Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | PAULO FERREIRA DA CUNHA | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM CONCURSO DE INFRAÇÕES VIOLÊNCIA DOMÉSTICA AMEAÇA CÚMULO JURÍDICO PENA ÚNICA MEDIDA CONCRETA DA PENA | ||
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Data do Acordão: | 03/17/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - Está em causa uma pena única por quatro crimes de violência doméstica e um de ameaça agravada. Na medida da pena a determinar em cúmulo jurídico devem ser considerados, conjuntamente, os factos e a personalidade do agente (art. 77, n.º 1). E quanto aos factos, é assente que se trata de ter uma imagem global do facto, considerando-se não o atomismo das condutas, mas como se fossem uma só. II - Com um hábito de agressões verbais e físicas aos membros da família, de índole violenta, com dependência alcoólica e consumo de estupefaciente, atitude auto desculpadora, a imagem global que se tem da personalidade do arguido, e que resulta dos Autos, contrasta, efetivamente, com uma visão mais idílica, na qual sobressairiam a infância difícil do recorrente, marcada pela violência do seu próprio progenitor, a falta de afeto, as suas dificuldades de aprendizagem, o seu estado depressivo, desaguando mesmo em tentativa de suicídio; e, mais recentemente, a maior motivação do arguido que procurou acompanhamento psicológico entre março e abril de 2020, além do facto de a intervenção do Centro de Respostas Integrada ter apresentado um resultado favorável quanto ao consumo do álcool. Assim como, próximo de sua mãe e do seu padrasto, supostamente se encontrar “inserido social e familiarmente”. III - A narrativa das agressões e as suas sequelas nas vítimas deste processo é uma sucessão de atitudes (no mínimo) profundamente deploráveis, completamente evitáveis (gratuitas), culposas, com dolo direto e intenso, e sem causas de exclusão da ilicitude ou da culpa. IV - A moldura penal do concurso em causa é de 3 a 12 anos e 4 meses de prisão. A pena aplicada ficou ligeiramente abaixo do meio entre estes dois valores: seis anos. Embora, como se sabe, não se esteja perante uma tabela meramente aritmética, os padrões numéricos são um utensílio pelo qual se podem aferir algumas valorações, porquanto podem dar uma noção de grandeza e proporção. Cf. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 03/12/2014, no Proc.º n.º 273/07.8PCGDM.S2 (Relator: Conselheiro Santos Cabral); Ac. de 11/02/2015 deste STJ, proferido no Proc.º n.º 175/12.6GBLLE.E1.S1 (Relator: Conselheiro Pires da Graça). V - O arguido, praticou crimes de violência doméstica e ainda de ameaça agravada. Sem exame crítico da sua conduta, o arguido revela uma manifesta insensibilidade aos valores, princípios e normas penais, sociais e éticas e aos bens jurídicos que lhes andam associados (uma espécie de Rechtsfeindschaft). As exigências de prevenção especial são notórias, em consequência. VI - As condutas ilícitas e típicas praticadas são graves, dolosas, reiteradas temporalmente (mas não há crime continuado de violência doméstica), as vítimas são familiares próximos, a reclamar proteção e afeição e não agressividade e depreciação, relevando também a idade, e o género (pelo menos, no caso das vítimas do género feminino). À pluralidade de crimes deve corresponder um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. VII - O alarme social potencial de tais condutas, sobretudo se tratadas de forma excessivamente indulgente, ou mesmo laxista, é seguramente causa de erosão da confiança no direito e potenciador até de princípios de anomia, porquanto, apesar da invisibilidade que muitas vezes existe nestes crimes, quando se revelam, ultrapassando várias opacidades e até preconceitos, como que têm efeito catártico de anagnórise, e podem resultar em grave comoção social. Daí saírem reforçadas as consequentes exigências elevadas de prevenção geral. VIII - Consequentemente, uma pena única que, com este quadro, de facto e de personalidade do agente (art. 77, n.º 1, in fine CP), se encontra já abaixo da metade da moldura penal possível (seis anos de prisão), revela-se adequada e proporcional à globalidade dos factos e à personalidade do agente. IX - Nestes termos, se acorda em negar provimento ao recurso quanto à pena única, que se mantém em seis anos de prisão efetiva. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I Relatório 1. AA, devidamente identificado nos Autos, foi condenado em 23 de outubro de 2020, pelo Juízo Central Criminal de ………-J…. / Tribunal Judicial da Comarca de ………, pelos seguintes crimes, nas respetivas penas parcelares: - Um crime violência doméstica, p. e p. pelo art. 152, n.ºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, na pessoa de BB, na pena de dois (02) anos e oito (08) meses de prisão; - Um crime violência doméstica, p. e p. pelo art. 152, n.ºs 1, alínea d) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pessoa de DD, na pena de três (03) anos de prisão; - Um crime violência doméstica, p. e p. pelo art. 152, n.s 1, alínea d) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pessoa de EE, na pena de três (03) anos de prisão; - Um crime violência doméstica, p. e p. pelo art. 152, n.º s 1, alínea d) e n.º 2, alínea-a), do Código Penal, na pessoa de FF, na pena de três (03) anos de prisão; - Um crime de ameaça agravada, p. p pelos art.s 153, n.º 1 e 155, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pessoa de DD, na pena de oito (08) meses de prisão. Tendo resultado o cúmulo numa pena única de seis (06) anos de prisão. 2. Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do ……… questionando tão-só a pena única. Da respetiva Motivação, extraiu as seguintes Conclusões: “1. O ora recorrente foi condenado pela prática, em concurso efetivo, de quatro crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e d) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão e um crime de ameaça agravada p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão e, em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 6 (seis) anos de prisão; 2. Nos termos do disposto no artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.”; 3. O artigo 70.º do mesmo diploma legal prevê que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”; 4. A tendência do direito criminal refletida no disposto nos artigos 70.º e seguintes do Código Penal, vai no sentido de rejeitar, na medida do possível, as penas privativas da liberdade, que devem ser encaradas como a “ultima ratio”; 5. As penas privativas da liberdade não possibilitam uma atuação eficaz sobre o condenado no sentido da sua socialização nem exercem na comunidade uma função de segurança relevante; 6. As penas privativas da liberdade trazem o risco de dessocialização do condenado pelo curto contacto com o ambiente prisional; 7. Acresce ainda que, na fixação da medida da pena deve ainda recorrer-se aos critérios do artigo 71.º do Código Penal, segundo o qual há que atender à culpa do agente, às exigências de prevenção geral e especial, considerando, no caso concreto, todas as circunstâncias previstas no n.º 2 que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, considerando, nomeadamente e entre outras, as condições pessoais do agente e a sua situação económica; 8. Entende o arguido que as suas condições socioeconómicas não foram devidamente valoradas pelo Tribunal a quo, na medida da pena, em total violação do disposto no artigo 71.º, n.º 2, alíneas d) e e) do Código Penal; 9. O Tribunal não valorizou, igualmente, a inexistência de qualquer condenação por crime de violência doméstica; 10. Nem valorizou o facto de o arguido nunca ter beneficiado de qualquer suspensão; 11. O Tribunal a quo não valorizou a possibilidade de sujeição do Arguido a um regime de prova através de um plano de readaptação delineado pela DGRS, com enfoque na prevenção da violência doméstica e com intervenção ao nível da prevenção e tratamento do alcoolismo e estupefacientes. 12. Pese embora a natureza e a gravidade do crime cometido, atento o fim da pena e as necessidades de prevenção geral e especial, entende-se que no caso sub judice, a prisão efetiva não dará certamente resposta à prevenção de um comportamento futuro e idêntico, por parte do arguido, muito pelo contrário, poderá produzir efeitos perversos, de dimensões imprevisíveis. 13. Entende pois, o arguido que o tribunal ao não valorizar cabalmente as suas condições socioeconómicas violou o disposto no artigo 71.º, n.º 2, alíneas d) e e) do Código Penal; 14. Pelo que, a pena aplicada de 6 anos de prisão padece de severidade; 15. Tal pena deve ser substituída por pena de prisão a fixar-se em 4 anos e seis meses; 16. O artigo 50.º do Código Penal prevê a possibilidade da suspensão da execução da pena de prisão, verificados os respetivos pressupostos, o que é passível de aplicação no caso sub judice; 17. Em conformidade, discorda o arguido que a aplicação da pena de seis anos de prisão efetiva possa exercer uma função de ressocialização; 18. Antes entende que não dará certamente resposta à prevenção de um comportamento futuro e idêntico podendo, pelo contrário, produzir efeitos perversos, de dimensões imprevisíveis. 19. É, pois, sabido que a convivência e integração no meio prisional acarreta prejuízos para os condenados, os quais vão muito além da segregação social. 20. Em conformidade, deve a pena de seis anos ser substituída por pena de prisão a fixar-se em 4 anos e seis meses, suspensa na sua execução por igual período mediante a sua sujeição a regime de prova e a plano de readaptação social a delinear pela DGRS. 21. Entende, assim, o arguido que, a censura do facto e a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução, mediante a sujeição a regime de prova é suficiente para o afastar da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime. NESTES TERMOS Nos melhores de direito e com mui douto suprimento de V.Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogado o acórdão proferido pelo Tribunal “a quo”, devendo o mesmo ser substituído por outro que: Condene o Arguido numa pena de prisão fixada em 4 anos e 6 meses, suspensa nos seus efeitos por igual período, mediante a sujeição do Arguido a regime de prova e a plano de readaptação social a delinear pela DGRS, com enfoque na prevenção da violência doméstica e com intervenção ao nível da prevenção e tratamento do alcoolismo e estupefacientes, concretamente: a) Responder às convocatórias do técnico de reinserção social ou do Tribunal; b) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos pertinentes que lhe sejam solicitados; e; d) Frequentar o Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD); e) Manter-se abstinente do consumo de álcool e de estupefacientes, ou outras que o Tribunal entender por adequadas.”. 3. Na resposta, a Digna Magistrada do Ministério Público no Tribunal a quo, desde logo suscitou uma «questão prévia - da competência do tribunal». Sobre esta questão, fundamentalmente disse que: “Nos termos do disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito. Já o n.º 2, do artigo 432.º, do Código de Processo Penal prescreve que, nos casos da alínea c) do número anterior, não é admissível recurso prévio para a Relação (sem prejuízo do disposto no artigo 414.º, n.º 8, do mesmo Código). Ora, não obstante as penas parcelares a que o arguido foi condenado sejam inferiores a 5 anos de prisão, certo é que o recurso interposto versa unicamente sobre a pena única de 6 anos de prisão que em cúmulo jurídico lhe foi aplicada. Pelo que o recurso que ora se responde enquadra-se nesta referida alínea. A ser assim, a sua apreciação compete ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça e não, como o fez o recorrente, ao Tribunal da Relação do ……...” 4. Concluiu com as seguintes conclusões, que fundamentam a subida dos Autos a este Supremo Tribunal de Justiça e a sua pronúncia pela negação de provimento ao recurso: “1. AA foi condenado pela prática de 4 crimes de violência doméstica e um crime de ameaça agravada, na pena única de 6 anos de prisão. 