Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
Relator: | MAIA COSTA | ||
Descritores: | ROUBO CONCURSO DE INFRACÇÕES CONCURSO DE INFRAÇÕES | ||
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Data do Acordão: | 09/19/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE | ||
Área Temática: | DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO / CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE / ROUBO. | ||
Doutrina: | - Conceição Ferreira da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 163-165 e 178-179. - Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, 2ª ed., p. 60. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 210.º, N.º 1. | ||
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Sumário : | I - O crime de roubo é, consabidamente, um crime complexo, que tutela simultaneamente bens jurídicos patrimoniais e bens jurídicos pessoais. Se na primeira vertente se protege o direito de propriedade ou de mera detenção de coisas móveis, na segunda tutela-se o direito à liberdade pessoal, à integridade física e a outros bens pessoais. II - O sujeito passivo no crime de roubo é não só o proprietário ou o detentor da coisa, mas também todos aqueles que são constrangidos, pelos meios descritos no art. 210º, n.º 1, do CP (violência, ameaça para a vida ou integridade física ou colocação na impossibilidade de resistir), à entrega da coisa, independentemente da existência de uma relação de propriedade ou de detenção sobre essa coisa, que pode nem sequer existir. Haverá assim tantos crimes de roubo quantas as pessoas coagidas pelo agente a entregar a coisa. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
AA, com os sinais dos autos, foi condenado no Juízo Central Criminal de Lisboa, por acórdão de 7.1.2019, pela prática, em coautoria material, de três crimes de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nº 2, b), com referência ao art. 204º, nºs 1, a), e 2, f), ambos do Código Penal (CP), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, por cada um deles, e, em cúmulo, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão.[1] Dessa decisão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo: 1 - O Tribunal “a quo” concluiu que a conduta do ora Recorrente preencheu, como coautor, a prática, na forma consumada, de 3 crimes de roubo agravado, p. e p., cada um deles, p. e p. pelo artigo 210º, nº 2 a), com referência ao artigo, 204º n.º 1 alínea a), e nº 2 al. f) do Código 2 - Contudo, a prova produzida em audiência de julgamento, no que respeita ao elemento essencial do valor, não permite a decisão que foi tomada pelo tribunal a quo quanto à subsunção no tipo legal agravado, decisão com reflexo na medida da pena, 3 - Para o valor dar origem a qualificação ou privilegiamento, tem de ser comportado em alguma das definições referidas no artigo 202.º do CP, estando aqui em causa a alínea a), passamos a transcrevê-la: a) Valor elevado: aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto; 4 - Ora o montante em dinheiro que vem dado como provado que os arguidos se apoderaram, é de € 15.000,00, verba que de per si caberia na previsão da alínea a) do nº 1 do artº 204º do C. Penal, sendo considerado valor elevado. 5 - Porém estão em causa três crimes de roubo, sobre três pessoas distintas, ou seja, se repartirmos esta importância, por igual valor pelos três ofendido, obtemos a quantia de € 5000,00 por cada um deles, o que já não permitirá a subsunção ao conceito de valor elevado. Estando assim em causa um valor normal ou comum, que não dá origem a qualificação ou privilegiamento, por não caber na definição referida no artigo 202.º, alínea a) do CP. 6 - A douta sentença na fundamentação da matéria de facto quanto à apropriação da importância de € 15.000,00 sustenta-se, quer no depoimento da testemunha BB, que refere o seguinte: “Cada um deles trouxe € 5.000,00 euros que, depois juntaram numa mala com roupas. Essa mala foi levada.” 7 - Donde se pode inferir que cada uma das três vítimas tinha trazido consigo a importância de € 5.000,00. 8 - Quer no depoimento da testemunha CC, que diz algo diferente ao relatado pela sua mãe ..., transcrevendo-se o que consta na sentença sob recurso, em sede de análise crítica da prova, e que passamos a transcrever: “Não recuperaram nada, para além das malas e do tabaco, levaram-lhe € 1.500,00 que havia trazido de ... e o seu telemóvel no valor de € 200,00. 9 - Resultando daqui que a importância de € 15.000,00 era na sua totalidade sua propriedade. 10 - Pelo que não se tendo apurado em concreto qual a importância monetária que pertencia a cada uma das três vítimas dos três crimes de roubo, ou se essa importância pertencia apenas a um deles ou a dois ou aos três e em que percentagem, há uma dúvida insanável sobre um facto importante para a decisão, que é a quantia monetária que foi roubado a cada um deles. 11 - Não se podendo, sem violação do princípio da legalidade atribuir uma determinada quantia monetária, dentro do limite de € 15.00,00, a cada uma das três vítimas. 12 - O princípio in dubio pro reo manda que, finda a valoração da prova, a dúvida insanável sobre os factos deve favorecer o arguido. “Na dúvida insanável sobre a verificação de um facto que exclui ou atenua a responsabilidade criminal, o tribunal deve decidir-se pela sua verificação: Na dúvida insanável sobre a verificação dos factos que qualificam o crime, o Tribunal deve decidir-se pela verificação dos factos do crime simples”. 13 - No uso de um tal princípio, o tribunal a quo deveria ter considerado que a quantidade de dinheiro subtraída a cada uma das três vítimas, considerando o bolo total de dinheiro, assente por provado, no montante de € 15.00,00, era inferior a € 5100,00. 