Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
809/19.1T9VFX.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL
PENA PARCELAR
DUPLA CONFORME
REJEIÇÃO DE RECURSO
RELATÓRIO SOCIAL
PENA ÚNICA
ABUSO SEXUAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO O RECURSO IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Pese embora o art. 12.º, n.º 4, do CPP, determine que as seções nos Tribunais da Relação funcionem com 3 juízes, em sede de recurso e quando julgado em conferência, nos termos do art. 419.º, n.ºs 2, do CPP, a maioria é formada pelo juiz-relator e pelo juiz-adjunto, apenas intervindo o Presidente da seção para desempatar. Assim sendo, apenas cabe ao Presidente da seção assinar a decisão caso tenha sido necessário o seu voto para desempate entre o Juiz relator e o Juiz Adjunto. Não existindo esta necessidade, o acórdão é apenas subscrito pelo Juiz relator e pelo Juiz adjunto.
II - Tendo em conta o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, onde se impede a possibilidade de recurso das decisões do Tribunal da Relação que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, e o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que, confirmando decisão anterior, apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, segundo a jurisprudência deste STJ, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações relativas a cada crime, do Tribunal da Relação, quando seja aplicada pena não superior a 5 anos de prisão; e das condenações em pena de prisão superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão, quando haja conformidade com o decidido na 1.ª instância.
III - Nos termos do art. 370.º, n.º 1, do CPP, sendo o relatório social um elemento a considerar em sede de determinação da medida da pena, o “tribunal pode (...) solicitar a elaboração do relatório” “quando o considerar necessário à correcta determinação da sanção”; dada a não obrigatoriedade daquele pedido (segundo o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 182/99, esta interpretação do art. 370.º, n.º 1, do CPP, não constitui uma interpretação contra a CRP), não podemos considerar existir qualquer nulidade.
IV - O arguido vem condenado pela prática de um número elevados de crimes contra a autodeterminação sexual de menores (26), praticados ao longo de 2014, 2015, 2016, 2017, e 2018, tendo atuado dolosamente; a amplitude dos crimes e a ausência de adequação sistemática, ao longo de vários anos, às regras comunitárias e impostas pela ordem jurídica, impunham uma pena acima da metade da moldura penal; todavia, as exigências de prevenção geral são satisfeitas com uma pena ligeiramente abaixo da metade; articulando estas exigências com as exigências de prevenção especial, consideramos como adequada a pena de 15 anos de prisão que foi aplicada.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 809/19.1T9VFX.E1.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1. Em primeira instância, o arguido AA, identificado nos autos, foi julgado em tribunal coletivo no Tribunal Judicial da Comarca …. (Juízo Central Criminal … – Juiz …) nos seguintes termos:

 «(...) c). Condenar o arguido AA, como autor material e em concurso efectivo, de 18 (dezoito) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171º, nº 1 e 177º, nº 1, alínea b), do Código Penal, nas penas parcelares de 2 (dois) anos de prisão, por cada um dos crimes.

d). Condenar o arguido AA, como autor material e em concurso efectivo, de 8 (oito) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171º, nº 2 e 177º, nº 1, alínea b), do Código Penal, nas penas parcelares de 6 (seis) anos de prisão, por cada um dos crimes.

e). Em cúmulo jurídico destas penas parcelares resultou o arguido AA condenado na pena única de 15 (quinze) anos de prisão.

f). Aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 15 (quinze anos), cf. artigo 69º-B, nº 2, do Código Penal.

g). Aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores por um período de 15 (quinze anos), cf. artigo 69º-C, nº 2, do Código Penal.

h). Aplicar ao arguido a pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais pelo período de 15 (quinze anos), cf. artigo 69º-C, nº 3, do Código Penal.

i). Arbitrar a favor da vítima BB a quantia de €18.000,00 (dezoito mil euros) a pagar pelo arguido AA.»

2. O arguido recorreu para o Tribunal da Relação …. que, por acórdão de 24.11.2020, decidiu “julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se o Acórdão recorrido”.

3. Ainda inconformado, o arguido interpõe agora recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo nos seguintes termos:

«I. Cabe às secções criminais das Relações, em matéria penal, julgar recursos - artigo 12.°/3, al. b), do CPP, determinando o n° 4 do mesmo preceito que as secções funcionam com três juízes

II. Quando intervém a secção criminal o tribunal é constituído pelo presidente da secção, pelo relator e apenas um juiz-adjunto (cfr. artigos 419, n° 1 e 429, n.° 1, do CPP)

III. Deduz-se que o tribunal não foi devidamente constituído, aparentemente intervieram número de juízes inferior ao imposto por lei, consequentemente, o acórdão reclamado não contém o número de assinaturas legalmente exigido, portanto é nulo.

IV. Verifica a nulidade do acórdão, nos termos do art. 615.°, n.º 1, al. a), do CPC e art. 4.°, do CPP, por o acórdão recorrido não conter a assinatura de todos os juízes que compõem o Tribunal Coletivo que proferiu o mesmo, uma vez que, na primeira folha do acórdão, no canto superior esquerdo, se encontram as assinaturas eletrónicas de APENAS DOIS juízes que compuseram o Coletivo julgador.

V. O acórdão recorrido violou os artigos 4°, 374°, n.º 2, 379°, n.º 1, a) e c) do CPP e artigo 615, n.º 1, a) do CPC e ainda, art.419, n°2 e 429.º/1 e 372.º/2 CPP, é por isso nulo.

