Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS | ||
Descritores: | RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO REAPRECIAÇÃO DA PROVA PODERES DA RELAÇÃO DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA PROVA TABELADA DIREITO ADJETIVO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA NULIDADE DE ACÓRDÃO FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 04/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Sumário : | I – Embora a Relação tenha o poder/dever de modificar a decisão da matéria de facto se e quando for de extrair da reapreciação dos meios de prova um resultado diferente do que lhe foi dado pela 1.ª Instância, o Supremo não pode, tendo sido impugnada a decisão de facto, escrutinar/controlar, “em substância”, o uso (não uso ou uso deficiente) que a Relação fez de tal poder/dever de modificar a decisão da matéria de facto (quando estão em causa provas sujeitas à livre apreciação do julgador). II – E se o Supremo não pode escrutinar/controlar, “em substância”, tal poder/dever da Relação, tem o Supremo – para não incorrer em intromissões indevidas em matéria que lhe está vedado escrutinar/controlar – que ser contido no escrutínio/controlo dos aspetos adjetivos em que a decisão de facto (de modificação ou não) proferida pela Relação se exterioriza (quando estão em causa provas sujeitas à livre apreciação do julgador). III – Assim, no controlo/escrutínio do dever de fundamentação da Relação, não pode/deve o Supremo ir além do que se entende constituir nulidade da sentença/acórdão por falta de fundamentação, ou seja, não pode considerar-se suficiente apenas a fundamentação da Relação que seja sólida, densa e completa, sob pena de, sendo de outro modo, poder estar o Supremo a incorrer em intromissões no que lhe está vedado escrutinar/controlar. | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I – Relatório AA instaurou ação declarativa, com processo comum, contra BB e CC, todos com os sinais dos autos, pedindo a declaração de nulidade de doação do imóvel que identificou no petitório, alegando a existência de conluio entre si e a 1.ª R., doação cujo exclusivo fim foi o de se furtarem ao pagamento de dívidas. As RR. contestaram, impugnando essa factualidade, afirmando que a doação correspondeu à vontade real dos outorgantes e nunca tiveram como propósito o fim que o A. mencionou. Os autos seguiram os seus termos – tendo a instância sido declarada regular, estado em que se mantém – vindo, após a realização da audiência, a ser proferida sentença que decidiu: a) Declarar a nulidade do contrato de doação celebrado entre o autor e a rés no dia 25 de Janeiro de 2017, celebrado no Cartório Notarial DD, em ..., Livro 393-A, folhas 84 e descrito no ponto 2 e 3 dos factos provados, por simulação absoluta; b) Determinar o cancelamento do registo da propriedade do prédio identificado no facto provado n.º 1. Inconformadas, apelaram as RR., tendo a Relação de Guimarães, num primeiro Acórdão proferido, conhecido da impugnação da matéria de facto quanto à invocada contradição entre a motivação da decisão e a matéria dada por não provada (que considerou não ocorrer) e rejeitado, por entender não terem sido observados os requisitos processuais, a restante impugnação da decisão relativa à matéria de facto; confirmando de seguida a sentença recorrida. Ainda inconformadas, interpuseram as RR. recurso de revista que, neste STJ, foi admitido como de “revista normal”, recurso que, por Acórdão de 13/04/2023, foi julgado procedente, “(…) determinando a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Guimarães, a fim de aí se conhecer do recurso de apelação interposto pelas Rés, na parte relativa à impugnação da decisão da matéria de facto (com exceção daquela em que foi apreciada a alegada contradição entre a motivação da decisão e a matéria dada por não provada acima indicada), bem como das suas eventuais implicações no julgamento jurídico da causa, mormente quanto à matéria tida por prejudicada pela rejeição do recurso de facto”. Regressados os autos ao T. R. de Guimarães, este, por Acórdão de 07/06/2024, julgou improcedente a impugnação da decisão de facto e a apelação, confirmando a decisão recorrida. Ainda e mais uma vez irresignados, interpõem as RR. o presente recurso de revista, pedindo a revogação do Acórdão recorrido e “a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Guimarães para que seja efetivamente apreciada a apelação na parte relativa à alteração da matéria de facto pretendida pelas recorrentes e, uma vez fixada a matéria de facto provada e não provada, sejam apreciadas as demais questões jurídicas suscitadas nas alegações desse recurso” Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões: 1.