14 - Já quanto ao valor do tabaco, entende a defesa que não é possível atribuir-lhe qualquer valor comercial, porquanto se trata de tabaco introduzido em território nacional, sem ter sido apresentado à entidade aduaneira, não tendo sido objecto de fiscalização pela autoridade aduaneira para cumprimento das formalidades de despacho ou para pagamento da prestação tributária aduaneira legalmente devida, ou seja, é objecto de contrabando. 15 - O valor a que consta nos factos provados: 75 volumes de tabaco de marca “Rothamans” para vender pelo preço de €25,00 por volume, era o valor pelo qual se ia realizar o negócio ilícito. 16 - Pelo que o valor acordado para compra e venda entre o recorrente AA e a vítima CC, relativamente ao tabaco introduzido em Portugal por meio de contrabando pela vítima do roubo, CC, não pode ser valorada para a qualificação do crime de roubo, no tocante ao seu valor, pois a vítima, ao ter introduzido no território nacional os volumes de tabaco de que o recorrente se apropriou ocultando-os da fiscalização aduaneira, também os detinha ilicitamente. 17 - Ora desconhecendo-se o valor exato dos volumes de tabacos objeto de roubo, não sendo possível, no caso, determiná-lo, tratando-se de um elemento de facto, a questão só pode ser solucionada a favor do arguido, em obediência, ao princípio in dubio pro reo. 18 - Acresce ainda que à vítima DD foi-lhe subtraída importância de 100dlUSA que corresponde a € 87,00, 1 pulseira de € 500,00,e dois telemóveis um de € 300 e outro de € 50,00, o que perfaz um total de € 935,00. 19 - À ofendida CC foi-lhe ainda subtraído um telemóvel no valor de € 200,00. 19 - Sendo que a soma do valor destes objectos, quer os subtraídos à vítima DD, quer os subtraídos à vítima CC, atingem um valor inferior a elevado, estabelecido na alínea a) do art.º 202º do Código Penal. 20 - Nesta conformidade, os factos provados não permitem a subsunção à agravante qualificativa da alínea a) do n° l do artigo 204º. 21 - Face ao supra exposto, e perante a prova efetivamente produzida em audiência de julgamento, o recorrente AA não poderá ser condenado pela agravante qualificativa da alínea a) do n° l do artigo 204º apenas poderá ser condenado pela prática de 3 crimes de roubo agravado p. e p. pelo artigo 210º, nº 2 b), por referência ao artigo, 204º n. 2 al. f), condenação que tem imediatos reflexos na medida da pena a aplicar, a qual tem necessariamente que ser mais reduzida. 22 - Entende, ainda, o ora Recorrente que a medida da pena que lhe foi aplicada é inadequada, por excessiva, pelos motivos que infra se explanará. 23 - Considera o Recorrente, no seu modesto entendimento, que a pena que lhe foi aplicada é injusta, por exagerada, atento, nomeadamente, a prova produzida e o fim ressocializador das penas. 24 - No seguimento do disposto no n.º 2 do art.º 71º do Cód. Penal, na determinação da medida concreta da pena, o tribunal a quo considerou que: - O grau dos factos se afigura elevado, tendo em conta a forma como os arguidos actuaram;- Os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e os fins e motivos que os determinaram; As consequências das condutas dos arguidos; - O valor de que se apropriaram, - A recuperação dos volumes de tabaco, - A intensidade do dolo, em qualquer dos casos, reveste a modalidade de dolo directo de alta intensidade,- As condições pessoais dos arguidos;- A conduta anterior do arguido AA, sendo de sublinhar a sua condenação entre outros, pela prática de crime de detenção de arma proibida e coação agravada que denota que a sua personalidade se mostra propensa à pratica de ilícitos que revelam alguma violência;- A não demonstração de arrependimento. 25 - Já quanto às exigências de prevenção geral diz-se no acórdão sob recurso, que face ao elevado número de crimes desta natureza que são praticados e aos naturais sentimentos de repúdio que causam na sociedade são intensas, e; 26 - Por sua vez, quanto às exigências de prevenção especial, menciona que são elevadas face ao passado de delinquência do AA. 27 - Ora o facto de o arguido AA ter actuado com dolo directo, que corresponde à forma normal do agir humano, não agrava a ilicitude. Dificilmente seria concebível a prática de um tal tipo de crime (roubo) com outra modalidade de dolo. 28 - Por outro lado, o legislador, ao prever as penas abstractas, atende não só à danosidade social das condutas mas também à sua frequência e, consequentemente, às necessidades da prevenção geral. 29 - Por isso, as considerações sobre a premência da punição do crime de roubo em geral violam a proibição de dupla valoração e não podem ser atendidas pelo tribunal. 30 - Também nos parece que não pode ser valorado em desfavor do arguido a falta de arrependimento. 29 - Por isso, as considerações sobre a premência da punição do crime de roubo em geral violam a proibição de dupla valoração e não podem ser atendidas pelo tribunal. 30 - Quanto à relevância do CRC mantém-se evidente, pois fornece informação importante para a determinação da sanção, a escolha e a medida da pena. 31 - Assim, em caso de arguidos não primários, na determinação da pena há que avaliar os efeitos das condenações anteriores no comportamento do condenado, ou seja, saber das concretas sanções anteriormente experimentadas, aquilatar do seu maior ou menor sucesso, da resposta que penas idênticas possam ou não oferecer para o caso concreto, sobretudo quando a nova pena a proferir seja a de prisão. 32 - Ora os antecedentes criminais do recorrente reportam-se a três crimes de condução sem habilitação de carta, nos quais foi condenado em pena de multa, tendo as penas sido declaradas extintas uma em 2007, 2009 e 2011, um crime de furto qualificado tendo sido condenado em 3 anos de prisão suspensos na sua execução, por factos praticados em 2005, a qual foi declarada extinta em maio de 2012, por um crime de tráfico de estupefacientes, tendo sido condenado na pena de 18 meses de prisão suspensa na sua execução, por factos de agosto de 2010, cuja pena foi declarada extinta em setembro de 2015, em 2013 foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida e 4 crimes de coação agravada na pena de 4 anos de prisão suspensos na sua execução, com sujeição a regime de prova, cuja pena foi declarada extinta em janeiro de 2017. 