Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04P1266
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
MAGISTRADO
JUIZ
PENA DE MULTA
MEDIDA DA PENA
FORO ESPECIAL
FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA
Nº do Documento: SJ200406030012665
Data do Acordão: 06/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 101/03
Data: 12/12/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : I - Resulta com meridiana clareza do disposto no artigo 348º, nº. 1, a), do Código Penal, que basta, para tipificação do crime de desobediência, que a ordem seja legal, regularmente comunicada, emanada de autoridade competente, e «uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples». Já na alínea b), se estatui a exigência de «na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fazerem a correspondente cominação».
II - Em ambos os casos existe um dever qualificado de obedecer, com a diferença de que, no primeiro [alínea a)], a imposição da norma de conduta é feita por lei geral e abstracta, anterior à prática do facto; enquanto no segundo, a norma de conduta penalmente relevante resulta de um acto de vontade da autoridade ou do funcionário, contemporâneo da actuação do agente. Portanto, se faz sentido a exigência de cominação expressa neste segundo caso, não o fará, assim, no primeiro, em que a norma de conduta está tipificada na lei, com carácter geral e abstracto e a sua ignorância não pode ser triunfantemente invocada, ao menos para efeitos de afastar a incriminação.
III - O juiz desligado do serviço por efeitos de aposentação/jubilação mantém o foro especial, conferido pelo artigo 15º, nº. 2, do EMJ.
IV - Aliás, tendo o julgamento sido iniciado enquanto o arguido mantinha a qualidade de juiz, seriam irrelevantes, para efeito de determinação da competência do tribunal, as modificações de facto posteriormente verificadas.
V - A pena de multa, se não quer ser um andrajoso simulacro de punição, tem de ter como efeito o causar ao arguido, pelo menos, algum desconforto se não, mesmo, um sacrifício económico palpável.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. O Ministério Público imputou ao arguido HPA, juiz de direito devidamente identificado, factos integradores do crime de desobediência p. e p. nas disposições conjugadas do arts. 158º, nº. 1, al. a), e nº. 3 do Código da Estrada, com referência ao art. 348º, nº. 1, al. a), e art. 69º, nº. 1, al. c), ambos do Cód. Penal, e requereu, nos termos do art. 392º, nº. 1 do C.P.P., e em processo sumaríssimo, aplicação da pena de 90 (noventa) dias de multa à razão de 25 (vinte e cinco) Euros por dia e, na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis por um período de 6 (seis) meses.
Foi proferido despacho que declarou admissível o processo sumaríssimo; o requerimento fundado; e, a proposta aceitável no contexto dos factos.
Notificado pessoalmente o arguido, veio tempestivamente rejeitar o requerimento do Ministério Público e pugnar pela distribuição dos autos para julgamento na forma normal.
Em face de tal posição foi proferido despacho mandando seguir o processo na forma comum nos termos do art. 398º do C.P.P.
Procedeu-se então à audiência de discussão e julgamento em 1ª instância pelo Tribunal da Relação de Lisboa, com gravação da prova oralmente produzida, tendo a final sido proferido acórdão em que, além do mais, e na procedência da acusação pública, foi decidido condenar o arguido pela prática em autoria material de 1 (um) crime de desobediência p. e p. pelas disposições conjugadas do art. 158º, nº. 1, a), e nº. 3 do Código da Estrada, com referência ao art. 348º, nº. 1, a), e art. 69º, nº. 1, c), ambos do Código Penal: na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de Euros 25, 00 (vinte e cinco Euros) no total global de Euros 1500,00 (mil e quinhentos Euros) e ainda na pena acessória de 5 (cinco) meses de proibição de conduzir veículos automóveis.

Inconformado, recorre o arguido ao Supremo Tribunal de Justiça, assim delimitando o objecto do seu recurso:
I- Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (artigo 204º da Constituição)
II- A punição por crime de desobediência, prevista no artigo 158º do Código da Estrada, na redacção do artigo 4º do Decreto-Lei nº. 265-A/2001, de 28 de Setembro, foi editada sem a autorização legislativa, exigida na alínea a) do nº. 1 do artigo 198º da Constituição, pelo que se trata de norma organicamente inconstitucional.
III- Deve ser recusada a sua aplicação no caso concreto.
IV- A republicação do Código da Estrada, em anexo ao Decreto-Lei nº. 265-A/2001, de 28 de Setembro não se limitou a republicar propriamente o Código da Estrada. Alterou o normativo legal que pune como desobediência a conduta de recusa prevista no seu artigo 158º.
V- Ainda que se tenha por não inconstitucional a referida norma, a verdade é que a exigência do recorrente em que ficasse consignada a hora da fiscalização e da condução é inteiramente legitima, visto que entre os dois momentos decorreu mais de uma hora.
VI- Por outro lado, o recorrente não se recusou a ser fiscalizado. Propôs-se sê-lo com auto elaborado pelos agentes, onde se consignasse a hora da condução e da fiscalização.
VII- É facto público e notório que uma bebida alcoólica entra na circulação sanguínea cerca de uma hora depois de ingerida.
VIII-A recusa da polícia em proceder desse modo é ilegítima.
IX- Os agentes da polícia nunca deram uma ordem sob pena de desobediência. Apenas tentaram influenciar e persuadir o recorrente a fazer o teste, sem referência às horas da condução e do teste.
X- Pelo que o Tribunal recorrido não podia concluir como concluiu que um convite corresponde a uma ordem. Há erro de interpretação do estatuído no nº. 1 do artigo 348º do Código Penal Português, que exige uma ordem regularmente comunicada e inequívoca, para que se possa considerar uma conduta contrária a essa ordem como desobediência.
XI- Os depoimentos dos agentes RMOS, JMPC e MAC não permitem a conclusão do Tribunal quanto à emissão da autoria de uma ordem para realização do teste.
Empurram uns para os outros, nenhum esclarecendo quem deu a ordem, que efectivamente não existiu.
XII- A testemunha ATJCD esclareceu de modo inequívoco que o recorrente concordou com o teste desde que fizesse referência à horas de condução e da sua realização.
XIII- Não se tratou de uma recusa pura e simples, como concluiu o Tribunal recorrido, recusa que, aliás, equiparou a mero convite.
XIV- A matéria de facto é insuficiente. Não foi esclarecida a questão do intervalo de 14 números pedida na contestação, que se destinava aprovar a falta de isenção da actuação policial.
XV- Igualmente se omitiu o esclarecimento da situação económica e condição social do recorrente, com vista a uma graduação equilibrada da pena, tendo em conta as despesas do agregado familiar, bem como os seus antecedentes contra-ordenacionais, desse modo se violando o regime da determinação da medida da pena, previsto no artigo 71º do Código Penal Português.
XVI- A situação do recorrente e os seus antecedentes, ligados à idade, sem qualquer mácula criminal ou contra-ordenacional não justificam pena superior ao mínimo legal de 10 dias, nem inibição da faculdade de conduzir superior também ao mínimo de 1 mês.
XVII- Ao decidir-se de modo diverso foi violado o regime previsto no nº. 1 do artigo 47º e 71º, ambos do Código Penal.
XVIII- A inibição da faculdade de conduzir, com base na alínea c) do artigo 69º do Código Penal Português apresenta-se como um efeito automático da pena de desobediência, sem qualquer justificação factual concreta, individualizada no douto acórdão.
XIX- Fere a jurisprudência portuguesa sobre o tema dos efeitos automáticos das condenações e viola seguramente o regime do nº. 4 do artigo 30º da Constituição. Dito de modo mais técnico: A dimensão interpretativa da norma da alínea c) do artigo 69º do Código Penal feita pela douta decisão recorrida implica a sua inconstitucionalidade.
XX- Ainda que assim não fosse, há igualmente erro de interpretação e aplicação da referida norma, que exige no mínimo «grave violação» das regras de trânsito. Ora, a conduta do recorrente, ainda que não relevante, não constitui «grave violação» dessas regras, mas um ponto de vista, no mínimo, legítimo.
Termos em que:
1. Deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma do nº. 3 do artigo 158º do Código da Estrada, na redacção do artigo 4º do Decreto-Lei nº. 265-A/2001, de 28 de Setembro, por violação da reserva de lei prevista na alínea a) do nº. 1 do artigo 198º da Constituição, com as legais consequências.
2. Igualmente deve ser considerada inconstitucional a norma da alínea c) do artigo 69º do Código Penal Português, na medida em que viola o regime do nº. 4 do artigo 30º da Constituição, que proíbe a atribuição de efeitos automáticos a condenações penais.
3. Deve ser alterada a matéria de facto provada, por contradição da fundamentação, relativamente ao depoimento das testemunhas, assim como por erro notório na apreciação da prova.
Caso assim se não entenda,
4. Deve ser o julgamento anulado parcialmente, determinando-se a ampliação da matéria de facto de modo a permitir esclarecer os factos concretos e determinados justificativos da medida da pena, que merece ser reduzida ao mínimo legal e, em qualquer caso,
5. Deve o recorrente ser absolvido do pretenso crime de desobediência, por carência de ordem legal de conduta legítima, ou, formalmente, em caso de condenação, ser a pena reduzida ao mínimo legal, sem condenação acessória de inibição da faculdade de conduzir, ou ser esta também reduzida ao mínimo de um mês.
Assim se fará Justiça.

