Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1074/16.8JAPRT.P1.
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: ASSINATURA
IRREGULARIDADE
TENTATIVA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
REFLEXÃO SOBRE OS MEIOS EMPREGADOS
FRIEZA DE ÂNIMO
PREMEDITAÇÃO
INTENÇÃO DE MATAR
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
ILICITUDE
Data do Acordão: 07/05/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – SUJEITOS DO PROCESSO / FORMA DOS ACTOS E DA SUA DOCUMENTAÇÃO / NULIDADES – JULGAMENTO / SENTENÇA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO UNITÁRIA.
DIREITO PENAL – FACTOS / FORMAS DO CRIME / CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA – PARTE ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / HOMICÍDIO QUALIFICADO.
Doutrina:
-Anabela Rodrigues, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, 371;
-Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 27;
-Cavaleiro Ferreira, A medida da pena, Lisboa, 62;
-Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención en Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde, 1981), 93, 96 a 98;
-Eduardo Correia, Estudos sobe a reforma do Direito Penal depois de 1974, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 119º, 6;
-Figueiredo Dias, Homicídio Qualificado, Premeditação-Imputabilidade, Emoção Violenta, CJ, Ano XII, 1987, Tomo IV, 49 a 55 ; Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, 109 e ss. ; Comentário Conimbricense, Tomo I, 26 ; Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume I, 2.ª Edição, 83 e 84 ; Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas, Quid Juris, 2008, 2.ª Edição, 52 e 53, 60 e ss., 83 e 84;
-Hans Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, Barcelona, 1981, 1190, nota 5, 1201 ; Evolución del Concepto Jurídico Penal de Culpabilidad en Alemana Y Austria, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, ISSN 1695-0194 05-01(2003);
-Jackobs, Schuld und Prävention, Tübingen, 1976, 8 e ss.;
-Jorge Miranda, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, 148 a 163;
-Manuel Leal Henrique e Manuel Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª Edição, Volume II, 27 e 28;
-Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, 63 e 64;
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 95.º, N.ºS 1 E 2, 123.º, 374.º, N.ºS 2 E 3, ALÍNEAS B) E E), 379.º, N.º 1, ALÍNEA A), 380.º, N.º 1, ALÍNEA A) E 412.º, N.º 1.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 23.º, N.º 2, 40.º, N.º 2, 50.º, N.º 1, 71.º, N.º 1, 73.º, N.º 1, 131.º E 132.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA J).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 18.º, N.º 2.
TRAMITAÇÃO ELETRÓNICA DOS PROCESSOS JUDICIAIS, APROVADO PELA PORTARIA N.º 280/2013, DE 26 DE AGOSTO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 05-03-2008, PROCESSO N.º 3259/07-3ª SECÇÃO;
- DE 14-05-2009, PROCESSO N.º 389/06.8GAACN.C1.S1;
- DE 06-01-2010, PROCESSO N.º 99/08.1SVLSB.L1.S1;
- DE 06-01-2010, PROCESSO N.º 38/08.2JAAVR.C1.S1;
- DE 13-10-2010, PROCESSO N.º 200/06.0JAAVR.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 22-01-2013, PROCESSO N.º 182/10.3TAVPV.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 17-04-2013, PROCESSO N.º 237/11.7JASTB.L1.S1;
- DE 13-11-2013, PROCESSO N.º 2032/11.4JAPRT.P1.S1;
- DE 19-02-2014, PROCESSO N.º 168/11.0GCCUB.S1;
- DE 12-03-2015, PROCESSO N.º 405/13.7JABRG.G1.S1;
- DE 21-05-2015, PROCESSO N.º 605/11.4TAOAZ.P1.S1;
- DE 17-09-2015, PROCESSO N.º 134/10.3TAOHP.S3;
- DE 27-01-2016;
- DE 09-03-2017, PROCESSO N.º 74/16.2PAVFC.S1;
- DE 29-03-2017, PROCESSO N.º 5160/13.8TDPRT.P1.
Sumário :

I - A assinatura electrónica de acórdão viola o estatuído nos arts. 374.º, n.º 3, al. e) e 95.º, do CPP, sendo que o âmbito de aplicação da Portaria 280/2013, de 26-08 encontra-se restringido aos processos de natureza cível e tramitados de acordo com o CEPMPL.
II - A assinatura electrónica de acórdão integra uma irregularidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP a contrario, que embora não afectando a sua existência, deverá ser suprida, após a baixa dos autos mediante a oposição no mesmo das assinaturas autógrafas dos membros do tribunal colectivo intervenientes no acórdão recorrido, sanando, desse modo, a irregularidade verificada.
III - A premeditação, reveladora, indiciariamente, de especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime de homicídio qualificado previsto na al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP, surge materializada em três situações: frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregues e na persistência na intenção de matar por mais de 24 horas.
IV - A frieza de ânimo, traduz-se na jurisprudência deste STJ na actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a sua deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto.
V - A reflexão sobre os meios empregados, consiste na escolha ponderada pelo agente dos meios de atuação que, por força do efeito letal que possuem, facilitem a execução do crime projectado ou proporcionem mais probabilidades de êxito, traduzindo-se, deste modo, na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar.
VI - A persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (premeditação propriamente dita), traduz-se na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de ação para o executar e na persistência no propósito de matar por mais de 24 horas, tempo considerado suficiente para o agente poder vencer emoções, ultrapassar impulsos súbitos e ponderar o alcance e consequência do ato.
VII - É revelador da existência e persistência da intenção de matar a ofendida, o comportamento do arguido que, na sequência do termo da relação de namoro que manteve com P, durante cerca de 14 anos, ocorrido por decisão daquela, começou a intimidar a mesma, dizendo-lhe que a matava e que se matava também, tendo numa ocasião anterior à dos factos em análise, desferido na ofendida 2 estalos e apertando-lhe o pescoço, visando tirar a vida à ofendida o que só não conseguiu por motivos alheios à sua vontade e a forma calculada como o arguido, no dia 30 de março, se dirigiu à casa de G, levando consigo uma faca, e como logrou distrair a G (pedindo um copo de água) apanhando a vítima P sozinha e inteiramente desprevenida de modo a poder desferir uma facada no pescoço dela, o que torna a sua conduta especialmente censurável.
VIII - O quadro factual e a imagem global do facto, revela que se tratou de uma resolução criminosa, pensada e persistente, e não de uma resolução súbita, inesperada ou irreflectida, razão pela qual se conclui no sentido da improcedência do recurso relativamente à pretendida não qualificação do crime de homicídio nos termos da al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP.
IX - Improcede a alegação do arguido pela redução da pena para medida não superior a cinco anos de prisão, suspensa na sua execução, sustentando ter agido em estado de exaltação emocional em circunstâncias que diminuem a culpa, desde logo porque, contrariamente ao alegado, o que a avaliação psiquiátrica realizada na pessoa do arguido evidencia e ficou provado nos autos foi que, não obstante o mesmo apresentar, na altura, «alterações emocionais e de comportamento relativas à situação vivencial de rutura amorosa, configurando perturbação de adaptação», o arguido teve sempre capacidade de entendimento, discernimento e auto determinação que lhe permitiam quer a avaliação do ilícito, quer a determinação de acordo com essa avaliação.
X - Daí ser diminuto o valor atenuativo do referido estado de "perturbação de adaptação" em que o arguido se encontrava, situando-se, antes, o seu grau de culpa num patamar elevado, posto que a sua atuação revela ser o mesmo portador de um sentimento de posse relativamente à ofendida, que não lhe permitiu tolerar a vontade desta em querer colocar um ponto final a um namoro de 14 anos e em querer autonomizar-se, o que tudo demonstra ser o arguido portador de uma mentalidade desconforme com os valores do direito, como a autonomia da pessoa e o respeito pela li vre determinação de cada um.
XI - Daí que, na ponderação destes factores bem como dos demais factores aludidos no acórdão recorrido, à luz do falado princípio da proporcionalidade, se entenda ser ajustada a pena aplicada de 6 anos de prisão, por a mesma observar, adequadamente, as finalidades de prevenção geral, aferidas pela medida da necessidade de tutela do bem jurídico violado, mostrar-se ajustada à culpa do arguido pelos factos e responder satisfatoriamente às exigências de prevenção especial de socialização.
XII - Atento o preceituado no art. 50.º, n.º 1 do CP, prejudicado o conhecimento da suscitada questão da suspensão da execução da pena.
Decisão Texto Integral:
 RECURSO PENAL[1]


                                          
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, nº 1074/16.8JAPRT.P1,  da  Comarca do ...Instância Central – Secção Criminal – ..., foi proferido, em 20.12.2016,  acórdão que decidiu:

« a) julgar a assistente (então ofendida) carecida de legitimidade para deduzir acusação particular à data em que a formulou (porquanto não se encontrava constituído como tal) e, consequentemente, desta não tomar conhecimento;

b) condenar o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 22º, nº1 e 2, al. b) 23º, 73º, nº1, als. a) e b) e 131º e 132º, nº2, al. j) do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão, consequentemente o absolvendo pela prática do mesmo ilícito integrado na al. b) do tipo agravado tentado, pelo qual vinha acusado.

c) julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização cível deduzido pela demandante BB e em consequência, condenar o arguido  ao pagamento da quantia de €20.000 (vinte mil euros), acrescida de juros de mora à taxa de legal em vigor, desde a notificação para contestar o pedido até integral pagamento, absolvendo-se o demandado do mais peticionado;

d) Julgar totalmente procedente, por provado, o pedido indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar ... E.P.E. e em consequência, condenar o arguido/demandado ao pagamento da quantia de €1.493,24 (mil quatrocentos e noventa e três euros e vinte e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação para contestar o pedido até integral pagamento;

c) Condenar o arguido nas custas da parte criminal com taxa de justiça que se fixa em 5 (cinco) Ucs art. 513º, 514º do C. P. Penal e art. 8º, tabela anexa III do RCP, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza;

f) Condenar demandante e demandado nas custas da parte cível, na proporção do decaimento sem prejuízo do decidido quanto ao requerido benefício de apoio judiciário de que gozam ambos - 527º, nºs 1 e 2 do C.P. Civil, ex-vi art. 523º do C.P. Penal.

g) Manter a medida de coacção de prisão preventiva a que o arguido se encontra sujeito;

h) Declarar perdidos a favor do Estado, as facas e os fragmentos de vaso de cerâmica apreendidos nos autos (art. 109º do Código Penal), determinando-se a sua destruição;

i) Determinar a restituição ao arguido da camisa e cinta apreendidas – art. 186º, nº1 a 4 do C. P. Penal.

j) Ordenar a recolha de amostras de ADN do arguido, para inserir nas bases de dados de perfis de ADN, em obediência ao disposto no art. 8º, nº 2, da Lei nº 5/2008, de 12/02, após o trânsito em julgado da presente decisão».

 2. Inconformado, o arguido, AA, interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal da Relação do Porto, que, atento o disposto nos arts. 432º, nº1, al. c) e 434º do CPP, remeteu os autos a este Supremo Tribunal de Justiça.

3. O arguido terminou as motivações de recurso com as seguintes conclusões:

«1ª No douto acórdão recorrido não se ponderou devidamente o facto de o arguido, ora recorrente, ser portador de uma personalidade psicopática e que agiu em estado de exaltação emocional em circunstâncias que diminuem a culpa.

2ª As circunstâncias qualificativas do crime de homicídio voluntário previstas no artigo 132º, nº2, do código penal não são de funcionamento automático, constituindo apenas índices reveladores da especial censurabilidade ou perversidade que está na base da qualificação do crime de homicídio (ver nº1 desse preceito).

3ª Resultaram dos factos que do meio empregue para a prática do crime não resultou perigo do ponto de vista médico-legal para a vida da assistente, nem a afetaram de forma grave, nem existiram para a mesma consequências permanentes.

3ª Tendo isso em conta, justifica-se uma redução da medida da pena por alteração da qualificação para homicídio simples na forma tentada com a consequente condenação do arguido em pena não superior a cinco anos de prisão.

4ª Mesmo que se venha a entender que os factos enquadram um crime de homicídio qualificado na forma tentada, nem, por tudo quanto se deixou dito, deve ao arguido ser aplicada pena não superior a cinco anos de prisão.

5ª A suspensão da execução da pena de prisão configura-se na nossa lei penal (art. 50º do código citado) como um poder estritamente vinculado e portanto, nesta conceção, como um poder-dever.

6ª Atendendo à personalidade do arguido e às circunstâncias de facto pelo qual o mesmo está condenado, à ausência de perigo para a vida da assistente, à ausência de consequências graves e permanentes para a mesma assistente, pode o tribunal concluir por um prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento futuro do ponto de vista criminal, para efeitos do disposto na parte final do nº1 do referido artigo 50º.

7ª Para a formulação desse juízo de prognóstico favorável, é justificado que o Tribunal faça acompanhar a medida de suspensão da execução da pena de prisão que ao arguido falta cumprir/descontada que seja o tempo de prisão preventiva a que o arguido está sujeito desde 31 de Março de 2016, da imposição de deveres e (ou) regras de conduta, ao abrigo do disposto nos artigos 51º e 52º do citado código.

8ª É o que acontece, designadamente, com o pagamento da indemnização arbitrada a favor da ofendida e assistente em prazo razoável a fixar, com a proibição de contactar com a mesma durante todo o prazo de suspensão da execução da pena e, com sujeição do arguido, obtido que seja o seu consentimento prévio a tratamento médico de que ele necessite, em instituição adequada, tendo em conta a avaliação psiquiátrica de depressão de que ele sofre.

9ª Como parece justificado ainda que o Tribunal determine que os serviços de reinserção social apoiem e fiscalizem o arguido no cumprimento dos deveres ou das regras de conduta a ele impostas.

10ª Ao decidir doutra forma quanto à qualificação jurídica, medida da pena de prisão aplicada ao arguido e ao não suspender a execução dessa mesma pena como se disse nas conclusões anteriores, o Tribunal recorrido violou, por erro ou omissão da aplicação, o disposto, entre outros, nos artigos 71º, 50º nº1, 51º nº1, a) e 4, 52º, nº1, 3 e 4 do código penal.

Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, de forma a alterar-se a qualificação jurídica quanto ao tipo legal de crime praticado pelo arguido, reduzir-se a medida de pena de prisão aplicada face a essa alteração em pena de prisão não superior a cinco anos e suspender-se a sua execução.

Ainda que se entenda não ocorrer justificação fáctica para alteração da qualificação jurídica deverá à mesma, em face das circunstâncias expostas ao longo da presente alegação, reduzir-se a pena aplicada a prisão não superior a cinco anos e suspender-se a sua execução nos termos expostos com o que se fará a acostumada Justiça!».

3. O Ministério Público no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Penafiel-Juízo Central Criminal de Penafiel, respondeu, concluindo nos seguintes termos:

«1 – Em face da matéria de facto dada como provada a conduta do arguido integra a prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos art.º 22, n.º 1 e 2, al. b), 23, 73, n.º 1, als. a) e b) e 131 e 132, n.º 2, al. j) do Código Penal.

2 – Em face dos elementos que importa ter em conta para a determinação da medida concreta da pena cfr. art.º 71, n.º 2 do C. Penal a pena de seis (6) anos de prisão aplicada pelos M.ºs Juízes “ a quo” mostra-se adequada e justa, uma vez que, não excedendo a medida da culpa, satisfazem plenamente as exigências preventivas, gerais e especiais.

3 - Dado que defendemos que a pena aplicada, ou seja, seis (6) anos de prisão, se apresenta como justa e adequada fica a possibilidade de suspensão de execução da pena prejudicada porquanto aquela pena de substituição apenas pode ser equacionada em penas concretas até cinco anos de prisão, o que não se verifica no caso concreto.

4 – Em todo o caso sempre se dirá que, na situação sub judice, caso se equacionasse uma pena susceptível de suspensão não se pode formular relativamente ao agente dos factos um juízo de prognose favorável no sentido de que aquele em face da simples censura dos mesmos e a ameaça da prisão será afastado da prática de novos factos delituosos e que dessa forma se realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

Termos em que pugnou pela manutenção do acórdão recorrido.

4. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, do qual transcrevemos os seguintes segmentos:

«(…)

2.2.1. O recorrente levou às conclusões extraídas da respectiva motivação de recurso as seguintes questões de direito:

→ Os factos dados como provados integram o crime de homicídio simples na forma tentada e não um crime de homicídio qualificado na forma tentada (conclªs. 2ª e 3ª).

→ O arguido é portador de uma personalidade psicopática e agiu em estado de exaltação emocional em circunstâncias que determinam a diminuição da culpa (conclª. 1ª).

→ A pena a aplicar deve ser a de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução (conclª. 3ª).

→ Mesmo que se entenda ter o arguido cometido o crime de homicídio qualificado na forma tentada, a pena não deve ser superior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, com imposição de deveres e/ou regras de conduta, ao abrigo dos arts. 51º e 52º do CP, com apoio e fiscalização dos serviços de reinserção social (conclªs. 4ª e 5ª, 6ª, 7ª, 9ª e 10ª).

2.2.2. O MP respondeu, defendendo a manutenção do Acórdão recorrido, que procedeu a uma correcta qualificação jurídico-penal dos factos criminosos praticados pelo arguido, mostrando-se a pena de 6 anos de prisão em que foi condenado adequada e proporcional.

3. Questão prévia:

O Acórdão recorrido não se mostra devidamente assinado pelos Srs. Juízes que integraram o respectivo Tribunal Colectivo, dele constando, na primeira folha, o registo das assinaturas electrónicas.

É Jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal de Justiça, que não tem aplicabilidade, em processos crime, o disposto no art. 19º, da Portaria nº 280/13, de 26.08.

Dispõe expressamente o art. 374º, nº 3, do CPP, que a decisão é assinada pelos juízes que a produziram ( Cfr., ainda, art. 95º, nºs 1 e 2 do mesmo CPP).

A falta verificada integra uma mera irregularidade, a ser sanada aquando da baixa dos autos, por uma questão de celeridade processual.