2. Inconformado com tal decisão, interpôs aquele recurso para o Tribunal da Relação do Porto, por entender que o Tribunal a quo, na fixação da pena única, não tomou em conta a personalidade do arguido, nem a possibilidade de reintegração e ressocialização do mesmo, nem o facto de este estar em processo de redução do consumo de bebidas alcoólicas e de haxixe. 3. Nos termos do disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito. E, nos termos do n.º 2 do artigo 432.º do Código Penal, nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação. 4. Deverá, assim, o Venerando Tribunal da Relação corrigir o “erro na espécie de recurso”, por versar apenas sobre matéria de direito, declarar a incompetência daquele Tribunal e, nos termos do disposto no artigo 33.º, n.º 1, do Código e Processo Penal, o presente recurso e respetiva resposta serem remetidos ao tribunal competente, o Colendo Supremo Tribunal de Justiça. 5. A moldura abstrata da pena única a aplicar ao arguido tem como limite mínimo 3 anos de prisão e como limite máximo 12 anos e 4 meses de prisão. 6. Analisando todos os factos na sua globalidade, bem como a sua gravidade, que se demonstrou crescente ao logo do tempo, assim como tendo em consideração o seu parentesco com as vítimas, a sua proximidade, as consequências das suas condutas (os filhos mais novos tiveram que ser instucionalizados), a que acresce o facto de o arguido não ter demonstrado qualquer arrependimento dos seus comportamentos, não descurando ainda o seu passado criminal (com condenações por crimes similares), entendemos que a pena única fixada não é, de todo, excessiva. 7. Na verdade, tendo presente toda a factualidade provada na sua globalidade, bem como o facto de o arguido já ter sido alvo do sistema punitivo por crimes integrados no crime de violência doméstica, o que demonstra que as condenações que sofreu não foram suficientes para o trazer de volta ao direito e à vivência em comunidade, é nosso entendimento que as necessidades de prevenção especial se fazem sentir de modo premente. 8. Por outro lado, e não obstante estar social e familiarmente inserido, o certo é que o arguido persistiu no seu comportamento ao longo de anos a fio. 9. Tendo presente tudo o acima descrito, mais não resta senão concluir que o arguido tem uma personalidade propensa para o crime, o que é demonstrado através da conduta delituosa presente nos presentes autos, bem como do seu registo criminal, o que atribui à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. 10. Tudo ponderado, designadamente a gravidade das condutas ilícitas-típicas perpetradas pelo arguido, a relação de parentesco com as vítimas, as consequências das suas condutas, assim como o alarme social associado a tais condutas, e as consequentes exigências de prevenção geral associadas (que são elevadas), cumpre considerar adequada e proporcional à globalidade dos factos e à personalidade do agente a pena única a que foi condenado. 11. Bem andou o Tribunal a quo em condenar o arguido na pena única de 6 anos de prisão, devendo, por conseguinte, improceder o recurso apresentado pelo arguido. 5. Em 13 de janeiro de 2021, foram efetivamente os Autos mandados subir a este Supremo Tribunal de Justiça, por despacho que assim conclui: “Nos termos previstos no art. 427º, 1ª parte, 432º, nº1 c) do CPP, tendo sido interposto recurso, visando apenas o reexame da matéria de direito, de acórdão proferido por tribunal coletivo, que aplicou uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, à luz da jurisprudência uniformizada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 5/2017, in Diário da República nº 120/2017, Série I de 2017-06-23, subam os autos ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça.” 6. Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se igualmente, em douto parecer, pela improcedência do recurso, começando por concordar com a subida dos Autos ao Supremo Tribunal de Justiça, e assim concluindo, após enquadrar teoricamente a questão: “Revertendo ao caso concreto, determinada a moldura penal do concurso, que como se referiu supra sob 2. vai de 3 a 12 anos e 4 meses de prisão e recortando a ponderação conjunta dos factos, uma personalidade avessa á conformação dos seus comportamentos, de acordo com a lei penal, especialmente no domínio do bem jurídico complexo tutelado pelo tipo legal do art.º 152º do Código Penal, como resulta do período temporal muito extenso em que os factos decorreram, vitimizando não só a sua falecida mulher, como todos os seus três filhos. E note-se, como se refere na resposta as condutas do recorrente estiveram na base de grande sofrimento psicológico, designadamente, mas não só da sua filha EE e do seu filho FF, com a primeira a protagonizar actos de automutilação, acabando, por ser aplicada aos dois no âmbito de processo tutelar de promoção e protecção, a medida de acolhimento residencial, ficando, assim, mercê da reiterada conduta do recorrente, consumidor de álcool e estupefacientes, privados do tecto, supostamente protector, de uma casa de família. Neste contexto e sendo certo que a diferença ente a pena única aplicada e o máximo da moldura penal do concurso é de seis anos e quatro meses de prisão, a fixação da pena única em seis (06) anos, não se mostra violadora das regras de determinação da mesma, antes se mostra conforme aos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação.” 7. Foi cumprido o disposto no art. 417, n.º 2 do CPP. 8. O Recorrente veio aos Autos, respondendo nos termos e com os fundamentos seguintes: 1. Não concorda o arguido, com a devida vénia, com o douto parecer, 2. Pois que, ao arguido foi imputada não só a prática de crimes de violência doméstica como também a prática de um crime de ameaça agravada, 3. Pelo que, no que a este se refere, releva o artigo 70.º do Código Penal, atenta a moldura penal abstratamente aplicável - pena de prisão de 1 mês até 2 anos ou com pena de multa de 10 dias até 240 dias - devendo o Tribunal rejeitar, na medida do possível, as penas privativas da liberdade. 4. Acresce ainda que, conforme jurisprudência consolidada pelo STJ, na fixação da pena única, o tribunal procede a uma reavaliação dos factos em conjunto, com a personalidade do arguido, 5. O que exige uma fundamentação especial da pena única a fixar em função das exigências gerais, de culpa e de prevenção, 6. Implicando uma efetiva ponderação da situação global, em relação com as condutas e a personalidade do agente, sendo imprescindível que o Tribunal esclareça a forma como analisou os parâmetros previstos na lei e as razões específicas em que assentou a medida da pena, 7. Indicando, concretamente, quais as circunstâncias agravantes e atenuantes. 8. Ora no acórdão recorrido, na determinação da medida da pena, quanto às condições pessoais e socioeconómicas do agente, o Tribunal a quo limitou-se a indicar que, quanto aos antecedentes criminais, se valorou o CRC sob a ref. ……… e quanto às condições socioeconómicas se considerou o relatório social elaborado pela DGRS sob a ref. … - cujo parecer foi no sentido de que, em caso de condenação deveria o arguido ser sujeito a regime de prova - (negrito nosso), 9. Sem qualquer escrutínio em termos de valoração, exaltando apenas e para efeitos de determinação da medida da pena, elementos desfavoráveis ao Arguido para fundamentar a condenação, (sublinhado nosso) 10. Esquecendo a valoração (e respetiva afetação na medida da pena) de alguns factos, pese embora os tenha dado como provados, 11. Concretamente a infância conturbada do arguido, marcada pela violência paterna; a falta de afeto; as suas dificuldades de aprendizagem; o seu estado depressivo, com tentativa de suicídio; a maior motivação do arguido que procurou acompanhamento psicológico entre março e abril de 2020; o facto da intervenção do Centro de Respostas Integrada quanto ao consumo do álcool, ter apresentado um resultado favorável, e tendo proximidade com a mãe e o padrasto, encontrar-se devidamente inserido social e familiarmente, (tudo conforme se fez já constar das suas alegações de recurso), 12. Que militam claramente a favor do arguido, na medida em que constituem circunstâncias atenuantes definidas pelo texto da lei, nos termos do disposto no artigo 71.º, n.º 2, alíneas d) e e) do Código Penal, 13. Sendo as mesmas imprescindíveis para a avaliação da personalidade do agente. 14. Ora, a personalidade do agente é um dos elementos integrantes da formação da pena única a aplicar, atentas as exigências de prevenção especial e de prevenção geral. 15. Com efeito, a não valorização de tais circunstâncias atenuantes, em violação do disposto no artigo 71.º, n.º 2, alíneas d) e e) do C.P., inquina, desde logo e viola as regras de determinação e fixação da pena única, 16. Mesmo que enquadrada na moldura penal do concurso do caso concreto, 17. Devendo, em consequência, a pena determinada ser substituída por pena de prisão a fixar-se em 4 anos e seis meses, 18. Suspensa na sua execução por igual período, nos termos do disposto no artigo 50.º do Código Penal, mediante a sua sujeição a regime de prova e a plano de readaptação social a delinear pela DGRS, com enfoque na prevenção da violência doméstica e com intervenção ao nível da prevenção e tratamento do alcoolismo e estupefacientes, 19. Tudo conforme alegado pelo arguido em sede de recurso e suas conclusões, 20. E assim se dando cumprimento às regras de determinação e fixação da pena e aos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação. Termos em que, salvo o devido respeito por opinião contrária, deverá o recurso ser julgado procedente.” 9. Este Tribunal foi ainda informado de que DD, ofendida, que não se constituiu assistente, nem fez pedido de indemnização civil, veio reclamar de uma não admissão de resposta ao recurso do arguido nestes autos, interposta para o Tribunal Judicial da Comarca de …, assim como do respetivo despacho de indeferimento. Sem Vistos, atenta a situação de estado de emergência em vigor, cumpre apreciar e decidir em conferência. II Do Acórdão Recorrido Tal é o teor do Acórdão recorrido, no tocante aos factos, fundamentação e dispositivo: FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO FACTOS PROVADOS Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão: Da acusação pública: 1. O arguido AA foi casado com BB. 2. Desse relacionamento nasceram três filhos: DD (em … de Março de 1997), EE (em … de Maio de 2005), FF (em … de Agosto de 2010). 3. Em … de Julho de 2015 faleceu BB, a mulher e progenitora dos filhos do arguido. 4. Desde data não apurada, mas pelo menos até 15 de Outubro de 2019, o arguido residiu primeiramente com a mulher e com os filhos, e depois só com estes, na Rua ………, nº ……, em …………, sendo que a ofendida DD saiu de tal habitação em Novembro de 2017. 5. Acontece que, desde data não apurada, mas pelo menos desde o ano de 2007, pelo menos semanalmente, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas em excesso e consumiu produtos estupefacientes, o que fazia na presença dos filhos. 6. Desde pelo menos essa data, por diversas vezes, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas em excesso ou consumiu produtos estupefacientes e, nessas ocasiões, o arguido revelou comportamentos violentos e autoritários para com os ofendidos. 7. Assim, sempre que o arguido se encontrava alcoolizado ou sob o consumo de produtos estupefacientes, iniciava discussões violentas com os ofendidos, desferindo murros na mesa, exibindo raiva, o que deixava os ofendidos, filhos e mulher, atemorizados. 8. Por esse motivo, em data não concretamente apurada do mês de Novembro de 2017, já após o falecimento da sua mãe, a ofendida DD abandonou a residência da família e foi residir sozinha na Avenida ………, ….., em ……….. . 9. Desde pelo menos o ano de 2007, pelo menos entre quatro a cinco vezes, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido dirigiu-se à ofendida BB, sua mulher, bem como à ofendida DD, sua filha, e afirmou “vaca”, “puta”, “não vales nada”, “não andas a fazer nada nesta vida”, e “vocês são uma merda”. 