33 - Donde se reconhece que as necessidades de prevenção especial são mais elevadas. 34 - Mas se os antecedentes criminais do arguido foram sopesados e valorados contra ele, ou seja, como circunstância agravante geral. 35 - Já nem uma palavra foi dita sobre a sua conduta anterior ao crime, ou seja sobre circunstâncias que deponham a favor do arguido recorrente. 36 - Ou seja, não foi valorado o facto deste encontrar-se a residir com a “mãe”, a testemunha ..., a situação do agregado familiar ser estável, a actividade laboral que exercia como repositor no Continente do .... 37 - O facto de o arguido passar o tempo livre junto da filha, contribuindo o mesmo para a sua subsistência de forma regular. 38 - De no E.P. o arguido mostrar uma postura adequada e colaborante no contacto interpessoal, não registando até à data nenhum averbamento no seu registo disciplinar. 39 - Receber visitas regulares da irmã e madrinha “mãe”. A namorada sempre que se desloca a Portugal também o visitar. 40 - Ora o crime de roubo agravado é punível, em abstracto, com uma pena de 3 a 15 anos de prisão. 41 - Tendo em conta todos estes factores e o facto de uma das qualificantes agravativas não se verificar, entende o recorrente que a pena a aplicar por cada um dos 3 crimes de roubo deverá ser de 3 anos e 9 meses de prisão. 42 - Na determinação da pena única, que pode variar, nesse caso, entre os 3 anos e 9 meses e os 9 anos e 9 meses de prisão, tenho em conta o modo de actuação semelhante em todos os casos, os quais ocorreram no mesmo circunstancialismo temporal e causal e as circunstâncias de natureza pessoal mencionadas, deverá a pena fixar-se em 5 anos de prisão a duração da pena única. 43 - Em face de todo o exposto, a douta sentença recorrida violou as normas do 40º, 70º, 71º, 202º, e 204º, nº 1 al. a) do Código Penal.
Respondeu o Ministério Público, dizendo:
O arguido AA, não se conformando com o acórdão proferido nos autos supra referenciados, que o condenou na pena única de seis anos e seis meses de prisão pela prática em coautoria material de três crimes de roubo agravado previsto e punível pelo artigo 210º, nºs 1 e 2 al. b), por referência ao artigo 204º, nº 1, a) e nº 2, f), ambos do Código Penal, dele veio interpor recurso. Alega, em síntese, que: - Estão em causa três crimes de roubo agravado previsto e punível pelo artigo 210º, nºs 1 e 2 al. b), por referência ao artigo 204º, nº 2, f), ambos do Código Penal, e não três crimes de roubo agravado previsto e punível pelo artigo 210º, nºs 1 e 2 al. b), por referência ao artigo 204º, nº 1, a) e nº 2, f), ambos do Código Penal, já que se está perante três crimes de roubo sobre três pessoas distintas e o valor da quantia e artigos retirados a cada uma delas não integra o conceito de valor elevado; - Pelo que a pena aplicada a cada um dos crimes deverá ser reduzida para 3 anos e 9 meses de prisão e a pena única fixada em 5 anos de prisão. Questão prévia O presente recurso foi interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa. Em nosso entender deveria o mesmo ter sido interposto para o Supremo Tribunal de Justiça porquanto nos termos do disposto no artigo 432º, nº 1, al. c), do Código de Processo Penal, só se pode recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, para além do mais, de acórdãos finais proferidos pelo Tribunal Coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 (cinco) anos, visando exclusivamente o recurso matéria de direito. Tendo o recorrente AA sido condenado na pena única de seis anos e seis meses de prisão e visando o recurso matéria de direito do seu acórdão condenatório não poderá, pois, ser interposto recurso para o Tribunal da Relação uma vez que tal matéria está fora do âmbito da sua cognição e, como tal, deverá ser apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça. O objecto do Recurso São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões». Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), duas questões vêm colocadas pelo recorrente à apreciação desse Supremo Tribunal: 1) Saber se o arguido deve ser condenado pela prática de três crimes de roubo agravado p. e p. pelos artigos 210º nºs 1 e 2 al. b), por referência ao artigo 204º, nº 1, a) e nº 2, f), ambos do Código Penal ou pela prática de três crimes de roubo agravado p. e p. pelos artigos 210º nºs 1 e 2 al. b), por referência ao artigo 204º, nº 2, f), ambos do Código Penal; 2) Saber se, no caso de vir a ser punido como coautor de três crimes de roubo agravado p. e p. pelos artigos 210º nºs 1 e 2 al. b), por referência ao artigo 204º, nº 2, f), ambos do Código Penal, o arguido deve ser condenado nas penas parcelares de 3 anos e 9 meses de prisão e numa pena única de 5 anos de prisão. Vejamos. 1) Do crime de roubo: O crime base consiste em subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir. Como é entendimento incontestado, o crime de roubo é um crime complexo, na medida em que o seu autor viola não só um bem jurídico patrimonial (através do furto, que é o crime fim), mas ainda um bem jurídico eminentemente pessoal (pois que põe em causa a liberdade, integridade física ou até a vida da pessoa do ofendido através do crime meio que é a violência), característica esta aliás que se apresenta de maior relevo do que a ofensa do bem patrimonial e que verdadeiramente o distingue do crime de furto. Assim o crime de roubo protege simultaneamente a liberdade individual, o direito de propriedade e a detenção das coisas que podem ser subtraídas, mas apresenta-se juridicamente uno, integrando na sua estrutura vários factos que constituem em si mesmos, crimes. Nestes autos os arguidos, em execução de um plano comum, forçaram a entrada numa habitação e munidos de arma de fogo manietaram as três pessoas que lá se encontravam por forma a retirar do local quantia monetária e bens que lograssem