Assim decidiu o Ac. do STJ, de 17.09.2015, proc. 134/10.3TAOHP.S3, 3ª Sec., do qual se cita a seguinte passagem:

“O Código de Processo Penal determina pois, que os actos processuais no qual se inclui a sentença, sejam autografados pelo magistrado que a ele preside, devendo no caso de a decisão ter sido proferida por tribunal colectivo ser assinada no final pelos membros do tribunal, sendo as demais folhas rubricadas.

Entretanto foi publicada a Portaria n° 280/2013, de 26 de Agosto que visou regular a tramitação electrónica de processos, a qual estabeleceu, no art. 19º que “os atos processuais  dos magistrados judiciais e dos magistrados do Ministério Público são sempre praticados em suporte informático através do sistema informático de suporte a atividade dos tribunais, com aposição de assinatura eletrónica qualificada ou avançada” e que “a assinatura eletrónica efetuada nos termos dos números anteriores substitui e dispensa para todos os efeitos a assinatura autógrafa em suporte de papel dos atos processuais”. Contudo, como consta do disposto no art. 2°, o diploma apenas é aplicável ao processo civil (acções declarativas cíveis, procedimentos cautelares e notificações judiciais avulsas e acções executivas cíveis e respectivos incidentes). Para além dos processos de promoção e proteção das crianças e jovens em perigo, a própria Portaria, que não se refere ao processo penal, excepciona expressamente da aplicação informática os pedidos de indemnização civil ou dos processos de execução de natureza cível deduzidos no âmbito de um processo penal. Deste modo, em processo penal, continua a ser exigida a assinatura autógrafa do juiz nos actos por ele praticados, não sendo legal substitui-la por assinatura electrónica da mesma forma que o art. 96° proíbe o uso de quaisquer meios de reprodução da assinatura ou rubrica.

De harmonia o preceito do art. 379º n° 1 al. a) do Código de Processo Penal,  a falta dos requisitos da sentença  provoca nulidade quando se refere aos enunciados no nº 2 e n° 3 al. b) do an. 374°, constituindo quanto ao demais mera irregularidade.

A irregularidade pode ser sanada, devendo pala o efeito, após a baixa dos autos à 1ª instância, serem apostas pelos membros do colectivo, no final do acórdão as respectivas assinaturas autógrafas e rubricadas as restantes folhas (…)”.

4. Questão de Fundo:

Carece o recorrente de razão, não merece censura o Acórdão recorrido.

Importa convocar a factualidade fixada no Acórdão, ora sub judice, sobremaneira a registada sob os nºs 3º a 10º, 13º a 19º, 23º a 29º.

O arguido agiu sempre livremente, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida por lei penal.

A morte da vítima só não ocorreu por, entretanto, aparecerem pessoas que o impediram de concretizar o homicídio da sua ex-namorada, que preparou com tempo e determinação. Reiterou o seu propósito após uma 1ª tentativa falhada.

A partir do início do ano de 2016 o arguido começou a registar alterações de comportamento, exteriorizando sintomas depressivos (facto nº 45), foi sujeito a tratamento médico, na Unidade de Saúde Familiar da sua residência, por referir ideias de morte sem aparentar ideação suicida, que evoluiu para ideação suicida e homicida, referindo querer matar a namorada (vítima) – factos 46º a 49º.

Internado no Hospital ...., com avaliação psiquiátrica de depressão, dos serviços de urgência do Hospital ..., em 02.03.2016, assina alta contra parecer do médico (facto 50).

Sujeito a avaliação psiquiátrica, em 18.10.2016, o respectivo relatório concluiu:

“O arguido apresentava alterações emocionais e de comportamento reactivas à situação vivencial de ruptura amorosa e configurando diagnóstico de perturbação da adaptação. Em nenhum momento das observações, nomeadamente no dia 30 de Marco foi apurada pela especialidade de psiquiatria a existência de actividade heteróloga ou alterações de pensamento. Da avaliação directa realizada não se apura existência de doença psiquiátrica grave ou descompensada, ou de relevante psicopatologia aguda, assim como não se apura a sua existência em fase anterior. O examinado demonstra ter capacidade de entendimento, discernimento e auto determinação que lhe permitem quer a avaliação do ilícito, quer a determinação de acordo com essa avaliação. Pelo que não se apuram pressupostos para alteração de imputabilidade por anomalia psíquica. Admite-se a existência de perturbação emocional reactiva por ruptura enquadrável em “perturbação de adaptação”. Actualmente não apresenta queixas de perturbação emocional, compensado com a medicação em curso. A “perturbação de adaptação” não reveste o conceito de gravidade forense, não alterando as capacidades de entendimento, discernimento e determinação do individuo. O arguido possui a sua capacidade de autodeterminação não prejudicada por doença psiquiátrica relevante.”.

Porém, este quadro psiquiátrico, que não o impede  de consciente, livre e voluntariamente se autodeterminar, querer e decidir matar a ex-namorada, bem sabendo que tal conduta ofende o bem jurídico superior protegido pela Lei Penal, foi ponderado na decisão recorrida, sopesadas devidamente as circunstâncias atenuativas da culpa, face à gravidade e ilicitude dos factos provados, pelo que a medida de 6 anos de prisão fixada mostra-se adequada, proporcional e não excessiva.

A decisão recorrida está devida e pormenorizadamente fundamentada, de facto e de direito, ressaltando a “frieza emocional do arguido (…)“, referida também na informação hospitalar de fls. 66 e na perícia psiquiátrica a fls. 623 verso e 624 (cfr. fls. 753 dos autos).

São extremamente exigentes as necessidades de prevenção geral e especial neste tipo de criminalidade, o mais grave do elenco dos bens jurídicos protegidos constitucional e jurídico penalmente, que provoca na comunidade um sentimento de repulsa e de censura ética, a impor uma pena que, não excedendo a medida da culpa, satisfaça as necessidades da prevenção geral e especial, balizadas pelos factos, personalidade e culpa do agente.

A esta ponderação procedeu o Acórdão recorrido, que encontrou na pena de 6 anos de prisão decidida o equilíbrio entre os fins, de certo modo antinómicos, da aplicação de uma pena – arts. 40º e 71º, ambos do CPP -.

Escreveu-se no Ac. do STJ, de 04.01.2017, proc. nº 713/11.1GASXL.S1 que “(…) O ponto de chegada está nas exigências de prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização, ou, porventura a prevenção negativa relevando de advertência individual ou de segurança ou inocuização, sendo que a função negativa da prevenção especial, se assume por excelência no âmbito das medidas de segurança.

Ensina o (…) Ilustre Professor, As Consequências Jurídicos do Crime, §55, que ‘Só finalidades relativas de prevenção geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções especificas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma ‘infringida”.

Todavia em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa), pois que o princípio da culpa, como salienta o mesmo Insigne Professor — ob. cit. § 56 -, “não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.”

Ou, em síntese: A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas — sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.”- v. FIGUEIREDO DIAS, Temos Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss.(…)”.

“(…) As imposições de prevenção geral devem pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.

Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados (…)”.

Assim procedeu o Acórdão recorrido que procedeu à determinação da medida da pena com equilíbrio e ponderação, não merecendo qualquer censura.

Pelo exposto,

Emite-se parecer no sentido de:

→ ser declarada a irregularidade de que padece o Acórdão recorrido, por omissão de assinatura dos Juízes que compõem o Colectivo, a sanar aquando da baixa dos autos;

→ negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos ».

5. Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente  nada veio dizer.

6. Colhidos os vistos em simultâneo e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão, cumprindo apreciar e decidir.

***

II. FUNDAMENTAÇÃO

2. 1. Fundamentação de facto.

A. Factos provados

1.O arguido AA e a ofendida BB mantiveram uma relação de namoro durante cerca de 14 anos que terminou em Janeiro de 2016 por decisão de BB o que nunca foi aceite pelo arguido.

2. Em Março de 2016, o arguido começou a intimidar a ofendida dizendo-lhe que a matava e que se matava também, perseguindo-a com frequência, para todo o lado, chegando inclusivamente a ser surpreendido por BB, em duas ocasiões, no interior da residência desta, no seu quarto, debaixo da cama.

3. Desde data não concretamente apurada mas seguramente no mês de Março de 2016 o arguido decidiu tirar a vida à ofendida BB e suicidar-se em seguida.

4. Assim determinado, no mesmo dia 28 de Março de 2016, entre as 13H e as 15H, o arguido AA abordou a ofendida BB quando esta se encontrava no pátio da sua residência sita na Rua ... e obrigou-a a entrar no seu automóvel de marca Mercedes, modelo C 220, matrícula ....

5.E quando já se encontrava junto da ofendida BB nesse mesmo dia 28 de Março de 2016, o arguido AA contactou CC, a quem pediu que se despedisse da sua mãe e a quem disse “eu vou matar a tua prima e depois vou matar-me”.

6. No interior do carro, o arguido, não a deixou tirar o cinto de segurança, trancou as portas, retirou-lhe o telemóvel e transportou-a contra a sua vontade até à ..., também na localidade de ..., ..., estacionando o veículo num local pouco habitado, obrigando-a a permanecer no seu interior.