10. Além disso, em data não apurada do ano de 2011, altura em que ofendida EE tinha aproximadamente seis anos de idade, pelo menos entre quatro a cinco vezes, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido dirigiu-se à referida ofendida e disse-lhe “vaca”, “puta”, “não vales nada”, “não andas a fazer nada nesta vida”, “tu nasceste para o mundo para dar problemas”, “qualquer dia mato-te” e “vocês são uma merda”. 11. Além disso, durante o período em que residiram juntos, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido cerca duas a três vezes, dirigiu-se à ofendida DD e afirmou “não és minha filha”, “estragaste a minha vida”, “não vales nada”, “não vais dar mulher na vida”. 12. Desde o ano de 2007 e até ao falecimento da ofendida BB, por diversas vezes, em datas não apuradas, na sequência de discussões no interior da habitação da família, sendo que em algumas semanas diariamente, o arguido desferiu à sua mãe e à ofendida DD murros na face, bofetadas, pancadas de cinto, o que fazia por todo o corpo das mesmas, e sempre com bastante força, causando-lhes dores físicas, sendo que em algumas ocasiões causou-lhes vermelhão e noutras hematomas. 13. Após o funeral da ofendida BB, o que ocorreu em Julho de 2015, GG, avó paterna dos ofendidos DD, EE e FF, a ofendida DD e o arguido reuniram-se para decidir com quem ficavam os ofendidos EE, FF, dado que eram menores. 14. Nessa altura, o arguido e a ofendida DD iniciaram uma discussão dado que o arguido afirmou que ia viver para ………. com os filhos EE e FF e a ofendida DD não concordava com tal alteração na vida dos irmãos. 15. De seguida, o arguido ficou exaltado, agarrou a ofendida pela camisola, rasgou-a e desferiu-lhe um murro na região temporal, tendo embatido com a cabeça numa esquina e caído no chão, onde permaneceu inconsciente por período de tempo não apurado. 16. Na sequência da referida agressão, a ofendida DD foi transportada para o Hospital …………, a fim de receber assistência médica. * 17. Passados poucos dias, o arguido abandonou Portugal e foi residir para ……….., mais concretamente para junto de HH, irmão do arguido, acompanhado dos ofendidos EE e FF. 18. Acontece que, o arguido continuava a consumir bebidas alcoólicas em excesso, bem como produtos estupefacientes, exaltando-se, por diversas vezes, com os ofendidos EE e FF. 19. Em data não apurada, mas menos de 1 mês depois, o arguido saiu de casa alcoolizado com os filhos. 20. Depois disso, dado o comportamento do arguido, com o qual o tio dos menores não concordava não permitiu que o arguido continuasse a viver consigo em ………. e, nessa sequência o arguido regressou a Portugal acompanhado dos filhos. 21. Uma vez chegados a Portugal, e durante os dois anos seguintes, a ofendida DD auxiliou o arguido nas responsabilidades parentais dos seus irmãos, EE e FF, situação que para a ofendida DD se revelou difícil dada a dificuldade daqueles em lidar com o falecimento da mãe. 22. Em data não concretamente apurada, mas anterior a Agosto de 2017, o arguido iniciou uma relação de namoro com uma pessoa de nome CC. 23. Tal relacionamento não foi aceite pelos ofendidos DD, EE e FF e, nessa medida as discussões entre a ofendida DD e o arguido aumentaram. 24. E, em data não apurada do mês de Novembro de 2017, a ofendida DD abandonou a residência onde vivia com o arguido e os irmãos. 25. Pelo que, entre o mês de Novembro de 2017 e até Outubro de 2019, os ofendidos EE e FF passaram a residir apenas com o progenitor, aqui arguido, e com a namorada deste. 26. Entre Novembro de 2017 e Outubro de 2019, na ausência da ofendida DD, o arguido continuou a iniciar discussões com os ofendidos menores, por qualquer motivo, enervando-se e exaltando-se, e recorrendo a gritos, o que os deixava aterrorizados, com receio do que o mesmo pudesse fazer. 27. Assim, entre Novembro de 2017 até Outubro de 2019, pelo menos uma vez por semana, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido desferiu bofetadas na cara e nas nádegas da ofendida EE, bem como desferiu-lhe murros na cara e na cabeça, o que lhe causou dores no corpo. 28. Também entre Novembro de 2017 até Outubro de 2019, pelo menos uma vez por semana, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido desferiu bofetadas por todo o corpo do ofendido FF, causando-lhe dores no corpo. 29. Devido a tais comportamentos do arguido, a ofendida EE ficou revoltada e deprimida. 30. E, pelo menos por três vezes, efectuou cortes no seu corpo, recorrendo a objectos cortantes como facas, tesouras ou x-actos, assim se auto-mutilando. 31. Nesse período, a referida ofendida passou então a receber acompanhamento da psicóloga da escola que frequentava, situação que era desconhecida do arguido. 32. Contudo, a dada altura, o arguido veio a ter conhecimento e, dado que tal acompanhamento era do seu desagrado, iniciou uma discussão com a ofendida EE, tendo-lhe dito que estava a mentir, que lhe estava a fazer vida num inferno e que era doente. 33. E, em virtude de recear que suspeitassem que maltratava a ofendida, o arguido disse-lhe não podia ir à psicóloga com aqueles ferimentos no corpo. 34. No dia 8 de Julho de 2019, a hora não apurada, durante a tarde, no interior da habitação, o arguido molestou fisicamente a ofendida EE, o que causou dores no seu corpo. 35. Nesse mesmo dia, a hora não apurada, a menor EE sentindo-se revoltada e deprimida efectuou cortes no seu corpo, nomeadamente no braço esquerdo, com objecto cortante não apurado, assim se automutilado. 36. Quando a ofendida DD teve conhecimento do sucedido, dirigiu-se junto da ofendida, sua irmã, e transportou-a até ao Hospital……… a fim de ser assistida medicamente. 37. Nessa unidade hospitalar, a ofendida EE foi reencaminhada para o Hospital ………. sito no ……., a fim de ser consultada por especialista em pedopsiquiatria, cuja assistência prestada perfez o montante de 31,00€. 38. No referido dia, pelas 13h50m, o arguido telefonou à ofendida DD e questionou-a sobre o motivo pelo qual tinha levado a ofendida EE ao Hospital ………., tendo aquela respondido que foi o Hospital……….. que as reencaminhou para aquele Hospital em virtude de a irmã EE se ter automutilado e, por isso necessitar de ser observada por especialista em pedopsiquiatria. 39. Insatisfeito com tal decisão da ofendida DD, visivelmente enervado e bastante exaltado, o arguido disse-lhe “queres retirar-me a guarda dos teus irmãos”, “se fazes queixa deixo-te pior que no dia do funeral da tua mãe”, “vou lá a casa e espanco-te” e “vou-te fazer a vida num inferno”. 40. Estas expressões, atenta a seriedade e o contexto de desentendimento em que foram proferidas, deixaram a ofendida DD receosa de que o arguido pudesse vir a atentar contra a sua vida. 41. No dia 9 de Julho de 2019, por duas vezes, o arguido molestou fisicamente a ofendida EE, mais concretamente nos dois braços, o que lhe causou dores e hematomas. 42. No âmbito do processo de promoção e protecção nº 383/16……… foi aplicada aos ofendidos EE e FF medida de acolhimento institucional, encontrando-se desde …..-…..-2019 a residir na instituição “Casa …….”, sita no concelho de ……… . 43. O arguido agiu, de modo reiterado, com o propósito alcançado de ofender a honra e consideração da ofendida BB, sua mulher e mãe dos seus filhos, bem como molestá-la fisicamente e de provocar-lhe receio de vir a sofrer acto atentatório da sua vida ou integridade física, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe tal resultado, como efectivamente causou, não se abstendo de praticar os actos descritos. 44. Mais sabia que dessa forma violava os deveres de respeito que lhe incumbiam e atingia a ofendida BB na dignidade, integridade física e liberdade pessoal e não se absteve de praticar os actos descritos na presença dos filhos menores e na residência comum do casal. 45. O arguido agiu, de modo reiterado, com o propósito alcançado de ofender a honra e consideração de ofender a honra e consideração dos ofendidos DD, EE e FF, seus filhos, bem como molestá-los fisicamente e de provocar-lhes receio de vir a sofrer acto atentatório da sua vida ou integridade física, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe tal resultado, como efectivamente causou, não se abstendo de praticar os actos descritos na residência comum dos ofendidos. 46. O arguido sabia que os ofendidos DD, EE e FF eram seus filhos, menores de idade, e que mereciam particular respeito, protecção e consideração. 47. O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de molestar fisicamente a ofendida EE no seu corpo e saúde, bem sabendo que aquela era sua filha, que lhe merecia particular respeito e consideração e, não se absteve de praticar tais actos, mesmo sabendo que a sua conduta merecia forte e especial censurabilidade. 48. O arguido agiu também com o propósito de intimidar a ofendida DD, bem sabendo que a mesma era sua filha, e provocar-lhe receio de vir a sofrer acto atentatório da sua vida, bem sabendo que essa sua conduta era adequada a causar-lhe tal receio, como efectivamente causou e que a sua conduta merecia forte e especial censurabilidade. 49. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. * Dos antecedentes criminais do arguido: 50. Por sentença transitada em julgado a 12-12-2014, foi o arguido condenado pela prática a 11-8-2013 de 1 crime de injúria na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 6,00€, que foi substituída por trabalho a favor da comunidade, e extinta por despacho datado de 28-9-2015. 51. Por sentença transitada em julgado a 6-2-2017 foi o arguido condenado pela prática a 20-10-2015 de um crime de ofensa à integridade física, numa pena de 100 dias de multa à taxa diária de 6,00€, extinta por despacho datado de 24-5-2008. 52. Por sentença transitada em julgado a 12-2-2020 foi o arguido condenado pela prática a 6-11-2018 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez numa pena de 75 dias de multa à taxa diária de 5,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 7 meses. * Das condições socio-económicas do arguido: 53. O arguido é proveniente de um agregado familiar de modesta condição socioeconómica e cultural, sendo o primeiro de 4 filhos. 54. Após o divórcio, a mãe contraiu novo matrimónio, contava então o arguido 20 anos de idade. 55. O processo de crescimento e desenvolvimento do arguido decorreu em contexto familiar instável em termos relacionais, mercê de uma alegada atitude paterna violenta, agravada por consumos alcoólicos excessivos. 56. O arguido ingressou na escola com 6 anos, tendo concluído o 4º ano de escolaridade, o que aconteceu apenas aos seus 13 anos, devido às dificuldades de aprendizagem que revelou. 57. Contudo, já com 11 anos auxiliava o pai como servente da construção civil. 58. Completados os 13 anos, o progenitor do arguido determinou que este abandonasse a escola e assumisse em pleno a sua atividade de servente da construção civil, para auxiliar materialmente a família, actividade essa que exerceu até aos 16 anos, altura em que ingressou na actividade fabril, exercendo funções no fabrico ……., numa empresa de injeção de alumínios, noutra de moldes e na recolha de sucata. 59. AA casou com BB aos 20 anos. Desta união nasceram 3 filhos – DD, EE e FF, com idades atuais, respetivamente, de 23, 15 e 10 anos de idade. 60. O arguido foi acompanhado no Centro de Respostas Integrada……….. (CRI) entre 14/11/2016 e 14/02/2017, referindo consumos de álcool controlados à data, corroborados pelos dados clínicos apurados durante a avaliação realizada pela equipa multidisciplinar, tendo sido realizada intervenção psico-educativa, visando a prevenção de recaída no abuso. 61. A retirada dos filhos, em Outubro de 2019, acarretou a AA problemas de estabilidade emocional e depressão, vindo o mesmo a ter um acidente/queda, com contornos de tentativa de suicídio, tendo o arguido dado entrada no Centro Hospitalar de … (CH…..) de …, em …. de …. desse ano tendo tido alta no dia 25 do mês seguinte. A mencionada queda acarretou-lhe problemas ortopédicos, que actualmente se encontram em fase de recuperação. 62. AA vive na morada processual indicada, detendo a casa que habita as necessárias infra-estruturas e condições para uma vivência condigna. A sua mãe e II, marido desta, vivem no mesmo espaço habitacional mas em casa independente. Ambos os imóveis são pertença da mãe e do pai do arguido, encontrando-se por partilhar. 