Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 4ª SECÇÃO | ||
| Relator: | JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO | ||
| Descritores: | RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL REQUISITOS RELEVÂNCIA JURÍDICA INTERESSE DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS PLATAFORMAS DIGITAIS PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE SUBORDINAÇÃO JURÍDICA | ||
| Data do Acordão: | 10/15/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA EXCEPCIONAL | ||
| Decisão: | ADMITIDA A REVISTA EXCECIONAL | ||
| Sumário : | I. A relevância jurídica prevista no art.º 672.º, n.º 1, a), do CPC, pressupõe uma questão que apresente manifesta complexidade ou novidade, evidenciada nomeadamente em debates na doutrina e na jurisprudência, e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa assumir uma dimensão paradigmática para casos futuros. II. As alterações derivadas da Agenda do Trabalho Digno e introduzidas no Código do Trabalho de 2009 vieram dar, através da consagração do regime constante do artigo 12.º-A desse diploma normativo, expressão legal concreta às dúvidas e problemas que as particularidades da mencionada prestação de serviços por parte daqueles trabalhadores vinha suscitando junto da doutrina nacional e estrangeira e da jurisprudência internacional – designadamente, daquela emitida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia -, bem como no seio da sociedade civil de muitos Estados [com especial incidência para os sindicatos] e de organizações transnacionais como a Organização Internacional do Trabalho [OIT] ou a já referida União Europeia [que, a propósito, emitiu diversos Regulamentos e Diretivas]. III. A pretendida qualificação jurídica nas relações de natureza profissional que se estabelecem entre os referidos trabalhadores e as empresas que exploram tais plataformas digitais tem naturalmente de considerar os contratos-quadro firmados entre ambos, mas não pode ignorar também a prática mais ou menos quotidiana que deriva das relações que, efetivamente, entre os primeiros e as segundas se verificam e que podem ou não respeitar ou sequer corporizar, de alguma maneira, os diversos aspetos e facetas que formalmente foram definidos nos ditos contratos-tipo para essas relações. IV. As decisões judiciais nacionais proferidas pelos tribunais da primeira e segunda instância evidenciam uma divisão acentuada entre a correta e adequada perspetiva a adotar na interpretação e aplicação da presunção ilidível constante do artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009 e na perceção e valoração da subordinação jurídica reclamada no quadro da atividade das plataformas digitais, por referência ao relacionamento mais ou menos profissional que as mesmas estabelecem com os prestadores de serviços [conhecidos como estafetas]. V. O quadro factual e jurídico que deixámos traçado permite-nos afirmar que não se mostra preenchido o requisito da alínea a) do número 1 do artigo 672.º do NCPC, dado nos depararmos manifestamente com uma temática «cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». VI. Os interesses de particular relevância social respeitam a aspetos fulcrais da vivência comunitária, suscetíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação. VII. Verifica-se, igualmente, a integração na alínea b) do mesmo número 1 do artigo 672.º dessas mesmas questões, por se nos afigurar que essa problemática, pela preocupação e atenção que desperta junto do sentir comunitário, devido, designadamente, à extensão, dimensão e visibilidade crescente do universo de prestadores de serviços que é, desta forma, profissionalmente ou ocasionalmente, utilizado pelas plataformas digitais no desenvolvimento da sua atividade, reconduz-se suficientemente a interesses de particular relevância social, com a configuração jurídica que antes deixámos aflorada. VIII. Finalmente, no que toca à integração da alínea c) do número 1 do artigo 672.º do NCPC, constata-se uma óbvia oposição, no que respeita à essência das questões suscitadas neste recurso de revista excecional, entre o aresto recorrido e o acórdão fundamento que foi indicado pelo recorrente Ministério Público e que já transitou em julgado. | ||
| Decisão Texto Integral: |
RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL N.º 20/24.0T8LSB.L1.S2 (4.ª Secção) (Processo n.º 20/24.0T8LSB – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo do Trabalho de Lisboa - Juiz 1) ACORDAM NA FORMAÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 672.º, N.º 3, DO CPC, JUNTO DA SECÇÃO SOCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I – RELATÓRIO 1. O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou, no dia 29/12/2023, ação declarativa de reconhecimento da existência de contrato de trabalho [ARECT], com processo especial, contra UBER EATS, UNIPESSOAL, LDA., devidamente identificada nos autos, peticionando que seja declarada a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre UBER EATS, UNIPESSOAL, LDA.. e AA, com início reportado a 1/10/2020. * 2. Citada, a Ré contestou, tendo se defendido por exceção e impugnado os factos alegados pelo Autor, pedindo, a final, a improcedência da ação. * 3. O Ministério Público respondeu à matéria de exceção, pugnando pela sua improcedência. * 4. Notificado dos articulados, AA veio apresentar requerimento onde se limitou a afirmar, em língua inglesa, que aceitava o que se encontrava nos autos. * 5. Foi proferido, com data de 20/3/2024, Despacho Saneador, no qual se conheceu a exceção, que foi julgada improcedente, sem reação das partes. * 6. Realizou-se Audiência Final, com observância do legal formalismo, no início da qual foi prescindida a produção de prova testemunhal e os factos foram considerados assentes por acordo entre as partes. * 7. Por Sentença de 1/10/2024, a ação foi considerada improcedente e, em consequência, a Ré foi absolvida do pedido. * 8. O Ministério Público, na sua qualidade de Autor, interpôs recurso de Apelação. * 9. Por Acórdão de 12/03/2025, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida. * 10. O Ministério Público interpôs recurso de Revista Excecional, ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º 1, als. a), b) e c) do CPC. 11. Por despacho de 9/05/2025, foi admitido tal recurso de revista excecional e determinada a subida dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça. * 12. Chegados os autos de recurso a este Supremo Tribunal de Justiça foi proferido pela relatora do mesmo, com data de 3/6/2025, despacho judicial que, admitindo a eventual aplicação ao litígio dos autos do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, determinou a notificação das partes para se pronunciarem sobre tal questão, o que veio a acontecer, tendo Ministério Público e a Ré UBER EATS, apresentado, para o efeito, os requerimentos de 4/6/2025 e 20/6/2025. 13. Veio então, com data 27/6/2025, a ser proferido pela ilustre relatora despacho liminar que admitiu a presente revista excecional, por considerar verificados os requisitos gerais de recorribilidade assim como a existência de uma situação de dupla conforme, nos termos do número 3 do artigo 671.º, vindo, nessa medida, a remeter os autos à formação prevista no número 3 do artigo 672.º, ambos do NCPC. * 14. O recorrente MINISTÉRIO PÚBLICO resume nas suas conclusões as diversas facetas do mesmo: «VIII - Verifica-se no caso em apreço uma situação de dupla conforme que obsta ao recurso de revista normal, nos termos do artigo 671.º, n.º 3 do CPC. IX - Sem embargo o profundo respeito que nos merece o referido Acórdão, não pode o Ministério Público concordar com a absolvição da Ré, nos moldes em que a mesma foi fundamentada, por considerar não ser despiciendo o primeiro dos indícios de laboralidade mencionado - a inserção do estafeta numa organização alheia, estruturada e organizada pela Ré - e ainda por discordar do entendimento aí expresso que a atividade do estafeta não é realizada em local determinado pela plataforma digital e que a aplicação informática utilizada pelo estafeta e disponibilizada pela Ré não constitui equipamento ou instrumento de trabalho. X - Entende assim o Recorrente ser de admitir o presente recurso de revista excecional fundando a sua pretensão no disposto as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, por considerar que a definição do que possa ser entendido como “inserção na estrutura organizativa da Ré”, “determinação do local de exercício da atividade do estafeta” e “equipamento ou instrumento de trabalho”, para efeitos da caracterização do vínculo em análise nos presentes autos e sua integração no conceito de contrato de trabalho nos termos dos artigos 11.º e 12.