, a autora sente-se triste e amargurada com o que lhe aconteceu e que alterou por completo a sua qualidade de vida;

9. Teve de se privar do convívio das colegas e amigas;

10. Sentiu preocupações, com o receio de perder o seu emprego.

11. Devido às lesões causadas pelo acidente, a autora despendeu a quantia de €13,50 em consultas médicas e a quantia de €176,95 em transportes.

12. Devido às lesões causadas pelo acidente, a autora está carecida de terceira pessoa para as suas actividades domésticas, pelo menos duas vezes por semana, com um custo de pelo menos €15,00/semana, durante pelo menos 5 anos, no total de €3.600,00.

13. Sem prejuízo para o supra-referido em 40) e 41), a autora recebeu da Segurança Social o subsídio de doença no valor de €385,40 no mês do acidente, €525,60 em cada um dos meses subsequentes e €563,10 a partir de Janeiro de 2021, inclusive.


***


II – Fundamentação

Indemnização por danos não patrimoniais

O acidente em causa importou para a A. sérias consequências quer quanto à sua saúde, quer quanto à sua vida pessoal e profissional.

Como decorre da matéria provada, a A. em consequência da queda que ocorreu no supermercado em virtude de, durante a sua abertura ao público, apresentar o chão húmido e escorregadio, pelo menos na área em que a queda no solo se verificou,

- sofreu traumatismo do membro inferior direito, com luxação da anca e fractura da parede anterior do acetábulo.

- No Hospital 1, foi sedada e sujeita a redução fechada da luxação e aí permaneceu no Hospital 1 nos dias 29 e 30.11.2019, a receber tratamento.

- No dia 30.11.2019, a autora foi transferida do Hospital 1 para o Hospital Geral de 2, onde foi assistida e submetida a uma TAC, regressando depois à sua residência, onde ficou acamada cerca de 3 semanas, ao cuidado de seus filhos.

- Em Janeiro de 2020, em consequência do acidente, a autora apresentava:

a. Edema exuberante da cabeça femoral direita, prolongando-se até à região inter-trocantérica;

b. Perda de substância da cartilagem de revestimento da margem anterior e lateral do tecto acetabular, com exposição da cortical óssea, associado a derrame articular de médio volume;

c. Degenerescência da vertente anterior do tecto acetabular;

d. Formações geódicas subcondrais na vertente anterior e superior do tecto a cetebular;

e. Alterações inflamatórias crónicas dos tendões dos isquiotibiais;

f. Muita dor e incapacidade;

g. Derrame articular e edema marcado.

- Devido às lesões decorrentes do acidente, a autora foi submetida a infiltrações.

- Apesar dos tratamentos e infiltrações a que a autora foi submetida, verificou-se que a anca estava a desenvolver necrose, pelo que foi aconselhada a submeter-se a artroplastia.

- A artroplastia consistiu na colocação de prótese total da anca por meio de intervenção cirúrgica, com anestesia geral, que ocorreu em 05.03.2020, no Hospital 3, por conta da ré.

- Em 08.04.2020 e 10.05.2020, ocorreram luxações da prótese, que foram tratadas e reduzidas com sedação ligeira no Hospital de 2.

- Devido às lesões e sequelas decorrentes do acidente, a autora sente dores na anca direita, ao subir escadas, ao curvar-se ou ao fazer esforços físicos.

- Durante o período de convalescença após a artroplastia da anca, a autora teve de sujeitar-se aos cuidados e limitações dos submetidos a tal intervenção, nomeadamente evitar cruzar as pernas, deitar-se para o lado operado, inclinar-se para a frente quando sentada, elevar o joelho mais alto que o nível da coxa, sentar-se em cadeiras ou bancos baixos, rodar sobre a perna operada, pegar ou carregar pesos.

