Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1584/09.3PBSNT.L1S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: HOMICÍDIO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
COMPARTICIPAÇÃO
AUTORIA IMEDIATA
AUTORIA MEDIATA
CO-AUTORIA
INTENÇÃO DE MATAR
FACTO CONCLUSIVO
FACTOS CONCRETOS
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
Data do Acordão: 06/08/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Sumário : I - De acordo com o art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, não é admissível recurso para o STJ dos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações que confirmem a decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

II - No sentido e no texto da norma cabem quer as confirmações integrais pelo Tribunal da Relação das decisões condenatórias proferidas em 1.ª instância, quer as confirmações parciais – as denominadas confirmações in mellius – cuja pena de prisão se contenha no referido patamar (até 8 anos) .

III - É, assim, legalmente inadmissível o recurso para o STJ da decisão proferida pelo Tribunal da Relação que reduz de 15 anos para 6 anos e 6 meses de prisão a condenação fixada aos arguidos em 1.ª instância.

IV - No nosso sistema legal, o art. 26.º do CP individualiza e distingue a autoria imediata, a autoria mediata e a co-autoria. Esta triologia de formas de autoria depara-se com três tipos diversos de domínio do facto:
- o agente pode dominar o facto na medida em que é ele próprio quem procede à realização típica (como afirmou Roxin será o domínio da acção que caracteriza a autoria imediata);
- o agente pode dominar o facto e a acção típica mesmo sem nela fisicamente participar, quando domina o executante através de coacção, de erro ou de um aparelho organizado de poder (quando possuiu o domínio da vontade do executante que caracteriza a autoria mediata);
- o agente pode dominar o facto através de uma divisão de tarefas com outros agentes desde que, durante a execução, possua uma função relevante para a realização típica (possuindo o que Roxin chamou o domínio funcional do facto que constitui o signo distintivo da co-autoria).

V -Quando uma pluralidade de agentes comparticipa num facto, nem sempre é fácil definir e autonomizar com exactidão, mesmo em consideração apenas dos chamados «delitos de domínio», o contributo de cada um para a realização típica.

VI - A co-autoria consiste numa «divisão de trabalho» que torna possível o facto ou que facilita o risco. Requer, no aspecto subjectivo, que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como co-titular da responsabilidade pela execução de todo o processo; no plano objectivo, a contribuição de cada co-autor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional).

VII - Os actos objectivos podem assumir significados totalmente distintos em função do propósito com que são praticados, isto é, o que, num determinado contexto, é uma actuação desprovida de significado pode, num outro contexto, assumir uma dimensão valorativa, negativa de valores protegidos juridicamente. Significa isto que a valoração da conduta dos arguidos pressupõe, necessariamente, a demonstração de quais os termos do acordo em função do qual agiram.

VIII - É a concretização, com precisão, do acordo desenhado entre os arguidos num momento prévio à consumação do crime, nomeadamente no seu objectivo e tarefas a desempenhar, que permite compreender o desenvolvimento e a actuação exterior dos arguidos nas situações de comparticipação.

IX -A decisão de matar outrem constitui um facto concreto, objecto de prova, e não uma conclusão resultante da análise de factos.

X -A descrição das tarefas atribuídas a cada um dos arguidos e a concretização do desígnio criminoso de matar devem constar da decisão proferida em 1.º instância, originando a sua omissão a nulidade a que se reporta o art. 379.º do CPP.
Decisão Texto Integral:

                                           Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

         Por acórdão do Tribunal Colectivo do Juízo de Grande Instância Criminal da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, Sintra, proferido em 23/2/10 no Processo Comum nº 541/08.0GHVFX, foram condenados os arguidos AA, BB, CC, DD e EE, como co-autores de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artºs 26º,131º, 132º, ns 1 e 2, al. h) do CP, na pena de quinze anos de prisão.

        Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa pelos arguidos foi o mesmo julgado procedente e, em consequência, condenados os arguidos nas seguintes penas: arguido DD, como co-autor de um crime de homicídio p. e p. pelo art. 131º do CP, na pena de 12 anos de prisão; arguido CC, como co-autor de um crime de homicídio p. e p. pelo art. 131º do CP, na pena de 11 anos de prisão; arguidos AA, BB e EE, como cúmplices de um crime de homicídio p. e p. pelos arts. 131º, 27º e 73º nº 1 als. a) e b) do CP, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão cada um.

Da mesma decisão interpõe recurso DD, que, de forma redutora, refere, em termos de conclusão, a existência de uma questão prévia que, recorrendo ao texto da sua motivação se deduz serem a proclamação da sua inocência e a medida da pena.

Igualmente interpõe recurso para este Supremo Tribunal de justiça o arguido CC, nos termos e com os efeitos previstos nos art°s. 432°. e 431°. do CPP. São as seguintes as razões de discordância expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso:

1º) O Tribunal recorrido postergando os argumentos, quanto á matéria de facto e de direito, apresentados pelo arguido,

2º) Concluiu, a nosso ver, sem qualquer fundamentação, que não ser, a de que nos autos existem elementos probatórios, que o arguido perpetuou efectivamente o crime, como autor material, pelo qual veio a ser condenado na pena de 11 anos de prisão efectiva.

3º) Sem no entanto, isto com respeito pela opinião contrária, se cuidar de fundamentar devidamente a decisão condenatória, como aliás impõe o disposto no art° 37472 do CPP.

4º) E que em direito e por força da lei, as inferências não chegam, -não basta concluir, há que dizer fundadamente, porque razão se decide duma maneira e não de outra.

5º) Deve pois o recorrente ser absolvido.

6º) Contudo e sem conceder, a considerar provados todos os factos constantes nos autos melhor teria andado o Tribunal se tivesse aplicado uma pena 5 anos pelo crime de homicídio, como cúmplice.

7º) Porquanto não resultou provado que a actuação do recorrente foi determinante para a pratica do mesmo crime, pelo contrário,

8º) Resultou sim provado que o recorrente fugiu do local antes do crime ter sido cometido(antes dos disparos que vitimou FF).

9º) Portanto não tomou parte directa no crime, mas sim limitou a dar o eventualmente auxílio moral para a prática do mesmo.

10°) Sendo certo que a actuação deste arguido não se mostra referenciada da dos arguidos condenados como cúmplices pela prática do mesmo crime.

