Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2598/09.9TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: SEGURO
DESPORTO
ACIDENTE
INCAPACIDADE
Data do Acordão: 10/25/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO DESPORTIVO OBRIGATÓRIO
Doutrina: - Antunes Varela, Das Obrigações, vol. II, 5ª ed. pp. 516, 517.
- Baptista Machado, “Tutela de confiança e “venire contra factum proprium” - Obra Dispersa, vol. I, pp. 385, 415 a 418.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 238.º, N.º1, 334.º.
CÓDIGO COMERCIAL (C.COM.): ARTIGO 426.º.
DL 146/93, 26-4: - ARTIGOS 1.º, N.º 2, 7.º, 10.º.
LEI N.º 8/2003, DE 12-05: - ARTIGOS 4.º.
Sumário :
- O seguro desportivo cobre os riscos de acidente pessoais inerentes à atividade desportiva, incluindo os decorrentes de transportes e viagens em qualquer parte do mundo e é obrigatório.

- Um seguro de acidentes pessoais cujo âmbito são os riscos extraprofissionais não é um seguro desportivo.

- Quando não houver seguro desportivo ou o seguro não garantir a cobertura igual ou superior ao seguro desportivo obrigatório, as federações desportivas que procederam à inscrição do agente desportivo respondem, no caso de acidente desportivo, nos mesmos termos em que responderia a empresa seguradora, caso houvesse seguro.

- O carácter complementar que é assinalado ao seguro desportivo pelo artigo 4º da Lei 8/2003, de 12.05, na hipótese de praticante desportivo profissional, significa que este apenas tem obrigatoriamente de cobrir os danos que não estejam cobertos pelo seguro de acidente de trabalho.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 2009.03.12 , no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia, AA intentou contra COMPANHIA DE SEGUROS BB, SA a presente  ação declarativa, sob a forma de processo comum ordinário

Pediu a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 85.000,00, acrescida de juros de mora desde 15.02.09, até efetivo e integral pagamento, ascendendo os já vencidos a € 12.920,00.

Alegou em resumo, que

- no exercício da sua atividade de jogador profissional ao serviço do Boavista Futebol Clube, Futebol, SAD, e concretamente quando, no dia 13 de Dezembro de 2003, participava num encontro que opunha as equipas do Boavista e o Sporting Clube de Portugal, sofreu um acidente consistente em traumatismo do joelho direito com entorse do mesmo, lesões que lhe determinaram uma invalidez permanente genérica de 20,95% e especifica de 30,76%, conforme foi reconhecido, por sentença transitada em julgado, em ação emergente de acidente de trabalho que intentou contra a ré, também seguradora do trabalho;

- a ré celebrou com o Boavista Futebol Clube, Futebol SAD, na época desportiva de 2003/2004, um contrato de seguro do ramo de acidentes pessoais, titulado pela apólice 00000000, abrangendo os profissionais de futebol ao serviço daquele clube, tratando-se de um seguro desportivo obrigatório, de harmonia com o disposto na Lei 8/2003, de 12 de Maio, Decreto-Lei 146/93, de 23 de Abril, Portaria 757/93, de 26 de Agosto e artº 32º nº 2, al. f), do Regulamento de Competições da Liga Portuguesa de Futebol Profissional;

- no ano desportivo de 2003/2004, a comissão executiva da Liga fixou como valor mínimo do seguro desportivo, o valor de 85 000,00 € para a Super Liga Galp Energia, divisão em que à data competia o Boavista;

- o autor solicitou à ré o pagamento do valor de € 85.000,00, tendo a ré entendido apenas estar obrigada ao pagamento de uma percentagem desse valor, em função da percentagem de invalidez atribuída (20,95%), tendo enviado ao autor um recibo no montante de 17 000,00 €, que o autor recusou.

