Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
163/06.1TBIDN.C1.S1
Nº Convencional: 1. ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: USUCAPIÃO
POSSE ORIGINÁRIA
POSSE DERIVADA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS
Doutrina: - MANUEL RODRIGUES, “A Posse”, 2ª ed. 203.
- OLIVEIRA ASCENÇÃO, "Direito Civil - REAIS", 5ª ed., 300.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 303.º, 320.º, N.º1, 323.º, N.ºS 1 E 4, 1252.º, 1256.º, 1260.º, N.º2, 1292.º, 1296.º
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 5.º, 6.º, 246.º, N.º2 ALÍNEA C), 252.º, 259.º E 260.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 268.º, 467.º, 489.º, 659.º, 660.º, N.º1, 668.º, N.º1, ALÍNEA B), 684.º, N.º3, 690.º, N.ºS 1 E 2, 706.º, 713.º, N.ºS 2 E 5, 722.º, 726.º, 729.º N.º 2
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRPRED.): - ARTIGO 117.º- H, N.º2
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, DE 12/10/199, PROC. 0082946.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- ASSENTO N.º 3/98, DE 26/3/98 – DR, I-A, DE 12/5/98.
Sumário : I- Concorrendo os requisitos da usucapião, aferidos pelas características da posse, os vícios anteriores e as vicissitudes ligadas ao acto ou negócio causal, não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes.
II- Da natureza originária da aquisição resulta que, para efeitos de usucapião, tanto releve a posse unilateralmente adquirida como a decorrente de uma aquisição derivada.
III- Na aquisição unilateral da posse o momento do seu início coincide com o que se demonstrar sobre o efectivo exercício do poder de facto sobre a coisa, correspondente à manifestação do direito real, com intenção de exercer esse poder no seu próprio interesse, isto é, com animus sibi habendi.
IV- Enquanto na aquisição derivada há uma substituição do sujeito que até aí exerceu a relação possessória, substituição que é por este consentida, na posse unilateralmente adquirida cria-se uma relação material nova, independente ou contrária à vontade de quem até então exercia a posse.
V- Sendo unilateral a aquisição da posse, quem a invocar só o pode fazer em relação à posse em nome próprio e só essa é atendível, não podendo falar-se em sucessão ou acessão da posse (art. 1256º C. Civil).
VI- Por outro lado, corresponde-lhe uma posse não titulada, que se presume de má fé (art. 1260º-2 C. Civil).
V- A posse que interessa para efeitos de usucapião não é a posse causal, mas a posse formal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA e BB intentaram acção declarativa contra CC-“Sociedade de Refrigerantes A F..., Lda.”, Ministério Público e Interessados Incertos em que pediram que os RR. fossem condenados a reconhecer os AA. donos e legítimos possuidores do prédio identificado na petição inicial, considerando-se justificado o registo a seu favor na Conservatória do Registo Predial de Idanha-a-Nova.
Para o efeito, alegaram, em síntese, o seguinte:
- por contrato verbal datado de Janeiro de 1984, a 1 R. vendeu aos AA. o prédio urbano aí descrito;
- desde então, têm praticado sobre o referido prédio actos materiais de fruição, à vista de todos e sem oposição que quem quer que fosse;
- os AA. recorrem a tribunal por ter sido deduzida oposição, por parte dos antigos sócios da 1ª R. à justificação do registo predial que promoveram.

A petição foi liminarmente indeferida quanto ao pedido efectuado contra o Ministério Público, por “ilegitimidade processual própria”.

A 1ª Ré contestou e deduziu pedido reconvencional.
Alegou que os AA. não lhe adquiriram o prédio descrito na petição inicial, nem estão verificados os pressupostos da usucapião;
- os AA., ao ocuparem o dito prédio e não o devolverem à Ré, constituíram-se na obrigação de a indemnizar.
Pediu que fosse julgada improcedente a acção de justificação e a Ré declarada dona e legítima proprietária do referido imóvel, condenando-se os Reconvindos a reconhecer o direito de propriedade sobre o mesmo e a restitui-lo à R., livre de pessoas e coisas, bem como condenados ao pagamento de uma indemnização pela ilícita privação do uso e fruição do referido prédio, a liquidar em execução de sentença.