VI. O recurso interposto para o venerando tribunal da relação requereu a reapreciação da prova produzida na primeira instância pela segunda instância. (art. 410.º, 412.º/3 a n.º 6 e 428.º CPP) reconduzindo-se ao duplo grau de jurisdição de recurso da matéria de facto.

VII. Ainda assim, o venerando tribunal não conheceu nem reapreciou a matéria de facto conforme requerido, mas mormente apreciou a matéria de direito eles interligada.

VIII. Desconhece-se se motivado por algum erro formal do recorrente.

IX. O que se sabe é que o recorrente não foi convidado nos termos do art. 417.º/3 CPP a suprir qualquer lapso do recurso interposto.

X. Se a falta de motivações implica o convite à sua apresentação, a eventual obscuridade, e incompletude, não pode importar a não apreciação, sem qualquer convite ao aperfeiçoamento, sob pena de infringir o juízo jurídico de quem pode o mais pode o menos e o princípio da proporcionalidade.

XI. O tribunal recorrido não aplicou, ou interpretou de forma errónea, o artigo 412.º do CPP que se traduz em facultar ao tribunal ad quem a liminar rejeição do recurso, quando se traduza na rejeição tácita do recurso interposto da matéria de facto, sem que ao recorrente seja feito o convite para suprir qualquer das especificações previstas nas als. a), b), e c), do n.º 3 do artigo 412.º, com referência ao art.º 414.º, n.º 2, do CPP.

XII. Tal é inconstitucional, por violação do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º e do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, com referência ao direito de acesso à justiça, consignado no artigo 20.º, todos da Constituição, interpretação normativa que não se compadece com a argumentação supra.

XIII. A alusão a “opiniões” do recorrente face à prova produzida, sem qualquer análise, prontamente auto balizada pelo princípio da imediação com rejeição da prova produzida viola o duplo grau de jurisdição.

XIV. O acórdão a quo é nulo e deve ser mandado substituir por outro que conheça toda a matéria recursiva ou determine aquele convite, tudo nos termos dos art. 417.º/3, 379.º/1c) CPP.

XV. O acórdão recorrido violou os artigos 410.º, 412.º/3 a 6, 414.º, 417.º/3 e 428.º e 431.º todos do CPP e artigos 18.º, 20.º e 32.º da Lei Fundamental.

XVI. O venerando tribunal a quo também olvidou o conhecimento oficioso das contradições insanáveis a fundamentação e a decisão, nos termos do art. 410.º 2b) CPP.

XVII. Relativamente ao ponto 4 dos factos dados e à sua fundamentação há uma contradição insanável no acórdão proferido pela primeira instância, que foi alegada em sede de recurso para a relação, mas que não foi conhecida pelo venerando tribunal, em violação do art. 410.º/2b e c) e 379.º/1c) do CPP).

XVIII. Aliás é do conhecimento público que as férias da páscoa de 2014 ocorreram antes da conferência de pais. Domingo de páscoa foi dia 20/04/2014. Logo, se a menor apenas voltou a ter contacto com a mãe e com o arguido nas férias seguintes à data da conferência, assim, tis factos não aconteceram nas férias da Páscoa, conforme resulta claro da prova indicada em sede recursiva da matéria de facto, e que aqui à cautela, também se indica como cumulativa violadora das alíneas b e c do indicado artigo -art. 410.º/2 CPP.

XIX. Se o dia de Páscoa foi a 20 de Abril de 2014, data imediatamente antes da conferência a que se reporta a ata e da qual resulta inequivocamente que as menores BB e CC não passaram o período de férias da Páscoa na companhia da mãe no .......

Logo os factos dados como provados no ponto 4 dos factos provados do acórdão a quo não deviam constar dos factos provados, mas integrar imperativamente os factos não provados. Devendo o arguido ser absolvido do crime pelo qual vinha acusado naquela data, porquanto aquele facto integra necessariamente os factos não provados.

XX. Ora, a contradição entre a fundamentação do acórdão e ao facto dado como provado gera uma nulidade insanável, matéria esta de conhecimento oficioso.

XXI. Assim, o ac. a quo violou, portanto, os artigos no art. 379.º/1c) e 410.º/2 b) e c) do CPP.

Para lá disso, por mero dever de patrocínio,

XXII. O recorrente requer a atualização do relatório social elabora, nos termos do art. 370.º/1 CPP para efeitos da medida da pena.

XXIII. Foi o recorrente condenado na pena de 15 (quinze) anos de prisão efetiva e penas acessórias.

XXIV. Entende o arguido, ora recorrente, que, face à factualidade dada como provada em juízo e ao Direito aplicável, a pena aplicada revela-se pouco criteriosa e desequilibradamente doseada.

XXV. Há que respeitar a livre apreciação da prova e a convicção do Tribunal, sem, contudo, se descurar o facto de assistir ao arguido o direito de exigir que o acórdão que determina a sua condenação - em especial a privação da sua liberdade - seja criteriosamente fundamentado e se sustente em factos que permitam, só por si, valorar o grau de ilicitude e a intensidade do dolo. E ainda justificar a necessidade de prevenção especial, imputada ao caso concreto, especialmente quando lhe foram aplicadas penas acessórias, inclusivamente a inibição de exercer as responsabilidades parentais, sem que haja nos autos qualquer elemento que consubstancie o perigo concreto para os seus filhos.