11°) Pelo não sendo absolvido, deverá ser condenado no limite da sua participação, como cúmplice na pena que não ultrapasse os 5 anos de prisão, suspensa na sua execução.

12°) É que, o arguido é no entanto primário, para todos os efeitos, á data dos factos.

13°) Encontrava-se socialmente integrado, vivia com os pais e trabalhava.

14°) Sendo a reintegração e reinserção social do agente uma das finalidades das penas (art° 40° do CP), não se vislumbra que com um quantum penal desta ordem tal finalidade seja minimamente acautelada.

15°) Bem pelo contrário; a pedagogia que deve estar ínsita em qualquer decisão judicial mais não é, no caso em apreço, do que a da intolerância.

16°) Ao actuar como actuou, o Tribunal recorrido não cuidou de não prejudicar a situação social do recorrente mais do que estritamente necessário (função preventiva especial positiva), infligindo-lhe um sacrifício inadequado, cruel e desproporcionado a que urge pôr cobro.

Normas Violadas. Art°s 127° 374° do CPP e 9°,40°, n° 1, 71° e 72° do CP e ainda o art° 36 da CRP.

Termina pedindo que seja provido o recurso revogando-se o acórdão proferido em conformidade com o alegado.

Por seu turno os arguidos AA e BB que também interpõem recurso da decisão manifestando a sua discordância em relação á não aplicação do regime especial para jovens delinquentes (DL 400/82) ao arguido AA bem como a medida da pena e a suspensão da sua execução.

Concluem referindo que, revogando decisão prolatada e substituindo-a por outra decida como peticionado

Respondeu o Ministério Publico advogando a manutenção da decisão recorrida.

Nesta instância o ExºMº Sr.Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer constante de fls      

                            Os autos tiveram os vistos legais

                                                   +

Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:
 1-No dia 10 de Agosto de 2009, cerca das 8h30, os arguidos dirigiram-se à residência de FF, sita na Rua …, n.°…, R/c, D, …, …/Mem Martins, Sintra, na viatura com a matrícula ...CP, da marca Volkswagen, modelo Golf, de cor branca. -------------

 2-Ali chegados, estacionaram a viatura na Praceta …, que se situa nas imediações da referida residência. -------------------------

3-De seguida, os cinco arguidos deslocaram-se apeados até à residência de FF, sendo que o arguido CC transportava uma pasta de plástico na mão. ---

4- Depois de entrarem no prédio onde residia FF, todos os arguidos, à excepção de CC, se dirigiram para o andar inferior, onde se situa a cave e aí permaneceram escondidos. --------------

5- Na execução do que haviam combinado, o arguido CC tocou à campainha da residência de FF, identificou-se com um trabalhador da EDP, pedindo que abrissem a porta. -------------------------

6-FF, desconfiado das reais intenções do suposto funcionário da EDP, telefonou à sua namorada, GG que, por residir nas imediações, se deslocou ao local na companhia do seu irmão, HH.

7-Estes, uma vez aí chegados, depararam-se com o arguido CC à porta da residência de FF, o qual, uma vez interpelado, reiterou que era funcionário da EDP. -8- Após novo contacto com a namorada, FF abriu a porta de sua casa, saiu para o hall de entrada do prédio, munido de uma faca.----------

4-Nessa altura, os restantes arguidos saíram de rompante do andar inferior, o arguido DD, munido de uma arma de fogo, tipo pistola, e disse para FF: “Hoje você vai morrer!”, tendo de seguida efectuado dois disparos, logo seguidos de outros dois, na direcção de FF, a menos de dois metros deste, tendo-o atingido na região torácica direita e na região inguinal da perna esquerda. --------------------

5-Na sequência destes disparos FF caiu inanimado no chão, vindo a falecer ainda no local.

6-Após o referido em 9, todos os arguidos fugiram a correr, deixando cair, inadvertidamente, a menos de um metro do corpo de FF, as chaves da viatura em que se haviam deslocado. -----------------------------

7-Também a pasta de plástico que arguido CC levava consigo foi deixada cair.

8-Como consequência directa e necessária do referido em 9, sofreu FF graves lesões traumáticas torácicas e abdominais, nomeadamente, feridas perfuso-contundentes, orificiais, de entrada de projécteis de arma de fogo no quadrante supero-interno da mama direita, que dista 6cm para cima e 6cm para a esquerda do mamilo (…), na face lateral direita do tórax, na linha axilar posterior, a nível da 7 costela, que dista 10cm para baixo da axila (...), na face anterointerna da raiz da coxa esquerda, que dista 6cm para baixo da região inguinofemoral (...), examinadas e descritas no relatório de autópsia médico-legal, as quais determinaram directa e necessariamente a sua morte. -------------------------------------

9-Os projécteis que atingiram FF, resultantes dos disparos produzidos da arma de fogo, foram a causa das lesões descritas no relatório de autópsia e constituíram causa directa e necessária da sua morte. -----------------------------------------------------------------------

10-O arguido DD, ao disparar em direcção ao corpo de FF, a menos de 2 metros de distância, para zonas do corpo onde se alojam órgãos vitais, o que bem sabia, agiu com o propósito de lhe tirar a vida, o que efectivamente aconteceu. ---------------

11-Os restantes arguidos, com as suas condutas, agiram na sequência do que haviam acordado, tendo o arguido CC conseguido, sob o pretexto de que era funcionário da EDP, atrair para o exterior FF, e uma vez encontrando-se a vítima no hall de entrada do prédio, os demais arguidos, que se encontravam escondidos na cave, surgiram repentinamente, e sem dar hipótese de defesa à vítima, foi esta atingida pelos disparos efectuados pelo arguido DD. ---------------

12-Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. ---------------------

13-O arguido DD é natural da Guiné-Bissau, sendo um dos três filhos de um casal de condição diferenciada no contexto social daquele país: o pai, já falecido, era professor na Faculdade de Direito e exercia paralelamente actividade de jurista e a mãe professora do ensino básico. -

14-DD deu entrada na escola na idade normal e estudou até à frequência do 11° ano de escolaridade, aspecto que contribuiu para o desenvolvimento das capacidades cognitivas, raciocínio e verbalização. ---

15-Em 2002, com 20 anos, veio para Portugal a fim de ser sujeito a uma intervenção cirúrgica, data a partir da qual já não regressou ao país de origem, ficando no nosso país, inserido num meio social problemático, pelo que acabou por desenvolver uma aproximação negativa a outros indivíduos com percursos pouco estruturados e alegadamente desviantes.-