A final, na total procedência da acção, decidiu-se:
- “declarar os AA. como legítimos donos do prédio urbano sito na Rua do C..., também conhecido como Rua do C... ou P... R..., freguesia e concelho de Idanha-a-Nova, composto de um agregado de casas destinadas a cavalariça, cocheira, celeiro, quintal, poço e mais dependências, a confrontar a Norte com herdeiros de DD, do Sul e Poente com EE e do Nascente com Rua, com a superfície coberta de 544m2 e logradouro de 1459,00 m2, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de Idanha-a-Nova sob o n.º ..., por haverem adquirido o correspondente direito de propriedade por usucapião;
- condenar a R. «A Favorita, Lda.» a reconhecê-lo.
- julgar improcedente a reconvenção e absolver os reconvindos do respectivo pedido.”

A Ré apelou, mas a Relação confirmou o julgado.





2. - A mesma Ré interpõe agora recurso de revista em que argúi a nulidade do acórdão e pede a respectiva revogação, com a improcedência da acção.

Na alegação, que encerrou com extensas “conclusões”, suscitou e enunciou as seguintes questões:

“I. – Verificação dos pressupostos da Acção de Justificação (art. 118º e seguintes do Código do Registo Predial).

II. – Posse para efeitos de usucapião.

III. – Suspensão do prazo para efeitos de usucapião – menoridade do sócio FF (art. 320º-1 do C. Civil).

IV. - Interrupção do prazo para efeitos de usucapião – processo judicial de liquidação de sociedade, onde os Recorridos assumem a qualidade de intervenientes acidentais.

V. – Efeito da apresentação da acção de justificação na contagem do prazo para efeitos e usucapião.

VI. – Nulidade da sentença – falta de especificação dos fundamentos de direito que justificam a decisão.





3. - A matéria de facto a considerar vem assim fixada:

A) O prédio urbano sito na Rua do C..., também conhecido como Rua do C... ou P... R..., freguesia e concelho de Idanha-a-Nova, composto de um agregado de casas destinadas a cavalariça, cocheira, celeiro, quintal, poço e mais dependências, a confrontar a Norte com herdeiros de DD, do Sul e Poente com EE e do Nascente com Rua, com a superfície coberta de 544m2 e logradouro de 1459,00 m2, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ..., encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n. ..., aq. favor da R. CC-«A F..., Lda.», por compra a GG e esposa, HH, mediante a Ap.0...;
B) A ré Sociedade de Refrigerantes «A Favorita, Lda.» encontra-se matriculada na Conservatória de Registo Comercial de Idanha-a-Nova com o n..../...;
C) Da respectiva Certidão constam como sócios da ré CC-«A F..., Lda.», II e FF, mediante a Ap.0...;
D) Por escritura pública de 18/07/1980, realizada no Cartório Notarial da Covilhã, FF declarou doar a seu filho, II, metade da quota com o valor nominal de 80.000$00, da réCC-«A F..., Lda.»;
E) Desde, pelo menos, 1985, os AA. têm vindo a usar o prédio referido em A., dele retirando todos os frutos e trabalhando as suas terras, utilizando-o como arrumos e habitação;
F) Tendo transformado os edifícios numa casa de habitação com três quartos, duas casas de banho, duas salas e uma cozinha, com exclusão de qualquer outra pessoa, à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém, na convicção de que lhes pertenciam e de que não lesavam o direito de quem quer que fosse.





4. - Mérito do recurso.

4. 1. - A Recorrente suscita questões de natureza puramente processual, a par de outras de natureza substantiva.

Natureza exclusivamente processual assumem as questões da “nulidade da sentença” e da “verificação dos pressupostos da acção de justificação judicial”.

Nesta conformidade, por expressa indicação do art. 660º-1 CPC, aplicável ex-vi dos arts. 726º e 713º-2 do mesmo diploma, apreciar-se-á, em primeiro lugar a arguição da nulidade, a seguir a questão relativa à forma do processo e seus pressupostos, e, depois, pela ordem proposta pela Recorrente as demais questões.