XXVI. Contudo e atendendo a que:

XXVII. Que desde a prática do último facto já decorreu dois anos;

XXVIII. Tem 58 anos de idade;

XXIX. Não tem contra si quaisquer Processos pendentes;

XXX. É primário no que ao tipo reporta;

XXXI. É trabalhador;

XXXII. É urbano no trato e comportamento;

XXXIII. É uma pessoa reputada nas relações sociais e familiares com os seus amigos, família e comunidade;

XXXIV. É pai de três filhos tendo-os a seu cargo e dependência financeira;

XXXV. Tem a companheira, família, amigos e comunidade, a quem descreveu tudo o que vem sofrendo com este Processo, dispostos a acolhê-lo e a ajudá-lo em tudo o que vier a necessitar; e,

XXXVI. O arguido está socialmente integrado;

XXXVII. É o elemento fundamental para o sustento familiar (supra);

XXXVIII. Sempre tentou singrar na vida através de vários trabalhos (lícitos), nomeadamente, construção civil.

XXXIX. Deste modo, pese embora a prova produzida em julgamento não permita consubstanciar o juízo de condenação formulado pelo Tribunal a quo, ainda assim, atento o supra exposto na Motivação deste Recurso, pronunciamo-nos pela aplicação de penas mais reduzidas ao Recorrente por conta das factualidades que V. Exas eventualmente venham a considerar demonstradas.

XL. Razão pela qual o recorrente discorda da dosimetria das Penas Parcelares dos Crimes pelos quais veio acusado e da Pena Única que lhe foi aplicada, e pugna por outras mais adequadas aos critérios de Justiça que o caso em concreto reclama, nomeadamente uma Pena não muito afastada do limite mínimo de cada um desses Ilícitos e uma Pena Única abaixo dos oito anos de Prisão.

XLI. Derradeiramente, se o recorrente tiver de ser injustamente condenado, que a pena única de prisão que lhe vier a ser aplicada por V. Exas. seja próxima dos mínimos aplicáveis, até porque quanto mais extenso o cumprimento de uma pena de prisão, ao invés de contribuir para a reintegração deste, terá graves efeitos desocializantes.

XLII. LI. A não ser absolvido como augurava decisão da veneranda relação, as finalidades da punição, no caso concreto, serão melhor alcançadas mediante a aplicação, ao recorrente, de pena de substituição não privativa da liberdade, do que através do cumprimento de prisão efetiva, porque a censura do facto - no caso socialmente estigmatizante ainda com o apoio de toda a família e amigos - e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, e a suspensão da execução da pena de prisão revela-se eficaz na prossecução das exigências de Prevenção Geral e Especial.

XLIII. Com todo o respeito,

XLIV. Entendemos que o Tribunal a quo não ponderou ou devidamente valorou tais fatores/circunstâncias na determinação da medida das penas.

Termos em que deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, declaradas e ordenada a reposição da legalidade, tudo conforme V. Exas. determinarem em cumprimento da LEI.

Requer ainda o conhecimento oficioso de outras nulidades e irregularidades que sejam de conhecimento oficioso não apontadas.».

4. O recurso foi admitido por despacho de 06.01.2021.

5. Ao recurso interposto respondeu o Senhor Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal da Relação ….., que concluiu nos seguintes termos:

«1. não reclama a formulação do convite a que alude o art. 417°, n.º 3, do CPP, o recurso cujas conclusões se apresentam claramente percetíveis pelo relator e permitem que sobre as pretensões nelas veiculadas o tribunal emita pronúncia;

2. não está inquinado de nulidade, por falta de assinatura do desembargador presidente da secção, o acórdão tirado em conferência em que a deliberação resulta de acordo entre o relator e o juiz desembargador adjunto;

3. enquanto fundamento do recurso, o conhecimento dos vícios taxados no art. 410°, n.º 2, do CPP, por expressa invocação do recorrente no recurso interposto para o STJ de acórdão da 2ª instância que deles conheceu, escapa aos poderes cognitivos do STJ;

4. os vícios elencados no art. 410°, n.° 2, do CPP, apenas são oponíveis, e exclusivamente, ao próprio teor da decisão recorrida e não a outros elementos processuais estranhos a essa mesma decisão;

5. não demanda intervenção corretiva/reparadora pelo STJ o acórdão do tribunal da relação que, observando os critérios dos arts. 71° e 72°, do Código Penal, e em confirmação do acórdão da 1ª instância, mantém a condenação do arguido na pena única de 15 (quinze) anos de prisão, pela prática de 28 (vinte e oito) crimes de abuso sexual de crianças;

6. ausente o pressuposto formal que permita ponderar a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão, carece de fundamento a pretensão recursiva que tal veicule.

O acórdão objeto do recurso deve, assim, ser confirmado em toda a sua plenitude, visto não padecer de qualquer nulidade ou vício nem violar nenhum dos normativos invocados pelo recorrente, antes comportando uma decisão que se afigura justa, equilibrada e proporcional, traduzindo a resposta que a comunidade tem por adequada aos factos cometidos, sua gravidade e consequências.»

6. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta apresentou parecer pronunciando-se, em súmula, pela improcedência do recurso, porquanto:

«Acompanham-se na íntegra os fundamentos aduzidos na citada resposta do Magistrado do M.P., os quais pela profundidade de análise nos dispensam de considerações adicionais.

Apenas se reforça, ao nível da medida da pena aplicada, de entre as circunstâncias referidas no acórdão sob recurso, a de os abusos se terem prolongado dos 8 aos 13 anos da menor [BB, nascida em 02.09.2015, filha da sua companheira], bem como ter usado de ameaça para manter o seu silêncio, sendo a imagem global dos factos particularmente impressiva dos abusos, sejam por todo o tipo de coito praticada, iniciando a introdução de dedos na vagina, o coito vaginal e oral quando a menor tinha 8 anos e o coito anal quando a menor apenas tinha 9 anos.