63. O arguido tem vindo desde 2019 a beneficiar desta proximidade da mãe e do padrasto, que anteriormente moravam no ……., mas que vieram para ………… para prestar cuidados à avó materna daquela. 64. Devido à sua permanência nesta zona, o arguido tem beneficiado do seu apoio, o que foi particularmente importante no período de convalescença do arguido, que lhe acarretou problemas ortopédicos, na altura necessitando de se locomover em cadeira de rodas. 65. Em termos emocionais, sinaliza a sua maior motivação na actualidade, para o que terá contribuído o apoio psicológico que procurou a título particular junto de profissional da área entre Março e Abril do corrente ano. 66. Encontra-se de baixa médica e a receber o seu subsídio de doença por parte da Segurança Social que contabiliza em 530,00€ mensais. 67. Apresenta despesas fixas mensais com os encargos da casa de aproximadamente 135,00€ (água, gás e luz). 68. Encontra-se a pagar mensalmente 100 euros relativos a multa criminal e custas em que foi condenado em anterior processo por condução em estado de embriaguez (Processo 56/19……..). 69. No presente, o seu quotidiano restringe-se essencialmente à permanência em casa e convívio com a mãe e padrasto. 70. Às 6ªs feiras visita os dois filhos mais novos que se encontram na instituição de acolhimento. 71. Não existe presentemente contacto entre o próprio e a filha DD, que não referenciou a necessidade de aplicação de mecanismos de vigilância eletrónica que garantam o afastamento do arguido, que, segundo a mesma, não a importuna. 72. A imagem social de AA, mormente junto da autoridade policial local é desfavorecida, sendo associado à problemática de consumo de drogas e álcool e à instabilidade relacional a nível familiar. 73. Os presentes autos não abalaram a consistência do seu relacionamento com a mãe e com o padrasto, que continuam predispostos para o apoiar no que estiver ao seu alcance. 74. Quanto à relação com a filha DD, esta ficou comprometida, depreendendo-se o desvanecimento de sentimentos de afecto por parte da mesma em relação ao arguido, bem como relativa apatia quanto ao desfecho processual dos presentes autos, frisando, no entanto que, a condenação do arguido em medida de execução na comunidade que implique o seu compromisso em alterar comportamentos (a nível de postura familiar ou consumos) esbarrará, de acordo com a análise desta, na incapacidade para os reverter de forma positiva e responsável, algo que, já antes, o mesmo terá assumido e não concretizado. 75. O acolhimento dos ofendidos EE e FF na Casa ……… foi um processo emocionalmente doloroso, tanto para a criança e jovem como para o progenitor que responsabilizava a EE pela institucionalização do irmão FF. 76. Após a separação do arguido da sua companheira, aquele demonstrou maior disponibilidade para se aproximar dos filhos, principalmente da EE, com quem mantém uma relação mais instável. 77. Desde o início do ano a relação do arguido com a EE tem vindo a ser pautada por momentos de grande instabilidade, em parte pelo discurso incoerente e agressivo adoptado pelo progenitor, sempre que esta tenta partilhar os seus pontos de vista. 78. Mais recentemente a ligação do progenitor com a jovem foi novamente fragilizada pela nova relação que o arguido informou manter. 79. Com o FF o arguido adopta uma postura carinhosa, pelo que a relação de ambos é indulgente. 80. Actualmente o arguido mantém a ingestão de bebidas alcoólicas e o consumo de cannabis, de forma que reputa como moderada e em processo de redução, invocado consumir bebidas alcoólicas às refeições e o produto estupefaciente uma vez por mês. * FACTOS NÃO PROVADOS Da discussão da causa com relevo para a decisão de mérito não resultou provado: i) Nas circunstâncias descritas em 9) o arguido tivesse dirigido à mulher BB as expressões “tu nasceste para o mundo para dar problemas”, “qualquer dia mato-te”. ii) Nas circunstâncias descritas em 12) o arguido tivesse empurrado a ofendida DD contra as paredes da habitação. iii) Nas circunstâncias descritas em 13) o arguido declarou que não conseguia assumir a responsabilidade dos menores sozinho, sendo que a ofendida DD não queria sair do ………, local onde residia para voltar a residir no Norte do país. iv) Nessas circunstâncias o avô paterno JJ estava presente. v) Nas mesmas circunstâncias os avós paternos afirmaram que os menores deveriam ficar com a ofendida dado que era maior de idade e tinha condições para a assegurar os cuidados dos mesmos. vi) Nas circunstâncias referidas em 22) os ofendidos EE e FF foram encontrados desacompanhados numa rua daquele país pelo tio HH. vii) Por diversas vezes os ofendidos EE e FF ficaram sozinhos na habitação em ……… . * Não deixou de se provar qualquer outro facto com relevo para a decisão da causa. * O tribunal não se pronunciou sobre expressões conclusivas ou de direito, insusceptíveis de um juízo de provado ou não provado, ou mera negação dos factos provados. * MOTIVAÇÃO Para formar a sua convicção sobre a matéria de facto provada e não provada, o tribunal baseou-se na análise crítica de toda a prova produzida, concatenada entre si e com recurso a juízos de experiência comum. Com efeito, a verdade processual, que se quer o mais próxima possível da verdade histórica, emerge como denominador comum entre a verdade dos sujeitos processuais, arguido e ofendidas - que reflectem a sua intervenção nos factos através da subjectividade inerente ao seu protagonismo nos mesmos - e a verdade das testemunhas - cuja percepção da realidade é muitas vezes filtrada pelas (des)afeições que nutrem por aqueles, e entrecortada por segmentos daquela realidade a que não assistiram mas que mentalmente reconstruiram - tudo apreciado de acordo com juízos de (in)verosimilhança, por forma a que, no julgamento da matéria de facto, a verdade processual seja racionalmente fundamentada e, por conseguinte, sindicável. O arguido prestou declarações, negando a globalidade dos factos que lhe foram imputados, contextualizando as condutas por si aceites às dificuldades vividas na fase posterior ao falecimento da esposa. Assim, admitiu o arguido que após o falecimento da ofendida BB ingeria bebidas alcoólicas ao jantar e fumava haxixe pelo menos 2 vezes por mês também após o jantar, sendo que trabalhava em horário nocturno, das 23h30 às 8h. Neste conspecto, assumiu ter chamado “puta e vaca” à filha DD no contexto de uma “discussãozita” que tiveram ao telefone a respeito dos cuidados às duas crianças mais novas, EE e FF, ter dado uma palmada a cada um destes 2 filhos, e bem assim de apregoar que iria bater-lhe com o cinto, mas “só para os assustar”. Ainda a respeito da vivência após o falecimento da esposa, assentiu o arguido que 2 dias após o funeral, quando se encontrava reunido com a sua mãe, a filha DD e um casal amigo, a filha se exaltou, falou-lhe alto, ao que o pai lhe deu uma “estalada”. Negou que a filha tivesse batido com a cabeça, até porque a avó a agarrou, mas confirmou que aquela desmaiou, pelo que o próprio arguido a levou ao hospital, tendo a mesma acordado desorientada, não se recordando que a mãe tinha falecido. Mais declarou o arguido que, logo após o falecimento da esposa se deslocou para …. com os filhos menores, EE e FF, tendo aí permanecido até meados de Setembro, junto do agregado familiar do seu irmão HH. Apontou a causa do regresso às dificuldades de adaptação do filho FF, negando que os tivesse abandonado. Os ofendidos DD, EE e FF, filhos do arguido, prestaram declarações de forma notoriamente sofrida e consternada, a primeira em sede de audiência e os segundos em declarações para memória futura, mas em momento algum revelando retorsão relativamente à figura paterna, contrariando em alguns aspectos o libelo acusatório, como infra se verá, pelo que mereceram inteira credibilidade por parte do tribunal. Relativamente às patologias aditivas do arguido, não obstante a auto-análise parcimoniosa e de cariz minimizante, resultou firme na convicção do tribunal que o arguido ingeria bebidas alcoólicas em excesso e consumia produtos estupefacientes na presença dos filhos, com regularidade semanal, pelo menos desde 2007. Com efeito, as ofendidas DD e EE, de forma impressiva, afirmaram que o pai fumava produtos estupefacientes na sua presença, detalhando que “desfazia os cigarros e punha a droga lá dentro”, e ingeria bebidas alcoólicas a ponto de perder “a memória do que tinha feito nos dias anteriores”. Acresce que, a mãe do arguido, pese embora não acompanhasse o seu quotidiano e o dos netos, em virtude de residir no …. desde 2004, reconhece-lhe ambas as problemáticas aditivas, pelo menos desde que se casou, afastando a versão do arguido que aponta tal problemática para o período de luto. Ademais, pese embora a diversidade de idades entre a fratria, e consequentemente a diferente forma de se expressar, de modo genuíno e consentâneo com as fases da infância, adolescência e juventude vivenciadas, os 3 filhos descreveram o pai como uma pessoa agressiva, concretizando cada um deles as situações em que o pai os agrediu a si, aos irmãos, e as filhas mais velhas também no que toca à mãe. Assim, a ofendida DD, filha mais velha do arguido, declarou ter assistido ao arguido agredir a sua mãe, com murros e estalos, com um cinto e com uma vassoura, chamando-a de “puta” e “vaca”, dizendo-lhe “és uma merda”, “não vales nada”; negou, porém, que o pai tivesse dirigido à mãe a expressão “eu mato-te”, mas sim a si mesma. Mais relatou que o pai batia à mãe e a si, sendo que tanto sucedia a mãe interceder por si, como a filha se interpor para defender a mãe, mas tanto numa situação como noutra, o arguido não demovia e, quem intercedesse, “ainda levava por cima”. Relativamente aos irmãos mais novos, explicou que o pai lhes batia “no rabo, na cara e nos braços, até doer”, embora nunca o tivesse visto usar objectos para o efeito. Afirmou ainda que o arguido apelidava a irmã EE de “vaca” e “puta”, dizendo-lhe que era “uma merda”, e que era “doente”. Ainda a respeito da irmã EE, concretizou que se apercebeu da auto-mutilação no Verão de 2019, quando esta veio passar um fim-de-semana consigo, pelo que logo a levou ao Hospital ………, de onde foi transferida para o Hospital ………, no ……. . Com efeito, a informação clínica de fls. 172 ss, dá nota que a ofendida foi encaminhada da Urgência do Hospital local por “verbalizar ideias de morte nos últimos meses”, tendo apontado comportamentos auto-lesivos (CAL) superficiais no antebraço desde Janeiro de 2018. Prosseguiu a ofendida DD, relatando que nesse mesmo dia, o pai lhe telefonou descontente com a ida ao hospital, assacando-lhe querer “tirar-lhe a guarda” dos irmãos, ao que a filha respondeu que iria “fazer queixa”, pelo que o pai rematou que ia lá a casa, partia a porta e a deixava pior que no dia do funeral da mãe. Na sequência desta discussão, explicou a testemunha que o arguido veio buscar os irmãos, tendo posteriormente a EE lhe enviado uma mensagem do telemóvel do pai, transmitindo-lhe que o pai lhe tinha batido duas vezes, pelo que ainda estava assustada. Tal mensagem foi extratada no aditamento ao auto de notícia de fls. 11 a 15, cujo número remetente o arguido confirmou corresponder ao seu telemóvel. Ainda mesma ofendida DD, concretizou ter deixado de residir com os pais aproximadamente 3 meses antes do súbito falecimento da mãe, depois regressou para ajudar o pai a cuidar dos irmãos, tendo permanecido durante 3 anos, só voltando a sair de casa sensivelmente 3 meses depois do pai refazer a vida com uma nova companheira, que não foi bem aceite pelos filhos. Esta sequência temporal foi corroborada pelas declarações do próprio arguido, e das testemunhas GG e KK, avó e tia paternas dos ofendidos DD, EE e FF, motivo pelo qual resultou provada nesses precisos moldes. Os ofendidos menores EE e FF, ambos institucionalizados, foram unânimes a afirmar que o pai batia “muitas vezes” em todos os filhos, nos dois mais novos atingindo-os com a mão no corpo e na cara, e anunciando que o faria com um cinto, embora sem o concretizar. A menor EE acrescentou que o pai também agredia a mãe, confirmando que a irmã DD se