7. Ainda no interior do veículo, gerou-se uma discussão entre ambos no desenrolar da qual o arguido desferiu dois estalos na face da ofendida e apertou-lhe o pescoço.

8. Não obstante a ofendida BB conseguiu libertar-se, abrir a porta do carro e fugir.

9.De imediato o arguido foi no seu encalço e quando a apanhou deitou-a ao chão, colocou o seu corpo sobre o corpo da ofendida e com as duas mãos, apertou-lhe o pescoço visando com tal conduta tirar a vida à ofendida, o que só não conseguiu porque em seu auxílio apareceram a testemunha DD e depois a testemunha EE que alertados pelos gritos de socorro da ofendida acorreram ao local.

10.Já na presença destas duas pessoas o arguido ainda tentou forçar a ofendida a entrar no carro, puxando-a pelos braços, não tendo porém logrado concretizar os seus intentos.

11. Então o arguido telefonou a CC, prima da ofendida BB para que a fosse buscar, ao que esta acedeu tendo-se deslocado ao local na companhia do seu marido, onde o arguido também se manteve.

12. Na sequência da agressão de que foi vitima a ofendida BB, sofreu dores e ficou com marcas vermelhas no pescoço.

13. No dia 30 de Março de 2016, cerca das 13H00, o arguido AA abordou mais uma vez a ofendida desta feita junto às imediações de Centro Comercial sito em ..., quando esta se deslocava para o seu local de trabalho e se encontrava no interior do veículo automóvel, insistindo para que esta o deixasse entrar no veículo, o que a ofendida recusou, acabando por persegui-la quando esta colocou o veículo em marcha.

14. Sucede que, nesse mesmo dia arguido e ofendida, acabaram por combinar, encontrar-se em casa da CC, sita na Rua ... para conversar sobre o fim do relacionamento.

15. Assim, entre as 16H e as 17H, o arguido, dirigiu-se a casa de CC onde aí se encontrou com a ofendida, munido de uma faca com o cabo em madeira, com cerca de 10 cm de comprimento e 8 cm de lâmina que habitualmente trazia consigo.

16.No decurso da conversa que decorria de forma tranquila na mesa da cozinha da residência e na presença de CC, o arguido, usando como desculpa para distrair CC, carecer de um copo de água, e aproveitando que esta fosse satisfazer o pedido, subiu para cima da mesa, e empunhando a faca na mão direita dirigiu-se à ofendida BB e desferiu-lhe uma facada no pescoço.

17. Embora ferida, a ofendida BB fugiu e refugiou-se na sala de estar da residência, sem sucesso, uma vez que o arguido rapidamente a alcançou por meio de uma outra porta existente naquela divisão e empunhando a faca na mão direita desferiu-lhe várias facadas que a atingiram no tórax e nas costas.

18. Ao mesmo tempo que o arguido agredia a ofendida, CC tentava impedi-lo, tendo a dada altura a própria ofendida conseguido retirar a faca da mão do arguido.

19. De seguida o arguido dirigiu-se à cozinha onde se muniu de uma faca com o cabo cor de laranja em plástico e uma lâmina em metal com cerca de 7,2 cm de comprimento e tentou abeirar-se de novo da ofendida BB para a agredir com esta, o que não logrou porquanto CC lha tirou, em consequência do que fez um golpe na mão.

20. Após, estando a ofendida já no chão, o arguido agarrou num jarro de decoração que se encontrava no corredor da residência e arremessou-o contra a cabeça da ofendida, abandonando de seguida o local.

21.De imediato, o arguido dirigiu-se à sua residência e de seguida, dirigiu-se a uns anexos contíguos à habitação, muniu-se de uma “cinta” própria para rebocar viaturas automóveis e deslocou-se para o interior da mata onde poucos instantes depois veio a ser encontrado pendurado pelo pescoço, por familiares que desconfiando da sua intenção de se suicidar o seguiram.

22. Nesse mesmo dia o arguido tinha ainda procedido ao levantamento da quantia de € 14.000,00 €, de uma conta de que era titular.

23. Na sequência das agressões de que foi vítima, a ofendida BB, sofreu feridas incisas na face anterior HT direito, na região mamária direita; na face posterior do braço esquerdo, na face lateral esquerda cervical, nível II, na dorsal/intraescapular, na região supraciliar direita sem atingimento ocular; na região temporal esquerda, na supraclavicular esquerda e ligeiro hematoma periorbitrário e foi suturada.

24.Durante vigilância no serviço de urgência teve episódio de instabilidade com hipo TA e necessidade transfusional de 2 UGR por hb 7.4.

25.Consequência da conduta do arguido a ofendida apresenta: “No crânio: cicatriz irregular e estrelada, com vinte milímetros de maior diâmetro, localizada na região frontal direita da cabeça na raiz do couro cabeludo (…), cicatriz estrelada com dez milímetros de diâmetro localizada no ângulo externo da sobrancelha direita; Na face: ligeiro edema da hemiface direita causando dismorfia do rosto; refere adormecimento ou perda da sensibilidade sobre o lábio superior e em parte da hemiface direita do rosto; olho direito com derrame hemorrágico ainda presente; Pescoço: cicatriz linear, obliqua, com 15 milímetros na base da face lateral esquerda do pescoço; Tórax: cicatriz em linha quebrada e oblíqua com 35 mm de comprimento, sobre o terço superior da mama direita e que foi suturada com 5 pontos de seda, com 30 mm de comprimento; cicatriz vertical com 30 mm de comprimento com sinais de ter sido suturada com dois pontos de seda, localizada na face posterior do terço superior do tronco e na linha média; Membro Superior Esquerdo: cicatriz linear com vinte milímetros de comprimento e com sinais de ter sido suturada com dois pontos de seda, na face superior do ombro esquerdo; cicatriz linear, com trinta milímetros de comprimento localizada na face posterior do terço superior do braço esquerdo, junto da axila.

26. A ofendida apresenta várias cicatrizes de aspecto quelóide e bem visíveis que não a afectam de forma grave mas são susceptíveis de causar dano estético e sofrimento quando da sua exposição a terceiros

27. As lesões sofridas e atrás enunciadas determinaram 62 (sessenta e dois) dias para consolidação médico-legal: com afectação da capacidade de trabalho Geral e com afectação da capacidade de trabalho profissional.

28. Ao agir da forma descrita, agiu o arguido determinado a tirar a vida da ofendida BB.

29. Ao agredi-la com os objectos identificados e da forma descrita atingindo-a em zonas do corpo que alojam órgãos vitais como a cabeça e o tórax, o arguido pretendia tirar a vida à ofendida, resultado que apenas não veio a verificar-se por circunstâncias alheias à sua vontade.

30. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.

**

31.A assistente/demandante sentiu e sente medo e tristeza em razão do que lhe aconteceu e consequência da conduta do arguido;

32.Sente angustia e desgosto face às cicatrizes que lhe marcam o corpo;

33. E vergonha de o expor e às mazelas que lhe foram infligidas pelo demandado;

34.E tem indicação para acompanhamento psicológico.

35.Em consequência da conduta do arguido, o Centro Hospitalar ... E.P.E. prestou à ofendida cuidados e tratamento médico que importou no montante de €1.493, 24 (mil quatrocentos e noventa e três euros e vinte e quatro cêntimos).

Mais se provou.

36.O processo de desenvolvimento de AA e dos 4 irmãos decorreu no seio da sua família de origem numa dinâmica familiar descrita como tendo sido marcada por alguns desentendimentos entre os progenitores, que viriam a determinar a separação destes há cerca de 11/12 anos.

37.A nível financeiro o agregado vivia sem dificuldades, embora só o progenitor exercesse actividade como motorista, sendo que a mãe permanecia em casa ocupada com as lides domésticas e os cuidados a prestar aos descendentes.

38.O processo educativo dos descendentes foi assumido por ambos os progenitores, embora no dia-a-dia, por ausência do pai em trabalho, era progenitora que estava mais próxima, com recurso à imposição de regras, que em caso de incumprimento eram sancionadas com recurso à advertência e retirada de privilégios.

39.O arguido ingressou no sistema de ensino em idade regulamentar, tendo abandonado por volta dos 13 anos com o 6º ano de escolaridade concluído.

40. Regista neste percurso uma retenção.

41.Já em idade adulta viria a concluir o 9º ano de escolaridade através das novas oportunidades.

42.Aos 22 anos, ingressou na empresa “FF”, como de condutor/manobrador, profissão e actividade que manteve até à sua reclusão.

43.O arguido viveu em casa da progenitora, até há cerca de 12 anos, altura em que tomou a decisão de adquirir uma habitação, com recurso a crédito bancário.

44.A habitação era exclusivamente para pernoitar, durante o dia e fora das horas de trabalho estava em casa da progenitora, sendo ela que se ocupava das suas roupas, bem como da confecção das refeições.

45.No início do corrente ano, o arguido começou a registar alterações de comportamento, exteriorizando sintomas depressivos.

46.Em 29 de Fevereiro de 2016 recorre a consulta na USF da sua residência apresentando depressão reactiva alegadamente por quebra de relação, referindo ideias de morte sem aparentar ideação suicida;

47.E recorre à mesma consulta com idêntica sintomatologia a 7 e 21 de Março de 2016 apresentando-se medicado para o efeito.