Ao que respondeu o MP junto do tribunal recorrido:
«I Questão prévia: impugnação da matéria de facto - rejeição do recurso ou convite ao aperfeiçoamento da motivação?
1º Conforme se constata da leitura da motivação do recurso sobre que nos cabe debruçarmo-nos, tendo em vista a resposta, verifica-se que o recorrente estruturou as suas conclusões em numeração romana a que se seguiu a expressão "termos em que", em numeração árabe, que se pode considerar um resumo das anteriores conclusões.
2º Por aí nos guiaremos para estruturar a nossa resposta e, nessa perspectiva, tendo em conta que se deverão abordar em primeiro lugar as questões que possam eventualmente obstaculizar à apreciação do recurso, começaremos por levantar a questão, que posta como o vai ser, será prévia, de saber se a motivação de recurso no que respeita à matéria de facto provada, que pretende pôr em causa, respeita os requisitos do art. 412º, nº. 3 do C.P.P.
3º Refere o recorrente, sem especificar com referência aos suportes magnéticos que existem, que a sentença recorrida está ferida do vício do erro notório na apreciação da prova.
4º Em parte alguma da motivação, das conclusões ou, ainda, do resumo das conclusões, faz o recorrente referência quer aos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e, menos ainda, às provas que imporiam decisão diversa, para além das referência genéricas tais como constam da conclusão IX -"Os agentes da polícia nunca deram uma ordem sob pena de desobediência. Apenas tentaram influenciar e persuadir o recorrente a fazer o teste ...".
5º Em parte alguma da sua motivação destaca o recorrente os segmentos dos depoimentos prestados que se pudessem considerar em dissonância com a matéria de facto dada como provada, não fazendo, também, qualquer referência, como lhe é exigido, aos suportes magnéticos onde tais supostas contradições haveriam de fundamentar-se.
6º Mais não faz o arguido/recorrente do que, tentando algo descoordenadamente referir partes (não concretamente especificadas, repetimos, e como tal, impossibilitando sequer a noção clara sobre se foi dito o que o recorrente pretende que foi dito) de depoimentos de testemunhas que, na sua opinião levariam a conclusão diversa daquela que foi tomada pelo Tribunal Colectivo.
7º O que o recorrente deveria fazer, se para tal tivesse fundamento, o que, obviamente não acontece, era indicar provas que impusessem decisão diversa e que não permitissem outra decisão, concretizando, procedendo à especificação e não a uma mera referência dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, sendo necessário precisar com clareza o(s) ponto(s) que se tem(têm) por erroneamente apurado(s).
8º Esta referida especificação das provas não se satisfaz com uma enumeração genérica de toda aprova e dos depoimentos das testemunhas. Haveria que ter sido feito, e não foi, um reporte com indicação das concretas provas que impõem decisão diversa; especificação dos suportes técnicos da prova documentada, com vista a facilitar a respectiva localização.
9º Se é verdade que alguma jurisprudência, nomeadamente da Relação de Lisboa que tem vindo a decidir que o imperfeito cumprimento do art. 412º, nº. 3 do C.P.P. importa a rejeição do recurso sobre matéria de facto - tendência esta que aplaudimos na medida que disciplina a matéria de recursos em que os arguidos estão patrocinados por mandatário judicial, pondo à disposição do tribunal de recurso identificando-as, isolando-as e tratando-as, as questões que em rigor constituirão o thema decidendum em matéria de facto - outra tem sido, tanto quanto nos é dado conhecer a opinião maioritariamente seguida por esse STJ que se tem inclinado para que há-de o tribunal convidar o recorrente a aperfeiçoar a sua peça de recurso.
10º Como já referimos, seria com agrado que veríamos a consagração da rejeição do recurso em matéria de facto face ao evidente incumprimento dos requisitos tabelados no art. 412º, nº. 3 do C.P.P., e nessa medida entendemos que deverá ser rejeitado o recurso no segmento em que põe em causa a decisão sobre matéria de facto.
II Da correcta fundamentação da matéria de facto inexistência de vícios do art. 410º .
11º Com alguma "água benta" também se pode seguir a posição, muito mais pragmática, de que, com um pequeno esforço de interpretação do texto em análise, se percebe quais os pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados.
12º Se se optar por esta posição é evidente que o arguido/recorrente não tem qualquer razão, o recurso não merece provimento e mais não se pretende do que adiar uma condenação isenta de máculas.
13º A verdade é que a matéria que indiciariamente resultava em abundância do inquérito foi confirmada, ponto por ponto, ao mais pequeno pormenor, com toda a minúcia, no julgamento e da mesma a sentença deu conta sem que qualquer crítica se possa fazer à lógica descrição da matéria de facto provada e não provada bem como a necessária exposição sobre o exame crítico das provas e toda a fundamentação relevante no que respeita à escolha e medida da pena.
14º Vale isto por dizer que improcederá, também a alegada nulidade por insuficiência da matéria de facto provada para a decisão no que respeita ao montante da multa. A verdade é que o montante da multa, dado o conhecido estatuto económico do arguido, não necessitaria de qualquer outra averiguação até porque, tenha o arguido os encargos familiares que tiver, o montante diário da multa a merecer crítica terá como fundamento alguma benevolência que o tribunal entendeu ter.
15º Esse apontado vício - art. 410º, nº. 2, al. a), consiste na insuficiência de facto para a decisão de direito, tornando-se necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. É necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença.
16º É óbvio que não resulta tal vício como sendo aplicável à sentença sob recurso.
17º Parece-nos pois cristalino que a sentença não merece qualquer crítica quer do ponto de vista da fundamentação de facto, quer do ponto de vista da fundamentação de direito e outra não poderia ter sido a decisão que não a de condenar o arguido/recorrente pelo menos nos moldes em que o fez.
III Das invocadas inconstitucionalidades.
18º Neste segmento o recurso em apreço é manifestamente improcedente e arriscamos mesmo propor a sua rejeição nos termos do art. 420º do C.P.Penal.
19º Muito sucintamente diremos que a alteração ao art. 158º do C.Estrada da versão originária para a versão do DL nº. 265-A/2001 está plenamente contida na autorização legislativa mencionada no preâmbulo do diploma.
20º Não é correcto dizer-se que a aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir veículos automóveis é inconstitucional por violação do art. 30º, nº. 4 da Constituição.
21º A concreta pena acessória foi aplicada pelo tribunal competente, após a concreta ponderação dos princípios da culpa e da proporcionalidade e no estrito cumprimento da lei que não só permite como determina que essa pena acessória seja aplicada, até porque é essa mesma pena acessória a que o legislador entende melhor satisfazer as necessidades de prevenção geral, numa sociedade onde é comum e grave o desprezo generalizado pelo cumprimento das normas estradais.
IV Conclusão:
A sentença sob recurso não está ferida de qualquer dos alegados vícios nem são inconstitucionais as normas que judiciosamente aplicou e, ainda que se entenda ser de conhecer do recurso na sua plenitude, sempre deverá o mesmo ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.»