Pelo exposto, afigurando-se igualmente ajustado ao grau de culpa com que o recorrente atuou a medida das penas parcelares e pena única aplicadas, refletindo esta última a culpa na globalidade dos factos cometidos, sendo prementes as exigências de prevenção especial e geral, pronunciamo-nos igualmente pela improcedência global do recurso.»

7. O arguido, notificado ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não respondeu.

8. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

A. Matéria de facto provada

Matéria de facto dada como provada:

«1. No período compreendido entre 2012 a 2019 DD e o arguido AA mantiveram uma relação conjugal como se de marido e mulher se tratassem.

2. No ano de 2012 DD separou-se do pai das suas duas filhas, BB, nascida em 02 de Setembro de 2005 e de CC (mais nova que BB) e passou a residir no ......, mais concretamente em …., na casa dos avós maternos das menores, ainda sem o arguido, mas iniciando nessa data uma relação amorosa com este.

3. Em meados de Janeiro de 2013 DD foi viver juntamente com o arguido em …, …, contudo, a partir desse ano ambas as menores foram morar com o pai para …, sendo que apenas passavam alguns períodos das férias de Verão, Natal e Páscoa na casa da mãe.

4. Na Páscoa de 2014, quando a mãe das menores não se encontrava em casa, sita em ….. - ……, o arguido, por duas vezes, em dias distintos, dirigiu-se ao quarto da menor BB, tirou-lhe a roupa, apalpou-a nas nádegas, os seios.

5. No verão desse mesmo ano de 2014, também no período compreendido entre o mês de Julho a Agosto, quando BB tinha 8 anos de idade, já noutra habitação, onde a mãe residia com o arguido, sita em …. - …., este, por cerca de doze vezes, em dias distintos, aproveitando-se da circunstância de DD (mãe das menores) estar ausente da dita residência ou ocupada com alguma tarefa, dirigiu-se ao quarto da menor BB, tirou-lhe a roupa, apalpou-lhe as nádegas, os seios e beijou-a na boca e na face.

6. Por duas ocasiões desse Verão de 2014, distintas das vezes relatadas no número anterior, o arguido dirigiu-se junto da menor BB, tirou-lhe a roupa, deixando-a completamente nua, despiu-se da cintura para baixo e voltou a apalpar-lhe as nádegas, os seios, mas desta vez apalpou-lhe também a vagina, beijou-a na boca, na face, no pescoço e de seguida introduziu-lhe os dedos na vagina e pediu-lhe para segurar no seu pénis, o que a menor acedeu.

7. Já no período do Natal de 2014, o arguido, por uma vez, dirigiu-se junto da menor BB, tirou-lhe a roupa, deixando-a completamente nua, despiu-se da cintura para baixo, apalpou-lhe as nádegas, os seios, a vagina, beijou-a na boca, na face, no pescoço, introduziu-lhe os dedos na vagina, forçou-a a acariciar-lhe o pénis e acto contínuo, forçou-a a introduzir o pénis erecto na boca, ejaculando de seguida.

8. No verão de 2015, novamente no período compreendido entre Julho a Agosto, a menor BB voltou a passar férias na casa de sua mãe DD, sita em … - …, e nas mesmas circunstâncias supra enunciadas, na ausência da progenitora, o arguido, que também ali residia, dirigiu-se à menor, despiu-a com força, deu-lhe beijos na boca, no pescoço e na face, apalpou-a nas nádegas, nos seios e na vagina e de seguida, após se despir da cintura para baixo, forçou-a a agarrar-lhe no pénis que se encontrava erecto, a fazer movimentos para a frente e para trás com o mesmo e acto contínuo introduziu o pénis erecto na vagina da menor.

9. Na Páscoa de 2016, quando a mãe da menor DD se encontrava na sala, o arguido dirigiu-se à menor BB que encontrava na cozinha, forçou-a a ir para o quarto, despiu-a toda, despiu-se da cintura para baixo, deitou-a na cama, beijou-a como já era habitual na face, no pescoço, na boca e desta feita também nos seios, apalpou-a de igual forma nas nádegas e de seguida forçou-a a acariciar-lhe o pénis que já se encontrava erecto, forçou-a a metê-lo na boca e, acto contínuo, deitou-se em cima da BB e introduziu o pénis erecto na vagina da menor onde se manteve em movimentação constante até ejacular.

10. O mesmo sucedeu ainda nas férias do Verão de 2016, na casa dos avós da menor BB em …, o arguido, aproveitando-se da ausência de DD (mãe da menor) dirigiu-se à referida menor que se encontrava sozinha no pátio da referida habitação, despiu-a, beijou-a, apalpou-a nos seios e nas nádegas, forçou-a a agarra-lhe o pénis erecto e a fazer movimentos para frente e para trás agarrada ao mesmo e de seguida forçou-a a baixar-se, a virar-se de costas e introduziu-lhe o pénis erecto no anús.

11. Nesse mesmo Verão, em número de vezes não concretamente apurado, sempre que não estava ninguém por perto, o arguido apalpou a menor BB nos seios e nas nádegas por baixo da roupa que esta vestia.