- Devido às lesões e sequelas decorrentes do acidente, a autora apresenta marcha ligeiramente claudicante; não consegue correr e tem dificuldade em caminhar em terreno irregular ou plano inclinado; tem dificuldade e sente dores na anca na posição de cócoras ou de joelhos e nas posições ortostáticas prolongadas; tem dificuldade nas mudanças de posição e nos cuidados da sua higiene pessoal, como seja tomar banho, lavar os pés e tratar das unhas; sofre dores nas mudanças climatéricas e nas caminhadas prolongadas.

- Actualmente, a autora apresenta a seguinte situação, sendo as lesões e sequelas a seguir referidas consequência do acidente:

- Membro inferior direito: realiza marcha em bicos de pés com o membro inferior esquerdo, mas não com o direito; muita dificuldade em realizar a marcha em calcanhares; não se consegue agachar; consegue apoiar o joelho no chão. Cicatriz nacarada, de características cirúrgicas, orientada infero-medialmente na região inguinal, medindo 12,5 por 0,2 cm, de maior largura na sua extremidade superior. Amiotrafia da coxa de 5 cm e da perna de 2,5 cm (medidas, respectivamente, a 15 cm dos bordos superior e inferior da patela), relativamente ao membro contralateral.

- Dismetria aparente dos membros inferiores de 1 cm (medido desde a cicatriz umbilical até aos maléolos mediais: à direita 87 cm e à esquerda 88 cm).

Anca: flexão activa dolorosa a partir dos 30.º; abdução da anca 20.º;

adução e extensão mantidas dentro dos parâmetros da normalidade e indolores; rotação externa e interna dolorosas nos últimos graus, mais acentuada na externa, mas sem limitações de amplitude articular.

Joelho: ausência de aparente derrame articular; ligeira crepitação à mobilização, mais acentuada do que no membro contralateral; flexão limitada aos 90.º, a partir dos quais refere queixas álgicas ao nível da anca, mas sem limitação da amplitude articular do joelho. Sem instabilidades ligamentares aparentes. Diminuição da força muscular do membro, comparativamente ao contralateral (grau 4/5).

- Membro inferior esquerdo: anca sem alterações; presença de crepitação à mobilização do joelho, simétrica relativamente ao membro contralateral.

- A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pela autora em consequência do acidente é fixável em 03.09.2020.

- O período de défice funcional temporário total em consequência do acidente é fixável num período de 24 dias.

- O período de défice funcional temporário parcial em consequência do acidente é fixável num período de 256 dias.

- O período de repercussão temporária na actividade profissional total em consequência do acidente é fixável num período de 280 dias.

- As dores e demais sofrimentos sentidos pela autora em consequência do acidente são quantificáveis no grau 5, numa escala crescente de 0 a 7.

- Em consequência do acidente, a autora ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 15 pontos.

- As sequelas resultantes do acidente são impeditivas da actividade profissional habitual, mas sendo compatíveis com outras profissões da área da preparação técnico profissional da autora.

- Em consequência do acidente, a autora ficou com um dano estético permanente quantificável no grau 3, numa escala crescente de 0 a 7.

- Em consequência do acidente, a autora ficou a padecer de lesões com repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, repercussão essa quantificável no grau 2, numa escala crescente de 0 a 7.

- Em consequência do acidente, a autora irá necessitar de tratamentos médicos regulares (por exemplo, fisioterapia), mediante seguimento clínico pela especialidade de Ortopedia ou Medicina Física e Reabilitação, em frequência a definir por cada médico especialista da área.

- Em consequência do acidente, a autora irá necessitar de ajudas técnicas permanentes: palmilha de compensação para o membro inferior direito e adaptação do domicílio (adaptação da casa de banho, com remoção da banheira para uma base de duche).

- Em consequência do acidente, a autora irá necessitar de tratamentos futuros: revisão da prótese, com eventual necessidade de substituição, de acordo com avaliação por Ortopedia.

- À data do acidente, a autora era funcionária da Obra diocesana ..., exercendo funções no Centro Social de ..., no ..., com a categoria de Ajudante de Acção Directa 1.ª, ocupando-se da prestação de cuidados de saúde e limpeza a idosos;

- Auferindo uma retribuição mensal líquida de €705,20.