º do CT, corresponde a matéria cuja avaliação, pela sua relevância jurídica e social, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. XI - Com efeito, o Acórdão objeto de recurso, ao entender que a inserção do estafeta na estrutura organizativa da Ré, não evidencia o exercício de poderes de autoridade e não releva para efeito de preenchimento daquele indício de laboralidade, ao considerar que a Ré não determina o local onde o estafeta irá exercer a sua atividade e ainda ao considerar que o software gerido pela Ré (APP) não integra o conceito de equipamento ou instrumento de trabalho, incorre em erro de aplicação e interpretação das correspondentes normas jurídicas.- artigos 11.º e 12.º, n.º 1, als. a) e b) do CT XII - A admissão do presente recurso de revista excecional justifica-se ainda ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC por se verificar que o Acórdão proferido nestes autos se encontra em contradição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 4306/23.2T8VFX.L1, o qual correu seus termos no J1 do Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte datado de 5/12/24 e transitado em julgado em 26/12/24, (Acórdão fundamento) sendo que este se reporta à mesma questão fundamental de direito em apreciação nestes autos, (qualificação da APP como instrumento de trabalho) tendo como Ré a aqui Recorrida XIII - Verifica-se uma frontal contradição de Acórdãos, entre o Acórdão recorrido e o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 5/12/24, já transitado em julgado, - Acórdão fundamento - proferido no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito – definir se a APP disponibilizada pela Recorrida para que os estafetas possam prestar a sua atividade, integra o conceito de equipamento ou instrumento de trabalho para efeitos de aplicação da presunção de laboralidade consagrada no artigo 12.º, n.º 1 al. b) do CT. XIV - Assim, também com esse fundamento, e porque se verifica a necessidade de promover a uniformidade jurisprudencial e a certeza na aplicação do direito, se considera verificarem-se os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista excecional a que se refere a al. c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC. XV - Entende o Recorrente que, perante as novas formas de trabalho surgidas recentemente, as quais implicam um novo paradigma quanto ao desenvolvimento de uma atividade em contexto laboral, não podem tais relações ser avaliadas e catalogadas de acordo com os velhos conceitos que presidiram à conceptualização do contrato de trabalho nos moldes até então vigentes. XVI - Com efeito, a forma como, no caso em apreço e nos casos idênticos, em apreciação nos Juízos do Trabalho de norte a sul do país, o estafeta se insere na estrutura organizativa da Ré, sem que se mostre sujeito a horário de trabalho ou sem que aufira uma retribuição fixa e regular calculada em função de um determinado período de tempo, ou mesmo tendo a faculdade de se poder fazer substituir por outro trabalhador, desde que este se mostre inserido na APP, não desvirtua a presunção de laboralidade que permite configurar tal vínculo como de trabalho. XVII - Considera-se assim que a inserção do trabalhador na estrutura organizativa da Recorrida sem que se mostre sujeito a horário de trabalho e controlo de assiduidade e a definição do software (APP) gerido por esta como configurando um equipamento ou instrumento de trabalho integram questões cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, são claramente necessárias para uma melhor aplicação do direito. XVIII - Constatando-se ainda que, segundo dados disponibilizados pelo Eurostat em Julho de 2024, existiam em Portugal cerca de 50 mil trabalhadores a operar nas plataformas digitais, e como é do conhecimento público e aliás é enfatizado a fls. 10 da sentença de 1.ª instância: “É sabido que por todo o país vieram a ser inundados os tribunais de trabalho com ações de reconhecimento de contratos de trabalho dos estafetas das plataformas.”, a apreciação de ambas as questões apontadas reveste de particular relevância social, para efeitos de admissão do presente recurso de revista excecional, por estarem em causa aspetos fulcrais para a vida em sociedade, como é a regularização dos vínculos dos referidos trabalhadores, em situação precária e chocante desproteção jurídica, questão que transcende a dimensão inter partes e revela invulgar impacto para o tecido social e para a comunidade em geral. XIX - Deverá assim, no nosso modesto entender, ser admitido o presente