Contestando e também em resumo, a ré

- aceitou o acidente ocorrido e a existência do contrato de seguro de acidentes pessoais, abrangendo o autor;

- mas sustentou que, de acordo com as condições particulares constantes da apólice, que juntou, o âmbito do seguro está definido como Riscos Extraprofissionais, definido nas condições gerais como o “risco que não é inerente ao desempenho da profissão da pessoa segura”, sendo certo que o acidente sofrido pelo autor ocorreu no desempenho da sua profissão, resultando por conseguinte de um risco profissional, como tal coberto na apólice de acidentes de trabalho e indemnizado nesse âmbito;

- concluiu que o acidente de que foi vítima o autor não está coberto pela apólice em causa, tendo sido enviada ao autor o recibo a que se alude na petição apenas como forma de possibilitar uma resolução extrajudicial do problema.

Replicando

o autor reafirmou que, conforme decorre dos diplomas legais a que aludiu na petição, a lei impõe a existência de dois seguros para os praticantes desportivos profissionais: um de acidentes de trabalho e outro de acidentes pessoais, complementar daquele, sendo que foi mediante a apresentação de certificado emitido pela entidade seguradora da efetiva celebração de contrato de seguro desportivo, que a Liga, como a lei o impõe, procedeu ao registo dos contratos de trabalho da Boavista SAD, incluindo o do autor.

Em 2009.10.15 e no despacho saneador, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente.

O autor apelou, sem êxito, pois a Relação do Porto, por acórdão de 2012.03.20, confirmou a decisão recorrida.

Novamente inconformado, o autor deduziu a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

A revista foi admitida como revista excecional pela formação a que alude o nº3 do artigo 721º-A do Código de Processo Civil

A recorrida não contra alegou.

Cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que

- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;

- nos recursos se apreciam questões e não razões;

- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:

A) – Seguro desportivo e complementaridade em relação ao seguro por acidente de trabalho;

B) – Abuso de direito.

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:

1. O A. exerceu a atividade de jogador profissional de futebol desde 1990/1991 e de 2003/2004, sempre inscrito na Federação Portuguesa de Futebol.

2. Desde a época desportiva de 2001/2002, o A. exerceu essa profissão sob a ordem, direção e no interesse do Boavista Futebol Clube, Futebol S.A.D. como trabalhador subordinado e dependente.

3. Entre o Boavista Futebol Clube, Futebol S.A.D. e a Ré foi celebrado contrato de seguro de Acidentes Pessoais de Grupo, titulado pela Apólice 00000000, sujeito às condições particulares constantes de fls. 41, 42 e 43 e às condições gerais constantes de fls. 47 a 74 dos autos, que aqui se dão por reproduzidas.

4. Consta das condições particulares da apólice acima referida:

Tomador do Seguro: Boavista Futebol Clube – SAD

Período do Seguro: 1.07.03 a 30.06.04;

Vencimento Anual: 30.06

Duração do Contrato: Temporário.

Pessoas Seguras: Boavista Futebol Clube – Futebol, SAD

31, Jogadores Profissionais de Futebol

Âmbito do Seguro: Riscos Extraprofissionais

Garantias Cobertas, Valores Seguros e Franquias:

Garantias Cobertas Valores Seguros EUR

Morte ou Invalidez Permanente 85 000,00

Despesas de Tratamento e Repatriamento 8 500,00

Internamento Hospitalar em caso de doença 4.250,00;

Declarações e cláusulas Particulares

Seguro não contributivo

Garantias Valores seguros e Franquias estão definidas por pessoa segura.

Beneficiários em caso de Morte:

Herdeiros legais das Pessoas Seguras, salvo declaração em contrário

Declarações e cláusulas particulares

Pessoas seguras de acordo com listagem em poder da BB

Franquia: 15% no mínimo de 125,00 €

5. Para a época desportiva 2003/2004 estavam abrangidos como pessoas seguras os jogadores do plantel do Boavista Futebol Clube, Futebol S.A.D., constantes do documento de fls. 44, entre os quais o A.