interpunha, acabando o pai por “bater nela também”. Esta ofendida explicou que no Verão após o falecimento da mãe, o pai levou os 2 filhos mais novos para recomeçar a vida em Inglaterra, junto do tio HH. Narrou a menor que acabaram por regressar passado um mês, porque o pai saiu de casa com ambos, tendo o tio os encontrado na rua, com o arguido alcoolizado, pelo que no dia seguinte o toa “já tinha comprado bilhetes” para o regresso a Portugal. Este episódio ocorrido em ………, associado às dificuldades de adaptação do menor FF foram confirmados pelas testemunhas GG e KK, que não o tendo presenciado, narraram o que lhes foi transmitido pelo filho e irmão HH, confirmando o relato da menor EE, pelo que resultou não provado que os menores fossem deixados sozinhos em casa ou encontrados desacompanhados na rua durante a sua permanência naquele país. A testemunha KK, irmã mais nova do arguido, prestou um depoimento consternado pela situação dos sobrinhos, por quem nutre evidente afecto. Pese embora as desavenças com o irmão, motivadas pelo tratamento que este dispensava aos filhos, não denotou hostilidade em relação àquele. Pelo contrário, fez menção expressa que o sucedido em Inglaterra lhe foi relatado pelo irmão HH e que a própria é que não teria compreendido bem, pelo que pretendia retratar-se. Narrou ainda que, por ter idade próxima da sobrinha DD, frequentava a casa do irmão assiduamente, até ir residir para o …. em 2004, confirmando que este bebia em excesso “recorrentemente”, tendo ouvido por várias vezes insultos que o irmão dirigia à cunhada. Pese embora não lograsse concretizar as palavras, esta asserção corrobora o depoimento da ofendida DD, com quem a testemunha KK manteve sempre um relacionamento próximo, fosse quando vinha ao Norte pelo Natal, fosse quando a sobrinha passava uns dias consigo no …….., fosse pelos contactos telefónicos regulares. Aliás, em virtude destes contactos telefónicos regulares, que ainda hoje mantém com os sobrinhos mais novos na Instituição, a testemunha deu conhecimento às autoridades das mensagens que recebia da ofendida EE, quando esta tinha acedia ao telemóvel do pai e lhe rogava ajuda - fls. 43 do apenso 315/19…. . Mais confirmou a testemunha que o seu irmão fumava produto estupefaciente na presença dos filhos, concretizando que tal ocorria tanto em casa como no automóvel. As testemunhas, GG e II, mãe e padrasto do arguido, por se encontrarem a residir no … não partilhavam o quotidiano familiar dos menores. Ainda assim, era a mãe do arguido sabedora dos vícios deste, quer que “bebia um bocado demais”, quer que “fumava tabaco e mais alguma coisa que o deixava perturbado”, problemática que já lhe conhecia desde que se casou. Relativamente ao sucedido após o funeral da nora, afirmou (apenas) a testemunha GG - já que o marido não estava presente - que o filho pretendia emigrar para ………, levando os netos mais novos, pedindo à neta DD para o acompanhar e ajudar com os irmãos, o que esta discordava, tendo ambos se exaltado e perante a recusa firme da DD, o arguido “deu-lhe uma bofetada”. Asseverou a testemunha que a neta caiu nas escadas, porque se enervou, e não na sequência do estalo, perdendo os sentidos, pelo que logo a levaram ao Hospital. Com efeito, o registo clínico datado de ….-….-2015, constante de fls. 292, dá conta do “episódio de amnésia dissociativa transitória, no seguimento de uma discussão com o pai sobre o futuro que a família irá tomar”, não observando “nenhum achado relevante” no exame físico. No que concerne ao sucedido na sequência do funeral da ofendida BB, do cotejo entre as declarações prestadas pelo arguido e pela testemunha GG, sua mãe, resulta que ambos descrevem a exaltação entre pai e filha, a estalada daquele a esta, e que a ofendida DD desmaiou e perdeu os sentidos, mas não se mostram coincidentes quanto à queda, pois se o arguido garante que a filha não bateu com a cabeça porque a avó a amparou, esta assevera que a neta caiu nas escadas, mas não por causa do estalo. Ora, tratando-se indubitavelmente de uma data marcante, valorizou o tribunal o depoimento da ofendida DD, que, por um lado, se mostrou absolutamente coincidente com os supra elencados, quanto às pessoas que se encontravam presentes, quanto à exaltação recíproca e quanto ao motivo da mesma. E por outro lado, não se mostrou titubeante nem manifestou dúvida ou hesitação ao descrever que o pai a agarrou pelo colarinho da camisola, puxando-a, lhe deu um murro na região temporal (“na fonte”), empurrou-a, fazendo-a cair ao solo, não se recordando do sucedido a partir de então. A respeito do acompanhamento psicológico por parte da ofendida EE, explicou esta que teve consultas enquanto frequentava o 5º e 6º ano, mas o pai não permitia, por isso deixou, só tendo retomado por iniciativa própria no 8º ano, tendo o pai ficado zangado, quando descobriu pela psicóloga que aquela se cortava nos braços. Esta versão foi corroborada pelo ofendido FF, que descreveu com singeleza, ter-se apercebido que a irmã tinha “feridas às riscas nos braços”, e que o pai, quando a levou ao hospital, ficou muito zangado, mas só no regresso chamou nomes à irmã, porque “o pai nunca bate em frente às pessoas desconhecidas”. A testemunha LL, mãe de uma amiga da ofendida DD, pese embora nunca tivesse assistido aos factos objecto dos presentes autos - só tendo ouvido os desabafos da ofendida DD, que o tribunal não valorou de per se- descreveu, da convivência que teve com os ofendidos, que a EE era uma criança muito triste, e que tanto esta como a irmã DD mostravam muito receio do pai, a ponto de ter visto a DD tremer, o que se mostra compatível com o esquisso traçado pelas ofendidas do que era a vivência com o arguido. O depoimento da testemunha JJ, pai do arguido, nada acrescentou à convicção do tribunal, porquanto não mantendo contacto com o filho nem com os netos, não demonstrou possuir conhecimento directo de qualquer circunstância atinente à vida familiar destes. Relativamente ao antecedente criminais valorou-se o CRC sob a ref. ………, datada de ….-….-2020, oportunamente submetido a contraditório. Quanto às condições pessoais e socio-económicas do arguido considerou-se o relatório social elaborado pela DGRS sob a ref. ……., datada de ….-….-2020, cujo teor foi confirmado pelo arguido em sede de audiência de julgamento. No que concerne à situação dos menores EE e FF e à evolução do seu relacionamento com o arguido desde que se encontram institucionalizados, valorou-se a informação prestada conjuntamente pela Psicóloga e pela Técnica de Serviço Social que exercem funções na instituição onde aqueles se encontram acolhidos, constante de fls. 442 e 443. Quanto à demais factualidade dada como não provada, tal ficou a dever-se a não ter sido realizada prova cabal acerca da verificação da mesma, mormente não resultando dos documentos juntos aos autos ou dos depoimentos prestados em sede de audiência, analisados individualmente ou concatenados entre si. * FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Do crime de violência doméstica À luz do artigo 152º do Código Penal, com as alterações introduzidas pela Lei 19/2013, de 21/2, sob epígrafe Violência doméstica, estabelece-se que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; a progenitor de descendente comum em 1º grau; ou a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos (nº 1 do citado preceito), sendo que, se o facto for praticado contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, a pena é de 2 a 5 anos de prisão (nº2 do citado preceito). Dando conta da evolução legislativa, elucida o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 30/1/2008, proferido no processo nº 0712512, in www.dgsi.pt: “A entrada em vigor da Lei nº 59/2007 de 4/9 introduziu algumas alterações ao ilícito criminal em referência, distribuindo por três preceitos as previsões que antes se encontravam concentradas num só. Actualmente, os maus tratos a um conjunto de pessoas com quem o agente mantenha ou tenha mantido um relacionamento conjugal ou análogo, seja do outro ou do mesmo sexo e ainda que sem coabitação, bem como àquelas que coabitem com o agente e se encontrem particularmente indefesas, têm previsão autónoma no actual art. 152º, com a epígrafe de “Violência doméstica”. Mas, no essencial (…) continua a ser punível, e em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu cônjuge, esclarecendo-se agora expressamente que tal actuação pode ser “de modo reiterado ou não” e que aqueles maus tratos incluem “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”. A teleologia que preside à tipificação penal de tal conduta prende-se com a prevenção da violência no seio da família, perpetrada geralmente de modo frequente e subtil, visando-se, sobretudo, proteger os seus elementos mais frágeis de tais actos violentos, tanto no plano físico como no psíquico, em que se consubstanciam os maus tratos. Assim, o bem jurídico tutelado tem que ser analisado à luz da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adoptada em Istambul, a 11 de Maio de 2011, e aprovada pela Resolução da AR n.º 4/2013, de 21 de Janeiro, que «Violência doméstica abrangendo todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima» Destarte, nas palavras jurisprudencialmente consagradas pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 8-1-2013, proferido no processo nº 113/10.0TAVVC, in www.dgsi.pt : “não se podendo afirmar que bem jurídico tutelado pela norma é a dignidade da pessoa, dada a generalidade da afirmação, nem que é a relação de conjugalidade ou equiparada, dada a sua instrumentalidade (e “meio” de exercício de violência), aquele bem jurídico só pode ser um feixe de interesses mais concretos que se convencionou designar como bem jurídico complexo, incluindo a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de actos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação ou por causa dela.” As condutas que preenchem o tipo legal podem ser de vária espécie: “maus tratos físicos (isto é, ofensa corporal simples), maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça), tratamento cruel, isto é, desumano...” - Américo Taipa de Carvalho, Op. Cit., p. 333. Já “da práxis resulta claro que têm sido considerados: como maus tratos físicos, murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objectos ou armas (mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada); também empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços ou puxões de cabelos; como maus tratos psíquicos, os insultos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum; as privações da liberdade; as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc.” - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 8-1-2013, proferido no processo nº 113/10.0TAVVC, in www.dgsi.pt. No que concerne ao modo de execução do crime prevê actualmente o artigo 152º, nº 2, do Código Penal, uma agravação no limite mínimo da pena, que passa de um para dois anos, nos casos em que o agente tiver praticado os factos contra menor ou na presença deste, ou no domicílio da vítima, mesmo que comum. Do ponto de vista dogmático, estamos perante um crime específico impróprio, porquanto, como vimos, pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos, funcionando a qualidade do agente como factor de agravação da sua responsabilidade penal, já constituindo crime a conduta in se ipsa, mesmo apartada da relação entre agente e vítima – Cfr. Américo Taipa de Carvalho, Op. cit., pp. 332 e 333. Por seu turno, o sujeito passivo do tipo legal de crime só pode ser, neste particular, o cônjuge ou ex-cônjuge do agente, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite. Deste modo, é a especial relação que intercede entre agente e o sujeito passivo da conduta, que constitui “a pedra de toque” da consagração do tipo legal de crime em apreço, colocando-o numa situação de especialidade face às normas penais que, de forma comum, punam factos passíveis de configurar ofensas à integridade física e psíquica - Cfr. neste sentido, Ricardo Jorge Bragança de Matos, “Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo à frente na tutela da vítima?” Revista do Ministério