ª - A respeito do recurso a interpor para o Supremo Tribunal de Justiça, é hoje pacífico o entendimento já firmado por este Tribunal ad quem de que deve admitir-se a revista regra ou normal quando é alegada a violação de disposições processuais, pelo Tribunal da Relação, no exercício dos respetivos poderes de reapreciação da decisão de facto, i.e., quanto à parte do acórdão recorrido em que se apreciou a impugnação da decisão sobre a matéria de facto E isto sucede independentemente de ter havido ou não ter havido dupla-conforme porque em causa estará a violação de disposições processuais e, pois, de matéria de Direito. 2.ª - Assim, não obstante a convergência decisória das instâncias quanto ao mérito da causa, é admissível recurso de revista, nos termos gerais, porque as recorrentes consideram que houve violação de direito probatório adjetivo por entenderem que o Tribunal da Relação não reapreciou verdadeiramente a matéria de facto, apenas se pronunciando formalmente sobre a mesma com total ausência de análise crítica da (globalidade) da prova produzida nos autos e sem desenvolver o iter decisório que permitiria sindicar a sua decisão, em clara violação dos poderes/deveres que sobre si recaem. 3.ª - Porém, caso se entenda que não deve ter lugar a revista normal, o recurso que se interpõe sempre deverá ser admitido a título excecional porque está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito Assim é porque o Tribunal a quo, na decisão que se impugna, afastou-se e contrariou a decisão deste Supremo Tribunal de Justiça que, concedendo a revista, ordenou a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Guimarães, a fim de aí se conhecer do recurso de apelação interposto pelas recorrentes, na parte relativa à impugnação da decisão da matéria de facto. Nessa medida, porque a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães não deu cumprimento ao doutamente ordenado pelo Supremo Tribunal de Justiça, procurando encobrir formalmente tal incumprimento, é evidente que esta será uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito tanto mais que, caso contrário, poderemos ter uma decisão transitada em julgado de uma das instâncias superiores que não foi respeitada por uma instância que, sendo superior, lhe é hierarquicamente inferior e por isso esta é, pois, uma situação que coloca em causa a legitimidade do sistema judicial e a boa administração de justiça. 4.ª - Tendo sido proferido acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça que determinou a revogação do acórdão do Tribunal da Relação recorrido e a reapreciação de um conjunto de factos impugnados pelas recorrentes, não podia o Tribunal a quo, como fez, no âmbito desse novo julgamento, reduzir essa apreciação à mera enunciação e síntese das provas produzidas, sem verdadeiramente curar de formaruma convicção própria sobre a prova dessespontosde facto e partindo de uma perspetiva incondicional e incondicionada sobre a resposta a cada um desses pontos de facto 5.ª - A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância, pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição e por isso o Tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efetivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual. 6.ª - Na reponderação da decisão sobre a matéria de facto, para garantir um duplo grau de jurisdição em tal âmbito, a Relação deverá formar e fazer refletir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação da prova, motivando-a de forma clara e apresentando o respetivo iter decisório 7.ª - No caso, o Tribunal da Relação desenvolveu uma interpretação da decisão do Tribunal ad quem que não se coaduna com o que foi decidido já que para além de não desenvolver uma verdadeira reapreciação da matéria de facto impugnada, por se ter limitado a enunciar e resumir as provas (sem qualquer análise global ou crítica das mesmas), fê-lo sem desenvolver qualquer motivação ou sem concretização aos factos, que se limitou a elencar de forma global e num bloco unitário Com o devido respeito, as recorrentes entendem que o acórdão não desenvolveu a motivação exigida pois que dele não consta análise crítica da prova nem sequer consta estabelecida qualquer relação entre as provas e os concretos factos ou blocos de factos que as mesmas poderiam comprovar 8.