4. 2. - Nulidade do acórdão (conclusões 56ª a 60ª).

A Recorrente imputa ao acórdão impugnado o vício de falta de especificação dos fundamentos de direito que justificam a decisão, a pretexto de se ter limitado a concluir que estava reunidos os pressupostos da usucapião, sem haver a preocupação de esclarecer se considerava a posse titulada ou não titulada, de boa-fé ou de má-fé.


É consensual o entendimento segundo o qual a nulidade prevista no art. 668º-1-b) CPC, que é sanção para a infracção, pelo julgador, ao disposto no n.º 2 do art. 659º, só ocorre quando falte “em absoluto” a indicação da fundamentação jurídica, que não quando se esteja perante mera deficiência, sendo que a fundamentação de direito pode fazer-se por adesão ou remissão para a decisão recorrida, no caso a sentença da 1ª Instância (art. 713º-5 CPC).
Depois, sabido que o objecto dos recursos é delimitado pelo conteúdo das conclusões do recorrente, como imposto pelas normas dos arts. 684º-3 e 690º-1 e 2 CPC, a decisão que deles conheça está vinculada à apreciação das questões colocadas pelo recorrente, sob pena de excesso de pronúncia.


Ora, desde logo, compulsadas as alegações do recurso de apelação se não vêem suscitadas questões destinadas a suscitar qualquer discussão sobre a circunstância de a posse ser titulada ou não, de boa ou de má fé.
Apenas se defendeu que “perante uma situação de posse não titulada, esta presume-se de má fé, conforme o art. 1260º-2 C. Civil”, para sustentar que a contagem do prazo de início da posse não seria em 1985. Na indicação das normas violadas, designadamente por erro de aplicação ou interpretação, jamais se aludiu aos ora arrolados como não interpretados e objecto de subsunção arts. 1259º, n.ºs 1 e/ou 2 e 1260º, n.s 1, 2 e/ou 3.
Depois, já em sede de nulidade da sentença, a Recorrente suscitou o problema, que agora repõe, sobre se a posse era ou não titulada e de boa ou má fé, nulidade que foi desatendida e a que agora se não imputa erro de julgamento.


Àquela questão do início da posse e sua contagem respondeu-se no acórdão que assim não é, explicando, de seguida, que a posse não titulada pode ser de boa fé, incumbindo, nesse caso, ao possuidor ilidir a presunção de má fé. Para concluir que “não sendo ilidida essa presunção pelo possuidor terá de concluir-se que a sua posse é de má fé. O que a prova produzida nos autos infirma, em absoluto (…)

Consequentemente, para além dos termos em que se julgou idêntica nulidade atribuída à sentença, aqui reposta à maneira de nulidade sequencial, sem que se impute ao acórdão, nesse ponto, erro de julgamento, falece também à Recorrente razão de natureza substancial pois que, mesmo não tendo reclamado pronúncia sobre a matéria, o Tribunal deixou claramente dito que estava em apreciação, para efeitos de usucapião, uma posse não titulada, por isso que até não se cansou de o afirmar a propósito de não ser necessária uma posse causal, mas de boa fé, pois que teve por ilidida a presunção de má fé decorrente da ausência de título.

Manifestamente infundada, pois, a todos os títulos, a imputação ao acórdão do vício gerador de nulidade.




4. 3. - Verificação dos pressupostos da acção de justificação (conclusões 2ª a 7ª).

A Recorrente começa por alegar que os Recorridos qualificaram a acção judicial intentada como acção de justificação para efeitos de registo nos termos dos arts. 116º e 117º-A e ss. do CReg.Predial, para, de seguida, se referir a uma acção que visa obter os mesmos efeitos da acção de justificação que deve estar subordinada aos pressupostos exigíveis para esta, para concluir que, exigindo-se nos n.ºs 2 e 3 do dito art. 117º-A a alegação “das circunstâncias de facto que determinam o início da posse, quando não titulada (…)”, dado não terem ficado provadas, nesta acção, essas circunstâncias, a Relação deveria ter julgado a acção improcedente, sob pena de o mesmo tipo de processo ter tratamento e exigências diferenciadas na Conservatória e no Tribunal.