Público, nº 107, Julho-Setembro 2006, pp. 97-98. Conforme refere Ricardo Jorge Bragança de Matos, é “(…) a maior proximidade e intimidade de convivência, a comunhão de vida entre duas pessoas em que a conjugalidade (ou a vivência em situação análoga) se traduz, que impõe particulares e suplementares deveres de respeito, de consideração, de solidariedade e de assistência a cada uma delas. A sua violação consistirá então numa «(…) quebra do respeito que cada um dos membros do casal deve ao outro como seu cônjuge (e já não apenas como simples cidadão ou como ser humano)», e que é, afinal, o objecto de criminalização operada pela norma.” – op. Cit., p.98. No que concerne ao âmbito temporal da tutela incriminadora, esta abrange relações pretéritas, conforme ensina o citado Acórdão: «Tutelam-se quer as relações actuais quer as pretéritas, onde razões de política criminal ampliaram a incriminação, como forma de proteger a degradação da integridade pessoal da vítima, face ao abuso de poder nas relações afectivas findas. (…) Estes casos de perturbação do ex parceiro (…) prolongam-se, em regra, para lá da relação, não deixando de estar relacionadas com a cessação desse namoro ou de qualquer outra situação análoga. Haverá um limite temporal? Parece que não, só casuisticamente se pode aferir se esses factos têm a ver ou não com a primitiva relação, não sendo despiciendo haver alguma proximidade entre os contendores.» O artigo 152º na redacção inicial pressupunha, de acordo até com a ratio da sua autonomização, uma reiteração das respectivas condutas, sem o que cairíamos nas ofensas à integridade física simples ou no crime de ameaça (neste sentido se pronunciam, também, Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 2º Vol., pág. 182) ou, ao invés, um comportamento isolado revestido de uma certa gravidade. A este propósito, a jurisprudência vinha defendendo o entendimento de que “não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge. (…) O que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade da vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29.01.2003, processo nº 3827/2002, disponível em www.dgsi.pt). Note-se que, a redacção actual do artigo 152º, nº 1, do Código Penal não exige o elemento da reiteração, pelo que se pode acompanhar a jurisprudência supra citada, no sentido que, o que importa é que os factos, reiterados ou não, analisados em face da intimidade da vida conjugal, coloquem a pessoa ofendida numa situação considerada de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade pessoais. Perante a realização de variadas condutas susceptíveis de preencher vários tipos penais base, cumprirá definir “o mínimo de violência na pluralidade de actos praticados.” Com efeito, “é jurisprudência constante a afirmação de que o crime de violência doméstica cria uma relação de concurso aparente de normas e de especialidade com outros tipos penais (…) dada a magnitude da previsão do tipo. (…) Ora, para estes casos de pluralidade factual integradora de vários tipos penais e no âmbito de uma relação conjugal ou equiparada mas sempre inserido numa relação com carácter de conjugalidade ou de vivência – ou anteriormente inserido e que dêem origem a uma situação de stalking, (…) previu o legislador um tipo autónomo que se entende tutela específica da vida em relação, que pode fazer nascer uma relação de dependência e, consequentemente, de vítima de violências várias, emocional e psicológica, intimidante (coação e ameaças), física, de isolamento social, de abuso sexual. E todas estas são realidades de violência relacional que se devem entender abrangidas pela pretensão protectora da norma.” - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 8-1-2013, proferido no processo nº 113/10.0TAVVC, in www.dgsi.pt. Relativamente ao elemento subjectivo, o crime de violência doméstica exige o dolo, em qualquer das suas modalidades, sendo, pois, suficiente, que o agente actue com dolo eventual. Descendo ao caso vertente, extrai-se do acervo factual assente que desde data não apurada, mas pelo menos até 15 de Outubro de 2019, o arguido residiu primeiramente com a mulher e com os filhos, e depois só com estes, na Rua ….., nº ….., em …, sendo que a ofendida DD saiu de tal habitação em Novembro de 2017. Acontece que, desde data não apurada, mas pelo menos desde o ano de 2007, pelo menos semanalmente, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas em excesso e consumiu produtos estupefacientes, o que fazia na presença dos filhos. Desde pelo menos essa data, por diversas vezes, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas em excesso ou consumiu produtos estupefacientes e, nessas ocasiões, o arguido revelou comportamentos violentos e autoritários para com os ofendidos. sempre que o arguido se encontrava alcoolizado ou sob o consumo de produtos estupefacientes, iniciava discussões violentas com os ofendidos, desferindo murros na mesa, exibindo raiva, o que deixava os ofendidos, filhos e mulher, atemorizados. Por esse motivo, no ano de 2017, após o falecimento da sua mãe, a ofendida DD abandonou a residência da família e foi residir sozinha na Avenida …, …., …, … . Desde pelo menos o ano de 2007, pelo menos entre quatro a cinco vezes, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido dirigiu-se à ofendida BB, sua mulher, bem como à ofendida DD, sua filha, e afirmou “vaca”, “puta”, “não vales nada”, “não andas a fazer nada nesta vida”, e “vocês são uma merda”. Além disso, em data não apurada do ano de 2011, altura em que ofendida EE tinha aproximadamente seis anos de idade, pelo menos entre quatro a cinco vezes, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido dirigiu-se à referida ofendida e disse-lhe “vaca”, “puta”, “não vales nada”, “não andas a fazer nada nesta vida”, “tu nasceste para o mundo para dar problemas”, “qualquer dia mato-te” e “vocês são uma merda”. Além disso, durante o período em que residiram juntos, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido cerca duas a três vezes, dirigiu-se à ofendida DD e afirmou “não és minha filha”, “estragaste a minha vida”, “não vales nada”, “não vais dar mulher na vida”. Desde o ano de 2007 e até ao falecimento da ofendida BB, por diversas vezes, em datas não apuradas, na sequência de discussões no interior da habitação da família, sendo que em algumas semanas diariamente, o arguido desferiu à sua mãe e à ofendida DD murros na face, bofetadas, pancadas de cinto, o que fazia por todo o corpo das mesmas, e sempre com bastante força, causando-lhes dores físicas, sendo que em algumas ocasiões causou-lhes vermelhão e noutras hematomas. Após o funeral da ofendida BB, o que ocorreu em Julho de 2015, GG, avó paterna dos ofendidos DD, EE e FF, a ofendida DD e o arguido reuniram-se para decidir com quem ficavam os ofendidos EE, FF, dado que eram menores. Nessa altura, o arguido e a ofendida DD iniciaram uma discussão dado que o arguido afirmou que ia viver para ……. com os filhos EE e FF e a ofendida DD não concordava com tal alteração na vida dos irmãos. De seguida, o arguido ficou exaltado, agarrou a ofendida pela camisola, rasgou-a e desferiu-lhe um murro na região temporal, tendo embatido com a cabeça numa esquina e caído no chão, onde permaneceu inconsciente por período de tempo não apurado. Na sequência da referida agressão, a ofendida DD foi transportada para o Hospital ………, a fim de receber assistência médica. Em data não concretamente apurada, mas anterior a Agosto de 2017, o arguido iniciou uma relação de namoro com uma pessoa de nome CC. Tal relacionamento não foi aceite pelos ofendidos DD, EE e FF e, nessa medida as discussões entre a ofendida DD e o arguido aumentaram. E, em data não apurada do mês de Novembro de 2017, a ofendida DD abandonou a residência onde vivia com o arguido e os irmãos. Pelo que, entre o mês de Novembro de 2017 e até Outubro de 2019, os ofendidos EE e FF passaram a residir apenas com o progenitor, aqui arguido, e com a namorada deste. Entre Novembro de 2017 e Outubro de 2019, na ausência da ofendida DD, o arguido continuou a iniciar discussões com os ofendidos menores, por qualquer motivo, enervando-se e exaltando-se, e recorrendo a gritos, o que os deixava aterrorizados, com receio do que o mesmo pudesse fazer. Assim, entre Novembro de 2017 até Outubro de 2019, pelo menos uma vez por semana, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido desferiu bofetadas na cara e nas nádegas da ofendida EE, bem como desferiu-lhe murros na cara e na cabeça, o que lhe causou dores no corpo. Também entre Novembro de 2017 até Outubro de 2019, pelo menos uma vez por semana, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido desferiu bofetadas por todo o corpo do ofendido FF, causando-lhe dores no corpo. Devido a tais comportamentos do arguido, a ofendida EE ficou revoltada e deprimida. E, pelo menos por três vezes, efectuou cortes no seu corpo, recorrendo a objectos cortantes como facas, tesouras ou x-actos, assim se auto-mutilando. Nesse período, a referida ofendida passou então a receber acompanhamento da psicóloga da escola que frequentava, situação que era desconhecida do arguido. Contudo, a dada altura, o arguido veio a ter conhecimento e, dado que tal acompanhamento era do seu desagrado, iniciou uma discussão com a ofendida EE, tendo-lhe dito que estava a mentir, que lhe estava a fazer vida num inferno e que era doente. E, em virtude de recear que suspeitassem que maltratava a ofendida, o arguido disse-lhe não podia ir à psicóloga com aqueles ferimentos no corpo. No dia 8 de Julho de 2019, a hora não apurada, durante a tarde, no interior da habitação, o arguido molestou fisicamente a ofendida EE, o que causou dores no seu corpo. Assim, nos presentes autos, relativamente aos ofendidos BB, DD, EE e FF estão em causa condutas atomisticamente susceptíveis de integrar os crimes de injúria, ameaça, ofensa à integridade física. No entanto, é no contexto relacional, que emerge do acervo factual assente, que encontramos a fronteira entre o preenchimento dos tipos basilares e o preenchimento do tipo especial atinente à tutela específica da vida em relação. Volvendo ao caso vertente, a conduta do arguido, analisada no seu conjunto, praticada na pessoa da ofendida, sua mulher e mãe dos seus 3 filhos, no domicílio da ofendida BB, motivada pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas e de substâncias estupefacientes, sopesada a sua gravidade, a sua repetição, a conexão à relação matrimonial que existia entre arguido e ofendida BB, revela-se subsumível ao crime de violência doméstica, previsto no art. 152º, nº1, a) e nº 2 a) do Código Penal, que lhe vinha imputado. Nos que concerne aos ofendidos DD, EE e FF, analisando a factualidade praticada na pessoa dos seus filhos, desde a tenra infância, consigo residentes e de si totalmente dependentes, particularmente após o falecimento da progenitora daqueles, enquadrada nos consumos de bebidas alcoólicas e de produtos estupefacientes que fazia na sua presença, revela-se subsumível aos crimes de violência doméstica, previsto no art. 152º, nº 1, d) e nº 2 a) do Código Penal, que lhes vinham imputados. Não se verifica a existência de qualquer causa que exclua a ilicitude ou a culpa do arguido. Na desinência do exposto, conclui-se pela condenação do arguido pela prática de quatro crimes de violência doméstica na pessoa dos ofendidos BB, DD, EE e FF, pelos quais vinha acusado. * Do crime de ameaça O arguido encontra-se, por fim, acusado da prática de 1 crime de ameaça agravada, previstos e punidos pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1 a) do Código Penal. Dispõe o artigo 153º, nº 1, do Código Penal, que incorre na prática de um crime de ameaça “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação (...)”