apoderar-se e que no caso ascendeu a mais de 15000€ - cfr. factos dado como provados sob os nºs 6 a 9. Muito embora a natureza pessoal do crime determine a sua punição por três crimes de roubo, a unidade da acção não implica que a agravação da al. a) do nº 1, do artigo 204º, do Código Penal opere através da divisão do valor dos bens subtraídos por cada uma das vítimas! Os arguidos determinaram-se e executaram os factos com o objectivo concretizado de fazerem seus valores que encontrassem (tendo a expectativa de que teriam valor elevado), nem que para tal tivessem de usar a violência contra quem quer que fosse que se encontrasse no local, como se verificou. Neste contexto, não releva a quem pertenciam os bens (que poderiam até não pertencer a nenhuma das vítimas) nem quantas vítimas existem, estendendo-se a agravação a todos os crimes de roubo concretamente praticados. Assim sendo, o tribunal procedeu à correta e adequada integração jurídica dos factos dados como provados no presente processo e condenou o ora recorrente, e bem, como coautor material, pela prática de três crimes de roubo agravado p. e p. pelos artigos 210º nºs 1 e 2 al. b), por referência ao artigo 204º, nº 1, a) e nº 2, f), ambos do Código Penal. 2) Tendo em conta o exposto, prejudicado fica o conhecimento da segunda questão suscitada pelo recorrente. Contudo, atento ainda o facto de o recorrente também ter aflorado que a pena que lhe foi aplicada é injusta, por exagerada, sempre se dirá que tendo presente a gravidade dos crimes praticados pelo arguido AA, atendendo designadamente à medida abstrata mínima do crime de roubo qualificado e à personalidade que o cômputo do seu comportamento revela, entendemos não merecer qualquer censura o quantum das penas parcelares aplicadas bem como a pena única que, em cúmulo jurídico, lhe foi cominada. Saliente-se que, verificando-se concurso de circunstâncias-elementos agravantes do artigo 204º, nº 1, al. a) e do nº 2, al. f), do Código Penal, o tribunal aplicou e bem o disposto no artigo 204º, nº 3, do Código Penal, que consubstancia uma regra geral (indicação das regras e dos princípios atinentes à determinação da pena). Assim, valorou a agravante mais forte (204º, nº 2, al. f.) com o efeito qualificativo – determinação da pena aplicável (moldura penal – 3 a 15 anos) e valorou a prevista no 204º, nº 1, al. a) para efeito da medida/fixação da pena concreta. Pelo que, concordando também com as circunstâncias valoradas apontadas no acórdão recorrido para determinação da medida das penas parcelares e única aqui em causa, cremos que as penas parcelares de quatro anos e seis meses e a pena única de seis anos e seis meses de prisão cominada ao arguido AA, está longe de ultrapassar a medida da sua culpa, corresponderá sensivelmente ao mínimo de pena imprescindível à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e só na medida fixada poderá ser adequada a satisfazer a sua função de socialização. Somos pois de entendimento que a decisão do Tribunal “a quo” deverá ser confirmada – quer quanto à qualificação jurídica dos factos, quer quando à escolha da medida concreta das penas parcelares e da pena única de seis anos e seis meses de prisão. Assim e concluindo Pelo, sumariamente, exposto o Tribunal “a quo” não violou a norma prevista nos artigos 210.°, n.°s 1 e 2 al. b), com referência ao art.° 204.°, n.° 1 al. a) ambos do Código Penal, nem violou, igualmente, o disposto nos artigos 202°, a), 40°, 70° e 71°, todos do Código Penal, pelo que se entende ser de negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, este declarou-se incompetente para o decidir, por acórdão de 16.5.2019. Subiram enão os autos ao Supremo Tribunal, onde o sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
I. O arguido AA, mostra-se condenado por acórdão proferido em 7 de Janeiro de 2019, pelo Juízo Central Criminal de Lisboa [J19] Comarca de Lisboa, pela prática dos seguintes crimes: Três crimes de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, n º 2, al. b), com referência ao art. 204º, n º 1, al. a) e nº 2, al. d), do CP, na pena de 4 anos e 6 meses, por cada um deles; Na pena única de seis (06) anos e seis (06) meses de prisão II. Inconformado veio recorrer para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo nos termos que melhor se colhem dos autos. Como se sabe são as conclusões que, sem embargo dos poderes de cognição «ex officio» da instância apelada, definem o objecto do recurso. Temos assim, a nosso ver, que o recorrente coloca em causa, quer a medida das penas parcelares (4 anos e 6 meses) quer a medida da pena única- 6 anos e 6 meses. Como se vê da motivação, o recorrente pretende a redução das três penas parcelares e concomitantemente da pena única. III. Se estivesse-mos perante um recurso per saltum para o STJ por opção do recorrente, o que manifestamente não é o caso, naturalmente que a análise das questões que vem suscitadas quanto à medida das penas parcelares, caberiam nos poderes de apreciação desta jurisdição, desde logo para garantir ao recorrente dois graus de jurisdição. Todavia, o recurso foi como vimos de consignar supra, vem interposto para a Relação de Lisboa, que tem competência para apreciar a questões suscitadas, sendo certo que as penas parcelares que se pretende revisitar são todas inferiores a 5 anos e só poderiam ser conhecidas pela razão supra expendida. Sem embargo de concordamos com as doutas alegações do MP na 2ª instância, maxime no atinente á manifesta verificação da circunstância qualificativa do art. 204º, nº 1, alínea a), do CPP «valor elevado», bem como nas operações de determinação da pena única, não detectamos qualquer procedimento contra legem, somos de todo o modo, do entendimento que a Relação de Lisboa, nas concretas circunstâncias do caso, é a jurisdição a que cabe a apreciação do recurso. Neste conspecto, somos de parecer que o recurso deve ser remetido ao Tribunal da Relação de Lisboa.
Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), o arguido não respondeu. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação
1. Questão prévia: competência para a apreciação do recurso
Como vimos, o recurso foi interposto pelo arguido para o Tribunal da Relação. Contudo, logo na contramotivação em 1ª instância, o Ministério Público suscitou a questão prévia da incompetência daquele Tribunal para o conhecimento do recurso, posição mantida pela mesma entidade na Relação, para onde o processo foi remetido. O Tribunal da Relação adotou esse entendimento, declarando-se incompetente para julgar o recurso. Neste Supremo Tribunal de Justiça, porém, o sr. Procurador-Geral Adjunto pronuncia-se pela competência da Relação para apreciar o recurso. Contudo, sem qualquer razão. Na verdade, o recurso restringe-se incontestavelmente a matéria de direito, já que o recorrente impugna apenas a qualificação jurídica dos factos e a medida das penas parcelares e da pena conjunta. Por outro lado, a pena conjunta excede 5 anos de prisão. Nos termos do art. 432º, nº 1, c), do CPP, o Supremo Tribunal de Justiça é o competente para julgar os recursos de acórdãos finais proferidos pelo tribunal coletivo que aplicarem pena superior a 5 anos de prisão, quando o recurso visar exclusivamente matéria de direito. E o nº 2 do mesmo artigo acrescenta que nos casos daquela alínea não é admissível recurso prévio para a Relação, não tendo portanto o interessado possibilidade de escolha do tribunal de recurso. Por outro lado, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 5/2017, publicado no DR, I Série-A, de 23.6.2017, estabeleceu doutrina no sentido de que compete ao Supremo Tribunal de Justiça, no caso da citada al. c), apreciar igualmente as questões relativas às penas parcelares englobadas na pena conjunta, ainda que inferiores a 5 anos de prisão, se forem impugnadas no recurso. Considerando o exposto, nenhuma dúvida se pode colocar quanto à competência do Supremo Tribunal de Justiça para o julgamento do presente recurso.
2. Matéria do recurso
São as seguintes as questões colocadas pelo recorrente: - não verificação da agravante qualificativa da al. a) do nº 1 do art. 204º do CP, devendo pois os factos ser subsumidos a três crimes de roubo agravado, p. e p. pelos arts. 210º, nº 2, b), e 204º, nº 2, f), do CP, o que implicaria a redução da medida das penas; - mesmo no caso de não proceder a questão anterior, as penas parcelares deveriam ser reduzidas para 3 anos e 9 meses de prisão, cada uma, e a pena conjunta para 5 anos de prisão.
Importa antes de mais conhecer a matéria de facto, que é a seguinte:
1. BB, DD e CC, mãe e filhos, são ...nos, residem em ... e deslocam-se com frequência a Portugal, ficando na casa de um familiar, sita no Largo... 2. No dia 08/07/2017, pelas 12:30 horas, chegaram ao aeroporto de Lisboa, vindos de ..., seguindo de imediato para aquela morada, onde chegaram cerca das 14:30 horas. 3. CC tinha combinado um negócio de venda de tabaco ao arguido AA, que conheceu através de um conhecido comum, na plataforma de comunicação Whatsapp. 4. Trazia de ... para o arguido AA, conforme combinado, 75 volumes de tabaco de marca "Rothmans", para vender pelo preço de € 25,00 (vinte e cinco euros) cada um, num valor total de € 1875,00 (mil oitocentos e setenta e cinco euros). 5. Depois de telefonar à CC, o arguido AA e o arguido EE deslocaram-se à referida residência no veículo automóvel de marca BMW com a matrícula ...-OG-..., utilizado pelo arguido AA. 6. Munidos de uma arma de fogo com a configuração de pistola, assim que CC abriu a porta, forçaram a entrada e introduziram-se no interior do apartamento, apontando-lhe a arma. 7. Em acto contínuo, disseram a BB, DD e CC que permanecessem quietos, caso contrário os matariam, e amarraram-lhes as mãos atrás das costas com sacos de plástico pretos. 8. De seguida, com BB, DD e CC manietados e incapazes de resistir e continuando a apontar-lhes a arma e a dizer que os matariam se não cumprissem com as suas exigências, revistaram a casa e apoderaram-se dos bens de valor e quantias monetárias dos ofendidos, designadamente das seis malas de viagem tipo trolley com roupas de BB, DD e CC, os setenta e cinco volumes de tabaco descritos e a quantia de 15.000,00 € em numerário, onde colocaram também: - A carteira de DD, contendo 100 dólares americanos e 5.000,00 kwanzas ...nos; - Uma pulseira em ouro amarelo, no valor de 500,00 € pertencente a DD; - Três telemóveis, um pertencente à ofendida CC, no valor de € 200,00 (duzentos euros) e dois pertencentes ao ofendido DD, no valor de 300 € e 50 €. 9. Quando os arguidos se encontravam a transportar as malas com os bens e dinheiro dos ofendidos para fora da habitação, a CC conseguiu soltar-se, fechou a porta com os arguidos do lado de fora e foi para a janela gritar por ajuda, dizendo que estavam a ser assaltados. 10. Os arguidos AA e EE colocaram-se então em fuga, no automóvel acima identificado, levando consigo as malas contendo os bens e dinheiro dos ofendidos, que fizeram seus. 11. Um vizinho apercebeu-se do sucedido, viu a matrícula e alertou a polícia. 12. O automóvel utilizado pelos arguidos foi localizado e apreendido pela PSP no dia 09/07/2017, pelas 06:15 horas, na ... 13. As malas contendo os volumes de tabaco foram recuperadas no dia 13/07/2017, pelas 07:45 horas, na arrecadação da residência de FF, amigo do arguido AA, sita na Rua .... 