12. O mesmo aconteceu nas férias de Páscoa de 2016, ainda na residência de …., diferente da casa da avó, o arguido, aproveitando o facto de DD (mãe da menor) estar ausente de casa, por duas vezes dirigiu-se à BB, despiu-a, forçou-a a acariciar-lhe o pénis fazendo movimentos para a frente e para trás, apalpou-a nas nádegas e nos seios e beijou-a na boca e no pescoço.

13. Numa dessas duas ocasiões introduziu-lhe os dedos na vagina e forçou-a a introduzir o pénis erecto na boca até ejacular.

14. Já no Verão de 2017, ainda na residência de …, o arguido aproveitando o facto de DD (mãe da menor estar ausente de casa), dirigiu-se à menor BB, forçou-a a despir-se, beijou-a na face, na boca e no pescoço, apalpou-a nas nádegas e nos seios por baixo da roupa, depois despiu a menor, forçou-a novamente a acariciar-lhe o pénis erecto com os movimentos supra enunciados.

15. No Natal de 2017, na residência de …., o arguido, aproveitando o facto de DD, mãe da menor, estar ausente de casa, dirigiu-se à menor BB e quando esta estava deitada no quarto com febre beijou-a na boca, apalpou-a nas nádegas por baixo do pijama que esta tinha vestido.

16. No Verão de 2018, o arguido voltou a dirigir-se à menor BB que se encontrava sozinha no quarto, apalpou-a nos seios e nas nádegas ainda vestida, despiu-a, beijou-a na boca, no pescoço, voltou a apalpá-la nos seios e nas nádegas quando a menor já estava despida, forçou-a a agarra-lhe o pénis erecto e a fazer movimentos para frente e para trás agarrada ao mesmo, colocou-lhe os dedos na vagina e, de seguida, introduziu-lhe o pénis erecto no ânus e na vagina.

17. O arguido, para levar a cabo os seus intentos, ameaçava a menor que batia na sua mãe e irmãos se ela contasse a alguém o sucedido.

18. O arguido conhecia bem a idade da menor BB, sabendo que todos os factos supra enunciados foram praticados quando a menor se encontrava entre os oito e os treze anos de idade.

19. O arguido bem sabia também que a sua conduta atentava contra a liberdade, dignidade e autodeterminação sexual da menor BB e que igualmente punha em causa o normal e livre desenvolvimento da personalidade desta na esfera sexual, o que logrou concretizar.

20. O arguido agiu com o propósito de molestar sexualmente a menor BB, sujeitando-a à prática de actos de cariz sexual com o intuito de satisfazer os seus ímpetos sexuais, o que logrou concretizar.

21. Sabia ainda o arguido que a menor BB, sendo menor de idade não tinha capacidade para avaliar e entender o significado dos actos que estava a fazê-la suportar, sabendo ainda que por ser padrastro da menor exercia influência sobre esta, fazendo-a recear os seus comportamentos, e dessa forma forçava a menor a sujeitar-se às condutas libidinosas por este praticadas.

22. O arguido sempre agiu voluntária e conscientemente, conhecendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, e actuou sempre com a liberdade necessária para se determinar segundo essa resolução.

23. Por factos praticados em 03-12-2016, foi o arguido condenado por sentença de 23-11-2017, transitada em 26-06-2018, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em concurso com um crime de condução em estado de embriaguez na pena única de 160 dias de multa, à razão diária de 5,00€ (proc. 1240/16….., do Juízo Local criminal …. – J…)

24. À data da prisão, AA integrava a família constituída com a companheira DD, de 38 anos e os dois filhos comuns, de 6 e 3 anos. O sustento era assegurado pelo trabalho de ambos, mas, o registo indiferenciado e precário dava conta de algumas dificuldades económicas e da necessidade de ajuda dos serviços assistenciais locais nalgumas alturas. Viviam numa casa arrendada, em …, da qual DD veio a sair por ordem do senhorio devido ao acumular de dívida.

O arguido é cidadão …. Veio para Portugal em 2004, aos 29 anos, sozinho, sem grandes planos, mas deparou-se com oportunidades de trabalho e acabou por se manter neste país. Não dispõe de título de residência, referindo que o mesmo caducou em 2011 e descurou a sua renovação. Tem um historial de emprego frequente, mas instável como …., …. e ….

AA cresceu no Estado da …., numa família de …, integrando uma fratria de nove. Percepciona a sua infância e adolescência como um período feliz, embora se descreva como uma criança introvertida, envergonhada e tímida e atribua ao pai atitudes educativas de caráter punitivo.

Frequentou a escola regularmente, completando o ensino básico e uma formação profissional …... Desde criança foi orientado junto da família para o trabalho na exploração …. da fazenda onde viviam.

Do relacionamento intrafamiliar, embora afetivamente ligados, a vida decorria de uma forma mais funcional, sem grande espaço para a discussão de assuntos diversos ou uma atenção individualizada à descendência.

Das ocorrências negativas a marcar o seu processo de desenvolvimento presenciou um incidente em que o pai foi esfaqueado, aos 10 anos e um acidente aos 19 anos, num "rodeo" em que o arguido participava, com fratura de crânio, da qual acha que não ficou com sequelas.

Da vida afetiva-sexual iniciou experiências com raparigas aos 16 anos em contexto de festa e de amigos. Aos 25 anos teve uma primeira relação marital, contexto em que, volvidos 4 anos, nasceu o seu primeiro filho. Pouco tempo depois deste nascer separaram-se, tendo a companheira emigrado para os ….. e AA toma a iniciativa de vir para Portugal, deixando o filho entregue aos avós maternos.