. Por seu turno, a alínea a), do nº 1, artigo 155º, do Código Penal, prevê a agravação se os factos forem praticados “por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos”, passando o crime a ser punido com “pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.” O bem jurídico protegido pela incriminação em causa é, pois, a liberdade de decisão e de acção. Na verdade, conforme salienta o Prof. Taipa de Carvalho, “as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade.” (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, págs. 342 e 343). O conceito de ameaça abarca três componentes essenciais: tratar-se de um mal, futuro, cuja ocorrência dependerá da vontade do agente (cfr. Ac. Relação do Porto, de 02.02.2000, in www.dgsi.pt). Necessário se torna ainda, por tal constituir elemento do tipo, que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Esta adequação há-de aferir-se em função de um critério objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado» (cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 348). O crime de ameaça é um crime de perigo concreto, porquanto se consuma com a mera susceptibilidade, verificada em concreto, de a ameaça provocar medo ou inquietação ou de prejudicar a liberdade de determinação da vítima (cfr. neste sentido, Ac. Relação de Coimbra, de 16.03.2000, CJ, 2000, Tomo II, pág. 45). Com efeito, ensina a jurisprudência: “Em caso de uso de violência, tudo o que não seja execução eminente ou em curso, é futuro, em termos de anúncio da causação de um mal, sendo irrelevante que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual causará o mal e que esse prazo seja curto ou longo.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 01-07-2013, proferido no processo nº 823/08.2GBGMR, in www.dgsi.pt. “Tudo o que não seja execução eminente ou em curso – caso de uso de violência – é futuro, em termos de anúncio de causação de um mal, sendo indiferente que a expressão usada seja “agora”, “hoje”, amanhã ou para o ano. Futuro é todo o tempo compreendido naquele em que é proferida a expressão que anuncia o mal que o seu autor diz que será causado, não acompanhada, esta, de actos correspondentes à sua simultânea ou absolutamente imediata concretização. Ou seja, sempre que alguém dirija a outrem uma expressão verbal – ou de outra natureza –de anúncio de causação de um mal, não acompanhando essa acção com os actos de execução correspondentes – permanecendo inactivo em relação à execução do mal anunciado –, todo o tempo que durar essa inacção e se mantiver a possibilidade de o mal anunciado se concretizar é o futuro, em termos de interpretação da expressão em causa.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 07/01/2008, proferido no processo nº 1798/07-2, in www.dgsi.pt (sublinhados nossos) Quanto ao elemento subjectivo, o crime de ameaça é um crime doloso, em qualquer das suas modalidades. Descendo ao caso vertente, extrai-se do acervo factual assente que no dia 8-6-2019, pelas 13h50m, o arguido telefonou à ofendida DD e questionou-a sobre o motivo pelo qual tinha levado a ofendida EE ao Hospital ………., tendo aquela respondido que foi o Hospital …….. que as reencaminhou para aquele Hospital em virtude de a irmã EE se ter automutilado e, por isso necessitar de ser observada por especialista em pedopsiquiatria. Insatisfeito com tal decisão da ofendida DD, visivelmente enervado e bastante exaltado, o arguido disse-lhe “queres retirar-me a guarda dos teus irmãos”, “se fazes queixa deixo-te pior que no dia do funeral da tua mãe”, “vou lá a casa e espanco-te” e “vou-te fazer a vida num inferno”. Estas expressões, atenta a seriedade e o contexto de desentendimento em que foram proferidas, deixaram a ofendida DD receosa de que o arguido pudesse vir a atentar contra a sua vida. Do exposto se conclui pela verificação dos pressupostos objectivos e subjectivos do tipo legal em análise, pelo que, inexistindo causas de exclusão da ilicitude e da culpa, será o arguido condenado pela prática de um crime de ameaça agravada na pessoa do ofendida DD, pelo qual se encontrava acusado. * Do crime de ofensa à integridade física De acordo com o disposto no artigo 143º, nº 1, do Código Penal, “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. O tipo objectivo de ilícito previsto no citado artigo é preenchido por qualquer ofensa ao corpo ou à saúde de outra pessoa, sendo certo que, é independente da dor ou sofrimento causados ou de uma eventual incapacidade para o trabalho. Trata-se de um crime material, uma vez que o tipo legal abrange um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem, fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à conduta ou à omissão do agente, nos termos gerais. Relativamente ao tipo subjectivo, o crime de ofensa à integridade física é um crime doloso, podendo o dolo revestir qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14º do Código Penal. Ademais, prevê o artigo 145º para as situações que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, a punição com pena de prisão até 4 anos nos casos do artigo 143º, e de 3 a 12 anos no caso do artigo 144º, por referência, entre outras, às circunstâncias previstas no nº 2 do art. 132º do CP. Como é sabido, o artigo 132º, nº 2, al. a) do Código Penal [relativo ao homicídio qualificado] prevê como susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, a circunstância de o agente ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima. Não olvidamos que a prática do crime de ofensa à integridade física no seu tipo simples já merece censura penal. No entanto, casos há em que o crime se mostra ainda mais grave, revelando uma conduta mais censurável que a conduta típica padrão. Em suma, o que está em causa é saber se o agente teve uma motivação que merece a censura geral de quem pratica esse crime, ou teve uma motivação que merece uma censura especial. Descendo ao caso vertente, verificamos que tendo a ofendida DD se ausentado de casa dos pais por poucos meses e voltado a residir com o arguido logo após o falecimento da mãe, durante mais de 2 anos, não se verifica uma quebra na coabitação, nem na dependência que tinha do arguido, motivo pelo qual a factualidade atinente ao funeral da ofendida BB se mostra abrangida no leque de condutas que integram a violência doméstica. Em face do exposto, cumpre concluir que deverá o arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da ofendida DD, nos termos sobreditos, que consome o ofensa à integridade física qualificada que lhe vinha imputado. * ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA Delineado que está o enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos, importa agora proceder à determinação da natureza e medida da pena a aplicar, sabendo-se que a escolha e determinação da medida da pena obedece às disposições dos artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal. O artigo 40º do Código Penal estabelece como finalidades da aplicação de uma pena a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. De acordo com o quadro estabelecido no mencionado preceito, a finalidade primordial vertida na moldura penal abstracta é a defesa da ordem jurídico-penal, quedando-se o limite mínimo no imprescindível para satisfazer as expectativas comunitárias na realização contra-fáctica da norma, e o limite máximo na culpa do agente. Entre estes limites, busca-se a concreta medida que permita a reintegração social do agente. O crime de violência doméstica previsto no art. 152º, nº 1, a) e d) e nº 2 a) do Código Penal, é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos. O crime de ameaça agravada, previsto no art. 153º, nº 1 e 155º, nº 1 a), 41º e 47º, do Código Penal, é punido com pena de pena de prisão de 1 mês até 2 anos ou com pena de multa de 10 dias até até 240 dias. As exigências de prevenção geral, em particular no que concerne ao crime de violência doméstica, são bastante elevadas, uma vez que a conduta do arguido consubstancia a prática de um crime muitas vezes praticado na comunidade, no seio familiar, no interior da residência familiar ou da vítima, a coberto de um sentimento de impunidade, que muitas vezes só é exposto quando as consequências são já irreversíveis, pelo que se torna essencial reforçar a consciência da sociedade pelo respeito do valor jurídico em causa. Quanto à prevenção especial as necessidades são igualmente elevadas porquanto o arguido possui antecedentes criminais por crimes de injúria e ofensa à integridade física, que configuram os crimes nucleares da violência doméstica, e pelo crime de condução em estado de embriaguez, estando a problemática subjacentes aos factos objecto dos presentes autos. Nesse conspecto, considerando que o arguido não se revela permeável à condenação em pena de multa, opta-se pela pena de prisão, no caso do crime de ameaça agravada em que se encontra prevista pena não privativa da liberdade – art. 70º do Código Penal. Em sede de determinação da medida concreta da pena depõem no caso concreto as circunstâncias seguintes: - a intensidade do dolo, que assumiu sempre a forma de dolo directo. - o modo de execução dos factos e a persistência revelada pelas condutas perpetradas pelo arguido, que perduraram anos desde a tenra infância de cada um dos seus filhos e até depois do falecimento da progenitora; - o modo de execução dos factos, que se inscreve num quadro de consumo de bebidas alcoólicas e de estupefacientes que o arguido levava a cabo na presença dos filhos menores, e que ainda hoje mantém embora em quantidades e com regularidade inferiores; - a conduta anterior aos factos, porquanto o arguido conta com antecedentes criminais, onde se incluem 2 crimes nucleares do crime de violência doméstica em causa nestes autos; - a gravidade das consequências sofridas pelos ofendidos, encontrando-se os filhos menores institucionalizados, e os laços com a filha maior desvanecidos; - as condições pessoais do arguido, que apresenta um trajeto vivencial marcado pela uma propensão para o consumo exagerado de bebidas alcoólicas, aspetos que se foram revelando desestabilizadores e não favorecedores da estabilidade, estruturação ou reforço de interações a nível da família e a nível comunitário, além de potenciadores de conflitos; - a inserção familiar do arguido, que teve um processo de desenvolvimento marcado por uma ambiência familiar conturbada e conflituosa, mantendo no entanto laços de entreajuda com a progenitora e com o padrasto, que constituem o seu elemento de proteção e de referência afetiva. Deste modo, fixam-se as seguintes penas parcelares: - a pena de 2 anos e 8 meses de prisão pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da ofendida BB; - a pena de 3 anos de prisão pela prática de cada um dos crimes de violência doméstica na pessoa dos ofendidos DD, EE e FF; - a pena de 8 meses de prisão pela prática de um crime de ameaça agravada; * Do cúmulo jurídico Estabelece o artigo 77º do Código Penal que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. A pena a aplicar tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Porque o arguido cometeu 5 crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles deve ser condenado numa única pena de prisão, que, no caso em apreço, tem como limite mínimo de 3 anos de prisão, e como limite máximo 12 anos e 4 meses de prisão. Nestes termos, considerando os factos supra enunciados e, bem assim, a personalidade impulsiva agravada pelo consumo exagerado de bebidas alcoólicas e produtos estupefacientes que matina na presença dos filhos, considera-se ser de aplicar ao arguido pela prática dos crimes enunciados a pena única de 6 (seis) anos de prisão. * Das penas acessórias No que respeita à pena acessória importa também atender ao disposto no artigo 152º nºs 4 e 5 do Código Penal, segundo o qual pode ser aplicada a pena acessória de proibição de uso e porte de armas, e de contacto com a vítima - que deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e cujo cumprimento será fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, sempre que tal se mostra imprescindível para a vítima (art. 35º, nº 1 da Lei 112/2009, de 16/9) - bem como a frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, pelo período máximo de cinco anos. No caso dos autos, atento o acervo factual assente, resulta adequada e necessária a aplicação da pena acessória de proibição de contacto por qualquer meio com os ofendidos DD, EE e FF, incluindo o afastamento da residência e local de trabalho /escola, sem necessidade de fiscalização por meios