14. Os demais objectos e dinheiro subtraídos não foram recuperados. 15. No dia 13/09/2017, pelas 08:50 horas, o arguido EE detinha no interior do bolso de umas calças encontradas no interior do seu quarto, na residência sita na ..., duas munições de calibre .22 Long Rifle (equivalente a 5,6 mm no sistema métrico), em boas condições de utilização. 16. Os arguidos sabiam que o dinheiro e objectos que subtraíram aos ofendidos não lhes pertenciam e que agiam contra a vontade dos seus legítimos proprietários, mais sabendo que apenas pelo uso da violência e da intimidação lhes seria possível obter a sua posse, o que lograram usar para obter tal fim, actuando de forma concertada e de acordo com um plano gizado e levado a cabo em conjunto. 17. Mais sabia o arguido EE que a posse das munições de arma de fogo descritas, cuja natureza e características conhecia, era proibida e punida por lei, no entanto quis ter e teve tal conduta. 18. Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, e tinham capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento. 19. Sobre o percurso de vida do arguido AA e as suas condições pessoais - Em 12-03-2007 foi condenado no Processo n° 689/04.1S6LSB do 1º Juízo Criminal de Lisboa, pela prática, em 26-08-2004, de um crime de condução sem habilitação carta, p. e p. pelo art° 3º, n° l da Lei 2/98, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 3,00 €; a pena foi declarada extinta, pelo pagamento, em 14-05-2007; - Em 11-10-2007 foi condenado no Processo n° 1239/07.3PHLRS do Io Juízo de Pequena Instância Criminal de Loures, pela prática, em 06-08-2007 e 10-10-2007, de dois crimes de condução sem habilitação carta, p. e p. pelo art° 3º, n° l da Lei 2/98 Penal, na pena única de 180 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €; a pena foi declarada extinta, pelo pagamento, em 12-03-2009; - Em 09-12-2008 foi condenado no Processo n° 1032/05.8PHLRS da 1ª Vara Mista de Loures, pela prática, em 01-07-2005, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art° 24°, n°2, e) do C. Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período; a pena foi declarada extinta em 24-05-2012; - Em 17-10-2011 foi condenado no Processo n° 696/09.8PHLRS do Io Juízo Criminal de Loures, pela prática, em 28-04-2009, de um crime de condução sem habilitação, p. e p. pelo art° 3º, n° l da Lei 2/98, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €; a pena foi declarada extinta, pelo pagamento, em 03-09-2014; - Em 18-09-2012 foi condenado no Processo n° 4977/09.2TALRS do 2º Juízo Criminal de Loures, pela prática, em 10-08-2010, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art° 21°, n° l do D.L. 15/93, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período com regime de prova e com a condição de pagar 250 € a uma instituição de solidariedade; a pena foi declarada extinta em 18-09-2015; - Em 10-01-2013 foi condenado no Processo n° 1088/07.9PHLRS da 1ª Vara Mista de Loures, pela prática, em 01-07-2007, de um crime de detenção de arma proibida, um crime de ofensa à integridade física e quatro crimes de coacção agravada, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período com regime de prova; a pena foi declarada extinta em 10-01-2017. - O arguido é natural da ..., onde permaneceu até aos 5 anos de idade, altura em que emigrou para Portugal, integrando o agregado da mãe, residente em Portugal. O pai, que permaneceu na ..., não assumiu, para além de algum apoio a nível material, outro tipo de funções parentais. - O agregado, viveu até aos 12 anos do arguido numa barraca sem as mínimas condições de habitabilidade e de conforto. Em 1999 o agregado foi realojado na ..., onde permanece. - No processo de socialização do arguido regista-se a falta de supervisão da mãe, que permanecia grande parte do tempo ausente do lar para trabalhar. O percurso escolar do arguido pautou-se pelo insucesso e pela falta de motivação, tendo abandonado a escola aos 17 anos de idade com a conclusão do 8º ano de escolaridade. - Em 2008 foi pai de uma menina, fruto de uma relação que mantinha há cerca de 5/6 anos e que terminou mais ou menos em 2012. Apesar de estar separado da mãe da filha 9 anos de idade, que mora na mesma zona de residência, o arguido mantinha contactos diários com a filha e uma relação de amizade com a ex companheira. Em 2008 iniciou uma relação com a actual companheira, que se encontra a trabalhar em ... como "hospedeira" numa companhia aérea. - À data dos factos, o arguido encontrava-se a residir com a "mãe". A situação do agregado familiar era estável, dada a actividade laboral que exercia como repositor no continente .... - O arguido passava o tempo livre junto da filha, contribuindo o mesmo para a sua subsistência de forma regular. - No E.P. o arguido revela uma postura adequada e colaborante no contacto interpessoal, não registando até a data nenhum averbamento no seu registo disciplinar. Recebe visitas regulares da irmã e madrinha. A namorada sempre que se desloca a Portugal também o visita. (…) 2.2. Factos não provados Com interesse para a discussão não se provou que os arguidos, ao manietarem e amarrarem os ofendidos, sabiam que os privavam da sua liberdade de movimentos, mantendo-os retidos contra a sua vontade, mais sabendo que apenas pelo uso da violência e da intimidação lhes seria possível consegui-lo, o que lograram usar para obter tal fim.