48.No dia 1 de Março de 2016 recorre ao serviço de urgência do Centro Hospitalar ... E.P.E. apresentando queixas de ideação suicida e homicida referindo querer matar a namorada.

49.Na mesma data dá entrada no serviço de urgência do Hospital de S. João acompanhado de carta com avaliação psiquiátrica de depressão, tendo sido transferido para o Hospital ... onde consente no internamento voluntário por perturbação emocional mista reactiva a ruptura amorosa acompanhada de ideação suicida não estruturada;

50.E em 2 de Março de 2016 assina alta contra parecer médico.

51.O arguido foi consultado particularmente por psiquiatra em consultas datadas de 13 de Março de 2016, 26 de Março de 2016 e 29 de Março de 2016, apresentando junto destes queixas insónia, quadro depressivo pela interrupção do namoro e ideação suicida, o qual lhe receitou medicação para dormir, para a ansiedade e antidepressivos.

52.Em 28 de Março de 2016, o arguido residia sozinho e exercia actividade como condutor/manobrador na empresa “FF”, auferindo um vencimento de cerca de 1.000EUR mensais.

53.Está sujeito à medida de coacção de prisão preventiva desde o dia 31 de Março de 2016, no Estabelecimento Prisional instalado junto à Polícia Judiciária do Porto, adoptando comportamento de acordo com as normas da instituição, procurando manter-se ocupado em actividades realizadas na instituição prisional, nomeadamente com a frequência durante 3 meses da acção “Formar para Integrar”.

54.E é seguido por médico de clínica geral, equipa de enfermagem e consulta de psiquiatria por diagnóstico de depressão e ideias de morte.

55.Actualmente encontra-se medicado com alprazolam 1mg (3xdia), colecalciferol 0,5 mg (1x por dia), escitalopram 20 mg (1x/dia), fenobarbital 100 mg (SOS), quetiapina 100 mg (1x/dia) e trazodona 100 mg (2x/dia).

56.A progenitora e irmã manifestam total apoio/suporte ao arguido em qualquer circunstância, que afirmam extensivos aos restantes irmãos do arguido, verbalizando ainda a irmã disponibilidade, em caso de necessidade, de a família passar toda a viver na casa do arguido, em ...

57.O arguido afirma a intenção de em liberdade retomar o exercício profissional na mesma empresa, sendo que a entidade patronal mostra disponibilidade para o receber.

58.O agregado reside numa habitação arrendada tipologia 3 mais 1, com condições de habitabilidade situado em zona predominantemente habitacional de ..., onde não são identificadas problemáticas sociais ou criminais.

59.A subsistência do agregado vem sendo assegurada com o rendimento social de inserção atribuído à progenitora no valor de 220EUR, do salário da irmã 530EUR a que acresce o abono de um sobrinho do arguido de 11 anos de idade, cuja guarda foi entregue judicialmente à progenitora do arguido.

60.No meio de residência do arguido, os factos que deram origem ao presente processo são do domínio público, uma vez que foram veiculados pelos órgãos de comunicação social, contudo a sua actual situação de reclusão é desconhecida.

61.O arguido não mantinha grande interacção com os demais, mas sempre assumiu postura educada e cordial;

62.Sujeito a avaliação psiquiátrica no dia 18 de Outubro de 2016 instruída com todos os dados clínicos resultantes das consultas e internamento supra referidos esta conclui: O arguido apresentava alterações emocionais e de comportamento reactivas à situação vivencial de ruptura amorosa e configurando diagnóstico de perturbação da adaptação. Em nenhum momento das observações, nomeadamente no dia 30 de Março foi apurada pela especialidade de psiquiatria a existência de actividade heteróloga ou alterações de pensamento. Da avaliação directa realizada não se apura existência de doença psiquiátrica grave ou descompensada, ou de relevante psicopatologia aguda, assim como não se apura a sua existência em fase anterior. O examinado demonstra ter capacidade de entendimento, discernimento e auto determinação que lhe permitem quer a avaliação do ilícito, quer a determinação de acordo com essa avaliação. Pelo que não se apuram pressupostos para alteração de imputabilidade por anomalia psíquica. Admite-se a existência de perturbação emocional reactiva por ruptura enquadrável em “perturbação de adaptação”, Actualmente não apresenta queixas de perturbação emocional, compensado com a medicação em curso. A “perturbação de adaptação” não reveste o conceito de gravidade forense, não alterando as capacidades de entendimento, discernimento e determinação do individuo. O arguido possui a sua capacidade de autodeterminação não prejudicada por doença psiquiátrica relevante. 

63.O arguido, a 30 de Março de 2016, estava de baixa médica pelo menos desde 29 de Fevereiro de 2016.

64.Já em prisão preventiva o arguido escreveu por duas vezes à ofendida a ultima das quais na semana anterior ao início da audiência de discussão e julgamento, pedindo-lhe que o visitasse, que lhe desse o número de telefone e que dissesse autorizar que podia ligar-lhe. 

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2.2. Fundamentação de direito

Constitui jurisprudência assente que, de harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 412.º do Código de Processo Penal e sem prejuízo para a apreciação das questões de oficioso conhecimento, o objecto do recurso define-se e delimita-se  pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação.

Assim, a esta luz, as questões a decidir são as seguintes:

1ª. Qualificação do crime de homicídio

2ª. Medida da pena.

3ª. Suspensão da execução da pena.

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2.2.1. Antes, porém, de entrarmos na apreciação do objeto do recurso, cumpre decidir a questão prévia suscitada pela Exmª Srª Procuradora-Geral Adjunta.

Sustenta esta ilustre magistrada padecer o acórdão recorrido  de irregularidade, por omissão, de assinatura dos Juízes que compuseram o tribunal colectivo, a sanar aquando da baixa dos autos.

*

Sobre os requisitos da sentença, determina o art. 374º, nº3, al. e) do CPP que a sentença termina pelo dispositivo que contém, além de outros, «a data e as assinaturas dos membros do tribunal».
Por sua vez, dispõe o art. 95º nº 1 do CPP que «O escrito a que houver de reduzir-se um acto processual é no final, e ainda que este deva continuar-se em momento posterior, assinado por quem a ele presidir, por aquelas pessoas que nele tiverem participado e pelo funcionário de justiça que tiver feito a redacção, sendo as folhas que não contiverem assinatura rubricadas pelos que tiverem assinado», estabelecendo o nº2 deste mesmo artigo que « as assinaturas e as rubricas são feitas pelo próprio punho, sendo, para o efeito, proibido o uso de quaisquer meios de reprodução».
Daqui decorre que a sentença tem que  ser rubricada e assinada, no final, pelo magistrado judicial que a profere, e que, no caso de se tratar de um acórdão, a decisão tem que ser assinada, no final, pelos magistrados judiciais que compõem o tribunal coletivo, sendo as demais folhas rubricadas pelo juiz relator.
E se é certo  que a  Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto (que visou regular a tramitação electrónica de processos), veio estabelecer, no seu art. 19º, que «os atos processuais dos magistrados judiciais e dos magistrados do Ministério Público são sempre praticados em suporte informático através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, com aposição de assinatura eletrónica qualificada ou avançada» e que «a assinatura eletrónica efetuada nos termos dos números anteriores substitui e dispensa para todos os efeitos a assinatura autógrafa em suporte de papel dos atos processuais», não menos certo é que esta portaria não tem aplicação aos processos tramitados no âmbito do processo penal, pelo que, em processo penal, continua a ser exigida a assinatura autógrafa do juiz nos atos por ele praticados, não sendo legal substitui-la por assinatura eletrónica. Neste sentido, cfr. Acórdão do STJ, de 21.05.2015 ( proc. 605/11.4TAOAZ.P1.S1- 5ª Secção).  
Todavia, porque de harmonia o preceito do art. 379º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal, a falta dos requisitos da sentença apenas  provoca nulidade quando se refere aos enunciados no nº 2 e nº 3 al. b) do art. 374º, constituindo, quanto ao demais, mera irregularidade, impõe-se concluir que, não obstante, no caso dos autos, o acórdão recorrido não se mostrar assinado pelos Juízes que compuseram o tribunal colectivo, tal falta consubstancia mera irregularidade que deve ser suprida, nos termos das disposições conjugadas dos arts  380 .º n.º 1, al. a)  e 123.º , do CPP,  aquando da baixa dos autos. Neste sentido, cfr. Acórdãos do STJ, de 05.03.2008 ( proc. Nº 3259/07-3ª Secção) e de  17.09.2015 ( proc. 134/10.3TAOHP.S3- 5ª Secção). 

Termos em que se julga procedente  a  questão prévia suscitada pelo Ministério Público, junto  deste Supremo Tribunal, determinando-se que, após a baixa dos autos os membros do tribunal colectivo intervenientes no acórdão recorrido aporão no mesmo as suas assinaturas autógrafas, sanando, desse modo, a irregularidade verificada.


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2.2.2. Qualificação jurídica  do crime de homicídio cometido pelo arguido.