ª - Da decisão proferida não é possível às recorrentes retirar que o Tribunal da Relação efetivamente se debruçou sobre a prova, que a leu, ouviu ou visualizou e como tal a decisão contendeu com o acesso à Justiça e à tutela efetiva. 9.ª - A leviandade com que o Tribunal a quo proferiu a sua decisão resulta ainda do facto de no próprio acórdão recorrido ter referido desconhecer a existência de decisão de admissibilidade da revista excecional e logo depois proferir acórdão ao abrigo da decisão deste Supremo Tribunal de Justiça, mas também do despacho de 29.05.2023 que parece ter procurado impor limites/restrições ao recurso de apelação interposto pelas recorrentes, mesmo depois da decisão deste Tribunal a quo que ordenou a reapreciação da matéria de facto impugnada. 10.ª - Com a decisão que proferiu, o Tribunal da Relação de Guimarães não só se furtou ao exercício de uma das funções mais nobres dos Tribunais da Relação, que consiste na reapreciação da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, quando impugnada, em sede de recurso, porquanto, afinal, é da fixação dessa matéria que depende a aplicação do direito determinante do mérito da causa e do resultado da ação, como impediu o duplo grau de jurisdição no âmbito do julgamento da matéria de facto. 11.ª - E, por isso, merece reparo esta decisão, devendo os baixos baixar à 2.ª Instância para que esta desenvolva uma reanálise aprofundada sobre a matéria de facto de impugnada, com todas as devidas consequências legais na apreciação posterior da matéria de direito. (…)” Não foram apresentadas contra-alegações. Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir. * II - Fundamentação A – Elementos Factuais Relevantes A propósito da apreciação/conhecimento da impugnação da decisão de facto (suscitada pelas RR. na apelação), expendeu-se no Acórdão recorrido – após considerações gerais sobre o modo de apreciar os meios de prova – o seguinte: “ (…) Em matéria de depoimento de parte, as fragilidades do da recorrente BB foram logo acertadamente sublinhadas pelo Sr. Juiz a quo (pese embora a circunstância de, na gravação do Citius figurar o nome de uma mulher como magistrada judicial). Negando a existência de acordo simulatório e justificando o negócio com o fim de dar protecção à filha de ambos, que se apresenta com debilidades de cariz neurológico e acrescentando que à data da doação não existiam dívidas, perde a sua credibilidade quando vem a reconhecer que, afinal, sempre tinham dívidas às Finanças e ao ISS, por dificuldades financeiras. Nesta família existia, claramente, um quadro de incapacidade de cumprir as obrigações assumidas, uma vez a própria casa de morada de família foi objecto de execução e depois vendida, o que, atenta a normalidade da vida, torna inverosímil uma doação a uma filha com o exclusivo propósito de a proteger, ao mesmo tempo que, dito pelo autor, o filho mais novo recebeu três carros. Diz que a filha é que gere o supermercado, mas, simultaneamente, traça um quadro de impressiva incapacidade da filha para o fazer, afirmando que é ela própria que está sempre no supermercado. A acrescer quanto à inverosimilhança, repare-se que, na mesma data da doação, o prédio ficou também onerado com uma hipoteca a favor de EE, mas quer a testemunha FF, quer a sua mãe, GG, depuseram no sentido de ausência de fundamento para a constituição de tal ónus e que o intuito foi tão só o da fuga aos credores e salvaguarda do património do, ao tempo, ainda casal. Mas, inimpugnável é a existência de sentença proferida no procº 28/18.4... onde a confissão de dívida foi declarada nula com fundamento em simulação e ordenado o cancelamento da hipoteca acabada de referir. As declarações desta ré abundam pelas incongruências e trazem aos autos alicerces sólidos para que o tribunal não lhes confira qualquer credibilidade. Já o autor declarou que se simulou a doação e a hipoteca, por aconselhamento do advogado. A doação traria segurança por estar em nome da filha, sendo que a hipoteca não chegaria para o efeito. Os carros passaram para o nome do filho, também para fugir às dívidas, tudo na mesma altura. Quanto à segunda ré: o teor dos articulados e as declarações interessadas da sua mãe para a improcedência da acção, que considerou que ela padecia de défice e demandava acompanhamento, conduzem-nos à exigência de um especial cuidado na valoração do que disser. Tem 36 anos. Diz que está ali para ter o supermercado em seu nome. Afirma que a doação