A questão, colocada pela primeira vez perante a Relação, apesar de nova foi por esse Tribunal apreciada no acórdão recorrido.

A ela se respondeu, após várias considerações sobre a posse, a justificação e o registo, que, existe compatibilidade entre a causa de pedir e o pedido formulado na acção, de acordo com o elemento narrativo da petição inicial, o que lhe confere autonomia processual e procedimental face à acção de justificação do art. 116º e ss. do CRP.


Como se vê da petição inicial, a acção foi intentada como “acção declarativa sob a forma ordinária”, como causa de pedir foram alegados factos integradores dos requisitos da posse conducente à usucapião e, como causa e momento do início da posse foi alegado um contrato de compra e venda, executado, mas nunca formalizado, e, como pedido, o reconhecimento do domínio sobre o prédio a que respeitam os actos de posse alegados.
A acção foi contestada e prosseguiu até final sem que, alguma vez, se questionasse a existência de erro na forma do processo, incompetência do tribunal ou qualquer outro vício de nulidade ou falta e pressupostos processuais.
Nenhuma irregularidade, pois, à luz das regras que definem a forma do processo, como escolhida pelos Autores, e da estabilidade da instância – arts. 467º e 268º CPC.

Assim, e se mais não houvesse, é seguro que a questão da conformidade da acção, proposta no tribunal comum, com as regras processuais aplicáveis, quanto à validade e regularidade da instância, e quanto à sua eventual repercussão na sua procedência ou improcedência, só à luz das mesmas normas deve e pode ser apreciada.
O que está em causa é uma acção comum, com processo ordinário, e, por isso, só relativamente a essa espécie processual haverá que conferir a regularidade.
Ora, sob tal aspecto nenhum problema se suscita.


Mas a ausência de razão da Recorrente ressalta de forma evidente do alegado no art. 9º da p.i..

Aí alegaram os AA. que «têm de recorrer aos meios judiciais, por ter sido deduzida oposição, pelos antigos sócios da Ré, à justificação de registo predial promovida pelos AA. (doc. 3)», sendo que neste documento, emitido pela Conservatória, em 18/8/2006, pode ler-se que «tendo sido deduzida oposição pela interessada CC-“Sociedade de R... A F..., Lda.” ao pedido de justificação (conforme despacho de que se junta cópia) foi declarado findo o processo acima identificado, nos termos do art. 117º-H do Código do Registo Predial, remetendo-se V. Exa. para os meios judiciais».

Ora, como do explanado se colhe, e expressamente consta do art. 117º-H-2 do C.Reg.Predial, actuada pelos AA. a justificação perante a Conservatória, sem sucesso devido a oposição de qualquer interessado, o que determina a cessação de competência do Conservador e a remessa do Requerente para os meios judiciais comuns, não se vislumbram razões para a alegada assimilação da petição acção ao requerimento da acção de justificação administrativa.

Na acção judicial há-de valer a alegação da factualidade integradora da causa de pedir que face ao pedido e à relação jurídica substantiva em lide seja necessária e suficiente, nada impondo ou impedindo que, para obter efeito jurídico semelhante ou eventualmente idêntico por via administrativa, a lei exija ou preveja requisitos não inteiramente coincidentes.


Mas, ainda que assim não fosse, certo é que os AA. alegaram na petição da acção comum ordinária, como deveriam alegar na acção de justificação, a causa de aquisição e o início da posse – o contrato de compra e venda não reduzido a escritura pública, celebrado em Janeiro de 1984, datando de então o início dos actos de posse.


Desprovida de fundamento e adequação aos fins pretendidos, pelo que dito ficou, também a questão dos pressupostos da acção.




4. 4. - Posse para efeitos de usucapião (conclusões 8ª a 20ª).

A Recorrente, invocando desconhecer-se o modo de aquisição do imóvel, que conduziu à sua ocupação, sustenta que, por assim ser, inexiste o “animus possidendi”, correspondendo a situação dos Recorridos a simples detenção, por falta desse elemento psicológico.
Inexiste uma posse causal, que é a que interessa para efeitos de usucapião, presumindo-se de má fé, sendo erróneo contar o início da posse desde Janeiro de 1985.