6. Conforme consta do referido documento – a Ré nele declarou o seguinte:

“Para certificação junto a Liga de Clubes Profissionais de Futebol, declaramos que o Boavista Futebol Clube – Futebol SAD, com sede na Rua 1 de Janeiro – 4100 Porto, contratou com esta Companhia um seguro de Acidentes Pessoais Grupo vigente nesta data e válido até 30.06.2004, garantindo as coberturas e capitais adiante indicados, nos termos da Lei 146/93 de 26 de Abril e da Portaria 757/93, de 27 de Julho para os jogadores a seguir indicados…”

7.  Do mesmo documento, após a indicação dos jogadores abrangidos pelo seguro de grupo, entre os quais o Autor, consta:

Âmbito do seguro: Riscos Extraprofissionais

Garantias e Limites de Indemnização:

Morte ou Invalidez Permanente 85 000,00 Euros

Despesas de Tratamento 8 500 Eur

8. Nas Condições Gerais da Apólice acima referida, RISCO EXTRAPROFISSIONAL está definido como sendo “ O risco que não é inerente ao desempenho da profissão da pessoa segura” e o RISCO PROFISSIONAL como o inerente ao desempenho da profissão da pessoa segura.

9. A Comissão Executiva da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, de harmonia com o disposto no artº 32º, nº 2, al. f), do Regulamento de Competições da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, fixou, através do comunicado oficial 263/2003, - cuja cópia se encontra junta a fls. 13 dos autos e cujo conteúdo se dá por reproduzido – como valores mínimos para o seguro desportivo, com cobertura de doença e invalidez profissional, e para a “Super Liga Galp Energia”, divisão em que à data competia a Boavista SAD, os seguintes:

Morte ou Invalidez Permanente, incluindo invalidez profissional e doença - € 85000;

10. No dia 13 de Dezembro de 2003, no momento em que prestava serviço à sua entidade patronal, concretamente, participava no encontro que opunha as equipas do Boavista Futebol Clube, Futebol S.A.D. e do Sporting Clube Portugal – Sociedade Desportiva de Futebol SAD, o Autor foi vítima de acidente.

11. Por virtude desse acidente o A. sofreu as seguintes lesões: traumatismo do joelho direito com entorse do mesmo.

12. Após ter sido devidamente tratado, o A. foi considerado clinicamente curado e afetado de incapacidade permanente.

13.Por virtude do descrito acidente correu termos entre A. e R., para quem se encontrava também transferida a responsabilidade por acidentes de trabalho, correu termos entre Autor e Ré, pelo 2º Juízo do Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Gaia o processo 481/04.3TTVNG.

14. Nos referidos autos de acidente de trabalho, por sentença proferida em 21.05.05, posteriormente retificada em 2.06.05, foi considerado como acidente de trabalho o evento referido em 10. e 11. supra, e fixada ao Autor a invalidez permanente genérica de 20,95%, correspondente a invalidez permanente especifica de 30,76%, nos termos da tabela de comutação em específica ano à L. 8/2003, atento a idade de 32 anos à data da alta.

15. Na mesma sentença reconheceu-se ao Autor o direito de ser indemnizado dos danos emergentes de acidente de trabalho que sofreu e o direito às prestações referidas na Lei 8/2003 e nos artºs 10º da Lei 100/97, em conjugação com aquela, e 23º do DL 143/99, de 30.04.

16. Na mesma sentença, a ora Ré, com base em contrato de seguro celebrado com a respectiva entidade patronal, foi condenada a pagar ao Autor a pensão anual e vitalícia € 47 100,77, devida desde 27.05.04, sujeita a alteração nos termos do artº 2º, nº 2, al. b) da Lei 8/2003, logo que o sinistrado perfaça 35 anos de idade.

17. A referida sentença transitou em julgado.

18. O Autor solicitou da Ré o pagamento do valor de 85.000,00€, capital obrigatoriamente seguro na época de 2003/2004.

19. A Ré, por carta datada de 20.06.07, remeteu ao Autor um recibo no valor de € 17.000,00.

Os factos, o direito e o recurso

A) – Seguro desportivo e complementaridade em relação ao seguro por acidente de trabalho

Na sentença proferida na 1ª instância entendeu-se que cobrindo o contrato de seguro desportivo invocado pelo autor apenas os riscos extraprofissionais e alegando este que o acidente de que resultou a sua incapacidade permanente para a profissão de jogador de futebol ocorreu no âmbito do exercício dessa profissão, o referido acidente e consequentes danos não estavam abrangidos no âmbito do seguro invocado pelo autor.