O acórdão recorrido, para além de considerar que a comprovada atuação do arguido  integrava a prática, de um crime de  homicídio p. e p. pelo art. 131º do C. Penal, entendeu tratar-se de um  crime de homicídio qualificado pela circunstância prevista na alínea j) do nº2 do artigo 132º do C. Penal.

Diferentemente, defende o arguido que inexiste fundamento bastante para qualificar o crime de homicídio.

Vejamos, então, qual a qualificação jurídica a dar ao crime de homicídio praticado pelo arguido.

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Consabido que a culpa  consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto de ter atuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia e devia ter atuado em conformidade com esta e que  o crime de homicídio qualificado, previsto no art. 132º, nº1 do Código Penal, não é mais do que uma forma agravada do  crime de homicídio simples, previsto no artigo 131º do mesmo código, importa indagar que tipo de culpa está subjacente à qualificação do homicídio. 

A este respeito, ensina Figueiredo Dias[2] que, em matéria de qualificação do homicídio, o nosso Código Penal de 1982 seguiu um método de combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, previsto no artigo 132º, nº1  ( revelador de uma especial censurabilidade ou perversidade)  com a técnica chamada dos exemplos-padrão enunciados nas alíneas do nº2 do  mesmo artigo ( concretizações de modos de revelação daquele tipo de culpa agravado, uns relativos ao facto, outros ao agente), em que  «a agravação da culpa tem afinal a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples».
Mais ensina este ilustre Professor[3] que a verificação das circunstâncias padrão, exemplarmente elencadas no nº2 do art. 132º do C. Penal, «não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação»,   nem  a sua não verificação « impede que se verifiquem outros elementos substancial e teleologicamente análogos (…) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador», ou seja, a especial censurabilidade ou perversidade.

Quer tudo isto dizer  que, subjacente à qualificação do homicídio, está uma culpa agravada,  ou seja, uma especial maior culpa, acrescida à culpa que já tem de estar presente no homicídio simples e que consiste em tirar a vida a outrem em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade.

Mais significa, por um lado, que  os exemplos padrão do nº2 do art. 132º, enquanto elementos da culpa ( e não do tipo), funcionam  como meros factores indiciadores da existência da especial censurabilidade ou perversidade, são meramente exemplificativos  e não são de funcionamento automático[4], carecendo, por isso, de ser confirmados, casuisticamente, através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas[5].

E, por outro lado, que poderão existir outras circunstâncias, não enunciadas entre os exemplos-padrão aludidos no nº2 do citado art. 132º, mas reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade, integrando os chamados casos de homicídio qualificado atípico.
Necessária, porém, será sempre a verificação da especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente, bem como a particular conexão que se tem de estabelecer  entre a cláusula geral do nº1 e os exemplos-padrão do nº2 ou as outras eventuais circunstâncias agravantes, não podendo os exemplos-padrão, nem estas últimas  circunstâncias  operar isoladamente,  consagrada que está a proibição da analogia no nosso direito penal.

Acresce que, sendo o especial tipo de culpa do homicídio qualificado conformado através de uma cláusula geral e descrito com recurso aos conceitos generalizadores  e indeterminados da especial censurabilidade ou perversidade,  o respeito pelo princípio da legalidade, exige ainda a densificação de cada um destes conceitos, por forma a balizar a atividade do  juiz na construção, em concreto, dos pressupostos da afirmação de uma especial censurabilidade ou perversidade. 

Assim, no dizer de Teresa Serra[6], haverá especial censurabilidade quando «as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores», podendo afirmar-se que a especial censurabilidade refere-se às «componentes da culpa relativas ao facto», fundando-se, deste modo, «naquelas circunstâncias  que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude».

Haverá especial perversidade quando se esteja perante «uma atitude profundamente rejeitável» no sentido de «constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade», estando aqui em causa as «componentes da culpa relativas ao agente».  

No mesmo sentido, ensina Fernando Silva[7] que «a especial censurabilidade prende-se essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar, as motivações  que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico, vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada».

Por outro lado, « a especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável. A decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis. O agente deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto».

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Posto que  o acórdão recorrido  considerou verificado o exemplo padrão previsto na alínea j) do nº2 do artigo 132º do C. Penal, «pela premeditação e manutenção da vontade de matar, por período claramente superior a 24 horas, revelando reflexão, firmeza na vontade e indiferença e insensibilidade perante a vítima e consequências  dos seus actos», vejamos, então,  se, no caso em apreço, a atuação do arguido revela especial censurabilidade e perversidade por o mesmo  ter agido « com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas», tal como prescreve a citada norma.

Contempla este exemplo-padrão, sob o denominador comum da premeditação, a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas.

Tratam-se de circunstâncias agravativas relacionadas com o processo de formação da resolução criminosa.

Segundo Fernando Silva[8], « A ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo».

«Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflecte sobre o acto, e mesmo assim decide matar, combatendo a ponderação que se lhe impunha».

A premeditação, reveladora, indiciariamente, de especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime,   surge, assim, materializada em três situações:

A frieza de ânimo, que, na expressão do Acórdão  de 06.01.2010 ( proc. 38/08.2JAAVR.C1.S1- 3ª Secção-Relator Cons. Oliveira Mendes), se traduz «na actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a sua deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto»[9].

A reflexão sobre os meios empregues, segundo Manuel Leal Henrique e Manuel Simas Santos[10], consiste na escolha ponderada pelo agente dos meios de atuação que, por força do efeito letal que possuem, facilitem a execução do crime projectado ou proporcionem mais probabilidades de êxito. Traduz-se, deste modo, na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar, significando, no dizer do Acórdão do STJ, de 14.05.2009 ( proc. 389/06.8GAACN.C1.S1- 3ª Secção- Relator Cons. Armindo Monteiro), « um amadurecimento temporal sobre o modo de o praticar, a congeminação serena e perdurante no campo da consciência da ideação de matar e dos meios a usar».

 A persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (premeditação propriamente dita),  traduzida na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de ação para o executar  e na persistência no propósito de  matar por mais de 24 horas,  tempo considerado suficiente para  o agente poder vencer emoções, ultrapassar impulsos  súbitos e ponderar o alcance e consequências do ato[11].

*

No caso vertente, ante os factos dados como provados nos nºs 1 a 20, 29 e  62 , o acórdão condenatório do tribunal de 1ª instância  considerou, que a «actuação do arguido foi previamente estruturada, por palavras e actos, quer se atentarmos ao que verbalizou perante CC, quer ao que foi anunciando em meio hospitalar, quer no que respeita à conduta levada a efeito no dia 28 de Março, que permitem concluir sem grande esforço, pela premeditação e manutenção da vontade de matar, por período claramente superior a 24 horas, revelando reflexão, firmeza na vontade e indiferença e insensibilidade perante a vítima e consequências dos seus actos, susceptível de fazer operar a qualificativa a que alude o art. 132º, nº2, al. j) parte final, sentimentos que tem de ter-se particularmente censurados pela ordem jurídica (em nada atenuando a circunstância de se ter tentado suicidar depois da sua actuação se atentarmos que não ponderou fazê-lo antes)».

E, em nosso entender, é também de considerar preenchido circunstancialismo integrador da al. j) do nº2 do art. 132º do CP.

Com efeito, do conjunto dos factos provados ressalta, no essencial, que  o arguido, na sequência do termo da relação de namoro  que manteve  com a BB, durante cerca de 14 anos, ocorrido em janeiro de 2016 por decisão daquela, em março de 2016,  começou a intimidar a mesma, dizendo-lhe que a matava e que se matava também.

Mais se provou que, desde data não concretamente apurada, mas seguramente no mês de Março de 2016, o arguido decidiu tirar a vida à ofendida BB e suicidar-se em seguida.

Assim, no dia 28 de maio de 2016, obrigou a BB a entrar no seu veículo automóvel e, após ter contactado e dito à  CC que ia matar a ofendida, sua prima, e depois matar-se, transportou a ofendida, contra sua vontade, até um local pouco habitado, obrigando-a a permanecer no interior do veículo, tendo, no decurso de uma discussão travada entre ambos,  desferido dois estalos na face da ofendida e apertado o pescoço dela.

E, porque a BB, conseguiu abrir a porta do carro e fugir, o arguido foi no seu encalço e, quando a apanhou, deitou-a ao chão, colocou o seu corpo sobre o corpo da ofendida  e, com as duas mãos, apertou-lhe o pescoço, visando com tal conduta tirar a vida à ofendida, o que só não conseguiu porque em seu auxílio apareceram a testemunha DD e depois a testemunha EE que, alertados pelos gritos de socorro da ofendida, acorreram ao local.

No dia 30 de Março de 2016, após ter combinado, nesse mesmo dia,  com a ofendida, encontrar-se com ela na casa de CC, o arguido dirigiu-se para esta casa munido de uma faca com o cabo em madeira, com cerca de 10 cm de comprimento e 8 cm de lâmina, que habitualmente trazia consigo,  e, no decurso da conversa que decorria de forma tranquila na mesa da cozinha e na presença de CC, o arguido, para distrair a CC, pediu-lhe  um copo de água e, aproveitando-se do facto desta ter ido satisfazer o seu pedido, subiu para aquela  mesa e, empunhando a faca na mão direita, dirigiu-se à ofendida BB e desferiu-lhe uma facada no pescoço.