No acórdão impugnado, o Tribunal da Relação respondeu cabalmente à questão e argumentos que a Recorrente se limita a repetir.
Por isso, bem se poderia, apenas, remeter para o que aí ficou a constar como fundamentação, a coberto da faculdade prevista no art. 713º-5 CPC.


Acrescentar-se-ão, porém, por oportunas, algumas considerações.

É certo que os AA. alegaram, mas não provaram, a causa que invocaram para o início da detenção material do imóvel.

Tal não significa, porém, que, por isso, não se possa, ou pudesse, aceitar que utilizaram e fruíram as várias componentes do prédio “na convicção de que lhes pertenciam e de que não lesavam o direito de quem quer que fosse”, como ficou provado nas respostas aos quesitos 12º e 13º.
A este propósito é oportuno dizer – perante a posição da Recorrente relativamente à factualidade que vem provada - que se está no campo da pura matéria de facto, em sede de apreciação da prova sobre factos a ela submetidos, prova e factos que recaem sobre a simples averiguação de um estado psicológico das pessoas, e que, por isso, se trata de matéria em que está totalmente vedada a intromissão do STJ como Tribunal de revista (arts. 722º-2 e 729º-2 CPC).


A usucapião, tal como a ocupação e a acessão, é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade. Por isso, "o novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo. Em consequência, não lhe podem ser opostas as excepções de que seria passível o direito daquele titular" (OLIVEIRA ASCENÇÃO, "Direito Civil - REAIS", 5ª ed., 300).
Invocada a usucapião, como forma de aquisição, justamente porque de aquisição originária se trata, irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam os vícios de natureza formal ou substancial.
O que passa a relevar e a obter tutela jurídica é a realidade substancial sobre a qual incide a situação de posse. Concorrendo, aferidas pelas características desta, os requisitos da usucapião, os vícios anteriores e as vicissitudes ligadas ao acto ou negócio causal, não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes.

Invocada como título de aquisição da propriedade a usucapião e provados os respectivos requisitos integradores, o direito não poderá deixar de ser reconhecido ao requerente.


Da referida natureza originária da aquisição, tal como caracterizada, bem se compreende que, para efeitos de usucapião, tanto releve a posse unilateralmente adquirida como a decorrente de uma aquisição derivada.

A posse é, em qualquer caso, uma relação de facto entre uma pessoa e uma coisa e, por isso, “a existência da posse não depende de um facto inicial que a domine para sempre, como sucede na propriedade” (MANUEL RODRIGUES, “A Posse”, 2ª ed. 203).

As condições de aquisição da posse relevam apenas para determinação do seu início, o que, por sua vez, pode ter alguma repercussão sobre os seus efeitos.
Em consequência, havendo um acto de investidura na posse, como a tradição, o momento em que se iniciam os actos de posse encontra-se determinado.

Na aquisição unilateral da posse esse momento coincide com o que se demonstrar sobre o efectivo exercício do poder de facto sobre a coisa, correspondente à manifestação do direito real, com intenção de exercer esse poder no seu próprio interesse, isto é, com animus sibi habendi.

Enquanto na aquisição derivada há uma substituição do sujeito que até aí exerceu a relação possessória, substituição que é por este consentida, na posse unilateralmente adquirida cria-se uma relação material nova, independente ou contrária à vontade de quem até então exercia a posse.

O que acontece, isso sim, é que sendo unilateral a aquisição da posse, quem a invocar só o pode fazer em relação à posse em nome próprio e só essa é atendível, não podendo falar-se em sucessão ou acessão da posse (art. 1256º C. Civil).

Por outro lado, corresponde-lhe uma posse não titulada, que se presume de má fé (art. 1260º-2 C. Civil).