Subidos os autos, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto promoveu se convidasse o recorrente a corrigir motivação nos termos dos nºs. 3 e 4 do artigo 412º do CPP.
Mas outro foi o entendimento do relator que ordenou o prosseguimento dos autos para audiência.
Entretanto, porém, o arguido, em requerimento posteriormente apresentado, apoiando-se em jurisprudência deste Supremo Tribunal pretensamente aplicável ao seu caso - «Assento» nº. 2/2003, publicado no DR I Série-A, de 5/2/02 - alega que «na última sessão de julgamento do Tribunal da Relação de Lisboa, que decorreu no dia 12 de Dezembro de 2003, o ora recorrente informou verbalmente o colectivo que havia sido desligado do serviço, por despacho da Caixa Geral de Aposentações do dia 2 daquele mês, embora ainda não lhe comunicado oficialmente», acrescentando que aquele tribunal «não retirou qualquer consequência dessa situação, procedendo à leitura do acórdão», entende que aquele tribunal era incompetente em razão da matéria e da hierarquia para continuar a julgar o requerente, sendo competente o tribunal da 1ª instância, assim se tendo violado o princípio constitucional do princípio do juiz natural, ínsito no artigo 15º, nº. 2, da Constituição e o próprio princípio de igualdade, consagrado no artigo 13º, nº. 2, da mesma Lei Fundamental.
Junta documento comprovativo da concessão, em 2/12/2003, do estatuto de aposentação e do despacho de 15/12/2003, do CSM que o desligou do serviço para efeitos de aposentação/jubilação - publicado no DR II Série, nº. 3, de 5/1/2004, págs. 62.
Aliás, aproveita para lembrar ter requerido a produção de alegações por escrito.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, invocando o disposto no artigo 67º, nº. 2, do EMJ, e, assim, que os juízes jubilados mantêm o estatuto anterior, considera improcedente aquela alegação da incompetência do Tribunal.
Fixado prazo para as requeridas alegações por escrito, vieram aquelas a ser produzidas, tendo, em suma, o Ministério Público, defendido que o recorrente deveria ser notificado para corrigir as suas conclusões, tendo em vista a satisfação do disposto no artigo 412º, nºs. 3 e 4, do CPP, tendo em vista o recurso da matéria de facto, cuja pertinência defende.
Invoca a existência de vício de insuficiência de tal matéria por omissa quanto à situação económica do recorrente, nessa medida dando razão ao recorrente.
Manifesta-se pela improcedência das demais questões suscitadas no recurso.
Por seu lado o arguido reitera e desenvolve os pontos de vista que defende na sua motivação.

As questões sobre que importa tomar partido, derivadas da motivação - que fixa o objecto do recurso, e, não, as alegações - são essencialmente estas:
1. A questão prévia ora aditada da (in)competência da Relação - e por extensão do Supremo - para intervir no julgamento.
2. A questão prévia suscitada pelo relator, de saber se o recurso da matéria de facto é admissível, tendo em conta que o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de direito, sem prejuízo do conhecimento dos vícios a que alude o artigo 410º, nº. 2, do CPP - arts. 432º, a), e 434º do mesmo Código.
3. Os alegados vícios da matéria de facto (insuficiência, erro notório e contradição).
4. A inconstitucionalidade das normas referidas pelo recorrente - arts. 158º, nº. 3, do Código da Estrada e 69º, c), do Código Penal.
5. A nulidade da decisão recorrida por insuficiente fundamentação.
6. A qualificação dos factos, mormente quanto ao preenchimento do crime de desobediência.
7. A medida da pena.

2. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.

Vejamos antes de mais os factos dados como provados:
1 - Na noite de 14 para 15 de Agosto de 2002, cerca das 00H30, na Rua Rodrigo da Fonseca, frente ao Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula TD, sua propriedade, sem que fizesse uso do cinto de segurança, pelo que foi interceptado por dois agentes da P.S.P. que, naquela área, efectuavam patrulhamento auto.
2 - Abordado pelos referidos agentes da P.S.P. o arguido apresentou a sua documentação pessoal e a relativa ao veículo automóvel que conduzia mas, solicitado a informar a sua profissão, recusou fazê-lo, dizendo: "Não sou obrigado a informar a minha profissão".
3 - Face ao comportamento do arguido, que se recusou a assinar os autos de contra-ordenação entretanto emitidos pelos agentes de autoridade por virtude da já referida condução sem uso de cinto de segurança, às pressões que o arguido utilizou no diálogo com os agentes da P.S.P. que efectuaram aquele acto de fiscalização de trânsito "Não estou isento, nem nunca vou usar cinto de segurança"; "Estou-me cagando para as multas, podes passar as multas que quiseres, que eu não pago; eu até faço colecção de multas e tudo, tenho aqui uma pasta cheia delas", "já te disse que podes passar as multas que quiseres, que eu não pago nenhuma"; "Esta é a policia que temos, ando aqui para ver se a gaja me faz um broche; sabe o que é um broche? É mamar no caralho; não sei se é proibido fazer broches, antigamente era, ia-se dormir ao chelindró, vocês têm pouca prática de Policia; de trânsito percebo eu; já me convidaram para dar aulas de trânsito na Escola Prática de Policia; quero ver os dois no Tribunal para perderem um dia e se faltarem vos descontarem no ordenado e para irem trabalhar como os pretos" e, também, ao facto de o referido arguido exalara acentuado hálito a álcool.
4 - Foi solicitada a comparência, no local, de uma viatura daquela corporação, o que veio a acontecer cerca da 1h 25, viatura essa equipada com o aparelho "Lion Alcometer SD 400", com o nº. 24335, afim de se proceder ao teste de despistagem de álcool no sangue através de ar expirado.
5 - Preparado que foi o aparelho e convidado o arguido a efectuar os procedimentos necessários à efectivação do referido teste o arguido recusou-se a fazê-lo, o que aconteceu reiteradamente, apesar de ter sido informado das consequências da sua conduta.
6 - Perante os factos praticados pelo arguido foi o mesmo detido e conduzido à 21ª Esquadra da P.S.P. de Lisboa, tendo sido tal detenção comunicada por fax ao Magistrado do M.P. de turno no T.P.I.C., o que aconteceu à 1h 50.
7 - Posteriormente a esta comunicação, e só então, é que o arguido se identificou como sendo juiz de direito, exibindo o Cartão de Identificação nº. 291, emitido pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o que determinou a imediata libertação do arguido, conforme auto de libertação lavrado às 2h 45 e comunicado por fax ao Ministério Público de turno junto do T.P.I.C. às 2h 57.
8 - O arguido tinha perfeito conhecimento de que estava obrigado a submeter-se a teste de pesquisa de álcool no sangue e que, não o fazendo, como não fez, desobedecia a uma ordem legitima que lhe fora regularmente comunicada pela autoridade para a mesma competente.
9 - O arguido agiu da forma atrás descrita de vontade livre e consciente e bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
10 - O arguido confessou parcialmente os factos admitindo que foi interceptado pelos agentes policiais embora em hora e circunstâncias deferentes, e que, se dispôs a fazer o teste de despistagem de álcool no sangue através do ar expirado desde que, ficasse consignado no talão de saída de aparelho a hora a que era efectuado.
11- À data dos factos, o arguido exercia funções de Juiz de Direito no Tribunal Tributário de 1ª instância de Leiria, ocupando actualmente o cargo de Juiz de Circulo do Tribunal de Vila Franca de Xira.
12 - Do C.R.C. do arguido nada consta.