16-O arguido DD apresenta características pessoais e competências cognitivas que contribuem para que seja um indivíduo portador de autonomia, capaz de pensar e fazer opções designadamente a estabelecer metas e objectivos para o seu próprio futuro. ----------17-O arguido DD não tem antecedentes criminais. ------------------

18-O arguido CC é natural de S. Tomé e Príncipe, é o único filho da breve ligação mantida entre os pais. Depois desta ruptura relacional, quando teria menos de dois anos, a mãe partiu para Angola, onde ainda se encontrará, e ele veio com o pai e avós paternos para Portugal, instalando-se a família na Quinta ..., um bairro degradado, de predominância africana, no Prior Velho. --------------------------------------

19-CC desenvolveu-se, por ausência dos progenitores, no agregado dos avós paternos, pessoas idosas e com capacidades educativas diminuídas. --

20-Embora numa fase inicial o seu trajecto pessoal tenha sido razoavelmente regular, a adolescência foi marcado por episódios de desajustamento, que lhe mereceram a expulsão da casa dos avós e mais tarde também, de um tio, vindo depois a integrar o agregado da companheira do pai, onde não seria sujeito a quaisquer restrições. -------------------------------

21-A nível escolar terá apresentado inicialmente um percurso regular, que se degradou ao longo dos tempos. ---

22-É escassa a experiência laboral do arguido, que apenas terá trabalhado com um tio na construção civil, vindo a desistir alguns meses depois, por considerar esta actividade incompatível com as suas condições físicas. ----

23-À data da prisão encontrava-se a desempenhar a função de limpador de vidros.

24-A sua convivialidade encontrava-se praticamente restringida ao grupo de pares residentes no mesmo bairro, apesar de 10 meses antes da sua prisão a família ter sido realojada num outro local, nas imediações. --------

25-Com experiência laboral quase nula, forte vinculação a grupos de cariz desviante e falta de retaguarda familiar, tudo indica que será difícil ao arguido efectuar mudanças no seu modo de vida, no sentido de uma maior maturidade e responsabilidade social. ----------------

26-O arguido CC não tem antecedentes criminais. ----------------

27-O arguido BB é o quarto de seis irmãos sendo oriundo de uma família residente num bairro clandestino de barracas de tijolo, que apesar da precariedade das condições habitacionais, detinha uma situação socioeconómica estável. -------------------------28-A dinâmica familiar é descrita como funcional, tendo o arguido e os seus irmãos usufruído de um investimento afectivo e educativo por parte das figuras parentais. -----------29-O pai, entretanto já falecido, veio contudo a abandonar o agregado, passando a residir na Guiné, vindo a sua mãe a estabelecer nova relação marital com o actual padrasto do arguido, operário da construção civil, tendo este assumido um papel parental estruturante, constituindo-se como a figura substituta paterna no seio do agregado. ----------------------

30- Este arguido iniciou a sua escolaridade em idade própria, tendo o seu percurso escolar se revelado regular, vindo a frequentar o 12º ano de escolaridade sem o concluir por falta de uma disciplina. ---------------------

31-À data da prisão, o arguido residia com a sua mãe, cabeleireira, com o padrasto, operário da construção civil, desempregado a usufruir de subsídio de desemprego e três irmãos, um dos quais seu co-arguido. ------

33-O arguido aparenta ser um indivíduo capaz de avaliar as situações sociais em que se envolve de forma a atingir os objectivos a que se propõe, descrevendo-se como uma pessoa reservada mas sociável, determinada e responsável, podendo ter atitudes rígidas na defesa dos seus interesses. --

34- O arguido BB não se revê na presente situação processual, não apresentando, assim, autocrítica face à mesma, estando as suas preocupações focalizadas a sua pessoa, na perda da sua liberdade e nas implicações ao nível dos planos imediatos que projectava para a sua vida, nomeadamente a sua reincorporação militar. ------------------------

35-No Estabelecimento Prisional, tem mantido um comportamento adequado, beneficiando do apoio dos familiares. -----------------------------------------

36-O arguido BB não tem antecedentes criminais. -----------

37- O arguido EE viveu no país de origem, Guiné, até cerca dos catorze anos de idade e o seu desenvolvimento ter-se-á processado de acordo com os valores próprios da cultura vigente e os padrões sociais valorizados. ---

38-O grupo familiar do arguido era constituído pelos pais e seis filhos e o processo educativo do arguido parece ter decorrido num contexto familiar normativo, sem problemas de índole económica, o pai era funcionário do estado e a mãe professora, e detinham uma situação laboral estável. -----

39-O arguido tinha cerca de catorze anos quando veio para Portugal, conjuntamente com o pai, para prosseguir no nosso país formação académica.

40-O seu trajecto escolar regista várias reprovações tendo concluído um curso de serralharia, com equiva1ncia ao 9º ano. ----------------------------

41-Após a realização do estágio profissional, o arguido manteve-se a trabalhar na empresa, durante cerca de dois anos, a exercer funções de torneio mecânico. --

42-No plano das interacções sociais o arguido terá mantido referências de amizade em contextos caracterizados pela normatividade social e, do referido não apresentou especiais dificuldades em integrar-se numa nova realidade sociocultural. ----------------------------------- 43- Aquando da sua prisão o arguido integrava o agregado da mãe e, quando esta viajava para o país de origem, permanecia com a irmã, com quem mantém uma relação de proximidade. ----------

44-O núcleo familiar do arguido residia num bairro de construção clandestina, com todas as problemáticas inerentes, mantendo EE convívio regular com os amigos ali residentes, não lhe estando associados problemas de adequação comportamental. ------------45-No estabelecimento prisional o arguido frequenta o ensino escolar e parece empenhado em prosseguir objectivos pessoais de valorização pessoal. ----------

46-O arguido EE não tem antecedentes criminais. ----------------

47-O arguido AA tem vivido integrado no agregado da progenitora que um mês antes da prisão do arguido adquiriu habitação própria, num meio residencial sem problemas de índole social. -------------

48-A dinâmica familiar processava-se em moldes satisfatórios, sendo que os elementos familiares estão socialmente integrados e detêm urna situação profissional estável. -----------49- O arguido encontrava-se laboralmente inactivo e a recuperar do acidente pessoal que sofreu, aquando do exercício de funções de Pára-quedista, dependendo economicamente do apoio dispensado pela família. -----------

50-Em termos das características pessoais o arguido AA é um indivíduo com traços de personalidade extrovertida, com competências ao nível da gestão das suas emoções e impulsos, e com capacidade para se organizar em função dos seus objectivos e projectos pessoais. 49-Relativamente aos factos do presente processo o arguido mantém uma atitude de auto-controle, tendendo a desvalorizar o seu contexto actual. --

51-O arguido AA não tem antecedentes criminais. ------

                                                                  *

I

Recursos de AA e BB

Admissibilidade de recurso

De acordo com o disposto no artigo 400 nº1 alínea f) do Código de Processo Penal não é admissível recurso dos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações que confirmem a decisão da primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a oito anos.