Mais se considerou que tendo o seguro invocado pelo autor caráter complementar em relação ao seguro de acidentes de trabalho que beneficiava o mesmo autor, aquele seguro pessoal só teria que cobrir obrigatoriamente os danos que não estivessem cobertos pelo seguro de acidentes de trabalho, sendo que o autor não invocou quaisquer danos que não estivessem cobertos por este seguro, antes pretende exatamente o ressarcimento dos danos que estiveram na base da reparação arbitrada nos autos de acidente de trabalho.

No acórdão recorrido entendeu-se que resultando das condições particulares do contrato que o seguro invocado pelo autor apenas englobava o risco extraprofissional – o risco que não é inerente ao desempenho da pessoa segura – não englobando o seguro profissional – o seguro inerente ao desempenho da profissão segura – tal contrato de seguro não obedecia ao que está obrigatoriamente imposto pelo Decreto-lei 146/93, de 26 de Abril - que regulou o seguro desportivo - em que se impõe que esse seguro desportivo abranja o risco profissional, motivo por que se tinha que considerar que a entidade que promoveu o seguro – Boavista Futebol Clube – Futebol SAD – não promoveu a realização do adequado seguro desportivo, incorrendo na falta de seguro, com as consequências referidas no artigo 10º daquele Decreto-lei 146/93.

Mas tendo o seguro desportivo carater complementar em relação ao seguro de acidentes de trabalho, nos termos do artigo 4º da Lei 8/2003, de 12.05, haveria o autor de alicerçar o sua pretensão indemnizatória na ocorrência de danos não cobertos por aquele seguro de acidente de trabalho, o que não fez, pois alicerçou essa indemnização precisamente nos mesmos fundamentos que estiveram na base da reparação em sede de acidente de trabalho.

O recorrente entende que o caráter complementar do seguro desportivo, acima referido, “não equivale a dizer que o seguro de acidentes pessoais não cobre os danos que não estejam abrangidos pelo seguro de acidentes de trabalho, pelo contrário, são seguros com objetos diferentes e, por essa via, complementares”.

Cremos que não tem razão e se decidiu bem.

O seguro desportivo “cobre os riscos de acidente pessoais inerentes à atividade desportiva, incluindo os decorrentes de transportes e viagens em qualquer parte do mundo” – nº 2 do artigo 1º do Decreto-lei 146/93, acima referido.

Este seguro é obrigatório – artigo 2º e 7º do mesmo Decreto-Lei.

O contrato de seguro é um contrato formal – cfr. artigo 426º do Código Comercial.

Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso – nº1 do artigo 238º do Código Civil.

Nas Condições Particulares da apólice de seguro em causa - denominado de “Acidentes Pessoais de Grupo” – consta como âmbito do seguro os “riscos extraprofissionais”.

E nas Condições Gerais da Apólice RISCO EXTRAPROFISSIONAL está definido como sendo “o risco que não é inerente ao desempenho da profissão da pessoa segura” e o RISCO PROFISSIONAL como “o inerente ao desempenho da profissão da pessoa segura”.

Ora sendo assim e tendo em conta o que acima ficou dito sobre a interpretação dos negócios formais, parece não haver qualquer dúvida que o contrato de seguro invocado pelo autor não cobria os riscos da atividade profissional do autor como jogador profissional de futebol.

Assim, invocando este autor um acidente ocorrido no exercício dessa atividade, parece evidente que com base naquele seguro não pode o mesmo autor ser indemnizado pela incapacidade com que ficou.

O contrato de seguro em causa não pode ser considerado como um contrato de seguro desportivo precisamente porque este supõe a cobertura de “riscos de acidentes pessoais inerentes à atividade desportiva” e, como se viu, estes riscos não estão cobertos pelo referido contrato.

Estamos, pois, perante um caso em que não houve contrato de seguro desportivo e, apesar disso, o desportista foi inscrito na “federação desportiva” respectiva.