3. A qualificação jurídica dos factos
Pretende o recorrente que os factos não podem ser subsumidos à agravante qualificativa da al. a) do nº 1 do art. 204º do CP (valor elevado). Para tanto argumenta que, não se tendo apurado qual a importância que pertencia a cada um dos ofendidos da quantia em numerário de 15 000,00 € subtraída, ou mesmo se essa quantia pertencia apenas a um deles, deveria essa importância “repartir-se” por igual valor pelos três ofendidos, cabendo portanto 5 000,00 € a cada um, valor esse inferior ao correspondente ao conceito de “valor elevado” (acima de 5 100,00 €, de acordo com o disposto no art. 202º, a), do CP). Contudo, este raciocínio é claramente improcedente. Na verdade, o crime de roubo é, consabidamente, um crime complexo, que tutela simultaneamente bens jurídicos patrimoniais e bens jurídicos pessoais. Se na primeira vertente se protege o direito de propriedade ou de mera detenção de coisas móveis, na segunda tutela-se o direito à liberdade pessoal, à integridade física e a outros bens pessoais. O sujeito passivo no crime de roubo é não só o proprietário ou o detentor da coisa, mas também todos aqueles que são constrangidos, pelos meios descritos no art. 210º, nº 1, do CP (violência, ameaça para a vida ou integridade física ou colocação na impossibilidade de resistir), à entrega da coisa, independentemente da existência de uma relação de propriedade ou de detenção sobre essa coisa, que pode nem sequer existir.[2] Haverá assim tantos crimes de roubo quantas as pessoas coagidas pelo agente a entregar a coisa. Daqui decorre que é supérfluo, se não de todo insustentável, proceder à operação, puramente fictícia, proposta pelo recorrente, de “repartição equitativa” do valor apropriado pelos diversos ofendidos. Não consta da matéria de facto expressamente a quem pertencia essa quantia de 15 000,00 € em numerário subtraída pelo recorrente. Possivelmente pertencia em comum aos três ofendidos, uma família composta pela mãe e por dois filhos, sendo completamente aleatório estar agora a proceder a qualquer partilha ideal entre eles. Mas tudo isso é indiferente. O que é decisivo é que a conduta do recorrente consistiu numa ação dirigida à apropriação daquela quantia (e de outros valores), mediante a coação simultânea contra os três ofendidos, que eram, se não proprietários, pelo menos detentores do numerário. A ação fraciona-se em três crimes de roubo porque há três pessoas coagidas, três ofendidos nos seus bens jurídicos pessoais, não porque a cada um deles tenha sido subtraída uma parcela ideal daquela quantia. O que releva para a qualificação do crime de roubo é pois o montante global apropriado, apropriação consumada mediante a violência dirigida simultaneamente contra aquelas três pessoas, obrigadas dessa forma a entregar aquele valor ao recorrente. Para além dos 15 000,00 € em numerário, foram ainda subtraídos os volumes de tabaco, com o valor total de 1 875,00 €, objetos pessoais dos ofendidos com o valor total de 1 050,00 €, e ainda 100 dólares americanos e 5 000 kwanzas ...nos. O valor total dos objetos subtraídos excede claramente 5 100,00 €, integrando-se portanto no conceito de “valor elevado”, definido no art. 202º, a), do CP. Improcede pois a questão suscitada pelo recorrente quanto à qualificação os factos, que se mostra correta. 4. Medida das penas parcelares e da pena única
4.1. Defende o recorrente que as penas parcelares são excessivas, não devendo ultrapassar, cada uma, 3 anos e 9 meses de prisão. Contesta nomeadamente a relevância atribuída pelo Tribunal recorrido à intensidade do dolo, por se tratar de dolo direto, e à falta de arrependimento. Defende que as considerações do acórdão recorrido sobre a premência da punição do crime de roubo em geral violam a proibição da dupla valoração. E entende que não foram devidamente valoradas as circunstâncias atenuantes que se apuraram, como a estabilidade familiar e laboral anterior aos factos e o bom comportamento prisional.
4.2. Nos termos do art. 71º, nº 1, do CP, a pena é determinada em função da culpa e das exigências da prevenção. O relacionamento entre culpa e prevenção vem exposto no art. 40º do CP, na redação do DL nº 48/95, de 15-3, relativo aos fins das penas, que, ao dispor que a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo porém a pena ultrapassar a medida da culpa (nº 2 do mesmo art. 40º do CP), veio atribuir à pena natureza predominantemente preventiva, e não retributiva, ao invés do que acontecia na versão originária do Código Penal.[3] A pena tem como finalidade primordial a prevenção geral (“proteção dos bens jurídicos”), entendida como prevenção positiva, ou seja, como afirmação contrafática da validade das normas perante a comunidade; é nessa moldura que devem ser valoradas as exigências da prevenção especial, intervindo a culpa como limite máximo da pena, como travão inultrapassável às exigências preventivas. É neste quadro que, para determinação da medida concreta da pena, há que atender, de acordo com o nº 2 do citado art. 71º, às circunstâncias do crime, nomeadamente à ilicitude, e a outros fatores ligados à execução do facto, como a gravidade das consequências deste; o grau de violação dos deveres impostos (al. a)); a intensidade do dolo ou da negligência (al. b)); os sentimentos manifestados pelo agente e os fins ou motivos que o determinaram (al. c)); as condições pessoais e económicas do agente (al. d)); a personalidade do agente (al. f)); e a sua conduta anterior e posterior ao crime (al. e)).