ocorreu quando ela tinha 17 anos, esclarecendo que foi em 2015. No dia da sua escritura estava lá o FF para assinar uma escritura, mas não sabe porquê, acha que era “para dar a doação a mim”. Não sabe se o prédio está registado em seu nome. Os pais deram-lhe para ela ter um futuro melhor e a mãe disse-lhe que tinha pago as dívidas todas. A casa onde viviam “ficou para o Banco”, disse. Não sabe se está colectada, diz que é a mãe que trata de tudo, nada sabendo dos impostos. Acha que não tem conta bancária. Está todos os dias no supermercado, à frente do computador, até tirou um curso para isso, em .... A mãe é que paga ao contabilista. Tudo considerado, em especial o facto de ter 36 anos, o facto de, apesar do curso e de ser proprietária, nada saber sobre impostos, sequer se está colectada ou se existe conta bancária, torna o depoimento dessa ré muito frágil, com as condicionantes que, no início, se enunciaram e que, agora, se corroboram. Já a testemunha FF, começou por dizer que é patrão do autor, (porque tem talhos) desde 2017 ou 18, sendo que a sua mãe é que era amiga dele. Só no dia da escritura da hipoteca, referente ao prédio ora em causa, é que soube da doação à filha. O casal disse-lhe que tinha dívidas e assinou a escritura porque lhe pediram. Disseram-lhe que a casa que ficou para o Banco podia não chegar para pagar. E sabe que tinham outras dívidas. A testemunha figurou como credor em 6 prédios. Este depoimento vai de encontro ao que declarou GG que disse que a ré BB e o autor tinham problemas financeiros e apareceram lá em casa a pedir para os ajudar; nessa sequência, foi feita a hipoteca a favor do FF e a doação à filha ré. Disseram-lhe que a doação era para fugir às dívidas. Até lhe pediram a ela, mas a testemunha disse para fazer ao filho FF. HH, testemunha, amiga e cliente: Ouvida, tal como se consignou na sentença, nada sabe para além das conversas que teve com a BB, depois da doação. Não falou com o autor sobre o negócio. Confirma a existência de dívidas, por relato da ré BB. Confirma também que a CC está sempre no supermercado, atende e faz as contas. Acha que aquilo é dela, por estar lá e pelo que lhe disse a BB. Disse também que os pais das BB eram “pessoas de terrenos”. II, amiga e cliente da BB: Mencionou que a BB lhe disse que o casal fez uma doação à filha. Confirma a existência de dívidas da responsabilidade do casal. A CC está sempre no supermercado. A partir de certa altura, as facturas passaram a vir em nome da CC. Duas testemunhas de reduzido valor probatório, posto que a sua razão de ciência se circunscreve à presença da CC no supermercado, mas o móbil da doação é apenas relatado pela BB. Relativamente a JJ, irmã da BB, declarou que o autor lhe disse que fez a doação para garantir o futuro dela. “Dívidas?”: ela pagou muitas e eu também, disse a testemunha. A BB vendeu 4 lotes e pediu dinheiro à mãe e à testemunha, para pagar dívidas, mas não sabe quando ocorreram tais pagamentos. Estes depoimentos, embora não tenham tido esse fim em vista, confirmam a complicada situação do casal, a existência de várias e significativas dívidas. O quadro resultante do enunciado, aliado à incontornável sentença que declarou simulada a assunção de dívida perante o FF, a pedido do autor e da ré BB, à simultaneidade desta assunção com a da doação, à perda de bens na sequência de dívidas, bem como aos depoimentos das testemunhas FF e GG, leva o tribunal a concluir pelo completo acerto das respostas dadas pelo Sr. Juiz a quo, pelo que se mantêm como “Provados” os factos elencados sob os números 4, 5, 6, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15, continuando como “Não Provados” os que se qualificam como tal sob os n.ºs 1, 3, 4, 6, 7, 9, 11, 13, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 27, 29, 30, 34, 35, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 47, 50, 51 e 52. Esta convicção tem em conta que, como dissemos já, a prova directa dos factos torna-se assaz difícil, senão mesmo impossível, pelo que, com recurso a dados objectivos e da normalidade da vida, tenta-se descortinar a vontade dos outorgantes, indagar a sua verdadeira intenção. Além disso, sabemos que a prova de um facto não resulta apenas de um só depoimento, mas é fruto da conjugação de todos os meios de prova produzidos, sujeitos a um crivo de apreciação e valoração assente em critérios de razoabilidade, sensatez e credibilidade. Não se descortina qualquer erro na apreciação da prova e a convicção do tribunal de recurso coincide com a da 1ª instância. Improcede a alteração da matéria de facto. (…)” * B – De Direito Em anterior revista, como consta do relato inicial, as RR. invocaram que a Relação, ao rejeitar a impugnação da decisão de facto (impugnação que as RR. haviam suscitado na apelação que haviam interposto), não havia respeitado o que, em termos de ónus/requisitos, decorre do disposto no art. 640.