Ora, quando não houver seguro ou o seguro não garantir a cobertura igual ou superior ao seguro desportivo obrigatário, as federações desportivas que procederam à inscrição do agente desportivo respondem, no caso de acidente desportivo, “nos mesmos termos em que responderia a empresa seguradora, caso houvesse seguro”. – cfr. artigo 10º do referido Decreto-lei 146/93.

O que quer dizer que não é a ré seguradora que pode ser responsabilizada pela falta de seguro desportivo, mas sim a “federação desportiva”.

É certo que a ré certificou junto da Liga dos Jogadores Profissionais de Futebol que a entidade patronal do autor - o Boavista Futebol Clube – Futebol SAD - tinha contratado com ela “um seguro de Acidentes Pessoais Grupo vigente nesta data e válido até 30.06.2004, garantindo as coberturas e capitais adiante indicados, nos termos da Lei 146/93 de 26 de Abril e da Portaria 757/93, de 27 de Julho para os jogadores a seguir indicados…”, entre os quais se contava o autor.

Mas também é certo que no documento em que fez essa comunicação referiu que o âmbito do seguro abrangia apenas os “riscos extraprofissionais”.

Competia, pois, àquela Liga ter em consideração, para os devidos efeitos, que não se tratava de um seguro desportivo, independentemente da alusão à Lei 146/93 feita pela ré.

Mas mesmo que se considerasse que o que estava em causa era um “seguro desportivo”, mesmo assim a presente ação tinha que naufragar.

Na verdade, dispõe-se no artigo 4º da Lei 8/2003, de 12.05 – em que se prevê o regime específico relativo à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho dos praticantes desportivos profissionais - que “os seguros de acidentes pessoais e de grupo, previstos no Decreto-lei 146/93, de 26 de Abril, ainda que estabelecidos entre entidades empregadoras desportivas e entidades seguradoras, têm caracter complementar relativamente ao seguro de acidentes de trabalho (…)”.

Com bem se diz na sentença proferida na 1ª instância e foi sufragado no acórdão recorrido, “o carácter complementar que é assinalado ao seguro desportivo, na hipótese de praticante desportivo profissional, significa que este apenas tem obrigatoriamente de cobrir os danos que não estejam cobertos pelo seguro de acidente de trabalho”.

Ora e também como se diz na mesma sentença e é reproduzido no acórdão recorrido “(…) o fundamento em que o autor alicerça a sua pretensão indemnizatória que aqui deduz é exatamente o mesmo que esteve na base da reparação arbitrada em sede de acidente de trabalho – não tendo invocado quaisquer danos não cobertos por aquele (…).”

Sendo assim, mesmo que se considerasse estarmos perante um seguro desportivo, a pretensão do autor teria que naufragar por não alegação e consequente demonstração de danos que teria sofrido não cobertos pelo seguro de acidentes de trabalho.

B - Abuso de direito

Entende o recorrente que a ré atuou com abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium” na medida em que, ao fazer a certificação atrás referida e ao emitir o recibo referido no ponto 19 da matéria dada como provada, teria criado no autor a expetativa de que contrato de seguro era válido como seguro desportivo, vindo depois a alegar que o não era.

A noção e abuso de direito foi consagrada no art.334º do Código Civil segundo a conceção objetiva, conforme salienta Antunes Varela, ao escrever: “para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exercer o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito” -  Das Obrigações, vol.II, 5ª ed. p.516.

Esta contradição é patente nos atos de “venire contra factum propium”: são os casos em que uma pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando, por exemplo, determinada causa de nulidade, anulação resolução ou denúncia de um contrato, depois de fazer crer à contra parte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação do contrato - Antunes Varela, ob.cit., p.517.

Conforme sublinha Baptista Machado “in” Tutela de confiança e “venire contra factum proprium” - Obra Dispersa, vol.I, p.385, a ideia imanente a esta proibição é a do dolus praesens, isto é, que a conduta sobre que incide a valoração negativa é a conduta presente, sendo a conduta anterior apenas ponto de referência para, tendo em conta a situação então criada, se ajuizar da conduta atual.