4.3. Analisando os argumentos do recorrente, aceita-se o bem fundado de algumas críticas à decisão recorrida. Com efeito, a mera verificação de dolo direto não revela necessariamente um dolo particularmente intenso. Como diz o recorrente, o dolo direto corresponde ao modo normal do agir humano. Na verdade, as condutas humanas são normalmente dirigidas intencionalmente à obtenção de uma finalidade determinada, e só residualmente são enquadráveis no dolo necessário ou no dolo eventual. No caso do crime de roubo, o dolo direto é a modalidade normal ou corrente associada à sua prática, pelo que não assume uma natureza especialmente censurável. Já certas circunstâncias do caso, que já abordaremos, e que não foram tidas em conta no acórdão recorrido, revelam uma censurabilidade particular. Também assiste razão ao recorrente quanto à relevância atribuída ao não arrependimento. Na verdade, e como é sabido, se o arrependimento é incontestavelmente uma circunstância atenuante, por vezes com grande relevo, já a sua ausência não pode prejudicar o condenado, não pode funcionar como circunstância agravante. Mas já não tem razão o recorrente quando pretende que a importância concedida à premência na punição do crime de roubo constitui violação da proibição da dupla valoração, por a moldura penal já atender às necessidades de prevenção geral. Não é assim, de facto. Com efeito, a moldura penal atende fundamentalmente ao valor do bem jurídico tutelado, independentemente das necessidades preventivas. Estas, quer as especiais, quer as gerais, intervêm apenas na fase da aplicação concreta da pena, como atrás ficou referido. A ponderação dos interesses preventivos, nomeadamente dos preventivos gerais, aquando da determinação da medida concreta da pena, não viola portanto o princípio da proibição da dupla valoração das circunstâncias agravantes. Por fim, também terá razão, ao menos em parte, o recorrente quanto às circunstâncias atenuantes que refere. Na verdade, ficou provado que, à data dos factos, ele vivia com a mãe, e que trabalhava; mais se provou que passava o tempo livre com a filha, contribuindo para o sustento da mesma. Estes factos, que são favoráveis ao arguido, não são referidos no acórdão recorrido, que apenas se reporta às “condições pessoais do(s) arguido(s)”, ignorando-se assim que valor lhes foi atribuído, se foi.
4.4. Importa agora proceder a uma ponderação global das circunstâncias atinentes aos factos e apreciar da correção da medida das penas parcelares. Como atrás se referiu, se o dolo direto não será suficiente para avaliar a gravidade da conduta, outra circunstância importa acentuar: a atuação “traiçoeira” do recorrente e do coarguido. Na verdade, o recorrente tinha combinado um negócio de venda de tabaco (75 volumes) com a ofendida CC, tabaco que esta iria trazer de .... Marcado o encontro na casa em que esta ofendida, a mãe e o irmão estavam acidentalmente alojados, o recorrente e o coarguido dirigiram-se a essa habitação, e, logo que lhes abriram a porta, introduziram-se na mesma e apontaram uma arma de fogo aos três ofendidos, ameaçando-os que os matariam se não permanecessem quietos, após o que lhes amarraram as mãos atrás das costas. De seguida, apoderaram-se não só do tabaco, como de outros objetos e valores, nomeadamente da quantia de 15 000,00 € em numerário. Embora o negócio do tabaco seja obscuro e certamente ilícito, não deixa de ser altamente censurável a conduta do recorrente (e coarguido), que aproveitou a boa fé dos ofendidos para se introduzir na casa destes e os roubar, levando tudo o que tinha valor, usando violência. Perante este quadro fáctico, é limitado o valor das atenuantes referidas (inserção familiar e laboral, e bom comportamento prisional), que no entanto recomendam, em homenagem aos interesses da ressocialização, uma ligeira redução das penas. Por último há que acentuar as evidentes exigências de prevenção geral e mesmo de prevenção especial. Tendo em conta que a moldura penal é de 3 a 15 anos de prisão, e considerando todas as circunstâncias referidas, entende-se como adequada a pena parcelar de 4 anos de prisão para cada crime de roubo.
4.5. Resta analisar a pena conjunta, que vem fixada em 6 anos e 6 meses de prisão. Estabelece o art. 77º, nº 1, do CP que o concurso é punido com uma pena única, em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. E o nº 2 acrescenta que a pena única aplicável tem como limite máximo a soma das penas parcelares (não podendo ultrapassar 25 anos de prisão) e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares. A determinação da medida concreta da pena única deve atender, como qualquer outra pena, aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art. 71º do CP); e ainda a um critério especial: a consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, na sua relação mútua. Ao tribunal impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente. No caso dos autos, a pluralidade de crimes resulta unicamente da pluralidade de sujeitos passivos, não de uma reiteração da conduta criminosa. Não se podem ignorar os antecedentes criminais do recorrente, onde sobressai uma condenação por detenção de arma proibida, ofensa à integridade física e coação agravada, para além de três crimes de condução sem carta, um crime de furto qualificado e outro de tráfico de estupefacientes. Há que relevar, no entanto, que os factos mais recentes (referentes ao tráfico de estupefacientes) se reportam a 10.8.2010, data já algo distante. A personalidade do arguido revela sem dúvida algumas fragilidades na sua adesão ao direito, o que determina alguma exigência em sede de prevenção especial. Em todo o caso, os interesses da ressocialização não podem ser ignorados, merecendo uma certa “aposta”, face ao apurado quanto ao enquadramento familiar, nomeadamente a relação com a filha, e até a manutenção da relação afetiva com uma companheira que o visita na prisão. Tudo ponderado, entende-se que a pena conjunta deverá ser fixada em 5 anos e 6 meses de prisão.
III. Decisão
Face ao exposto, decide-se: a) Negar provimento ao recurso, quanto à qualificação jurídica dos factos, que se mantém; b) Conceder provimento parcial ao recurso, quanto à medida das penas, que se fixa da seguinte forma: - 4 (quatro) anos de prisão para cada pena parcelar; - 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão para a pena conjunta.
Sem custas.
Lisboa, 19 de setembro de 2019
Maia Costa (Relator)
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