Factos não provados
Não provaram quaisquer outros factos concretos que tenham relevância para a decisão da causa e designadamente:
- Não se provou que o arguido foi abordado pelos agentes da P.S.P. à 1h 00;
- Da contestação não se provaram os que contrariam a matéria que foi dada como provada, para além de que consta no nº. 10 da matéria apurada.
- Da discussão da causa, em audiência de julgamento não se qualquer outro facto com relevância para a integração jurídico-criminal.

Motivação da decisão fáctica
«A convicção de Tribunal no que respeita à dinâmica dos factos relativos à abordagem policial do arguido e ao desenrolar da materialidade provada assentou na conjugação e análise critica das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento, a saber:
- Nas declarações do arguido na forma confessória nos termos constantes de facto provado nº. 10. Sendo que quanto aos factos integrados de crime de desobediência, o arguido negou os factos, afirmando não se ter recusado a fazer o teste de despistagem da álcool no sangue através de ar expirado, comunicando aos agentes policiais que o faria desde que figurasse no talão da máquina a hora a que era efectuado, pois havia já decorrido cerca de uma hora desde a abordagem policial. Argumentando que tendo jantado com um grande amigo e bebido vinho, o resultado do teste seria muito mais gravoso, pelo tempo entretanto decorrido, de que, o que teria resultado, se tivesse sido feito, naquele momento, em que foi abordado.
- Nos depoimentos das testemunhas RMOS e JLLJ que relataram de forma coerente, terem visto o arguido a conduzir sem cinto de segurança, antes da abordagem que lhe fizeram em consequência desse facto. Na abordagem as expressões proferidas pelo arguido e as diversas autuações que lhe fizeram, o que fez com que os ânimos estivessem exaltados. Solicitaram, a identificação do arguido, sem sucesso e que, fizesse o teste de despistagem de álcool no sangue através de ar expirado, ao que o mesmo se recusou. A testemunha JLLJ afirmou ter sido o agente JMPC a dizer ao arguido para soprar no balão, e que, o oficial que o acompanhou ao local advertiu o arguido de que a sua recusa a soprar no balão o faria incorrer num crime de desobediência. Mas que esta advertência não consta do auto de noticia, por não ter sido feita nem pelo agente autuante, nem pelo agente testemunha, e sim, pelo chefe de dia.
- No depoimento da testemunha JMPC que afirmou ter sido a pessoa que juntamente com o chefe foi ao local em que se encontravam o arguido e os agentes policiais RMOS e JLLJ, que transportava o aparelho "Drager" na mão e que o arguido lhe disse que não soprava. E então lhe disse que incorreria em crime de desobediência se não soprasse, e ele não soprou.
- No depoimento da testemunha MAC - Chefe da P.S.P. - que afirmou ter-se deslocado ao local com o agente JMPC e aí chegados o mandou fazer o teste, ficando dentro do veículo. O agente JMPC veio junto de si dizendo que o cidadão se recusava a fazer o teste, tendo-lhe ordenado que insistisse para que fosse feito. Porém, perante nova recusa saiu do carro, dirigiu-se ao cidadão e disse-lhe que ele cometeria um crime de desobediência se não fizesse o teste, caso em que, teria de o deter. Tendo-lhe aquele respondido: "consigo não falo", em face do que, regressou ao carro e disse aos agentes que fizessem o serviço, na sequência de que, foi detido o arguido e conduzido à esquadra, onde foi feito o expediente relativo à detenção e posterior libertação logo que tomaram conhecimento da qualidade profissional quando se identificou. Após o que, mandou que conduzissem o arguido ao local em que ficara o seu veículo.
No depoimento da testemunha ATJCD que se encontrava junto do arguido no momento da intervenção dos agentes policiais e que ali permaneceu cerca de uma hora, por estes terem o seu Bilhete de Identidade. Confirmou que o arguido vinha sem cinto, relatou o clima tenso que se criou entre policias e arguido. E disse que o arguido não quis fazer o teste sem que ficasse registada a hora em que o mesmo estava a ser realizado, e que, só nessa condição o faria.
No teor dos documentos de fls. 13 a 19.
No C.R.C. do arguido.
Doc. de fls. 90.

Quanto aos factos não provados:
Ausência de prova convincente, uma vez que, excepcionando o que ficou provado, as declarações do arguido não tiveram idoneidade para contrariar toda a restante prova testemunhal, acima mencionada, que se revelou credível e sem contradições.
E, quanto à hora da abordagem, as declarações do arguido articulam-se neste âmbito com a documentação junta, no sentido em que, segundo as regras da experiência comum, não é lógico que lidos os documentos
- autos de contra-ordenação - de fls. 12 a 19 tivessem sido elaborados num período de sete minutos, começando à 1h e acabando à 1h 07, com troca de conversas havidas pelo meio. Sendo que os próprios policias que procederam à abordagem referiram cerca de uma hora e não uma hora ou após uma hora.»
Aqui chegados, cumpre conhecer das sumariadas questões de direito.

1- Questão prévia I - (in)competência do tribunal
O arguido, como se viu, encontra-se desligado do serviço para efeitos de aposentação/jubilação, por despacho do CSM de 15/12/2003, publicado no DR de 5/1/2004.
Tal significa que só cessou as respectivas funções exactamente naquele dia 5/1/2004, tal como resulta directamente do disposto no artigo 70º, nº. 1, b), do EMJ.
Logo, aquando da efectivação do julgamento, em 12/112/2003, era o Tribunal da Relação o competente para o julgamento, tal como impõe o artigo 15º, nº. 2, do mesmo Estatuto.
E tal competência não pode agora ser posta em causa, sabido que é que a alteração dos factores atributivos da competência no decurso da causa, mormente os pressupostos de facto, é em regra, irrelevante, sobretudo se tal alteração for no sentido de retirar ao tribunal competente a competência de que dispunha aquando da introdução do feito em juízo. (1).
Até porque, a ser de outro modo, ficaria, em certa medida, na disponibilidade do arguido a possibilidade de por em causa o princípio constitucional ínsito no artigo 32º, nº. 9, da Constituição, segundo o qual, nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
Daí a improcedência manifesta da excepção invocada.
Ainda que assim não fosse, porém, sempre a arguição de incompetência improcederia, já que, se é certo que o Acórdão deste Supremo Tribunal, nº. 2/2003, de 19-02-2003 para fixação de jurisprudência, publicado no D.R. I-A, nº. 95, de 23-04-2003, fixou a orientação jurisprudencial segundo a qual «Compete ao tribunal judicial de comarca a instrução e julgamento de processo crime em que o arguido à data dos factos fosse juiz de direito, e este haja sido, entretanto, condenado disciplinarmente em pena de aposentação compulsiva, cuja execução não tenha sido declarada suspensa em recurso contencioso, entretanto interposto, nos termos dos artigos 106º e 170º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei nº. 21/85, de 30 de Julho», também o é que o arguido não foi objecto de pena disciplinar de aposentação compulsiva - única situação a que o acórdão uniformizador citado visou dar resposta - antes e só desligado do serviço para efeitos de aposentação/jubilação.
Ora, enquanto o juiz objecto daquela pena disciplinar, se vê imediatamente desligado do serviço e concomitantemente perde «os direitos e regalias conferidos por este Estatuto [EMJ]» - art. 106º do EMJ - o mesmo não sucede quando, como no caso, o juiz é apenas desligado do serviço para efeitos de aposentação/jubilação, e que, ao invés, e como estatui expressamente o artigo 67º, nº. 2, do mesmo diploma legal, continua vinculado aos deveres estatutários e ligado ao tribunal de que fazia parte, goza os títulos, honras, regalias e imunidades correspondentes à sua categoria.
Claro que nos termos do disposto no nº. 3 do artigo ora citado, o magistrado pode renunciar a esse estatuto.
Mas, por um lado, não consta que uma tal renúncia tenha sido já deferida pelo CSM e, por outro, sempre haveria de concluir-se, tal como acima ficou exposto, que para o efeito de retirar a competência do tribunal recorrido, esse facto seria irrelevante.
A situação do juiz jubilado não é pois equivalente ao juiz punido e compulsivamente aposentado, não havendo qualquer ofensa ao recorrente ante a discriminação positiva de que é alvo perante este, sendo mesmo intuitivas as razões por que num caso se justifica e noutro não, que um goze e outro não, do direito a foro especial. Basta atentar em que o magistrado jubilado não fica impedido de desempenhar, eventualmente, funções do seu múnus, enquanto o compulsivamente aposentado jamais o poderá fazer - art. 106º, citado.
Assim, não existe qualquer ofensa de princípios constitucionais, mormente do juiz natural ou sequer de igualdade - arts. 32º, nº. 9, e 13º, nº. 2, da Constituição.
Improcede esta primeira questão prévia.