- Após o acidente, a autora não mais retomou o seu trabalho no Centro Social de ..., da Obra diocesana ....

- A autora recebeu subsídio da Segurança Social desde 02.12.2019 até Novembro de 2022, quando atingiu a idade da reforma e se reformou.

Os factos acabados de elencar patenteiam um significativo dano não patrimonial sofrido pela autora ao nível da sua integridade física, saúde física e mental que tornam mais penosa a sua vida actual e futura, danos e respectiva amplitude e gravidade que a indemnização por danos não patrimoniais não pode descorar. Contrariamente ao entendido pela recorrente o sofrimento físico e psicológico que a autora sofreu e vai continuar a suportar toda a sua vida em consequência deste acidente, não é de importância reduzida, nem se reduz a pequenos incómodos facilmente ultrapassáveis.

Nesta medida, não podemos deixar de acompanhar o entendimento adoptado no acórdão recorrido de que:

« O quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser calculado, sempre, “segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização”, “aos padrões da indemnização geralmente adotados na jurisprudência, as flutuações de valor da moeda, etc.”, ou seja, com recurso à equidade. O parâmetro essencial a ter em conta é, como decorre do disposto no art.º 496.º do C.Civil, o dano, traduzido na amplitude do sofrimento da vítima, pois é precisamente esse sofrimento que se pretende compensar através da indemnização. A compensação deve, assim, ser proporcional à gravidade do dano, ponderando-se, para tal, as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e do criterioso sopesar das realidades da vida, em conformidade com o preceituado no n.º 3 daquele art.º 496º – cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9.ª ed., págs. 627 a 630.

Ora, finalmente e ainda a título de danos não patrimoniais sofridos pela autora em consequência direta e necessária do acidente em apreço não se pode olvidar que nuns segundos infortunísticos da sua vida, a mesma viu “num ápice” e, sem ter contribuído para o sucedido, a sua integridade física fortemente violentada, o que lhe ocasionou dores decorrentes das lesões e das intervenções cirúrgicas, tratamentos necessários e tudo o mais a que foi submetido com vista à sua cura clínica, os incómodos que decerto lhe causaram os períodos de internamento hospitalar de que necessitou, com o consequente afastamento do seu meio familiar e da afetividade que deles poderia receber, sem olvidar finalmente o longo período de doença que teve de ultrapassar.

E assim sendo, efetivamente vendo o global dos padecimento já sofridos pela autora/apelante em virtude do acidente em apreço e das lesões físicas por ele causadas necessaria e diretamente, em termos de juízo de equidade, que constitui, afinal, o critério decisivo de fixação do montante indemnizatório, o montante indemnizatório fixado em 1.ª instância pelos danos não patrimoniais, a título do denominado dano biológico ou dano na saúde e como compensação pelas perturbações, pela afetação da integridade física, incómodos e dores físicas, etc., sofridas pela autora, no montante de €15.000,00 fixado em 1.ª instância é um tanto escasso em termos da cabal realização dessa compensação, pelo que se reputa justo e adequado fixar tal indemnização no montante de €35.000,00 (trinta e cinco mil euros).».

Acresce que, estando em causa a fixação de um valor indemnizatório por recurso a critérios de equidade, se mostra restrita a revista à apreciação da manifesta desrazoabilidade da valoração dos parâmetros utilizados, circunstância não verificada no caso concreto, em que o Tribunal efectuou uma ponderação adequada dos parâmetros balizadores da equidade – art.º 494.º do Código Civil – o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.

Impõe-se, pois, nos termos legais, a confirmação do acórdão recorrido.


*****


III – Deliberação

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela ré recorrente quanto ao recurso principal e pela autora quanto ao recurso subordinado, atento o respectivo decaimento.


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Lisboa, 16 de Janeiro de 2024

Ana Paula Lobo (relatora)

Orlando dos Santos Nascimento

Emídio Francisco dos Santos