º do CPC, tendo este STJ, no consequente Acórdão proferido (em tal anterior revista), concedido a revista e ordenado que a Relação conhecesse da impugnação da decisão de facto. Regressados os autos à Relação e proferido por esta Acórdão em cumprimento do anterior Acórdão deste STJ, vêm agora as RR. invocar novo erro/violação de disposições processuais por parte da Relação, sustentando, em síntese, que a “Relação não reapreciou verdadeiramente a matéria de facto, apenas se pronunciando formalmente sobre a mesma com total ausência de análise crítica da (globalidade) da prova produzida nos autos e sem desenvolver o iter decisório que permitiria sindicar a sua decisão, em clara violação dos poderes/deveres que sobre si recaem”. Como se expôs no despacho que admitiu a presente revista, a admissibilidade (ou não) da revista com fundamento na violação do art. 662.º/1 do CPC não tem a simplicidade que parece resultar quer do texto do art. 662.º/4 do CPC (em que se diz, negando a admissibilidade de toda e qualquer revista, que “das decisões da Relação previstas nos nºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”) quer dos sumários (invocados pelas RR./recorrentes) que, aparentemente ao arrepio do texto do art. 662.º/4 do CPC, anunciam uma ampla recorribilidade. Como ali também se expôs, a interpretação que se faça do art. 662.º/4 do CPC – mais ab-rogatória ou menos ab-rogatória – não pode consentir que se invoquem (e deem lugar a revista) violações do art. 662.º/1 do CPC assentes em divergências, explícitas ou implícitas, relativamente ao julgamento de facto feito pela Relação, agindo esta ao abrigo do princípio da livre apreciação de meios de prova, seja esta a prova testemunhal, documental ou pericial (uma vez que tal atuação da Relação é, nos termos do art. 674.º/3/1.ª parte do CPC, insindicável através do recurso de revista); ou seja, não pode aproveitar-se a revista que se diz intentar com fundamento na violação do art. 662.º/1 do CPC (por forma a que o acórdão da Relação passe a comportar revista) para suscitar a reapreciação da matéria de facto e colocar o Supremo, tendo em vista sindicar o “uso” que a Relação fez dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662.º/1 do CPC, a reapreciar a matéria de facto (foge ao controlo do Supremo uma 2.ª reapreciação das provas sujeitas à livre apreciação do julgador). E com isto queremos dizer, muito abertamente, que é irrealizável e inadmissível (em obediência ao disposto no referido 674.º/3/1.ª parte do CPC) um completo e amplo controlo e escrutínio, por parte do Supremo, dos poderes/deveres conferidos pela art. 662.º/1 do CPC à Relação. Como decorre de tal art. 662.º/1 do CPC, a Relação tem o poder/dever de modificar a decisão da matéria de facto se e quando for de extrair da reapreciação dos meios de prova um resultado diferente do que lhe foi dado pela 1.ª Instância, porém, uma vez que foge ao controlo do Supremo uma 2.ª reapreciação das provas sujeitas à livre apreciação do julgador (cfr. art. 674.º/3/1.ª parte do CPC), não poderá o Supremo escrutinar/controlar o uso (ou o não uso) que a Relação fez do poder/dever de modificar a decisão da matéria de facto. E é tendo isto pressente, cientes da inadmissibilidade dum tal escrutínio/controlo por parte do Supremo, que as RR./recorrentes vêm dizer/invocar: - que o Acórdão recorrido não reapreciou verdadeiramente a matéria de facto, apenas se pronunciando formalmente sobre a mesma com total ausência de análise crítica da (globalidade) da prova produzida nos autos e sem desenvolver o iter decisório que permitiria sindicar a sua decisão; - que o Acórdão recorrido não podia reduzir a sua apreciação à mera enunciação e síntese das provas produzidas, sem verdadeiramente curar de formar uma convicção própria sobre a prova desses pontos de facto; - que a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância, pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição e por isso o Tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efetivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual; - que a Relação deverá formar