2 - Questão prévia II - inadmissibilidade do recurso da matéria de facto para o Supremo Tribunal de Justiça
Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente, «das decisões das relações proferidas em primeira instância» - art. 432º, a), do Código de Processo Penal.
«Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs. 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito» - art. 434º do mesmo diploma.
No caso, como ficou dito, a decisão recorrida foi proferida pela relação em primeira instância, daí a sua recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça.
É que, tendo em conta a natureza do crime em equação, que é o do artigo 348º, nº. 1, a), do Código Penal em conjugação com o nº. 1, a) e 3, do Código da Estrada - a que corresponde, abstractamente, a pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias - em condições normais, o caso seria julgado em 1ª instância por juiz singular como imporia o artigo 16º, nº. 2, b), do Código de Processo Penal, e, em qualquer caso, nunca reclamaria a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de recurso ordinário, que se ficaria pelo decidido na relação - art. 400º, nº. 1, e), do mesmo Código.
Mas, não obstante a recorribilidade da decisão, o Supremo Tribunal de Justiça, tal como dispõe o artigo 432º do mesmo diploma adjectivo, não tem poderes de cognição que ultrapassem o reexame da matéria de direito, sem prejuízo, obviamente, do conhecimento oficioso dos vícios da matéria de facto a que alude o artigo 410º, nº. 2, do mesmo Código.
Portanto, o recurso da matéria de facto em tudo o que excede o conhecimento daqueles vícios, exorbita o alcance daquele artigo 432º.
É certo que com a Reforma de 1998 se pretendeu alargar o âmbito do recurso da matéria de facto, instituindo-se como regra «um recurso efectivo» em matéria de facto - ponto 16 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº. 157/VII.
Mas não deixou de preservar-se o Supremo Tribunal de Justiça como «tribunal que conhece apenas de direito» - ibidem.
No caso, o conhecimento dos vícios da matéria de facto, isto é o recurso de revista na sua forma alargada, constitui suficiente garantia daquele «efectivo recurso» em matéria de facto, tendo em conta, nomeadamente, que o recorrente já foi privilegiado diante do cidadão comum com o julgamento em 1ª instância por um colectivo de juízes - e não como seria a regra, por juiz singular - além de que não se trata de juízes de 1ª instância, como também seria a regra, antes, juízes especialmente qualificados para o julgamento, em suma, três juízes afectos a um tribunal superior.
Esta especial composição plural e a superior qualificação do colectivo do julgamento em 1ª instância, em confronto com a pequena gravidade abstracta do crime em causa, constitui garantia bastante do adequado julgamento da matéria de facto, pelo que, sem ofensa do direito ao recurso, consagrado, nomeadamente, no artigo 31º, nº. 2, da Constituição, se justifica e baste que a sindicância desse aspecto da decisão por banda do tribunal ad quem - in casu o Supremo Tribunal de Justiça, também chamado a título excepcional como se viu - se fique pela apreciação dos vícios resultantes da decisão recorrida nos termos do disposto no artigo 410º, nº. 2, do Código de Processo Penal.

Ainda que assim não fosse, porém, sempre seria de ter na devida consideração o que vem posto em relevo pelo Ministério Público junto do tribunal ora recorrido que, com razão, dá conta de que o recorrente não satisfaz as condições impostas pelo artigo 412º, nº. 3, do Código de Processo Penal para impugnar a matéria de facto, nomeadamente, «em parte alguma da motivação, das conclusões ou, ainda, do resumo das conclusões, faz referência, quer aos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e, menos ainda, às provas que imporiam decisão diversa, para além de referências genéricas tais como constam da conclusão IX - Os agentes da polícia nunca deram uma ordem sob pena de desobediência. Apenas tentaram influenciar e persuadir o recorrente a fazer o teste ...».
«Em parte alguma da sua motivação destaca o recorrente os segmentos dos depoimentos prestados que se pudessem considerar em dissonância com a matéria de facto dada como provada, não fazendo, também, qualquer referência, como lhe é exigido, aos suportes magnéticos onde tais supostas contradições haveriam de fundamentar-se.»
Poderia equacionar-se a hipótese de um «convite» à superação daqueles vícios, tendo em conta a protecção ao direito de defesa, e que se trata de recurso do arguido.
Mas, como se escreveu no Ac. TC. nº. 259/02, de 18/6/02, publicado no DR II Série, de 13/12/02, referindo-se à jurisprudência daquele mesmo Tribunal que apregoa a necessidade daquele «convite»:
«De qualquer modo, (...) fácil é verificar que essa jurisprudência não chegou a admitir um genérico direito do arguido ao aperfeiçoamento de uma peça processual por si apresentada.
Na verdade, tal jurisprudência censurou a inexistência de despacho de aperfeiçoamento quando, embora de modo deficiente ou incompleto, o arguido tivesse cumprido determinados ónus processuais, mas dela não pode retirar-se a conclusão de que o despacho de aperfeiçoamento serviria para facultar ao arguido um novo prazo para, pela primeira vez, impugnar a própria decisão proferida, ou mesmo indicar outros fundamentos de recurso. Dito de outro modo, considerou-se constitucionalmente desconforme a rejeição liminar de um recurso (portanto, sem prévio convite ao aperfeiçoamento) quando as conclusões da motivação faltassem, fossem em grande número ou ocupando muitas páginas, nelas se cumprisse deficientemente certos ónus ou se não procedesse a certas especificações, mas não chegou a afirmar-se, por exemplo, o direito do arguido a apresentar uma segunda motivação de recurso, quando na primeira não tivesse indicado os fundamentos do recurso, ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.»
E mais adiante:
«A jurisprudência do Tribunal Constitucional, tanto a relativa aos recursos penais (ou contra-ordenacionais) como a relativa aos recursos não penais, aponta no sentido da não inconstitucionalidade da interpretação perfilhada pelo tribunal ora recorrido e que é, lembre-se, a de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o assistente impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do nº. 3 e no nº. 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de indicação, se também da motivação do recurso não constar tal indicação.
Na verdade (...), as menções a que aludem as alíneas a), b) e c) do nº. 3 e o nº. 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal não traduzem um ónus de natureza puramente secundária ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão da matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre a matéria de facto.»