 No caso vertente a decisão da primeira instância, que aplicava uma pena de quinze anos de prisão aos arguidos AA e BB e EE, como co-autores de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artºs 26º,131º, 132º, ns 1 e 2, al. h) do CP foi reduzida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, para seis anos e seis meses de prisão. Assim, a primeira questão a equacionar será a da integração do caso vertente na referida norma adjectiva, ou seja, a de saber até que ponto a decisão do Tribunal da Relação, que confirmou parcialmente a decisão de primeira instância, constitui uma confirmação válida e relevante nos termos do nº6 do normativo citado. Somos, assim, reconduzidos á questão da denominada “reformatio in mellius” pois que, se considerarmos que a decisão do Tribunal da Relação proferida no caso vertente confirma a decisão de primeira instância a mesma será irrecorrível.

Tal questão, tem sido objecto de um tratamento maioritário por parte da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, afirmando a existência de uma confirmação parcial em situações similares, pelo menos até ao patamar em que se situa a sua convergência. A denominada confirmação “in mellius” viu-se sustentada pelos Acordãos deste STJ de 16.01.2003 (CJ Acs. STJ, XXVIII, 1, 162 e de 11.03.2004, in CJ Acs. STJ, XII, 1, 224). e no Ac. do Tribunal Constitucional nº 20/2007. Como se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/01/2003[1] se o acórdão ora recorrido tivesse confirmado na íntegra a decisão da 1.ª instância, mesmo confirmando uma pena de prisão mais elevada, é claro que não haveria recurso.

A questão é agora esta: porque razão haveria de admitir-se tal recurso, quando afinal, a decisão da Relação, mantendo grosso modo o enquadramento jurídico dos factos, acabou por se limitar a reduzir a pena, sendo mais favorável ao recorrente que o previsto na citada disposição?
Não parece que haja razão justificativa para um tal desvio de regime.
Afinal, até ao limite da condenação ora imposta pela Relação, mantém-se a «dupla conforme», que só deixou de existir em relação ao quantum da pena eliminado na 2.ª instância, de que o recorrente beneficiou.
Já assim não seria se, por exemplo, a Relação o tivesse absolvido, uma vez que, embora também aí o beneficiando, retiraria à decisão a concordância que ora existe, pelo menos, até ao limite superior da condenação proferida em recurso. Portanto, nessa hipótese, não seria possível, como o é aqui, falar em «confirmação», pela relação em recurso, da decisão recorrida.

Quer dizer: por maioria de razão, há que ter como abrangida na expressão legal, «confirmem decisão de primeira instância», as hipóteses de confirmação apenas parcial da decisão, quando a divergência da Relação com o decidido, se situa apenas no quantum (em excesso) punitivo advindo da 1.ª instância.

             Tais palavras mantêm inteira actualidade e, reforçando-as, sempre se poderá dizer que o único item em que a decisão de primeira instância não é confirmada situa-se na diminuição da pena aplicada pois que em relação aos referidos recorrentes, e em tudo o resto, aquela primeira decisão é confirmada. Aliás, sempre se poderá igualmente afirmar que, também em sede de legitimidade para recorrer (artigo 401 do diploma citado), não estamos perante uma decisão proferida contra o arguido o que, também, implica a rejeição.  

            Termos em que, por inadmissíveis - 400 nº1 alínea f) do Código de Processo Penal-se rejeitam os mesmos recursos nos termos do artigo 420 do mesmo diploma.

II

Recursos interpostos pelos arguidos CC e  DD.

Questão prévia

                        A percepção de parte substancial das questões suscitadas pelos recursos interpostos, e ora referidos, tem subjacente a compreensão do conceito de comparticipação criminosa.

            Na verdade, a actuação de qualquer um dos arguidos pressupõe a existência de uma concertação de esforços, ou seja, de uma convergência de vontades no sentido de planear os passos necessários para atingir os objectivos ilícitos pretendidos e as tarefas a desempenhar por cada um. A identificação concreta de uma forma de comparticipação criminosa tem implícita a demonstração de factos que permitam a conclusão de uma definição prévia de cada comparticipante com uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional)

                        Por igual forma se impõe a existência de um elemento subjectivo da co-autoria que se consubstancia na resolução comum de realizar o facto. Unicamente através da mesma se justifica a imputação recíproca de contribuições fáctica pois que, muito para além do consentimento unilateral, devem "actuar todos em cooperação consciente e querida" 

Como referimos em decisão proferida no Processo 3182/06 autor é quem domina o facto, quem dele é "senhor", quem toma a execução "nas suas próprias mãos" de tal modo que dele depende decisivamente o “se” e o “como” da realização típica; nesta precisa acepção se pode afirmar que o autor é a figura central do acontecimento. Assim se revela e concretiza a procurada síntese que faz surgir o facto como unidade de sentido objectiva subjectiva: ele aparece, numa sua vertente como obra de uma vontade que dirige o acontecimento, noutra vertente como fruto de uma contribuição para o acontecimento dotada de um determinado peso e significado objectivo.