e fazer refletir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação da prova, motivando-a de forma clara e apresentando o respetivo iter decisório; - que o Tribunal da Relação desenvolveu uma interpretação da decisão do Tribunal ad quem que não se coaduna com o que foi decidido já que para além de não desenvolver uma verdadeira reapreciação da matéria de facto impugnada, por se ter limitado a enunciar e resumir as provas (sem qualquer análise global ou crítica das mesmas), fê-lo sem desenvolver qualquer motivação ou sem concretização aos factos, que se limitou a elencar de forma global e num bloco unitário; - que o acórdão não desenvolveu a motivação exigida pois que dele não consta análise crítica da prova nem sequer consta estabelecida qualquer relação entre as provas e os concretos factos ou blocos de factos que as mesmas poderiam comprovar - que da decisão proferida não é possível às recorrentes retirar que o Tribunal da Relação efetivamente se debruçou sobre a prova, que a leu, ouviu ou visualizou e como tal a decisão contendeu com o acesso à Justiça e à tutela efetiva. Pois bem, já referimos – e não será demais sublinhá-lo – que, embora a Relação tenha o poder/dever de modificar a decisão da matéria de facto se e quando for de extrair da reapreciação dos meios de prova um resultado diferente do que lhe foi dado pela 1.ª Instância, o Supremo não pode, tendo sido impugnada a decisão de facto, escrutinar/controlar, “em substância”, o uso (não uso ou uso deficiente) que a Relação fez de tal poder/dever de modificar a decisão da matéria de facto (quando estão em causa provas sujeitas à livre apreciação do julgador). E, claro, se o Supremo não pode escrutinar/controlar, “em substância”, tal poder/dever da Relação, tem o Supremo – para não incorrer em intromissões indevidas em matéria que lhe está vedado escrutinar/controlar – que ser contido no escrutínio/controlo dos aspetos adjetivos em que a decisão de facto (de modificação ou não) proferida pela Relação se exterioriza (quando, repete-se, estão em causa, como é o caso, provas sujeitas à livre apreciação do julgador). Vem isto a propósito do poder/dever de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto por parte da Relação se exteriorizar no dever da Relação fundamentar – aspeto adjetivo relacionado com a decisão de facto – o que tiver decidido em termos de reapreciação. Tal exigência legal de fundamentação impõe que a Relação estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respetiva apreciação crítica nos seus aspetos mais relevantes, ou seja, a Relação deve justificar os motivos da sua decisão, deve declarar por que razão deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, por que julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos. Mas, no controlo/escrutínio de tal dever de fundamentação, não pode/deve o Supremo ir além do que se entende constituir nulidade da sentença/acórdão por falta de fundamentação, ou seja, não pode considerar-se suficiente apenas a fundamentação da Relação que seja sólida, densa e completa, sob pena de, sendo de outro modo, poder o Supremo incorrer em intromissões no que lhe está vedado escrutinar/controlar. Num caso (como o presente) em que a Relação conhece/aprecia a impugnação da decisão de facto, o que há de constar do Acórdão proferido pela Relação, em termos de análise crítica das provas, também remete para as regras de elaboração do Acórdão (art. 607.º/4 do CPC, ex vi 663.º/2 do CPC) e para as nulidades do Acórdão (art. 615.º do CPC, ex vi art. 666.º do CPC), em que uma menor densidade fundamentadora não configura, de modo algum, uma nulidade por falta de fundamentação. Num caso (como o presente) – em que as recorrentes dizem que o Acórdão da Relação não desenvolve e densifica a reapreciação da decisão de facto, não faz uma análise crítica de todas as provas e não estabelece uma relação direta entre estas e os factos – o que também acaba por estar em causa é o cumprimento ou não do dever de fundamentação por parte da Relação. E considerar-se que apreciações sobre a maior ou menor densidade fundamentadora da Relação, em sede de reapreciação da decisão de facto, estão incluídas no controlo/escrutínio do Supremo, significaria fazer dos art. 674.º/3/1.ª parte e 662.º/4, ambos do CPC, quase letra morta – transformando-se a exceção em regra e a regra em exceção – na medida em que, sendo fácil a parte vencida colocar em crise e discutir a “densidade fundamentadora” do Acórdão da Relação, fácil seria “forçar” a admissibilidade de toda e qualquer revista. Uma tal situação (da presente revista) não é comparável com a da anterior revista: uma coisa é a invocação de erro/violação, por parte da Relação, na interpretação/aplicação do art. 640.