Já no mesmo sentido foi tirado o Acórdão nº. 140/03, de 10/3/04, do mesmo Tribunal, proferido no recurso nº. 565/03.
Ali se defendeu, na sequência do aresto acima parcialmente transcrito, que em casos como o dos autos, não está em causa apenas «uma certa insuficiência ou deficiência formal das conclusões apresentadas pelo arguido recorrente, isto é, relativa à forma de exposição ou condensação de uma impugnação que é, quanto ao mais, apreensível pela motivação do recurso - falta, essa, para a qual a rejeição liminar do recurso, sem oportunidade de correcção dos vícios formais detectados, constitui exigência desproporcionada. Antes a indicação exigida pela alínea b) do nº. 3 e pelo nº. 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal - repete-se das provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos - é imprescindível logo para delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto, e não um ónus meramente formal. O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto.
Importa, aliás, recordar, por um lado, que da jurisprudência do Tribunal Constitucional não pode retirar-se - nem da relativa aos recursos de natureza penal (ou contra-ordenacional), nem da que versou sobre recursos de natureza não penal - uma exigência constitucional geral de convite para aperfeiçoamento, sempre que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação, ou todos ou parte dos fundamentos possíveis da motivação (e que, portanto, o vício seja substancial, e não apenas formal). E ainda, por outro lado, que o legislador processual pode definir os requisitos adjectivos para o exercício do direito ao recurso, incluindo o cumprimento de certos ónus ou formalidades que não sejam desproporcionados e visem uma finalidade processualmente adequada, sem que tal definição viole o direito ao recurso constitucionalmente consagrado.»
E mais adiante:
«Não pode, pois, concluir-se que os princípios constitucionais do acesso ao direito e do direito ao recurso em matéria penal impliquem que ao recorrente tivesse sido facultada oportunidade para aperfeiçoar, em termos substanciais, a motivação do recurso deduzido quanto à matéria de facto, quando este não especificou as provas que impunham decisão diversa da recorrida, fazendo-o por referência aos suportes técnicos (antes se limitando, como no caso, a respigar partes de depoimentos, impugnado genericamente, (...) a matéria de facto provada».

Ora, se no caso, não são apenas as conclusões que são deficientes no que toca às exigências legais para impugnação da matéria de facto, mas a própria motivação não passa de um ataque genérico sem as menções legais adequadas, o «convite» não se destinaria a suprir uma mera deficiência formal das conclusões, antes, destinar-se-ia à reformulação dos próprios termos da motivação do recurso, o que, como se evidencia, para além de não exigido por qualquer princípio de proporcionalidade, vai para além do exigível pelo respeito do direito de defesa, uma vez que o arguido, assistido por defensor, não pode ser dispensado da observância das exigências processuais mínimas se quer exercer devidamente o seu direito ao recurso.
Por ambos os caminhos a solução é a mesma: é de rejeitar o recurso na vertente em que versa sobre a impugnação da matéria de facto em tudo o que vai para além do conhecimento dos vícios a que alude o artigo 410º, nº. 2, do Código de Processo Penal.

3 - Vícios da matéria de facto
Insuficiência
Alega o recorrente, em parte secundado pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, que a matéria de facto está viciada por insuficiência.
Na verdade, segundo as conclusões 14, 15 e 16, respectivamente, «Não foi esclarecida a questão do intervalo de 14 números pedida na contestação, que se destinava aprovar a falta de isenção da actuação policial», «Igualmente se omitiu o esclarecimento da situação económica e condição social do recorrente, com vista a uma graduação equilibrada da pena, tendo em conta as despesas do agregado familiar, bem como os seus antecedentes contra-ordenacionais, desse modo se violando o regime da determinação da medida da pena, previsto no artigo 71º do Código Penal Português.»
Salvo o devido respeito, não lhes assiste razão.
Como aqui reiteradamente tem sido decidido, o invocado vício apenas se verifica quando, não obstante não ter esgotado o thema probandum, o tribunal acaba por decidir, seja qual foro o sentido da decisão.
Mas no caso, como é bom de ver, esse thema - traçado pela acusação, com os subsídios proporcionados pela defesa do recorrente - foi convenientemente esgotado tal como se pode facilmente comprovar pelo confronto dos factos provados e não provados, pese embora o tribunal recorrido - com as responsabilidades inerentes às de um tribunal superior - melhor tivesse estado acaso se prestasse à enumeração individualizada dos factos não provados em vez da remissão algo genérica, para «os restantes factos».
De todo o modo, sendo uma imperfeição técnica, não se trata de vício que afecte a decisão, até porque é possível constatar que toda a matéria de facto foi apurada.
Porque assim, a circunstância de não terem logrado prova factos que ao recorrente interessavam não integra qualquer vício processual, mormente esse de insuficiência.
A questão de saber se os factos apurados preenchem ou não a previsão típica em que foram enquadrados, não é uma questão de facto, antes de qualificação jurídica ou de direito que terá o seu tratamento no local adequado, mas não em sede de matéria de facto, ainda que a pretexto de vícios que lhe sejam imputados.
Mesmo a situação económica e social do recorrente - juiz de direito com funções de juiz de círculo - resulta suficientemente dos factos apurados, sabido como é que, notoriamente, qualquer pessoa nas mesmas condições tem uma posição sócio-económica acima da média dos demais concidadãos.
Tal conclusão permitirá avaliar com suficiência, no momento oportuno, e independentemente da concreta situação familiar, se o quantitativo diário da multa e os dias de multa em que foi condenado foram ou não exagerados.
Não se verifica, assim o vício de insuficiência.

Erro notório
Erro notório é que resulta no espírito do homem comum ante a simples leitura do texto da decisão em causa.
A experiência dir-lhe-á, em tal caso, que o que o juiz deu como provado era de verificação impossível.
Da leitura do texto do acórdão recorrido não resulta qualquer situação deste tipo, nem, de resto, o recorrente o especifica nas conclusões da sua motivação.

Contradição
A contradição como vício da matéria de facto é um vício igualmente intrínseco da sentença que há-de resultar do texto da decisão recorrida, de tal forma que, lendo-o, logo o mesmo cidadão comum se dê conta que os fundamentos são contraditórios entre si, ou com a decisão tomada.
No caso, também não resulta dessa leitura a aparência, sequer, da invocada contradição.
Mesmo que alguma ou algumas testemunhas tivessem dito o contrário do que foi dado como provado, tal não configuraria o vício em causa, pois não é de apreciação da prova que se trata quando de fala na contradição insanável da fundamentação - um vício intrínseco do texto da decisão, repete-se - e não qualquer outra hipotética contradição, nomeadamente com as provas apresentadas em audiência.
Assim abrigada da existência de tais vícios - e nela outros não vislumbra o Supremo Tribunal de Justiça - há que ter a matéria de facto em causa como definitivamente adquirida.

4 - A alegada inconstitucionalidade orgânica dos arts. 158º, nº. 3, do Código da Estrada e material, na interpretação levada a cabo pelo tribunal recorrido, do artigo 69º, c), do Código Penal.
Esta questão já foi suscitada, quanto ao primeiro ponto, perante o tribunal recorrido que lhe deu a seguinte resposta:
«O arguido invoca a inconstitucionalidade orgânica do art. 158º do Código da Estrada, na redacção que lhe foi dada pelo art. 4º do DL nº. 265 - A/2001 de 28 de Setembro, argumentando, em síntese, que a Assembleia da República não legislou nem autorizou o Governo as emitir a norma em causa, que penaliza a recusa aí prevista como desobediência.
Porém, não lhe assiste razão, pois o Governo foi autorizado expressamente a proceder à revisão do Código da Estrada nos termos do art. 3º, al. a), da Lei 97/97 de 23.08, segundo diploma de autorização (neste sentido cfr. Ac. da Rel. do Porto de 03-07-02, no Proc. 336/01 em que é relator Esteves Marques).»
Não há razão para divergir deste entendimento.
Com efeito, no artigo 3º, d), da Lei nº. 97/97 - que autorizou o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada aprovado pelo Dec.-Lei nº. 114/94, de 3 de Maio - ficou aquele Órgão de Soberania autorizado a estabelecer «a punição como desobediência da recusa, por condutor ou outra pessoa interveniente em acidente de trânsito, em submeter-se aos exames legais para detecção dos estados de influenciado pelo álcool (...)».
Nos termos desta autorização, ficou, pois, o Governo autorizado a estabelecer a punição em causa relativa ao condutor - interveniente ou não em acidente de trânsito, condição, porém já exigida na autorização legislativa para qualquer outro interveniente não condutor, ante o claro exagero, em termos de compressão da liberdade cívica, que representaria a possibilidade de qualquer cidadão ainda que não condutor poder submetido a exame de alcoolemia, e, portanto, ser punida a sua recusa nos termos ali previstos, acaso não houvesse motivo suficientemente justificativo, como esse de intervenção em acidente de viação. Ao invés do que acontece com os condutores, que, por óbvias razões, intervenham ou não em acidente, sempre terão de estar disponíveis para o exame em causa, sob pena de desobediência, bem compreensível se o não fizerem.