E, após alcançar  a ofendida na sala de estar, para onde a mesma fugira, desferiu-lhe várias facadas que a atingiram no tórax e nas costas, ao  mesmo tempo que a CC tentava impedi-lo.

Porque, entretanto,  a ofendida  conseguiu retirar a faca da mão do arguido, este dirigiu-se à cozinha onde se muniu de uma faca com o cabo cor de laranja em plástico e uma lâmina em metal com cerca de 7,2 cm de comprimento e tentou abeirar-se de novo da ofendida AA para a agredir com esta, o que não logrou fazer, porquanto a CC conseguiu tirar-lhe a faca.

Depois disso, estando a ofendida já no chão, o arguido agarrou num jarro de decoração que se encontrava no corredor da residência e arremessou-o contra a cabeça dela,  abandonando de seguida o local.

Ora, perante este quadro factual e atendendo à imagem global do facto, temos por certo que, não só o comportamento do arguido ao longo  do mês de março de 2016, é bem revelador da existência e persistência da intenção de matar a ofendida BB, como foi calculada a forma como ele, no dia 30 de março, se dirigiu à casa da CC, levando consigo uma faca, e  como logrou  distrair  a CC e a apanhar a vítima inteiramente desprevenida de modo a poder desferir uma facada no pescoço dela, o que torna a sua conduta especialmente censurável.

Tudo isto a revelar que se tratou de uma  resolução criminosa, pensada e persistente, e não de uma resolução súbita, inesperada ou irreflectida, razão pela qual  se conclui no sentido da improcedência do recurso relativamente à pretendida não qualificação do crime de homicídio nos termos da citada alínea j) do número 2 do artigo 132º do Código Penal.


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2.2.3. Medida da pena parcelar.

Aqui chegados, importa ainda tecer algumas considerações sobre os critérios em função dos quais o juiz deve individualizar e determinar concretamente a pena aplicável a um facto punível, ou ainda como se lhes chama, na doutrina alemã, as « causas finais de determinação da medida da pena»[12], o que nos remete para a questão prévia dos fins das penas e da sua antinomia. 
É que, como salienta Cavaleiro Ferreira[13], são os fins  do Direito Penal, ou seja, os fins da própria pena, que nos fornecem os fundamentos em que deve assentar a sua individualização”.
Em sentido idêntico refere Jeschek[14] que  « o paradigma da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois só partindo dos fins das penas claramente definidos se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena».
Daí que, seguindo esta linha de pensamento, fácil se torna aceitar, por um lado,  que, ao estabelecer, no art. 71º, nº1 do C. Penal, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é  feita em  função da culpa do agente e das exigências de prevenção»,  o legislador forneceu ao juiz e ao intérprete, como critérios, a  culpa e a prevenção, deixando, por isso, espaço para se apurar, de entre estes dois princípios, qual aquele  que  deve assumir primazia na realização do fim  da pena e, consequentemente, no momento da sua aplicação.
E, por outro lado, que  a ponderação das circunstâncias elencadas no nº2 deste mesmo  art. 71º do C. Penal está em grande medida dependente da interpretação que se fizer do seu nº1, isto é, da resposta a dar à questão da antinomia dos fins das penas e, em particular, à da relação entre culpa e prevenção, no contexto da aplicação concreta duma pena[15].
Assim, partindo destas duas premissas, importa esclarecer, tal como escreve Jeschek[16],  que «culpa e prevenção situam-se em planos distintos. A culpa responde à pergunta de saber se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim, como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta, da prevenção  em que se decide qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta num sentido social-pedagógico.  
A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente uma finalidade da mesma».
Daí, no quadro das várias propostas doutrinais  sobre as relações entre culpa e prevenção, demarcar-se  daqueles que,  tal como Jackobs[17], elevam as exigências de prevenção geral como critério fundamental a ter em conta na determinação da medida da pena, em detrimento da culpa, pois, no seu dizer,   realçando-se a prevenção como critério fundamental, «desvanece-se, com prejuízo da justiça individual,  orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua acção».
E demarcar-se ainda daqueles que,  tal como Claus Roxin[18], restringem o papel primacial tradicionalmente desempenhado pelo princípio da culpa à função de “meio para a limitação da pena”, de  limite inultrapassável da medida da pena, argumentando que se a  culpa « é o limite superior da pena, também deve ser co-decisivo para toda a determinação da mesma que se encontre abaixo daquela fronteira», porquanto, « ao limitar-se a fixação concreta da pena a fins preventivos, a decisão do juiz perde o ponto de conexão com a qualificação ética do facto que é julgado, e a pena, por esse facto perde também todo a possibilidade de influir a favor daqueles objectivos de prevenção.
Só apelando à profundidade moral da pessoa se pode esperar, tanto a ressocialização do condenado, como também uma eficácia socio-pedagógica da pena sobre a população em geral».
Neste mesmo sentido já se haviam pronunciado  os   acórdãos do STJ, de 13.10.2010 ( proc. 200/06.0JAAVR.C1.S1- 3ª Secção) e  de  22.01.2013 ( proc. 182/10.3TAVPV.L1.S1-3ª Secção)[19], pronunciámo-nos no acórdão do STJ, de 09.03.2017 ( proc. 74/16.2PAVFC.S1-3ª Secção) e pronunciou-se o recente  acórdão do STJ, de 29.03.2017 ( proc. 5160/13.8TDPRT.P1), afirmando, expressamente, depois de manifestar a sua discordância para com Figueiredo Dias quando refere[20] que “ a culpa não é fundamento da pena, mas constitui o seu limite inultrapassável”, que a culpa  é «fundamento e limite da pena».
No dizer deste acórdão, para se conhecer da medida da culpa, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 40º, nº2 do CP, « tem de se apreciar e avaliar a culpa e, por isso, se compreende também que o artigo 71º do Código Penal ao estabelecer o critério da determinação da medida concreta da pena, disponha em primeiro lugar que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei  “ é feita em função da culpa do agente”, acrescentado depois “e das exigências de prevenção”.
Daí que, segundo  este mesmo acórdão, « as circunstâncias e critérios do art. 71º devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral ( a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir  o nível e a premência das exigências de prevenção especial ( as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente». 
Assim, perfilhando  a tese de Jescheck de que o princípio da culpa  é  o fundamento para poder responsabilizar-se pessoalmente o autor pela  ação típica e antijurídica que haja cometido mediante uma pena, sendo, simultaneamente, um requisito de punibilidade e um critério para a determinação da pena[21], é à luz desta perspetiva, que que se efetuará a  ponderação, quer  das circunstâncias, expressamente,  indicadas  no nº2 do  art. 71º do C. Penal, quer de outras que  sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infração do princípio da proibição da dupla valoração.
Tudo isto, no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional,  de que as restrições aos direitos, liberdades e garantias  devem  «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» ( art. 18º, nº2 da CRP), ou seja, no pressuposto de que  a pena de prisão  só é admissível quando se mostrar indispensável (princípio da necessidade ou da exigibilidade), quando se revelar o meio adequado para alcançar os fins ou finalidades que a lei penal visa com a sua cominação (princípio da adequação ou da idoneidade) e quando se mostrar quantitativamente justa, ou seja, não se situe nem aquém nem além do que importa para obtenção do resultado devido (princípio da proporcionalidade ou da racionalidade)[22].
E porque, como refere Jorge Miranda[23], a falta de necessidade ou de adequação traduz-se em arbítrio e a  falta de racionalidade traduz-se em excesso, facilmente se compreende a importância que, no âmbito da determinação da medida da pena,  assume o princípio da proibição de excesso, segundo o qual,  no dizer do  citado acórdão do STJ, de 13.10.2010,  « importa eleger a forma de intervenção menos gravosa que ofereça perspectivas de êxito e, assim, é possível que a dimensão concreta da pena varie dentro dos limites da culpa segundo a forma como se apresenta a concreta imagem de prevenção do autos».
Dito de outro modo e segundo Anabela Rodrigues[24], este princípio não é mais do que um limite à intervenção penal derivado do fundamento da prevenção geral na necessidade social  e que implica, no âmbito da medida da pena, que a sua gravidade seja adequada à gravidade da lesão do bem jurídico ocorrida, pois de outro modo, correr-se-ia o risco de se transformar numa prevenção geral de intimidação.
No dizer de SAX, citado por Eduardo Correia[25], a necessidade da pena surge «como o caminho mais humano para proteger certos bens jurídicos».
Daí realçar  o citado Acórdão do STJ, de 27.01.2016, não se  poder deixar de  equacionar a pena a aplicar em função do princípio da proporcionalidade, sendo o critério principal para valorar a proporção da intervenção penal o da importância do bem jurídico protegido porquanto a sua garantia é o principal fundamento da referida intervenção.
As penas, quando sejam necessárias, têm que ser, assim, adequadas e proporcionadas à proteção do bem jurídico violado.