            A uma concretização desta ideia serve, de resto, o nosso próprio sistema legal, pelo menos na medida em que o artigo 26° individualiza e distingue a autoria imediata, a autoria mediata e a co-autoria. Correspondendo a esta trilogia de formas de autoria depara-se, na verdade, com três tipos diversos de domínio do facto:- O agente pode dominar o facto desde logo na medida em que é e/e próprio quem procede a realização típica, quem leva a cabo o comportamento com o seu próprio corpo (é o chamado por Roxin domínio da acção que caracteriza a autoria imediata). Mas pode também dominar o facto, e a realização típica mesmo sem nela fisicamente participar, quando domina o executante através de coacção, de erro ou de um aparelho organizado de poder (quando possui o domínio da vontade do executante que caracteriza a autoria mediata). Como pode, ainda, dominar o facto através de uma divisão de tarefas com outros agentes, desde que, durante a execução, possua uma função relevante para a realização típica (possuindo o que Roxin chamou o domínio funcional do facto que constitui o signo distintivo da co-autoria)           

Quando uma pluralidade de agentes comparticipa num facto - e é só nesse caso que assume relevo prático-normativo a distinção dos papeis de cada um perante a execução - nem sempre é fácil definir e autonomizar com exactidão, mesmo em consideração apenas dos chamados "delitos de domínio”, o contributo de cada um para a realização típica.

            De acordo, ainda, com o Professor Figueiredo Dias há nesta matéria da autoria, em todo o caso, uma asserção que deve reputar-se fundamental: a de que ela é, mais que uma decorrência, verdadeiramente um elemento essencial do ilícito típico. Por isso, a unidade de sentido da autoria, por um lado, participa da natureza do ilícito pessoal, do ilícito que é "obra de uma pessoa"; por outro lado liga-se indissoluvelmente a realização do tipo como exigência primária do princípio da legalidade.

            O facto aparece, assim, como a obra de uma vontade que se dirige para a produção de um resultado. Porém, não só é determinante para a autoria a vontade de direcção, mas também a importância objectiva da parte do facto assumida por cada interveniente. Assim, só pode ser autor quem, segundo a importância da sua contribuição objectiva, comparte o domínio do curso do facto.

            Resulta daqui, e em primeiro lugar, que a realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo fundamenta sempre a autoria Este é, também, o sentido do artigo 26 do Código Penal ao apontar aquele que realiza por si mesmo o delito.

            Importa, ainda, salientar que o conceito não pode limitar-se, como pretendia a teoria objectivo formal, á a realização de uma acção típica no estrito sentido literal. A interpretação dos tipos revela a descrição da acção, quando o resultado se produz pela actuação conjunta de várias pessoas, deve entender-se de um modo material que flexibilize o sentido literal. Por isso, o tipo, em certas condições, pode ser realizado também por aqueles, pese embora não executarem uma acção típica em sentido formal, detêm o domínio do facto porque o comparticipam.

            É neste sentido que releva a exigência a todos os intervenientes que comparticipem na decisão conjunta de realizar o facto, porque só de esta forma podem participar no exercício do domínio do facto. Para além disso cada um deverá adicionar objectivamente una contribuição para o facto que, pela sua importância, resulte qualificado para o resultado e caracterize, em todo o caso, mais além de uma mera acção preparatória. Sem embargo, importa referir que, atendendo á "divisão de papeis" mais apropriada ao fim proposto, ocorra na co-autoria que também uma contribuição ao facto que não entre formalmente no marco da acção típica resulte suficiente para castigar por autoria. Basta que se trate de una parte necessária da execução do plano global dentro de una razoável "divisão de trabalho (domínio funcional do facto)

            A co-autoria consiste, assim, numa "divisão de trabalho" que torna possível o facto ou que facilita o risco. Requer, no aspecto subjectivo que os intervenientes se vinculem entre si mediante una resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como co-titular da responsabilidade pela execução de todo o processo. A resolução comum de realizar o facto é o elo que une num todo as diferentes partes.

            No aspecto objectivo, a contribuição de cada co-autor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional)

   O necessário subjectivo da co-autoria é a resolução comum de realizar o facto. Unicamente através da mesma se justifica a imputação recíproca de contribuições fácticas. Não basta um consentimento unilateral, senão que devem "actuar todos em cooperação consciente e querida" No acordo de vontades em que fixar-se a distribuição de funções graças á qual deve obter-se, com as forças unidas o resultado perseguido em comum. Aliás, a forma como se faz a repartição de papéis deverá revelar que a responsabilidade pela execução do facto impende sobre todos os intervenientes.

            Assumida a necessidade da demonstração factual dessa cooperação, dessa solidariedade numa actuação querida por todos, como suporte inultrapassável de uma definição de comparticipação, cotejemos agora o que, a propósito, se descreve na decisão recorrida em termos de factos:

5- Na execução do que haviam combinado, o arguido CC tocou à campainha da residência de FF, identificou-se com um trabalhador da EDP, pedindo que abrissem a porta. -------------------------

4-Nessa altura, os restantes arguidos saíram de rompante do andar inferior, o arguido DD, munido de uma arma de fogo, tipo pistola, e disse para FF: “Hoje você vai morrer!”, tendo de seguida efectuado dois disparos, logo seguidos de outros dois, na direcção de FF, a menos de dois metros deste, tendo-o atingido na região torácica direita e na região inguinal da perna esquerda. --------------------

11-Os restantes arguidos, com as suas condutas, agiram na sequência do que haviam acordado, tendo o arguido CC conseguido, sob o pretexto de que era funcionário da EDP, atrair para o exterior FF, e uma vez encontrando-se a vítima no hall de entrada do prédio, os demais arguidos, que se encontravam escondidos na cave, surgiram repentinamente, e sem dar hipótese de defesa à vítima, foi esta atingida pelos disparos efectuados pelo arguido DD.

            Em qualquer um dos segmentos elencados estamos a falar de actos de execução de algo previamente acordado e é esse acordo que dá sentido á dinâmica que conduziu ao homicídio, esclarecendo sobre a finalidade com que tais actos foram praticados. Os mesmos actos objectivos podem assumir significados totalmente distintos em função do propósito com que são praticados, isto é, o que, num determinado contexto, é uma actuação desprovida de significado pode, num outro contexto, assumir uma dimensão valorativa, negativa de valores protegidos juridicamente.

Significa o exposto que a valoração da conduta dos arguidos pressupõe, necessariamente, a demonstração de quais os termos do acordo em função do qual agiram, uma vez que não estamos em domínio no qual seja permitido jogar com presunções de factos, á revelia dos limites impostos pelo principio do acusatório.