No que toca à alegada inconstitucionalidade material da alínea c) do artigo 69º do Código Penal, alegadamente levada a cabo na decisão recorrida, por pretensa automaticidade da medida inibitória aplicada ligada à mera aplicação de uma sanção penal, também o recorrente carece de razão.
Com efeito, o tribunal recorrido, esteve longe de ligar a aplicação da medida e de determinação do seu quantum automaticamente à sanção penal.
Com efeito, ali se disse, a propósito, que «na determinação desta pena terão de ser considerados os ingredientes constantes do art. 71º do Cód. Penal acima descritos, tal como o foram para a pena principal, designadamente o grau de culpa e ilicitude, as necessidades de prevenção geral e especial e todas as demais circunstâncias concretamente apuradas que militem a favor e contra o arguido.
Perante o que se considera como adequada e proporcional a pena acessória de 5 (cinco) meses de proibição de conduzir veículos com motor.»
Não se verifica assim a apontada inconstitucionalidade na interpretação do dispositivo legal em causa.

5 - Insuficiente fundamentação [de facto] da sentença
Enfermaria o acórdão recorrido de nulidade (implicitamente invocada pelo recorrente), ao não conter a fundamentação bastante para fixação da medida da pena, mormente as condições sócio-económicas do recorrente.
Mas já se viu que, tendo em conta o facto notório - a dispensar alegação e prova (art. 514º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil) - de um juiz de direito ter posição sócio-económica acima da média (2), sendo certo que sendo o vencimento respectivo objecto de fixação legal publicitada, o tribunal recorrido tinha todos os elementos para dele conhecer.
Portanto, a suportar com suficiência - se com razão ou não, melhor se verá adiante - a conclusão a que chegou o tribunal quanto ao juízo sobre a medida da pena de multa que lhe aplicou.
Não se verifica a apontada nulidade do acórdão a reclamar, nomeadamente, qualquer ampliação da matéria de facto sobre esse ponto.

6 - A qualificação dos factos - crime de desobediência
Pretende o recorrente ser absolvido da prática do crime de desobediência, já que, em seu entendimento, os factos não são bastantes para o respectivo preenchimento, nomeadamente por não lhe ter sido dada ordem de proceder ao teste com a cominação expressa de «desobediência».
Não tem razão alguma.
Relembremos os factos atinentes:
«1 - Na noite de 14 para 15 de Agosto de 2002, cerca das 00H 30, na Rua Rodrigo da Fonseca, frente ao Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula TD, sua propriedade, sem que fizesse uso do cinto de segurança, pelo que foi interceptado por dois agentes da P.S.P. que, naquela área, efectuavam patrulhamento auto.
2 - Abordado pelos referidos agentes da P.S.P. o arguido apresentou a sua documentação pessoal e a relativa ao veículo automóvel que conduzia mas, solicitado a informar a sua profissão, recusou fazê-lo, dizendo: "Não sou obrigado a informar a minha profissão".
3 - Face ao comportamento do arguido, que se recusou a assinar os autos de contra-ordenação entretanto emitidos pelos agentes de autoridade por virtude da já referida condução sem uso de cinto de segurança, às pressões que o arguido utilizou no diálogo com os agentes da P.S.P. que efectuaram aquele acto de fiscalização de trânsito ("Não estou isento, nem nunca vou usar cinto de segurança"; "Estou-me cagando para as multas, podes passar as multas que quiseres, que eu não pago; eu até faço colecção de multas e tudo, tenho aqui uma pasta cheia delas", "já te disse que podes passar as multas que quiseres, que eu não pago nenhuma"; "Esta é a policia que temos, ando aqui para ver se a gaja me faz um broche; sabe o que é um broche? É mamar no caralho; não sei se é proibido fazer broches, antigamente era, ia-se dormir ao chelindró, vocês têm pouca prática de Policia; de trânsito percebo eu; já me convidaram para dar aulas de trânsito na Escola Prática de Policia; quero ver os dois no Tribunal para perderem um dia e se faltarem vos descontarem no ordenado e para irem trabalhar como os pretos" e, também, ao facto de o referido arguido exalara acentuado hálito a álcool.
4 - Foi solicitada a comparência, no local, de uma viatura daquela corporação, o que veio a acontecer cerca da 1h 25, viatura essa equipada com o aparelho "Lion Alcometer SD 400", com o nº. 24335, afim de se proceder ao teste de despistagem de álcool no sangue através de ar expirado.
5 - Preparado que foi o aparelho e convidado o arguido a efectuar os procedimentos necessários à efectivação do referido teste o arguido recusou-se a fazê-lo, o que aconteceu reiteradamente, apesar de ter sido informado das consequências da sua conduta.»

Não pode dizer-se que seja perfeita a inclusão, entre os factos, da expressão conclusiva «apesar de ter sido informado das consequências da sua conduta».
Mas, por um lado, não seria aceitável que o tribunal recorrido cometesse a desconsideração de pensar ou admitir, sequer, que o recorrente, como qualquer outro juiz português, onde quer que exerça funções, não saiba as consequências jurídicas de um acto de recusa desta natureza.
Depois, porque, não obstante, lá se encontra na sentença - em sede de fundamentação da matéria de facto - a afirmação inequívoca de que o recorrente foi advertido, com clareza, de que a sua recusa seria passível de procedimento por crime de desobediência.
Como se colhe desta passagem:
«(...)- Nos depoimentos das testemunhas RMOS e JLLJ que relataram de forma coerente, terem visto o arguido a conduzir sem cinto de segurança, antes da abordagem que lhe fizeram em consequência desse facto. Na abordagem as expressões proferidas pelo arguido e as diversas autuações que lhe fizeram, o que fez com que os ânimos estivessem exaltados. Solicitaram, a identificação do arguido, sem sucesso e que, fizesse o teste de despistagem de álcool no sangue através de ar expirado, ao que o mesmo se recusou. A testemunha JLLJ afirmou ter sido o agente JMPC a dizer ao arguido para soprar no balão, e que, o oficial que o acompanhou ao local advertiu o arguido de que a sua recusa a soprar no balão o faria incorrer num crime de desobediência. Mas que esta advertência não consta do auto de noticia, por não ter sido feita nem pelo agente autuante, nem pelo agente testemunha, e sim, pelo chefe de dia.
- No depoimento da testemunha JMPC que afirmou ter sido a pessoa que juntamente com o chefe foi ao local em que se encontravam o arguido e os agentes policiais RMOS e JLLJ, que transportava o aparelho "Drager" na mão e que o arguido lhe disse que não soprava. E então lhe disse que incorreria em crime de desobediência se não soprasse, e ele não soprou.
- No depoimento da testemunha MAC - Chefe da P.S.P. - que afirmou ter-se deslocado ao local com o agente JMPC e aí chegados o mandou fazer o teste, ficando dentro do veículo. O agente JMPC veio junto de si dizendo que o cidadão se recusava a fazer o teste, tendo-lhe ordenado que insistisse para que fosse feito. Porém, perante nova recusa saiu do carro, dirigiu-se ao cidadão e disse-lhe que ele cometeria um crime de desobediência se não fizesse o teste, caso em que, teria de o deter. Tendo-lhe aquele respondido: "consigo não falo", em face do que, regressou ao carro e disse aos agentes que fizessem o serviço, na sequência de que, foi detido o arguido e conduzido à esquadra, onde foi feito o expediente relativo à detenção e posterior libertação logo que tomaram conhecimento da qualidade profissional quando se identificou. Após o que, mandou que conduzissem o arguido ao local em que ficara o seu veículo (...)».
Finalmente, porque, apesar de tudo, parece não ser necessária, em casos como o dos autos em que existe uma norma a punir expressamente a conduta como desobediência - art. 158º, nº. 1, a), e 3, do Código da Estrada - a tão reclamada cominação expressa.
É o que resulta com meridiana clareza do artigo 348º, nº. 1, a), do Código Penal, onde se exige, apenas, que a ordem seja legal, regularmente comunicada, emanada de autoridade competente, e «uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples».
Pois, na alínea b), em confronto com a aquela, é que se estatui a exigência de «na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação».
Como anota Cristina Líbano Monteiro (3), «em ambos os casos temos, portanto, um dever qualificado de obedecer - qualificado na medida em que o seu não cumprimento traz consigo uma sanção criminal. Com a diferença de que, no primeiro [alínea a)], a imposição da norma de conduta é feita por lei geral e abstracta, anterior à prática do facto; enquanto no segundo, a norma de conduta penalmente relevante resulta de um acto de vontade da autoridade ou do funcionário, contemporâneo da actuação do agente (...)».
Portanto, se faz sentido a exigência de cominação expressa neste segundo caso, não o fará, assim, no primeiro, em que a norma de conduta está tipificada na lei, com carácter geral e abstracto e a sua ignorância não pode ser triunfantemente invocada, ao menos para efeitos de afastar a incriminação.
De resto, não tem também qualquer razão o recorrente quando afirma que não deixou de cumprir a ordem, por se ter limitado a impor condições, não satisfeitas, para obedecer. A pergunta é: com que direito o fez? A resposta é óbvia: Não ficou demonstrado, nem se vê onde pudesse assentar.
Portanto, não merece censura o acórdão recorrido ao ter como verificada a prática do crime de desobediência nos termos apontados.