recurso de revista excecional, ao abrigo do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, de acordo com os fundamentos acima expendidos; XX - Acresce ainda que, como acima mencionado, a admissão do presente recurso de revista excecional justifica-se ainda ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC por se verificar que o Acórdão proferido nestes autos se encontra em contradição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 4306/23.2T8VFX.L1, o qual correu seus termos no J 1 do Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte (Acórdão fundamento) datado de 5/12/24 e transitado em julgado em 26/12/24, sendo que este se reporta á mesma questão fundamental de direito em apreciação nestes autos, tendo como Ré a aqui Recorrida. […] Pelo exposto, entendemos que deverá ser admitido o presente recurso e concedido provimento ao mesmo, revogando-se o Acórdão recorrido, de acordo com os fundamentos acima explanados e substituindo-se por outro que, acolhendo a posição acima firmada, considere que a demonstrada integração do estafeta na estrutura organizativa da Ré não carece da verificação de indícios tradicionais, como os relativos a horário e assiduidade, para permitir o reconhecimento do vínculo laboral; que a Ré determina os locais onde o estafeta exerce a sua atividade e ainda que a aplicação informática (App) gerida pela Ré e disponibilizada ao estafeta, consubstancia um instrumento de trabalho e em consequência,- verificando-se demostrados este três indícios de laboralidade, pelo que a relação entre a Ré e o estafeta AA deverá ser reconhecida como contrato de trabalho desde Outubro de 2020. Contudo Vossas Excelências, Colendos Conselheiros, farão a costumada JUSTIÇA!!» * 15. A Ré UBER EATS, UNIPESSOAL, LDA.. veio apresentar as suas contra-alegações, que finalizou nos seguintes moldes: «Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, a) Deverá ser rejeitado, por inadmissível, o Recurso interposto pelo Recorrente, quer a título excecional quer nos termos gerais; Ou, caso assim não se entenda, b) Deverá ser negado provimento ao recurso de revista, sendo, em consequência, integralmente confirmado o Douto Acórdão recorrido, só assim se fazendo o que é de Lei e de JUSTIÇA!* * 16. Cumpre decidir, tendo sido remetido previamente o projeto do Acórdão aos restantes membros da formação e tendo estes últimos tido acesso ao processo no CITIUS. II. FACTOS 17. Com relevância para a decisão, há a considerar os factos provados que constam do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa [TRL] de 12/3/2025 e que correspondem à matéria de facto dada como assente pelo tribunal da primeira instância, na sentença aí proferida, atento o acordo firmado entre as partes quanto à mesma em sede de Audiência Final. * III - QUESTÕES SUSCITADAS AO ABRIGO DAS ALÍNEAS A), B) e C) DO NÚMERO 1 DO ARTIGO 672.º DO NCPC [1] 18. Nos termos e para os efeitos do art.º 672.º, n.º 1, alínea a), reclamam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, como tal se devendo entender, designadamente, as seguintes: – “Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.º 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.ª Secção). – Quando “existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade” (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.º 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S2). – “Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito.” (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.º 474/08.1TYVNG-C.P1.S2). – “Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais.” (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.º 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2). – Questão “controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (Ac. do STJ de 13-10-2009, P. 413/08.0TYVNG.P1.S1). – “Questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.” (Ac. do STJ de 02.02.2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1). * 19. A nossa jurisprudência, quanto aos invocados interesses de particular relevância social que são enunciados na alínea b) do número 2 do artigo 672.º, fala-nos em “aspetos fulcrais para a vida em sociedade” (Ac. do STJ de 13.04.2021, P. 1677/20.6T8PTM-A.E1.S2), assuntos suscetíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação (Acs. do STJ de 14.10.2010, P. 3959/09.9TBOER.L1.S1, e de 02.02.2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1), ou que “exista um interesse comunitário significativo que transcenda a dimensão inter partes” (Ac. do STJ de 29.09.2021, P. n.