A presunção, porém, como já se disse na decisão recorrida, foi ilidida.
É o que inequivocamente encerra a resposta ao quesito 13º (“não lesavam o direito de quem quer que fosse”)


O elemento psicológico da posse ou animus, que a lei exige mas, em caso de dúvida se presume (art. 1252º C. Civil), corresponde à manifestação de vontade de quem exerce o poder de facto sobre a coisa de se comportar como titular do direito correspondente, como já se deixou dito.

Está, ele, bem, patente na resposta ao quesito 12º, também já mencionado.
Doutro modo, quedava sem explicação lógica, ao menos sob a perspectiva sócio-económica, a realização das obras e construções, colheita de frutos e amanho de terras, de que se dá conta na matéria de facto, durante tanto tempo, isto é, desde 1985.
Outra não pode ser, perante o quadro oferecido, a data do início da posse, reportadas que vêm, na factualidade assente, a essa data, pelo menos, os actos materiais de detenção (corpus) e o correspondente animus.
Apenas uma última nota para consignar que, contrariamente ao que escreve a Recorrente, no acórdão da Relação de Lisboa de 12/10/1995 (proc. 0082946) o que se pode ler, transcreve-se, é que a posse que interessa para efeitos de usucapião não é a posse causal e sim a posse formal”, entendimento que vem sendo seguido.

Improcede, pois, a questão proposta relativamente à posse e seus pressupostos.



4. 5. - Suspensão do prazo de usucapião, por menoridade de sócio da Ré (conclusões 21ª a 34ª).
A Recorrente insiste na questão da suspensão do prazo de usucapião, nos termos do art. 320º-1 C. Civil, mediante a alegação de ser menor, em 1985, o sócio FF, pelo que só em 1987 atingiu a maioridade.

Mais uma vez se está perante uma questão suscitada apenas no recurso de apelação, sem qualquer alegação anterior ou suporte na factualidade utilizada até à sentença.
Como tal, também os documentos que suportam os factos que se alegam não reuniam condições de atendibilidade, designadamente com fundamento no 2º segmento do art. 706º CPC.

Apesar disso, a Relação conheceu da questão, o que determina, agora, pronúncia por este Tribunal.


No acórdão recorrido entendeu-se que a questão teria a ver com legitimidade, sendo Ré a pessoa colectiva (e não os seus sócios).

Não se diverge, mais uma vez, do entendimento perfilhado.

Os invocados actos de posse e a usucapião correram contra a anterior dona e possuidora do imóvel que era a Ré, pessoa colectiva.
Esta é uma sociedade comercial, dotada de personalidade e de capacidade jurídica e judiciária, que age e se vincula externamente através dos actos praticados pelos seus representantes, os gerentes, nos termos constantes do contrato social e/ou das deliberações dos sócios - arts. 5º, 6º, 252º, 259º e 260º CSC.

O prédio não era pertença do sócio, mas da sociedade, cabendo a esta, através dos seus representantes, embora, provavelmente, com precedência de deliberação dos sócios (art. 246º-2-c) CSC), alienar imóveis.
Não se encontra fundamento para a pretendida desconsideração da personalidade da pessoa colectiva.

Mesmo que assim não fosse, admitindo que o dito FF era sócio da Ré em 1985, tendo nascido em Maio de 1968, atingiu a maioridade em Maio de 1986, isto é, um ano após a data que acima se teve por fixada como sendo a do início da posse.

A citação para a acção da Ré para a acção teve lugar em Dezembro de 2006

Segundo o convocado art. 320º-1, “a prescrição não começa nem corre contra menores enquanto não tiverem quem os represente ou administre os seus bens, salvo se respeitar a actos para os quais o menor tenha capacidade; e, ainda que o menor tenha representante legal ou que administre os seus bens, a prescrição contra ele não se completa sem ter decorrido um ano a partir do termo da incapacidade”
Jamais foi alegado, não podendo, por isso ser considerado, que a então menor FF não teve representante legal ou administrador dos seus bens entre a data em que se iniciaram os actos de posse dos Autores – 1985, tendo, então, 17 anos de idade -, e a data em que completando 18 anos, atingiu a maioridade, Maio de 1986.
A ser assim, o prazo prescricional só deixou de correr, por suspensão, durante o ano completo subsequente à data em que cessou a incapacidade decorrente da menoridade, ou seja, utilizando os dados agora trazidos ao processo pela Recorrente, a suspensão teve lugar entre o ano de 1986 até ao dia, mês e ano que a dito FF fez 18 anos (Maio de 1987), voltando novamente a correr até se completar - art. 320º-1 C. Civil.