Ciente das dificuldades inerentes ao tema a decisão recorrida ensaiou uma forma de se esquivar ás implicações inerentes á constatação da omissão. Na verdade, refere-se na mesma, em sede de fundamentação de direito, que:

                 No caso em presença, a actuação individual do arguido CC mostra-se necessária à realização do dito fim comum, já que a ele incumbiu, no quadro da distribuição de tarefas acordadas entre os arguidos, bater à porta da residência do ofendido FF, fazendo-se passar por funcionário da EDP, de modo a induzi-lo a abrir a porta da habitação e assim permitir ao arguido DD desfechar sobre ele os tiros de arma de fogo que lhe causaram a morte, pelo que aquele arguido não poderá deixar de ser tido como co-autor do crime de homicídio praticado pelo arguido DD na pessoa de FF. Mais complexa se apresenta a questão relativamente à intervenção aos restantes arguidos AA, BB e EE.

                       Com efeito, estes arguidos limitaram-se a acompanhar o arguido DD quando este se escondeu na cave do prédio onde se situava a residência do ofendido FF, enquanto o arguido CC tocava à porta dessa habitação, nos termos já explicitados, tendo saído desse esconderijo quando FF saiu da sua residência e acompanhado o arguido DD quando este abordou ofendido, disparou os tiros que lhe retiraram a vida e, finalmente, se colocou em fuga.

                            A simples presença física dos arguidos AA, BB e EE junto do arguido DD, durante toda sequência factual descrita, constitui em si uma forma de ajuda à actuação deste último, que culminou na morte do ofendido FF, pois sempre estariam disponíveis para prestar-lhe apoio, em caso de resistência do ofendido ou de terceiro, que acabou por não se verificar.

            A única questão que se suscita neste trecho da decisão recorrida é o facto de estas conclusões, apontadas como fundamentadoras duma conjunção de esforços com vista á consumação de um objectivo criminoso, não terem correspondência nos factos provados e concretizarem suposições lógicas que, como tal, não deixam de ser suposições.

Aqui chegados, e numa primeira análise, pareceria estarmos perante uma aporia a resolver com recurso aos princípios de direito penal em relação á matéria de comparticipação. Só que a correcta equação da questão da comparticipação não deixou de estar presente na perspectiva da acusação. Refere-se ali que:

1 - Em momento não concretamente apurado e por motivo desconhecido os arguidos acordaram entre si um plano com vista a subtrair a vida a FF.

2 - Esse plano passaria por atrair a vítima até ao exterior da sua residência, convencendo o mesmo a abrir a porta a um suposto funcionário da EDP e, uma vez no exterior, ser abatido à queima-roupa, sem qualquer hipótese de defesa.

 3-Para o efeito, os arguidos muniram-se de uma arma de fogo e alguns artefactos, nomeadamente, uma capa e de uma pasta de plástico com alguns papéis no seu interior, para, desse modo, um deles actuar com base no disfarce de um funcionário da EDP e, assim, lograrem atingir os seus intentos.

4 - Na execução do referido plano e em conjugação de esforços, no dia 10 de Agosto de 2009, cerca das 8h30, os arguidos dirigiram-se até à residência de FF, sita na Rua …, n…., …, .., …, Algueirão/Mem Martins, Sintra, na viatura com a matrícula ...CP, da marca Volkswagen, modelo Golf, de cor branca    

Os pontos 1;2 e 3 da acusação concretizam com precisão o acordo previamente desenhado entre os arguidos, nomeadamente no seu objectivo e tarefas a desempenhar por cada um dos mesmos. Tais itens da acusação referem-se a um momento anterior á consumação do crime e é em face dos mesmos que se compreende o desenvolvimento e actuação exterior dos arguidos.

Pronunciando-se sobre os mesmos pontos a decisão de primeira instância considera que o nº1 constitui um juízo conclusivo e não se pronuncia sobre os restantes, que são o desenvolvimento daquele, iniciando a recensão dos factos da acusação respectivo ponto 4.

 Em nosso entender a decisão do tribunal de primeira instância em relação á matéria de nomeadamente e no que toca ao ponto 1 da acusação arranca de manifesta confusão entre os conceitos de juízo conclusivo e juízo assente em prova indirecta. Na verdade, o juízo conclusivo consubstancia uma operação lógica que tem inscrita uma inferência do juiz assente numa operação mental de valoração de elementos de facto que deverão, esses sim, ser alvo directo da produção de prova.

Considerar provado que alguém decidiu matar outrem é um facto concreto, objecto de prova, e não uma conclusão resultante de análise de factos. Igualmente é certo que, ao não considerar tal facto como provado, ou como não provado, a decisão remeteu o elemento essencial da comparticipação-a decisão conjunta de matar-para o limbo da indeterminação. Tal indeterminação afectou igualmente os factos elencados na acusação em sucessão cronológica, ou seja, o que foi decidido na divisão de tarefas resultante da concretização do mesmo desígnio criminoso de matar.

É neste contexto que a decisão recorrida, bem como a decisão de primeira instância se referem sucessivamente “ao que os arguidos haviam combinado” sem que se concretize o que constituiu tal combinação.

Entendemos assim que a decisão de primeira instância proferida nos presentes autos enferma da nulidade a que se reporta o artigo 379 do Código de Processo Penal.  

III

a)

Importa, ainda, que, lateralmente, se anote alguma perplexidade suscitada pela análise da decisão recorrida. Em primeiro lugar recorta-se a afirmação ali constante de que a morte da vítima foi provocada por disparos de arma de fogo, tipo pistola

Sucede que, nos termos do artigo 86 da Lei 5/2006 nomeadamente do número 3 as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma. Para os efeitos previstos no número anterior, considera -se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente. Entre aquelas armas situam-se as armas das classes B, B1, C e D, que integram as armas de fogo curtas de repetição ou semiautomáticas; as pistolas semiautomáticas com os calibres denominados 6,35 mm Browning (.25 ACP ou .25 Auto); os revólveres com os calibres denominados .32 S & W Long e .32 H & R Magnum;as armas de fogo curtas de tiro a tiro unicamente aptas a disparar munições de percussão central; As armas de fogo de calibre até 6 mm unicamente aptas a disparar munições de percussão anelar.

A árida enumeração que antecede tem a sua justificação na imperiosa conclusão de que uma arma de fogo tipo pistola, que permite disparar quatro tiros que provocam a morte de alguém, necessariamente que tem de assumir as características que constituem pressuposto de funcionamento da citada agravante. E isto mesmo sem apurar o calibre das balas que foram disparadas o qual, nem em sede de acusação, nem de decisão recorrida, foi objecto de qualquer menção.