º do CPC (saber se os apelantes cumpriram ou não os ónus/requisitos impostos pelo art. 640.º do CPC), outra, bem diversa, pretender-se que seja escrutinado o modo – mais ou menos fundamentado – como a Relação externou a motivação da decisão (de facto) que tomou sobre a impugnação de facto. É claro que a Relação, no exercício dos seus poderes respeitantes à decisão da matéria de facto, não pode limitar-se, na exteriorização/fundamentação/motivação, à enunciação de argumentos abstratos e genéricos; é claro que não pode revelar que evitou a audição das gravações realizadas e a reapreciação dos meios de prova oralmente produzidos, assim como não pode declarar, para julgar improcedente a impugnação, que a modificação da decisão da matéria de facto apenas deve operar em casos de “erros manifestos” de apreciação e/ou que há insuperáveis dificuldades decorrentes do princípio da imediação, porém, fora destas situações (ou de outras semelhantes), não se vislumbra que o Supremo possa escrutinar o que a Relação externou na motivação da decisão (de facto) que tomou sobre a impugnação de facto. Isto dito, revertendo ao caso dos autos/revista, sem prejuízo do que o Acórdão recorrido externou sobre a reapreciação da decisão de facto não ser exemplar e exaustivo, o certo é que o exteriorizado revela, num limiar mínimo, como resulta da transcrição acima efetuada, que a Relação procedeu à audição dos depoimentos gravados – de que se referem passos reputados decisivos – tendo analisado minimamente a sua credibilidade e isenção, tendo em vista concluir, quanto à decisão de facto, do mesmo modo que a 1.ª Instância. Não tendo relevo, no caso, a circunstância de a decisão da Relação ter sido em bloco (como, identicamente, havia sido a impugnação das RR.): de acordo com o art. 607.º/3 do CPC, a discriminação dos factos que o juiz deve considerar provados diz respeito tão só aos factos essenciais, porém, no caso, os factos provados estão “cheios” de factos que não são essenciais (mas sim meramente instrumentais ou mesmo irrelevantes), sendo que, na “resposta” em bloco da Relação, se analisaram, num limiar mínimo, as provas com referência ao que era factualmente essencial, ou seja, com referência à factualidade respeitante à simulação negocial. Não tendo havido qualquer violação ou desrespeito em relação ao decidido no anterior Acórdão deste Supremo, em que foi determinado que se “conhec[esse] do recurso de apelação interposto pelas Rés, na parte relativa à impugnação da decisão da matéria de facto”, o que foi feito, no tal limiar mínimo, no Acórdão da Relação ora recorrido. É quanto basta para negar a revista1. * * III - Decisão Nos termos expostos, nega-se a revista. Custas pelos RR./recorrentes. Lisboa, 04/04/2024 António Barateiro Martins (relator) Fátima Gomes Nuno Ataíde ________
1. Podendo referir-se, a propósito do que se refere na conclusão 9.ª, que só há uma revista – embora se utilizem as expressões “revista normal” e “revista excecional” – o que significa que a “perplexidade” implícita no despacho da Exma. Relatora de 29/05/2023 não é pertinente, ou seja, a circunstância de, quanto à 1.ª Revista interposta, se ter dito, na Relação, que não se admitia a chamada “revista normal” (incorretamente, refira-se, face ao que o Supremo vem decidindo reiterada e uniformemente, lapso, aliás, não repetido, pela Relação, a propósito da admissibilidade da presente revista), não impedia a aplicação do art. 641.º/5 do CPC (justamente por a revista ser só uma), pelo que, tendo os autos, quanto à 1.ª Revista interposta, subido ao Supremo (em razão da chamada “revista excecional”), não podia este deixar de corrigir o lapso consistente na não admissão da chamada “revista normal”, passando a admiti-la e proferindo o correspondente Acórdão (sem necessidade de mandar os autos à “Formação”, para efeitos, da admissibilidade ou não, da chamada “revista excecional”). Não faz pois sentido fazer questão de notar, como se fez no referido despacho de 29/05/2023 e no Acórdão recorrido, que o Supremo não podia/devia, na 1.ª Revista, ter conhecido da “revista normal” e acrescentar que, “nem do processo físico, nem da consulta ao Citius, foi possível averiguar a existência de decisão quanto à admissibilidade de revista excecional”. |