Ora, se, como se deixou julgado, a posse foi exercida de boa fé, porque ilidida a presunção que decorria da falta de título, o prazo de usucapião, que é de quinze anos, ter-se-á por preenchido a partir de Maio de 2002 – arts. 1260º-2 e 1296º C. Civil.

O prazo de usucapião encontrava-se, pois, em qualquer caso, há muito completo.



4. 6. - Interrupção do prazo de usucapião; - processo de liquidação da sociedade (conclusões 35ª a 47ª).
Quanto a esta questão, a Recorrente alega ter sido dissolvida e encontrar-se pendente o processo de liquidação em que os Recorridos são intervenientes acidentais.
Em 6 de Junho de 2005, o Liquidatário Judicial enviou-lhes a carta junta com a petição inicial, a qual tem força bastante para interromper o decurso do prazo para efeitos de usucapião, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do art. 323º e 1292º C. Civil.
Daqueles factos deve o tribunal conhecer oficiosamente em virtude do exercício das suas funções e, por via disso, o quesito 11º “Sem oposição de ninguém?”, deveria ser respondido negativamente.


Concluiu-se a apreciação da questão anterior afirmado que, pelos fundamentos expostos, o prazo de usucapião ficara completo a partir do mês de Maio de 2002.
Por isso, de nada adianta invocar factos posteriormente ocorridos.


De resto, a matéria relativa à prescrição não é de conhecimento oficioso, carecendo de ser invocada pelos interessados a quem possa aproveitar e no momento e lugar próprio, que são os articulados (contestação) da acção (arts. 303º C. Civil e 489º CPC), sendo que, uma vez mais, a questão foi inovadoramente colocada, de facto e de direito, no recurso de apelação.


De acrescentar, como já se disse no acórdão recorrido, que só há lugar a interrupção da prescrição quando o acto de que resulta a afirmação da intenção de exercer o direito seja levado a cabo por via de citação ou notificação judicial, incluindo a notificação avulsa (Ass. 3/98, de 26/3/98 – DR, I-A, de 12/5/98).
Não é, por isso, meio adequado para o efeito uma carta enviada pelo Liquidatário em 2005 nem o são quaisquer notificações desde então operadas no apenso de liquidação cujo objecto não consiste em dirimir a propriedade do imóvel.

Quanto à matéria de facto – resposta ao quesito 11º - reafirma-se o anteriormente dito: - Não concorrem os pressupostos legalmente exigidos, pois que não se oferece documento com força probatória plena que infirme o facto provado (art. 722º, último segmento, CPC).

Improcede a pretendida interrupção do prazo de usucapião.




4. 7. - Apresentação da acção de justificação. Interrupção da prescrição (conclusões 48ª a 56ª).

A questão suscitada está já respondida.
Vale aqui quanto se deixou explanado sobre a invocação da prescrição – legitimidade, forma de arguição e do acto interruptivo -, bem como sobre o decurso do prazo de usucapião em razão dos elementos da posse que ficaram provados.
Relembra-se, apesar de tudo, que se a acção de justificação foi proposta na Conservatória de Registo Predial em 7 de Setembro de 2005, encontrando-se então, desde mais de três anos antes, decorrido o prazo de aquisição por usucapião, indiferente se revela a oposição contra o direito exercitado apresentada pela Ré ou pelos respectivos Sócios.

De desatender, também, esta última questão.





5. - Decisão.

Em conformidade com o exposto, acorda-se em:
- Negar a revista;
- Manter o decidido no acórdão impugnado; e,
- Condenar a Recorrente nas custas.


Supremo Tribunal de Justiça,

Lisboa, 16 de Novembro de 2010.

Alves Velho (Relator)*
Moreira Camilo
Urbano Dias
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* Sumário e descritores elaborados pelo Relator