 Significa o exposto que, a aceitar-se o postulado enunciado, o limite mínimo da pena a aplicar pela prática do crime de homicídio imputado deveria situar-se em dez anos e oito meses de prisão e vinte e um ano e quatro meses de prisão.  

            Porém, como se referiu, tal questão nem sequer foi enunciada na decisão recorrida

b)
Em sede de medida da pena uma nova perplexidade se gera perante a nova aproximação dogmática ensaiada na decisão recorrida, afirmando-se, olimpicamente, um estatuto de menoridade das razões de prevenção geral no crime de homicídio. Refere-se na mesma decisão que:
 Antes de mais, permitimo-nos discordar da asserção feita no acórdão recorrido de que o crime de homicídio, em termos genéricos, suscita elevadas exigências de prevenção geral, sem embargo do respeito da jurisprudência do STJ citada em defesa dessa tese.
                         Dado que o crime de homicídio doloso atenta directamente contra o valor que a ordem jurídica mais presa entre todos, a vida humana, natural é que o mesmo suscite fortíssimas exigências sociais de reprovação, o que não deve ser confundido, contudo, com a função preventiva geral da sanção penal.
                       Não obstante todas as alterações quantitativas e qualitativas da realidade sócio-criminal, a que os Tribunais não poderão deixar de estar atentos, o crime de homicídio doloso continua a ocorrer na sociedade portuguesa com uma frequência relativamente reduzida, reconduzindo-se, na grande maioria das vezes ao paradigma do chamado «homicídio passional».
                       Ainda assim, não há a certeza se o caso em apreço se subsume no dito paradigma, pois desconhece-se a motivação que esteve na origem da sua prática.
                       Em todo o caso, sempre se trata de um ilícito criminal que beneficia de uma margem de impunidade muito estreita, pelo que qualquer pessoa que se predisponha a praticar um crime de homicídio doloso desde logo saberá que são elevadas as probabilidades de vir a ser alvo de uma efectiva sanção penal.   

          Assim,

       Anotando-se o “respeito discordante” em relação é jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, constante do trecho transcrito da decisão recorrida, dir-se-á que, com mesma, ficamos a saber que, afinal, o crime de homicídio não suscita elevadas exigências de prevenção a nível geral. Ficamos, também, a saber, quiçá porque na elaboração da decisão recorrida se teve acesso a dados que não estão ao alcance do comum dos mortais, que o número de homicídios na sociedade portuguesa é reduzido e a maior parte de natureza passional e, ainda, que é um crime com uma margem de impunidade muito estreita.

            Tais reflexões suscitam uma profunda perplexidade.

Em primeiro lugar, e até á prolação da douta decisão recorrida, o bem da Vida era, uniformemente, considerado como valor nuclear da vida em sociedade e o respeito pelo mesmo uma condição essencial da relação entre cidadãos. Se a finalidade do direito penal é a protecção de bens jurídicos a Vida é o primeiro dos valores a ser tutelado e protegido.

         A decisão recorrida considera coisas perfeitamente distintas a exigência de prevenção geral que radica nas expectativas da comunidade sobre a forma como são restabelecidos os valores jurídicos protegidos pela norma e violados pela conduta ilícita e a reprovação da mesma conduta.

A mesma decisão labora em equívoco pois que as exigências de prevenção geral são uma consequência directa da reprovação da comunidade, e uma outra perspectiva desta mesma realidade. A reprovação deve ser ponderada por forma a neutralizar os efeitos do delito como exemplo negativo para a mesma comunidade e deve contribuir, simultaneamente, para fortalecer a sua consciência jurídica, assim como a satisfazer o pedido de justiça por parte do circulo de pessoas afectadas pelo delito e pelas suas consequências (confirmação da ordem jurídica).

            Como refere Roxin a prevenção geral positiva implica três efeitos: o ensino pedagógico-socialmente motivado o qual deve provocar a aprendizagem da fidelidade ao direito; o efeito de confiança que se produz quando o cidadão vê que o direito se impõe; finalmente o efeito de satisfação que se apresenta quando o delinquente já foi penalizado de uma forma que a consciência jurídica geral tranquiliza-se perante a infracção ao direito e considera solucionado conflito com o autor.

Igualmente é certo que a afirmação do grau qualitativo e quantitativo das exigências de prevenção exigem uma ponderação cuidada das circunstâncias do caso concreto e, nomeadamente, sobre a forma como o bem jurídico protegido foi violado e a culpa do autor de tal violação.

            Atribuindo consistência prática ao exposto, as penas têm de ser proporcionadas á transcendência social- mais que ao dano social - que assume a violação do bem jurídico cuja tutela interessa prever. O critério principal para valorar a proporção da intervenção penal é o da importância do bem jurídico protegido porquanto a sua garantia é o principal fundamento da referida intervenção e tal valência exprime-se nos critérios de prevenção em que está presente a reprovação pelo facto praticado.

                As exigências de reprovação e prevenção a nível geral situam-se nos antípodas de uma eventual complacência da comunidade perante factos que, objectivamente e para o cidadão comum, se configuram como uma “execução a sangue frio”. 

c)

Não ficam por aqui as perplexidades suscitadas pela decisão recorrida que se potenciam com afirmações nela constantes a justificar a perspectiva permissiva na apreciação do tipo legal de homicídio e que são inexactos. Assim, reportando-nos aos dados das Nações Unidas relativos a 2004 (últimos publicitados pela mesma entidade e lembrando que, desde essa data tem aumentado o número de homicídios dolosos no nosso País) Portugal é um dos países europeus com maior taxa de homicídios como se constata de estatística anexa.[2]

Portugal não era em 2004, e muito menos será agora (de acordo com os Relatórios de Segurança Interna de 2005 e anos seguintes), o paradigma do país de brandos costumes que a decisão recorrida pretende encontrar.[3]

A segunda inexactidão é uma pretensa quota de homicídios “passionais” que, pressupondo uma prévia definição concreta do conceito, abarca uma realidade que não está estudada e quantificada.