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No caso dos autos, o acórdão recorrido, considerando que o crime de homicídio qualificado na forma tentada nos termos dos arts. 23º, nº 2 e 73º, nº 1 e 131º e 132º, nº1 e 2, todos do C. Penal é punido com pena de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão, condenou o arguida na pena de 6 (seis) anos de prisão.
Em sede de fundamentação, escreveu-se na decisão recorrida que, importava ponderar:
« - o dolo, que ocorreu na modalidade de dolo directo, portanto na sua modalidade mais grave, reveladora de uma profunda insensibilidade perante o valor da vida humana;

- o modo de execução do facto, visto que o arguido no âmbito duma conversa tranquila e após distrair a testemunha Gracinda Lopes mediante pedido de um copo de água, de forma rápida e no momento inesperada, “sacou” da faca que trazia e espetou no pescoço da ofendida que se encontrava sentada com ele à mesa a uma distância próxima, portanto, traduzindo esta atitude uma elevada possibilidade de a atingir nos órgãos vitais praticamente neutralizando qualquer atitude de defesa, o que significa que, de entre todas as formas que podem ser utilizadas para praticar a conduta em causa nos autos, esta reveste grande gravidade, e cujas condutas anteriores visando a assistente reforçam e reiteram

- o contexto que envolveu o sucedido, na medida em que a conduta ocorreu estando o arguido perturbado pelo fim do relacionamento, sem que tal tenha sido susceptível de toldar a sua capacidade de se autodeterminar ou  possa por qualquer forma ser imputável à ofendida;

- as consequências que resultaram para a ofendida, nomeadamente ao nível das lesões por esta sofridas, conforme descrito na matéria de facto;

- a circunstância de, no caso concreto, serem elevadíssimas as exigências de prevenção geral, desde logo face ao cada vez maior número de vitimas no seio de relacionamentos amorosos conturbados ou que cessam sem a aceitação de um dos elementos do casal que terminam com resultados graves e na maioria das vezes trágicos, invariavelmente para as mulheres, num claro e chocante engrossar das cifras negras quanto a tipos de ilícito idênticos;

- igualmente, pelos mesmos motivos referidos e atendendo às circunstâncias do caso e à concreta actuação do arguido, descrita na matéria de facto, se mostram também elevadas as exigências de prevenção especial, sendo necessário que aquele consciencialize e interiorize a gravidade dos factos praticados – o que em rigor não demonstrou, tentando escudar-se ao invés – tal como resulta da motivação da fundamentação de facto numa alegada traição da ex-namorada que descobriu já após o fim da relação – tentou contacta-la após os factos, como se nada se tivesse passado (como revela a missiva junta), nenhum arrependimento consistente (concretizado em actos que o demonstrem) manifestando; com isso adequando o seu comportamento futuro às normas da vida em sociedade e ao respeito devido aos direitos, nomeadamente à vida e à integridade física, nomeadamente, de quem consigo se relacionou durante 14 anos;

- por outro lado, e atenuando estas exigências de prevenção especial, o facto de o arguido não ter antecedentes criminais, se encontrar familiar, profissional e socialmente inserido.

Assim, afigura-se adequada a aplicação ao arguido da pena concreta de 6 (seis) anos de prisão.».

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Pugna o arguido pela redução desta pena para medida não superior a cinco anos de prisão, suspensa na sua execução, sustentando ter agido em estado de exaltação emocional em circunstâncias que diminuem a culpa.

Não cremos que seja assim.
Desde logo porque, contrariamente ao alegado, o que a avaliação psiquiátrica realizada na pessoa do arguido evidencia e ficou provado nos autos foi que, não obstante o mesmo apresentar, na altura, «alterações emocionais e de comportamento relativas à situação vivencial de rutura amorosa, configurando perturbação de adaptação», o arguido teve sempre capacidade de entendimento, discernimento e auto determinação que lhe permitiam quer a avaliação do ilícito, quer a determinação de acordo com essa avaliação».
Daí ser diminuto  o valor atenuativo do referido estado de “perturbação de adaptação” em que o arguido se encontrava, situando-se, antes,  o  seu grau de culpa num patamar elevado, posto que a sua atuação revela ser o mesmo portador de um   sentimento de posse relativamente à ofendida, que  não lhe permitiu tolerar a vontade desta  em querer colocar um ponto final a um  namoro de 14 anos e em querer autonomizar-se, o que tudo demonstra ser o arguido portador de uma mentalidade desconforme com os valores do direito, como a autonomia da pessoa e o respeito pela livre determinação de cada um. 

Daí que, na ponderação destes factores bem como dos demais factores  aludidos no acórdão recorrido, à luz do falado princípio da proporcionalidade, se entenda ser ajustada  a pena aplicada de  6 (seis) anos  de prisão, por a mesma observar, adequadamente, as finalidades de prevenção geral, aferidas pela medida da necessidade de tutela do bem jurídico violado, mostrar-se ajustada à culpa do arguido pelos factos e responder satisfatoriamente às exigências de prevenção especial de socialização.
Inexiste, por isso,   razão para alterar a pena aplicada  ao recorrente de 6 (seis)  anos de prisão, ficando, deste modo e atento o preceituado no art. 50º, nº1 do CP, prejudicado o conhecimento da suscitada questão da suspensão da execução da pena.

***
 
III. DECISÃO

Termos em que acordam na 3ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

1.  Julgar procedente a exceção prévia suscitada pelo Ministério Público, junto  deste Supremo Tribunal, determinando-se que, após a baixa dos autos os membros do tribunal colectivo intervenientes no acórdão recorrido aporão no mesmo as suas assinaturas autógrafas, sanando, desse modo, a irregularidade verificada.

2. Julgar  improcedente o recurso interposto pelo arguido, AA, confirmando o acórdão recorrido.

3.Tributar o recorrente em custas, com 10 (dez) Unidades de Conta (UC’s) de taxa de justiça (artigo 513.º, n.º 1, do CPP e artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro.

Supremo Tribunal de Justiça, 5 de julho de 2017

(Texto elaborado e revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2, do CPP).

Rosa Tching (relatora)
Oliveira Mendes

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[1] Relato nº60, Rosa Tching
[2] In, parecer “ Homicídio Qualificado-Premeditação-Imputabilidade- Emoção Violenta”, publicado na CJ, ano XII, 1987, tomo IV, págs 49 a 55.
[3] In “Comentário Conimbricense”, tomo I, pág.26.  
[4] A este propósito, cfr. o já citado Acórdão do STJ, de 17.04.2013 e toda a jurisprudência aí citada.
[5] Neste sentido, Augusto Silva Dias “Crimes contra a vida e a integridade física”, pág. 27.
[6] In, “Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Almedina, 1998, págs. 63 e 64.
[7] In, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 52 e 53.
[8] In, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 60 e segs.
[9] Neste mesmo  sentido, cfr. Fernando Silva, in, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 83 e 84 e entre muitos outros, os Acórdãos do STJ, de 17.04.2013 ( proc. nº 237/11.7JASTB.L1.S1-3ª Secção- Relator Raul Borges);  de 13.11.2013 ( proc. Nº 2032/11.4JAPRT.P1.S1-3ª Secção- Relator Cons. Maia Costa);  de 19.02.2014 ( proc nº 168/11.0GCCUB.S1-3ª Secção- Relator Cons. Santos Cabral) e de 12.03.2015 ( proc. nº 405/13.7JABRG.G1.S1-5ª Secção- Relator Cons. Manuel Caetano ).
[10] In, “Código Penal Anotado”, 3ª ed., II vol., págs 27 e 28.
[11] Neste sentido, cfr. Figueiredo Dias, in, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Vol. I, 2ª ed., págs. 83 e 84 e Fernando Silva, in, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 83 e 84.
[12] Cfr. Claus Roxin, in, “Culpabilidad y prevención en derecho penal” (tradução de Muñoz Conde – Madrid, 1981, pág. 93. 
[13] In, “A medida da pena”, Lisboa,  pág. 62.
[14] Cfr. H.H. Jescheck, in, “Tratado de Derecho Penal, Parte General”, II, Barcelona, 1981, pág. 1190, nota 5.
[15] Cfr. Hans. Heinrich. Jescheck,  in, “Tratado de Derecho Penal, Parte General”, II, Barcelona, 1981, pág. 1201.
[16] In “Evolución del Concepto Jurídico Penal de Culpabilidad en Alemana Y Austria”, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, ISSN 1695-0194 05-01(2003).

[17] In “Schuld und Prävention”, Tübingen, 1976, pág. 8 e segs.
[18] Cfr. Claus Roxin,in “ Culpabilidad Y Prevención en Derecho Penal” (tradução de Muñoz Conde – 1981), págs 96-98. 
[19] Publicados in www. dgsi.pt.
[20] In, “Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, págs. 109 e ss.
[21] Cfr. Hans. Heinrich. Jescheck,  in “Evolución del Concepto Jurídico Penal de Culpabilidad en Alemana Y Austria”, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, ISSN 1695-0194 05-01(2003).
[22] Neste sentido, cfr. Acórdão do STJ, de  06.01.2010 ( proc. nº 99/08.1SVLSB.L1.S1).
[23] In, “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, págs. 148- 163.
[24] In, “ A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, pág. 371.
[25] In “Estudos sobe a reforma do Direito Penal de pois de 1974”, in, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 119º, pág. 6.