Em Portugal só refez a sua vida marital volvidos 6 anos, em 2010, quando conheceu DD.

No contexto desta relação foi pai de mais dois filhos, uma menina nascida em 2013 e um menino nascido em 2016.

Esta nova vida familiar indiciou-se multiproblemática, com fases de separação e reconciliações, várias mudanças de casa, instabilidade nos recursos económicos e um relacionamento familiar disfuncional alargado à família de origem da companheira.

DD havia-se separado recentemente de um anterior relacionamento marital, fruto do qual haviam mais duas filhas, atualmente com 14 e 11 anos, sendo a mais velha, BB, a vítima identificada no presente processo.

Estas meninas começaram por acompanhar a mãe depois da separação, vindo de …., para o ......, onde aquela havia recorrido ao suporte da família de origem, em …...

Em 2012, na sequência de episódio de tentativa de suicídio e internamento psiquiátrico de DD, por intervenção dos organismos da promoção e proteção, foi alterada a guarda das duas filhas mais velhas para o progenitor, vindo a casa da mãe apenas em períodos de férias.

Paralelamente na relação com AA agravavam-se fatores de stress, separam-se, nasceu a filha do casal, reataram e foram viver para a zona …, mas aumentavam hábitos de consumo abusivo de álcool do arguido.

Depois de episódio de violência doméstica, tinha a filha comum 1 ano de idade, novamente os organismos de promoção e proteção intervieram, aplicando medida de colocação e acolhimento em instituição que vigorou até 2016, altura em que nasceu o filho mais novo. Entretanto, desde 2015 regressaram à zona  …., conforme assinalado acima.

AA evidência muita dificuldade em analisar as vicissitudes da vida familiar, tendendo a negar problemas e a distanciar-se de conflitos. Mostra um pensamento pouco reflexivo, pobre em ideias e conexões, com uma atitude globalmente inibida e submissa no trato interpessoal. Apresenta capacidade de responder de forma sintónica às questões, ainda que num registo concreto e por vezes algo confuso.

A ligação do arguido com as enteadas, ao longo dos oito anos prévios à data da prisão, foi avaliada como positiva, considerando que foi sempre colaborante à sua presença e as mesmas por si não constituíam fator de desarmonia conjugal. As estadias correspondiam sempre ao anseio das meninas em vir para casa da mãe.

Os conflitos eram entre DD e o ex-companheiro, não se entendendo quanto às questões educativas e atribuindo-se mutuamente a sujeição das crianças a situações de risco. Foi visto como inesperada a súbita recusa das estadias em casa da mãe por parte da menor BB e o confronto com o sistema de administração da justiça penal, inerente ao presente processo foi encarado com incredulidade.

Em meio prisional mantém um comportamento isento de questões disciplinares, trabalha na faxina.

Conta com apoio familiar por parte da companheira, que o visita com os filhos e lhe presta ajuda pecuniária para as despesas básicas no EP. DD mostra-se expectante quando ao desfecho do processo e apuramento dos factos.»

           

B. Matéria de direito

1. O arguido interpôs o recurso apresentando as seguintes questões:

a) nulidade do acórdão recorrido, nos termos dos arts. 4.º, 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, als. a) e c), todos do Código de Processo Penal (CPP) e art. 615.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil (CPC) ex vi art. 4.º, do CPP, e ainda nos termos dos arts. 419.º, n.º 2, 429.º, n.º 1 e 372.º, n.º 2, todos do CPP, por entender que o acórdão devia ter sido subscrito por 3 juízes desembargadores — o Presidente da seção, o Relator, e o Juiz-Desembargador adjunto — pelo que o Tribunal não foi corretamente constituído;

b) nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia decorrente do não conhecimento do recurso em matéria de facto, nos termos dos arts. 417.º, n.º 3 e 379.º, n.º 1, al. c), do CPP;

c) nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia decorrente do não conhecimento dos erros-vício previstos no art. 410.º, n.º 2, als. b) e c), do CPP, nos termos dos arts. 417.º, n.º 3 e 379.º, n.º 1, al. c), do CPP;

d) recurso da decisão quanto às penas aplicadas a cada um dos crimes por que vem condenado, considerando-as excessivas, e quanto à pena única aplicada (de 15 anos de prisão) entendendo que devia ser inferior a 8 anos de prisão e devendo ser substituída por uma pena não privativa da liberdade.  

Apreciemos.

2. Entende o recorrente que o acórdão é nulo por apenas estar subscrito por dois Senhores Juízes Desembargadores, pelo que o Tribunal não estava regulamente constituído.

Não tem razão o recorrente.

Pese embora o art. 12.º, n.º 4, do CPP, determine que as seções nos Tribunais da Relação funcionem com 3 juízes, em sede de recurso e quando julgado em conferência, nos termos do art. 419.º, n.ºs 2, do CPP, a maioria é formada pelo juiz-relator e pelo juiz-adjunto, apenas intervindo o Presidente da seção para desempatar. Assim sendo, apenas cabe ao Presidente da seção assinar a decisão caso tenha sido necessário o seu voto para desempate entre o Juiz relator e o Juiz Adjunto. Não existindo esta necessidade, o acórdão é apenas subscrito pelo Juiz relator e pelo Juiz adjunto. O que sucedeu no presente caso.

Pelo que, improcede o recurso nesta parte.

3. O arguido foi condenado em diversos crimes de abuso sexual de crianças (um total de 26 crimes), tendo sido palicas penas concretas (algumas) inferiores a 8 anos de prisão e (outras) inferiores a 5 anos de prisão; somente a pena única é superior a 8 anos de prisão. A decisão foi confirmada no Tribunal da Relação, que julgou improcedente o recurso interposto.