A terceira afirmação que nos suscita a maior perplexidade é a forma afoita como a decisão recorrida se pronuncia sobre a impunidade residual do crime de homicídio o que pressupõe o conhecimento de um número absolutamente ignorado (e que não o devia ser porquanto elucida sobre a eficiência do trabalho policial) que é a taxa de elucidação ou, em termos mais pragmáticos, de descoberta da autoria do crime.

Segundo o Relatório de Segurança Interna de 2009 e de acordo com os dados da Policia Judiciária durante aquele período a taxa de esclarecimento de homicídios investigados foi de 63,65 %)

Todavia, como se afirmou, sendo certo que a análise de tais pressupostos da decisão recorrida suscita as maiores perplexidade, e discordância, igualmente é exacto que a montante se encontra a patologia da nulidade da própria sentença no que concerne aos recorrentes DD e CC.

Poderá suscitar-se, então, a questão da “reformatio in pejus” imposta pelo artigo 409, pelo menos no juízo formulado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº236/2007, sendo certo que, teoricamente, é discutível a afirmação da proibição de aplicação de pena superior á previamente aplicada em consequência do facto de, numa decisão anulada por violação de regras que consubstanciam a existência de um processo justo, o arguido ter sido condenado numa pena inferior. Na verdade pode-se equacionar a questão de saber se o facto de o julgamento, ou decisão proferida, serem anulados em consequência do recurso interposto pelo arguido, imprime a conclusão de que, não obstante a nulidade que afecta a mesma decisão, esta ter ainda o efeito de impedir que a pena aplicada (constante de uma decisão não conforme á lei) consubstancie uma expectativa a ser protegida, ou seja, constituir o “direito a uma pena”.

             Porem, tal questão, a ser suscitada, deverá ser decidida no momento adequado.

 Termos em que decidem os Juízes que constituem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em declarar, nos sobreditos termos, a nulidade da decisão recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes AA e BB.

Taxa de Justiça 4 UC a que acresce a importância de 3 UC nos termos do artigo 420 nº3 do mesmo diploma.

Lisboa, 8 de Junho de 2011

Santos Cabral (Relator)

Oliveira Mendes

______________________________


[1] Relator Juiz Conselheiro Pereira Madeira

[2] Número máximo e mínimoa de acordo com as fontes (nacionais; Interpol; Europol; ONU) e por 100.000 habitantes.

Sub-region: East Europ

Belarus   8.3           10.2          Republic of Moldova          7.2            Russian Federation              18.9         .7              

Ukraine   8.0           12.0          Sub-region: South East Europe         Albania 3.8           6.6            

Bosnia and Herzegovina      1,8           1.9           Bulgaria 3.0           3.1            Croatia   1.8           2.0            

Montenegro          3.6           Romania                2.4           3.3           Serbia      1.4           UN-CTS-10

The former Yugoslav Republic of Macedónia-2.4            5.2           Turkey    2.9           6.9            

Sub-region: West and Central Europe

Andorra                 1.4           1.4           Austria   0.7           0.8            Belgium                1.6           2.1            

Cyprus    0.2           1.8            :Czech Republic    1.3           2.2           Denmark               0.8           1.1            

Estonia 6.7           8.9            Finland 2.6           2.8           France     0.8           1.6            

Germany                0.7           1.0           Greece     0.9           1.0            Hungary                2.1           2.2            

Iceland    1.0           1.0            Ireland   0.7           1.1            Italy       1.0           1.2            

Latvia      8.6           10.2          Liechtenstein        2.9           Lithuania               9.1           10.3          

Luxembourg         0.4           1.1            Malta     0.7           1.7            Monaco                 3.1            

Netherlands           1.2           1.4           Norway 0.8           0.8            Poland   1.6           1.7            

Portugal                 1.4           1.8            Slovakia                 2.0           2.3            Slovenia                1.5           2.1            

Spain      1.2           1.4            Sweden 1.2           2.4            Switzerland           0.9           2.9            

United Kingdom - England & Wales                1.6           United Kingdom – Northern Ireland               2.4            

United Kingdom – Scotland              2.6            

[3] Noticia do Jornal Publico de 18/02/2009 Com 2,15 homicídios por 100 mil habitantes, Portugal surge como o país com a mais alta taxa de homicídios da Europa Ocidental em 2006, segundo estatísticas do Departamento de Drogas e Crime das Nações Unidas, que apresenta uma lista com dados de 74 países de todo o mundo. Os números, coligidos no final do ano passado, dizem respeito a 2005/2006, e não incluem a descida de perto de um terço dos homicídios registados no Relatório de Segurança interna de 2007, um documento que apresenta um número de assassinatos inferior ao divulgado pela ONU.
Entre os 22 países da União Europeia (UE) que aparecem no documento das Nações Unidas, Portugal ocupa o quarto lugar, atrás da Lituânia (8,13 homicídios por 100 mil habitantes), Estónia (6,79) e Letónia (6,47), todos localizados no Leste europeu.

Bélgica, Bulgária, França, Hungria e Luxemburgo não responderam aos inquéritos que serviram de base ao relatório.

A seguir a Portugal - que, ao contrário de muitos dos países analisados, respondeu a todos os inquéritos solicitados pela ONU e que envolvem polícia, tribunais, Ministério Público e prisões -, os países europeus com a maior taxa de homicídios são a Finlândia e a Escócia, ambos com 2,13 crimes por 100 mil habitantes. No extremo oposto surge Malta, que não registou nenhum crime deste tipo em 2006. Seguem-se a Eslovénia (0,60), Áustria (0,73) e Espanha (0,77). Portugal fica muito longe dos piores do mundo, como El Salvador, na América Central, onde há 58 pessoas assassinadas em cada 100 mil habitantes.
No documento da ONU lê-se que a maior cidade portuguesa, Lisboa, tem uma taxa de homicídios “baixa comparada com os outros países da Europa Ocidental”. Em 2005, a região de Lisboa, com pouco mais de dois milhões de habitantes, registou 15 assassinatos e, no ano seguinte, 17.
Quanto aos dados globais, a ONU contabiliza 175 homicídios intencionais em 2005 e 227 em 2006. Os números apresentados não são, no entanto, coincidentes com os do Relatório de Segurança Interna, que regista 161 homicídios voluntários consumados em 2005 e 194 no ano seguinte. Em 2007 foram 133, metade dos ocorridos em 2002. Qualquer dos valores representa uma descida significativa face aos 340 homicídios verificados em 1998 e os 299 no ano seguinte.