Na decorrência do exposto, enumera aquele mestre, a pp.415 a 418 da citada obra, três pressupostos para o desencadeamento dos efeitos do instituto:

1º - uma situação objetiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.

2º - investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contra parte, com base na situação de confiança criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que surgirão danos, se a confiança legitima vier e ser frustrada.

3º - boa-fé da contra parte que confiou: a confiança do terceiro ou da contra parte só merecerá proteção jurídica quando tenha agido de boa-fé e com cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico.

Posto isto, vejamos se no caso concreto em preço se verificam estes três pressupostos.

Para que o primeiro requisito se tenha como verificado, necessário era que se demonstrasse que a ré procedeu em termos de criar no autor a expectativa de que o seguro que havia celebrado com o Boavista FC, invocado na presente ação, era um seguro desportivo.

Ora, o autor desconhecia os termos concretos em foi celebrado o referido contrato de seguro – cfr. artigo 2º da resposta do autor à contestação da ré.

E provavelmente, os termos em que a ré fez a certificação da existência do contrato de seguro à Liga dos Clubes.

Desconhecia, assim, o âmbito do seguro.

Daí, não se poder concluir que apesar de no contrato esse âmbito estar restrito aos riscos extraprofissionais, a ré tenha criado no autor o convencimento de que abrangia os riscos profissionais.

Sendo assim, não vemos como concluir que a ré tenha criado no autor aquela situação objetiva de confiança.

É certo que na citada certificação a ré aludia a um diploma que regulava o seguro desportivo.

Mas também é certo que informava que o âmbito do seguro apenas abrangia os riscos extraprofissionais.

Ou seja, quem tivesse conhecimento daquela certificação, ficava a saber que o seguro em causa não abrangia os riscos profissionais.

Mas está provado que a ré enviou ao autor uma carta, contendo um recibo para este assinar, no montante de 17.000,00 €, carta esta em que, de acordo com o conteúdo dos documentos juntos com a petição inicial sob os nºs 4 e 5, não impugnados pela ré, se referia que o recibo dizia respeito a uma indemnização que se prontificava a pagar relativa à percentagem de desvalorização fixada no processo que tinha decorrido no Tribunal de Trabalho, “sendo o capital seguro de 85.000,00 €.”

Ou seja, prestava-se a pagar uma indemnização com base no contrato de seguro entendido como de seguro desportivo.

Assim, parece razoável entender que o autor, com base nesta carta, ficasse com fundadas expectativas que a ré entendia que se estava perante um contrato de seguro desportivo.

Desta forma, entendemos estar verificado o primeiro pressuposto acima referido para a verificação da situação de abuso de confiança.

Mas o mesmo não acontece em relação ao segundo pressuposto.

Na verdade e conforme atrás se expôs, o autor apenas invoca a existência dos mesmos danos que estiveram na base da reparação arbitrada nos autos de acidente de trabalho.

Dado o carácter complementar do seguro desportivo em relação ao seguro por acidente de trabalho e como acima ficou dito, mesmo a considera-se a existência de um seguro desportivo, nunca o autor poderia aqui ser ressarcido por aqueles danos que não os ressarcidos no processo por acidente de trabalho, uma vez que aqui os não invocou.

Ou seja, nenhum prejuízo adveio para o autor por aquela frustração de confiança que o comportamento da ré lhe ocasionou.

Em qualquer circunstância e na presente ação, o autor nunca veria julgada procedente a sua pretensão de a ré ser condenada a pagar-lhe a indemnização pedida.

Não se verifica, assim o segundo pressuposto para a existência do abuso d direito.

E como a existência dos três requisitos acima referidos é cumulativa, desnecessário é a apreciação do terceiro.

Embora e de modo sucinto, se possa dizer que, à semelhança do primeiro, se entende que este também de verifica, pois é evidente a boa-fé do autor. 

Concluímos, pois, não poder funcionar aqui o abuso de direito.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 25 de Outubro de  2012

Oliveira Vasconcelos (Relator)

Serra Baptista

Álvaro Rodrigues