Ora, tendo em conta o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, onde se impede a possibilidade de recurso das decisões do Tribunal da Relação que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, e o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que, confirmando decisão anterior, apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, segundo a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações relativas a cada crime, do Tribunal da Relação, quando seja aplicada pena não superior a 5 anos de prisão; e das condenações em pena de prisão superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão, quando haja conformidade com o decidido na 1.ª instância.

Dito de outro modo: apenas é admissível o recurso de uma decisão do Tribunal da Relação relativamente aos crimes aos quais se tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos e não superior a 8 anos quando não haja “dupla conforme”, e de uma decisão da Relação relativamente a todos os crimes cuja pena seja superior 8 anos, ainda que haja “dupla conforme”.

Como vem sendo jurisprudência desta instância, em caso de concurso de crimes, e havendo dupla conforme, o Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer de tudo o referente aos crimes parcelares punidos com pena de prisão inferior a 8 anos, apenas podendo conhecer do respeitante aos crimes que concretamente tenham sido punidos com pena de prisão superior a 8 anos, e do respeitante ao concurso de crimes.

Ora, tendo por base a jurisprudência deste Supremo Tribunal, no que se refere ao arguido, as penas concretas, de cada um dos crimes imputados, que lhe foram aplicadas em 1.ª instância e depois confirmadas pelo Tribunal da Relação, são todas inferiores a 8 anos de prisão, pelo que é inadmissível o recurso, da parte da decisão relativa a cada um dos crimes em particular, para este Supremo Tribunal, por força do disposto nos arts. 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. f), ambos do CPP. Além disso, não houve qualquer alteração da matéria de facto provada (que se manteve inalterada pelo Tribunal da Relação ….), nem da qualificação jurídica, nem houve qualquer alteração dos pressupostos a partir dos quais se determinaram as penas a aplicar.

Assim sendo, não é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, relativamente aos crimes de abuso sexual de criança pelos quais o arguido foi condenado e, consequentemente, são insuscetíveis de recurso todas as questões referentes a estes, ou seja, as nulidades invocadas quanto à impugnação da matéria de facto; estas, a existirem, deviam ter sido arguidas, no prazo de 10 dias, junto do Tribunal da Relação, nos termos dos arts. 120.º, 380.º e 105.º, n.º 1, do CPP.

Além disto, o recorrente alega, referindo-se à parte da decisão irrecorrível para este Supremo Tribunal, que o Tribunal a quo violou o princípio das garantias de defesa, consagrado no art. 32.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o princípio da proporcionalidade, consagrado no art. 18.º, da CRP, bem como o direito de acesso à justiça (art. 20.º, da CRP). Ora, sendo a decisão irrecorrível, o recurso deveria ter sido interposto para o Tribunal Constitucional [nos termos dos arts. 70.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15.11 (e alterações posteriores)] no prazo de 10 dias (estabelecido no art. 75.º, nº 1, da mesma lei) a partir da notificação do acórdão do Tribunal da Relação.

De referir ainda que o arguido alega ”contradição insanável no acórdão proferido pela primeira instância” (cf. motivação) questão “que foi alegada em sede de recurso para a relação”. Porém, afirma que o erro-vício alegado não terá sido conhecido pelo Tribunal da Relação, assim havendo uma nulidade nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP. Ora, se assim é, tal nulidade, à semelhança do exposto supra, devia ter sido arguida em sede de Tribunal da Relação, sendo agora inadmissível o recurso.

Além disto, e no que respeita aos erros-vício, previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, da decisão de 1.ª instância, a problemática foi conhecida pelo Tribunal da Relação, tendo sido concluído que “não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal” (cf. fls. 1204).  Contudo, para o Supremo Tribunal de Justiça recorre-se da decisão do Tribunal da Relação e não da decisão de 1.ª instância, pelo que se o erro-vício é imputado a esta decisão, não cabe agora conhecer em sede de Supremo Tribunal de Justiça.

 Acresce que, da decisão do Tribunal da Relação ….. agora sob escrutínio, na sua fundamentação constante de fls. 1190 e ss não se vislumbra, a partir do texto da decisão recorrida, qualquer um dos vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, tanto mais que o ponto referido não foi sequer objeto de análise ou fundamentação na decisão recorrida.

4. A determinação da pena tem como limite máximo o admitido pela culpa de cada arguido — a culpa de cada um é individualizável e insuscetível de equiparação entre os diversos arguidos, pois estes participam de forma diferente e de modo diverso nos diferentes factos praticados, assim revelando uma atitude particular contra o direito —, e como limite mínimo o determinado pelas exigências de prevenção geral impostas pela comunidade de acordo com os crimes praticados; será dentro destas balizas que em função das exigências de prevenção especial de cada arguido que se determinará a medida concreta da pena, necessariamente diferente consoante as distintas exigências que cada um impõe.

A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º, do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade da pessoa do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever-se-á ter em conta todas as circunstâncias que depuseram a favor ou contra o arguido, nomeadamente os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenham sido tomadas em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).

Acresce que o nosso sistema de reações criminais é claramente caracterizado por uma preferência pelas penas não privativas da liberdade ─ cf. art. 70.º do CP ─ devendo o tribunal dar primazia a estas quanto se afigurem bastantes para que sejam cumpridas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Mas, a determinação da medida da pena, em sede de concurso de crimes, apresenta especificidades relativamente aos critérios gerais do art. 71.º do CP.