º 686/18.0T8PTG-A.E1.S2), sendo certo que nesta matéria “não basta o mero interesse subjetivo do recorrente” (Ac. do STJ de 11.05.2021, P. 3690/19.7T8VNG.P1.S2). * 20. O Ministério Público, na sua qualidade de Autor e Recorrente, vem invocar também a alínea c) do número 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil de 2013, com fundamento na manifesta contradição entre o Aresto recorrido e o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 4306/23.2T8VFX.L1, o qual correu seus termos no J1 do Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte (Acórdão fundamento) datado de 5/12/24 e transitado em julgado em 26/12/24, incidindo ambos sobre as mesmas questões fundamentais de direito. * 21. A Ré, nas suas contra-alegações, vem opor-se ao recurso de revista excecional interposto pelo Autor, por entender que o mesmo não cumpre os requisitos mínimos impostos pelos números 1 e 2 do artigo 672.º do Código de Processo Civil de 2013 mas, depois de lidas as alegações e conclusões de tal recurso, considera este Supremo Tribunal de Justiça que o recorrente cumpre suficientemente os mesmos, quanto aos fundamentos invocados e que constam das alíneas a), b) e c) do número 1 daquela disposição legal. Questão diversa é a de saber se, não obstante a satisfação suficiente de tais pressupostos de cariz formal e material, os motivos de natureza substantiva e adjetiva onde pretende suportar a pertinência e significado jurídico e social deste recurso terão a relevância e repercussão necessárias, em qualquer um desses planos. * 22. [2] Debrucemo-nos então sobre as questões que foram remetidas para apreciação por esta formação, de maneira a apurarmos se os exatos contornos em que as mesmas se acham suscitadas e discutidas pelas partes nos seus articulados e alegações e tratada pelas instâncias, lhes confere a relevância jurídica proeminente reclamada pelo alínea a) do número 1 do artigo 672.º do NCPC. O Supremo Tribunal de Justiça depara-se, mais uma vez, no quadro num recurso de revista excecional, com questões muito controvertidas e fraturantes, que andam na ordem do dia dos tribunais judiciais portugueses, assim como de muitos outros tribunais de inúmeros Estados por esse mundo fora, face à proliferação global de plataformas digitais, nos mais diversos e diferentes setores de atividade, que para o efeito, veem o seu funcionamento depender de algoritmos informáticos desenhados especificamente para concretizar, de uma forma eficiente e eficaz, os objetivos e fins perseguidos por tais plataformas [3]. Os reflexos dessa realidade no plano do mundo do trabalho chegaram finalmente aos juízos e secções laborais do nosso sistema judiciário, essencialmente por iniciativa no Ministério Público, ao propor as inerentes ações de reconhecimento de existência de contrato de trabalho [ARECT], destinadas a obter decisões judiciais que apreciem e declarem a vigência de contratos de trabalho desde uma determinada data ou por um determinado período temporal, na sequência da comunicação e envio dos necessários elementos escritos por parte da Autoridade para as Condições do Trabalho [ACT], como resultado da atuação prévia e preliminar efetuada por essa entidade estatal junto dos eventuais trabalhadores subordinados e das empresas para os quais estes últimos prestam serviços, que são obrigatoriamente intermediados pela existência e funcionamento das aludidas plataformas digitais. As alterações derivadas da Agenda do Trabalho Digno e introduzidas no Código do Trabalho de 2009 vieram dar, através da consagração do regime constante do artigo 12.º-A desse diploma normativo, expressão legal concreta às dúvidas e problemas que as particularidades da mencionada prestação de serviços por parte daqueles trabalhadores vinha suscitando junto da doutrina nacional e estrangeira e da jurisprudência internacional – designadamente, daquela emitida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia -, bem como no seio da sociedade civil de muitos Estados [com especial incidência para os sindicatos] e de organizações transnacionais como a Organização Internacional do Trabalho [OIT] ou a já referida União Europeia [que, a propósito, emitiu diversos Regulamentos e Diretivas]. Não será despiciendo realçar que as múltiplas atividades