7 - A medida da pena de multa e da inibição de conduzir
Como se viu, o arguido foi condenado pela prática em autoria material de 1 (um) crime de desobediência p. e p. pelas disposições conjugadas do art. 158º, nº. 1, a), e nº. 3 do Código da Estrada, com referência ao art. 348º, nº. 1, a), e art. 69º, nº. 1, c), ambos do Código Penal: na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de Euros 25,00 (vinte e cinco Euros) o que perfaz a multa global de Euros 1500,00 (mil e quinhentos Euros) e ainda na pena acessória de 5 (cinco) meses de proibição de conduzir veículos automóveis.
O tribunal recorrido «(...) considerando o grau de culpa e ilicitude, as necessidades de prevenção geral e especial, (...), e ainda, que o arguido confessou parcialmente os factos, é primário, factos que abonam a seu favor, mas que actuou em circunstâncias contemporâneas do crime e antes de o ter praticado de forma reprovável, o que milita a seu desfavor, entende-se como adequada e suficiente uma pena de 60 (sessenta) dias de multa.
Quanto à taxa de multa apenas se apurou a profissão de juiz do arguido, desempenhando as funções de juiz de círculo. E tanto basta para que se considere ajustada a taxa de Euros 25 (vinte e cinco Euros) diários, lançando mão a critérios de razoabilidade e de equidade.

Quanto à sanção acessória.
Com o art. 158º do Cód. da Estrada na redacção do art. 1º do Dec. Lei 2/98 de 3 de Janeiro a recusa a exame de pesquisa de álcool passou a ser punível como crime de desobediência ficando tacitamente revogado o art. 12º de DL 124/90, que sancionava com inibição da faculdade de conduzir a aludida recusa - nº. 2 do art. 7º do Cód. Civil.
Porém, o legislador tomou consciência da existência de tal lacuna e veio colmatá-la com o artigo único da Lei 77/01 de 13 de Julho, que aditou a al. c) ao nº. 1 do art. 69º do Cód. Penal, nos seguintes termos: "É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido (...) c) - Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção e condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo".
O arguido terá pois de ser condenado numa pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.
Na determinação desta pena terão de ser considerados os ingredientes constantes do art. 71º do Cód. Penal acima descritos, tal como o foram para a pena principal, designadamente o grau de culpa e ilicitude, as necessidades de prevenção geral e especial e todas as demais circunstâncias concretamente apuradas que militem a favor e contra o arguido.
Perante o que se considera como adequada e proporcional a pena acessória de 5 (cinco) meses de proibição de conduzir veículos com motor.»

O mínimo que se pode dizer destas quantificações é que elas são benevolentes.
Para além da densidade palpável da ilicitude, no caso traduzida por actuação a todos os títulos censurável e veementemente inaceitável de um juiz de direito investido na alta função de administrar Justiça em nome do Povo - para mais em funções tão expostas e socialmente exigentes como as de juiz de círculo e, assim, com especial obrigação de assumir comportamento irrepreensível - no seu, no mínimo, incívico comportamento perante os agentes da autoridade em exercício legítimo de fiscalização rodoviária, a culpa mostra-se igualmente elevada, mormente quando aferida pelo afinco demonstrado em não assumir o crime, sem qualquer dúvida praticado.
Por isso, os 60 dias de multa fixados pela Relação, numa moldura até 120, não pecam por excesso.
E o quantitativo diário encontrado de € 25, a representar substancialmente menos de metade do vencimento do arguido, igualmente não se podem ter por excessivos, sabendo-se que a pena de multa, se não quer ser um andrajoso simulacro de punição, tem de ter como efeito o causar, pelo menos, algum desconforto se não, mesmo, um sacrifício económico palpável, tal como defende o acórdão recorrido, citando nomeadamente um aresto deste Supremo Tribunal relatado pelo Exmo. Conselheiro Carmona da Mota e que o ora relator subscreveu como 1º Adjunto.
Em direito penal, a pena, qualquer que seja a óptica por que seja encarada, ainda que com fins meramente preventivos, justamente porque o é, implica sacrifício.
Já São Tomás de Aquino, num passo muito citado da Summa Theologica definia a pena nestes termos em larga medida actuais: «de ratione enim poenae est, quod sit contraria voluntati, et quod sit afflictiva, et quod pro culpa inferatur».
Por isso, tendo em conta as circunstâncias do caso, mormente os critérios dos artigos 71º e 47º do Código Penal, não se mostra exagerado o quantitativo da multa aplicada.
As mesmas considerações valem para a medida de inibição de conduzir, fixada ao abrigo da alínea c) do nº. 1 do artigo 69º do Código Penal, e cujo limite máximo, em, abstracto poderia ir até um ano.
Não se mostra assim violada qualquer das normas ordinárias ou constitucionais invocadas pelo recorrente, pelo que o recurso não logra provimento.

3. Termos em que:
A - Pelas diversas razões expostas, rejeitam o recurso na vertente em que o mesmo visava a reapreciação da matéria de facto, para além dos vícios a que alude o artigo 410º, nº. 2, do Código de Processo Penal.
B - No mais, negando-lhe provimento, confirmam a decisão recorrida.
C - Pelo decaimento, o arguido pagará taxa de justiça que se fixa em 10 unidades de conta, a que se somam 5 unidades de conta a título de sanção processual nos termos do disposto no artigo 420º, nº. 4, do Código de Processo Penal.

Lisboa, 3 de Junho de 2004
Pereira Madeira
Santos Carvalho
Costa Mortágua
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(1) Cfr. Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, págs. 490.
(2) Sem daqui pretender tirar outras conclusões, registe-se como curiosidade, a este respeito, que na participação consta que o arguido, na altura dos factos, conduzia o veículo BMW 320 D, de matrícula TD, «de sua propriedade», certamente constatado pelo participante com base no respectivo título de registo. Aliás, tal facto - a propriedade do veículo TD - foi dado como provado - facto 1.
E, sabe-se, por ser do conhecimento geral, que nem toda a gente tem acesso possível a um veículo com estas características, de matrícula então recente, infelizmente só ao alcance de bolsas acima da média portuguesa.
(3) Comentário Conimbricense, págs. 351, § 7.