Nos casos de concurso de crimes (e em obediência ao princípio constitucional da legalidade criminal, a pena única apenas pode ser aplicada caso estejam verificados os seus pressupostos de aplicação, isto é, caso estejamos perante uma situação de concurso efetivo de crimes), a determinação da pena única conjunta tem que obedecer (para além daqueles critérios gerais) aos critérios específicos determinados no art. 77.º, do CP. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem, todavia, exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).

A partir desta moldura, é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º, ambos do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1, do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados, deve proceder se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique”. Na avaliação da personalidade, ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade, sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever-se-á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva).

São estes os critérios legais estabelecidos para a determinação da pena e, em particular, para a determinação da pena única conjunta.

Nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP, a pena única conjunta, a aplicar a um caso de concurso crimes, é determinada a partir de uma moldura que tem como limite mínimo “a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”, e como limite máximo “a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Pelo que as penas concretas aplicadas a cada crime constituem os elementos a partir das quais se determina aquela moldura.

Nestes termos, no presente caso, a moldura do concurso de crimes a partir da qual deve ser determinada a pena concreta a aplicar tem como limite mínimo 6 anos de prisão (a pena concreta mais elevada) de prisão, e como limite máximo 15 anos (correspondente ao limite máximo permitido pelo disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).

Vejamos da adequação, proporcionalidade e necessidade da pena única aplicada, não sem antes referir que, nos termos do art. 370.º, n.º 1, do CPP, sendo o relatório social um elemento a considerar em sede de determinação da medida da pena, o “tribunal pode (...) solicitar a elaboração do relatório” “quando o considerar necessário à correcta determinação da sanção”. Dada a não obrigatoriedade daquele pedido (segundo o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 182/99, esta interpretação do art. 370.º, n.º 1, do CPP, não constitui uma interpretação contra a Constituição), não podemos considerar existir qualquer nulidade. Na verdade, uma vez que o texto do acórdão recorrido contém elementos para avaliar as condições pessoais e familiares do arguido, e para aferir as exigências de prevenção geral e especial inerentes ao caso, consideramos que existem as necessárias informações para fundamentar a aplicação da pena atribuída, como aconteceu, pelo que improcede a arguição da nulidade (em sentido similar, cf. acórdão do STJ, de 05.09.2007, proc. n.º 06P4798, relator: Cons. Sousa Fonte — «independentemente de se considerar ser ou não ser obrigatória a requisição daquele relatório social ou daquela informação dos serviços de reinserção social para aplicação de uma pena de prisão efectiva (..) – a letra da lei sugere francamente que se trata de uma faculdade do tribunal e o Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 182/99, Pº nº 759/98, de 22.03.99, já decidiu não ser inconstitucional a norma do nº 1 do artº 370º do CPP quando interpretada no sentido de não ser obrigatória essa solicitação – entendemos, na esteira da jurisprudência mais comum do Supremo Tribunal de Justiça, que a falta desse relatório ou informação ou a falta de produção de qualquer outra prova suplementar para determinação da espécie e da medida da pena a aplicar poderá justificar o reenvio do processo para novo julgamento, quando o resultado for a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos dos arts. 410º, nº 2-a) e 426º, ambos do CPP (…)» — o que de todo não sucede nos presentes autos dado que, do texto da decisão recorrida, não se verifica qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

O arguido vem condenado pela prática de um número elevados de crimes contra a autodeterminação sexual de menores, praticados ao longo de 2014, 2015, 2016, 2017, e 2018 (cf. factos provados 4 a 16), tendo atuado dolosamente (cf. factos provados 18 a 22). Anteriormente, apenas tinha sido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em concurso com um crime de condução em estado de embriaguez (cf. facto provado 23).

Analisando globalmente os factos, não podemos deixar de concluir que estamos perante uma situação de pluriocasionalidade, não se revelando ainda elementos que nos permitam concluir por uma carreira criminosa. Porém, as exigências de prevenção geral, atento o número de crimes praticados, são significativas, assim como as exigências de prevenção especial, uma vez que o arguido, ainda antes da reclusão aumentou os seus hábitos de consumo abusivo de álcool, para além de um “relacionamento familiar disfuncional” (cf. facto provado 24). Além disto, o arguido evidencia “muita dificuldade em analisar as vicissitudes da vida familiar, tendendo a negar problemas e a distanciar-se de conflitos”. Porém, há que salientar que “a ligação do arguido com as enteadas, ao longo dos oito anos prévios à data da prisão, foi avaliada como positiva, considerando que foi sempre colaborante à sua presença e as mesmas por si não constituíam fator de desarmonia conjugal.” Em meio prisional trabalha e não se conhecem infrações disciplinares.

Ora, a amplitude dos crimes e a ausência de adequação sistemática, ao longo de vários anos, às regras comunitárias e impostas pela ordem jurídica, impunham uma pena acima da metade da moldura penal.  Todavia, as exigências de prevenção geral são satisfeitas com uma pena ligeiramente abaixo da metade. Articulando estas exigências com as exigências de prevenção especial, consideramos como adequada a pena de 15 anos de prisão que foi aplicada.

Atenta a pena concreta aplicada, não há possibilidade de aplicação de uma qualquer pena de substituição, dado que a pena é superior a 5 anos de prisão.

III

Conclusão

Nos termos expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.

Custas pelo recorrente com 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de março de 2021


Helena Moniz (Relatora)

António Clemente Lima