desenvolvidas por tais plataformas digitais, com base na numerosa e constante doutrina produzida em muitas partes do mundo, assim como em razão das decisões judiciais nacionais e estrangeiras conhecidas, se sustentam em contratos-quadro que, não só vão sofrendo sucessivas modificações em função da evolução da legislação aplicável e da produção doutrinária e jurisprudencial pertinente, como não são, à partida, substancialmente idênticos. Esses clausulados uniformes e gerais, sob a forma escrita, que são elaborados unicamente pelas empresas titulares das plataformas digitais e possuem a natureza jurídica de contratos de adesão, são assinados, em termos globais e nessas circunstâncias, quer pelos fornecedores dos bens, quer pelos chamados estafetas que os entregam aos consumidores dos mesmos. A pretendida qualificação jurídica nas relações de natureza profissional que se estabelecem entre os referidos trabalhadores e as empresas que exploram tais plataformas digitais tem naturalmente de considerar tais contratos-quadro firmados entre ambos, mas não pode ignorar também a prática mais ou menos quotidiana que deriva das relações que, efetivamente, entre os primeiros e as segundas se verificam e que podem ou não respeitar ou sequer corporizar, de alguma maneira, os diversos aspetos e facetas que formalmente foram definidos nos ditos contratos-tipo para essas relações. Interessa também recordar que tais acordos-quadro poderão não coincidir de empresa para empresa, ainda que se movendo dentro da mesma área de negócio e que, inevitavelmente, não corresponderão para atividades e setores produtivos distintos, sendo também suscetíveis de ser diferentes as formas de execução dos mesmos no âmbito de cada uma delas. Importa ainda referir que também os factos que são dados como provados, quer na sequência da prova produzida nos autos, quer mesmo por acordo entre as partes, variam de ação para a ação, não obstante se procurar em todas elas se fazer a qualificação jurídica e a determinação temporal do vínculo profissional em concreto que está em discussão em cada um desses autos. Diga-se, finalmente, que as decisões judiciais nacionais proferidas pelos tribunais da primeira e segunda instância evidenciam uma divisão acentuada entre a correta e adequada perspetiva a adotar na interpretação e aplicação da presunção ilidível constante do artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009 e na perceção e valoração da subordinação jurídica reclamada no quadro da atividade das plataformas digitais, por referência ao relacionamento mais ou menos profissional que as mesmas estabelecem com os prestadores de serviços [conhecidos como estafetas]. Ora, face ao que deixámos explanado, podemos afirmar objetivamente que a apreciação das questões citadas neste recurso de revista excecional se evidencia claramente necessária para uma melhor aplicação do direito devido à sua relevância jurídica? A resposta a tal pergunta tem de ser afirmativa, pois a temática exposta é, na atualidade jurídica e judiciária, de enorme relevância em termos de análise de direito, não apenas face à controvérsia acesa que em termos doutrinários e jurisprudenciais se verifica nestes últimos anos, como ainda pela abrangência quantitativa assinalável e a repercussão qualitativa presente e futura em termos jurídicos que possui. Logo, pelo seu significado e benefício para uma maior compreensão e melhor aplicação do regime legal aplicável – por referência ao preenchimento da presunção de laboralidade ilidível do artigo 12.º-A do CT/2009 e à aferição e despistagem da subordinação jurídica, que continua a ser exigida pelo legislador no quadro da atividade das plataformas digitais e dos estafetas com as quais contratam – justifica-se a intervenção e o julgamento excecional por parte deste Supremo Tribunal de Justiça de tais matérias, para os efeitos da alínea a) do número 1 do artigo 672.º do NCPC. * 23. O mesmo há a dizer quando à integração na alínea b) do mesmo número 1 do artigo 672.º dessas mesmas questões, por se nos afigurar que essa problemática, pela preocupação e atenção que desperta junto do sentir comunitário, devido, designadamente, à extensão, dimensão e visibilidade crescente do universo de prestadores de serviços que é, desta forma, profissionalmente ou ocasionalmente, utilizado pelas plataformas digitais no desenvolvimento da sua atividade, reconduz-se suficientemente a interesses de particular relevância social, com a configuração jurídica que antes deixámos aflorada. * 24. Finalmente, no que toca à integração da alínea b) do número 1 do artigo 672.ºdo NCPC, bastará atentar no que alega o Ministério Público a esse respeito, para se considerar verificado também esse pressuposto de admissibilidade deste Revista Excecional [4], a saber, uma óbvia oposição, no que respeita à essência das questões suscitadas neste recurso de revista excecional, entre o aresto recorrido e o acórdão fundamento que foi indicado pelo recorrente Ministério Público e que já transitou em julgado. * IV – DECISÃO 25. Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho e 672.º, números 1, alíneas a), b) e c) e 3 do Novo Código de Processo Civil, acorda-se, neste Supremo Tribunal de Justiça e pelos fundamentos expostos, em admitir o presente recurso de Revista excecional interposto pelo Autor MINISTÉRIO PÚBLICO. Custas a cargo da parte vencida a final - artigo 527.º, número 1 do Novo Código de Processo Civil. Registe e notifique. Lisboa, 15 de outubro de 2025 José Eduardo Sapateiro - Juiz Conselheiro relator Mário Belo Morgado – Juiz Conselheiro Adjunto Júlio Gomes – Juiz Conselheiro Adjunto _____________________________________________ 1. As referências teóricas e jurisprudenciais constantes da presente fundamentação, assim como dois dos pontos do Sumário, foram extraídos, com a devida vénia, dos dois Acórdãos de 11/9/2024 e de 12.04.2024, proferidos, respetivamente, no Processo n.º 511/20.1T8FAR.E1.S2 (revista excecional) e no Processo n.º Processo n.º 3487/22.7T8VIS.C1.S1 (revista excecional), ambos relatados pelo Juiz Conselheiro MÁRIO BELO MORGADO.↩︎ 2. Segue-se, a partir daqui e muito de perto, em sede de fundamentação de direito, o que já se deixou argumentado no Aresto datado de 17/9/2025 e proferido por esta mesma formação, no quadro da Revista Excecional n.º 30191/23.6T8LSB.L1.S2.↩︎ 3. Ver, entre muitas outras obras nacionais e estrangeiras, acerca da crescente e multifacetada atividade de tais plataformas digitais, ainda que numa perspetiva não laboral, JOANA CAMPOS CARVALHO, “Os contratos celebrados através de plataformas digitais”, janeiro de 2025, edições ALMEDINA.↩︎ 4. Lê-se, a dado passo das conclusões das alegações do MP o seguinte: «XII - A admissão do presente recurso de revista excecional justifica-se ainda ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC por se verificar que o Acórdão proferido nestes autos se encontra em contradição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 4306/23.2T8VFX.L1, o qual correu seus termos no J1 do Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte datado de 5/12/24 e transitado em julgado em 26/12/24, (Acórdão fundamento) sendo que este se reporta à mesma questão fundamental de direito em apreciação nestes autos, (qualificação da APP como instrumento de trabalho) tendo como Ré a aqui Recorrida XIII - Verifica-se uma frontal contradição de Acórdãos, entre o Acórdão recorrido e o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 5/12/24, já transitado em julgado, - Acórdão fundamento- proferido no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito – definir se a APP disponibilizada pela Recorrida para que os estafetas possam prestar a sua atividade, integra o conceito de equipamento ou instrumento de trabalho para efeitos de aplicação da presunção de laboralidade consagrada no artigo 12.º, n.º 1 al. b) do CT. XIV - Assim, também com esse fundamento, e porque se verifica a necessidade de promover a uniformidade jurisprudencial e a certeza na aplicação do direito, se considera verificarem-se os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista excecional a que se refere a al. c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC. […] XX - Acresce ainda que, como acima mencionado, a admissão do presente recurso de revista excecional justifica-se ainda ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC por se verificar que o Acórdão proferido nestes autos se encontra em contradição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 4306/23.2T8VFX.L1, o qual correu seus termos no J 1 do Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte (Acórdão fundamento) datado de 5/12/24 e transitado em julgado em 26/12/24, sendo que este se reporta á mesma questão fundamental de direito em apreciação nestes autos, tendo como Ré a aqui Recorrida.»↩︎ |