de controlo à distância, pelo período de 4 (quatro) anos. * INDEMNIZAÇÃO À VíTIMA de CRIMES VIOLENTOS Estabelece o art. 16º da Lei 130/2015, de 4 de Setembro: 1 - Á vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável. 2- Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.» Definindo o conceito de vítima, estabelece o art. 67º-A, nº 3 do CPP: «As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis …». A densificação dos ilícitos penais abrangidos extrai-se do art. 1º, do CPP: « j) 'Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos; l) 'Criminalidade especialmente violenta' as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos;» Por seu turno, dispõe o art. 82º-A do Código do Processo Penal, com a epígrafe «Reparação da vítima em casos especiais»: 1 – Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham. 2 – No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório. 3 – A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização. Nos presentes autos, os ofendidos não deduziram pedido de indemnização civil, no entanto, notificados para o efeito, não se opuseram ao arbitramento de indemnização (fls. 442 e ref. …….68). Por seu turno, notificado para o efeito, o arguido não se opôs à possibilidade de tal arbitramento, conforme se extrai da acta do julgamento. Ora, concatenadas as referidas normas, extrai-se que praticado crime abrangido na definição de criminalidade violenta ou especialmente violenta (onde se inclui o crime de violência doméstica), estará sempre em causa vítima especialmente vulnerável, pelo que a lei impõe o arbitramento de indemnização à vítima, só assim não sendo quando a ele se oponha a vítima expressamente. Destarte, respigando o acervo factual assente, considerando a gravidade dos factos perpetrados, e a capacidade de o arguido para pagar, fixa-se a indemnização a pagar aos ofendidos em 2.000,00€ para cada ofendido DD, EE e FF, quantia acrescida de juros desde a data do presente acórdão, até efectivo e integral pagamento. * DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL Nos presentes autos, veio o Centro Hospitalar ……. EPE deduzir contra o arguido pedido de indemnização civil, requerendo a condenação do mesmo no pagamento das despesas relativas à prestação de cuidados de saúde à ofendida EE, bem como nos respectivos juros, desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento. Da matéria de facto provada e da apreciação que dela foi feita no tocante à responsabilidade criminal do arguido resulta claro, face ao disposto nos artigos 483º, nº 1 e 487º, nº 1 do Código Civil, estar o mesmo constituído na obrigação de indemnizar pelos danos causados pela sua conduta. A respeito da obrigação de indemnizar dispõe o artigo 495º, nº 2 do Código Civil, que nos casos de lesão corporal, têm direito a indemnização todos aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima. Com vista à efectivação de tal direito, prevê o artigo 6º, nº 1, do DL 218/99, de 15/6, que podem as instituições e serviços integrados no Sistema Nacional de Saúde constituir-se parte civil em processo penal, relativo a facto que tenha dado origem à prestação de cuidados de saúde, para dedução de pedido de pagamento das respectivas despesas. Assim, resultou demonstrado que, em virtude dos factos que constituem o objecto dos presentes autos, foram prestados cuidados de saúde pelo Centro Hospitalar à ofendida, perfazendo o montante de 31,00€, pelo é o arguido responsável pelo pagamento de tais despesas. Relativamente aos juros, “frutos civis constituídos por coisas fungíveis, que o credor aufere como rendimento de uma obrigação de capital, e que variam em proporção do valor deste capital, do tempo durante o qual se mantém a privação deste e da taxa de remuneração” – in Manual dos Juros, de F. Correia das Neves - estipula-se no artigo 806º, nº 1 do Código Civil que, tratando-se de uma obrigação pecuniária, a indemnização corresponde aos juros a contar do dia de constituição em mora, presumindo, pois, a lei a existência de dano e fixando indirectamente o seu montante. Ora, a constituição em mora, no caso sub judice, ocorreu com a interpelação judicial para cumprir, mormente com a notificação ao arguido demandado do pedido de indemnização civil deduzido, nos termos previstos no artigo 805º, nº 1 do Código Civil. Sendo assim, os juros de mora são devidos ao Centro Hospitalar demandante, desde a notificação ao arguido do pedido de indemnização civil. Em face do exposto, julga-se totalmente procedente o pedido de reembolso formulado pelo Centro Hospitalar. * Da identificação criminal de condenados A Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro, aprovou a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal, estabelecendo os princípios da sua criação e manutenção, e regulando a recolha, tratamento e conservação de amostras de células humanas, a respectiva análise e obtenção de perfis de ADN, a metodologia de comparação de perfis de ADN, extraídos das amostras, bem como o tratamento e conservação da respectiva informação em ficheiro informático. Deste modo, no que à recolha de amostras com finalidades de investigação criminal concerne, estabelece o art. 8º, nº 2 do citado diploma legal, na redacção introduzida pela Lei 90/2017 de 22/8: A recolha de amostra em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, é sempre ordenada na sentença. Os pressupostos legais serão, assim, a condenação por crime doloso, em pena concreta igual ou superior a 3 anos de prisão, mesmo quando substituída. Volvendo ao caso vertente, o arguido foi punido pela prática de crime doloso com pena superior a 3 anos de prisão, pelo que se determina a inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados. * DECISÃO Pelo exposto, os juízes que compõem este tribunal colectivo acordam julgar a acusação procedente, por provada, e em consequência: a) Condenar o arguido AA pela prática, em concurso efectivo, de um crime de violência doméstica na pessoa da ofendida BB, previsto no art. 152º, nº 1, a) e nº 2 a), do Código Penal, numa pena de 2 anos e 8 meses de prisão; b) Condenar o arguido pela prática, em concurso efectivo, de um crime de violência doméstica na pessoa da ofendida DD, previsto no art. 152º, nº 1, d) e nº 2 a), do Código Penal, numa pena de 3 anos de prisão, em concurso aparente com o crime de ofensa à integridade física qualificada que lhe vinha imputado; c) Condenar o arguido pela prática, em concurso efectivo, de um crime de violência doméstica na pessoa da ofendida EE, previsto no art. 152º, nº 1, d) e nº 2 a), do Código Penal, numa pena de 3 anos de prisão; d) Condenar o arguido pela prática, em concurso efectivo, de um crime de violência doméstica na pessoa do ofendido FF, previsto no art. 152º, nº 1, d) e nº 2 a), do Código Penal, numa pena de 3 anos de prisão; e) Condenar o arguido pela prática, em concurso efectivo, de um crime de ameaça agravada na pessoa da ofendida DD, previsto nos art. 153º, nº 1 e 155º, nº 1 a), do Código Penal, numa pena de 8 (oito) meses de prisão. f) Fixar a pena única a aplicar ao arguido em 6 (seis) anos de prisão efectiva. g) Condenar o arguido na pena acessória de afastamento da residência e do local de trabalho/escola dos ofendidos DD, EE e FF pelo período de 4 (quatro) anos – art. 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal. h) Condenar o arguido no pagamento de uma indemnização aos ofendidos DD, EE e FF no valor de 2.000,00€ (dois mil euros) para cada, acrescida de juros desde a data do presente acórdão, até efectivo e integral pagamento – art. 82º - A do CPP. i) Julgar procedente por provado o pedido de indemnização civil do Centro Hospitalar ……... EPE, e em consequência, condenar o arguido/demandado no pagamento da quantia de 31,00€ (trinta e um euros), acrescida de juros legais contados desde a notificação do Pedido de Indemnização Civil até efectivo e integral pagamento. j) Condenar o arguido no pagamento das custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC, e nas custas cíveis, em virtude do decaimento, sem prejuízo da concessão do benefício do apoio judiciário.” III Fundamentação 1. Não se vislumbram quaisquer obstáculos ao conhecimento do presente recurso. É ele da competência deste Supremo Tribunal de Justiça e considerando-se no que é exclusivamente de direito, havendo sido interposto por sujeito legítimo e com interesse. Com efeito, foi absolutamente pertinente a sua remessa a este Supremo Tribunal de Justiça pelas razões expostas pelos vários Magistrados que intervieram nos Autos. 2. É consensual na comunidade jurídica o entendimento de que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certas questões legalmente determinadas – arts. 379, n.º 2 e 410, n.º 2 e 3 do CPP – é pelas Conclusões apresentadas em recurso que se recorta ou delimita o âmbito ou objeto do mesmo (cf., v.g., art. 412, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, p. 316; jurisprudência do STJ apud Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Relator: Conselheiro Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Relator: Conselheiro Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos). 3. Não se alcançam, no domínio da decisão de facto que sustenta a decisão recorrida, quaisquer vícios ou nulidades, designadamente previstos no art. 410, n.° 2 e n.º 3 do CPP. Assim, podem os factos ter-se como definitivamente estabelecidos. Tampouco se encontrará o Acórdão recorrido de quaisquer inconstitucionalidades, o que, aliás, teria que ter sido arguido, com a devida discriminação. 4. Na medida da pena a determinar em cúmulo jurídico devem ser considerados, conjuntamente, os factos e a personalidade do agente (art. 77, n.º 1). E quanto aos factos, é assente que se trata de ter uma imagem global do facto, uma ficção jurídica que, ao considerar não o atomismo das condutas, mas todas como se foram como uma só, permite, precisamente, muito mais facilmente aquilatar da justeza e adequação de uma única pena. O Acórdão recorrido fê-lo com proficiência e rigor, como resulta especificamente da fundamentação desenvolvida (e supracitada), tendo assim decidido uma pena única adequada e proporcional à referida imagem global que implica também uma “culpa global”, e tendo em atenção os requisitos previstos fundamentalmente no art. 77 do CP. Começou por balizar e explicitar o seu entendimento pela seguinte forma, totalmente ponderada e acertada: “Para formar a sua convicção sobre a matéria de facto provada e não provada, o tribunal baseou-se na análise crítica de toda a prova produzida, concatenada entre si e com recurso a juízos de experiência comum. Com efeito, a verdade processual, que se quer o mais próxima possível da verdade histórica, emerge como denominador comum entre a verdade dos sujeitos processuais, arguido e ofendidas - que reflectem a sua intervenção nos factos através da subjectividade inerente ao seu protagonismo nos mesmos - e a verdade das testemunhas - cuja percepção da realidade é muitas vezes filtrada pelas (des)afeições que nutrem por aqueles, e entrecortada por segmentos daquela realidade a que não assistiram mas que mentalmente reconstruiram - tudo apreciado de acordo com juízos de (in)verosimilhança, por forma a que, no julgamento da matéria de facto, a verdade processual seja racionalmente fundamentada e, por conseguinte, sindicável.” Recorde-se, quanto à fundamentação fática, que estamos perante quatro ofendidos sobre os quais foram perpetrados 4 (quatro) crimes de violência doméstica e 1 (um) crime de ameaça agravada. Tudo sendo reduzido à pena única de seis anos de prisão. 5. Com um hábito de agressões verbais e físicas aos membros da família, de índole violenta, com dependência alcoólica e consumo de estupefaciente, atitude auto desculpadora, a imagem global que se tem da personalidade do arguido, e que resulta dos Autos, contraste, efetivamente, com uma visão mais idílica, na qual sobressairiam a infância difícil do arguido, marcada pela violência do seu próprio progenitor, a falta de afeto, as suas dificuldades de aprendizagem, o seu estado depressivo, desaguando mesmo em tentativa de suicídio; e, mais recentemente, a maior motivação do arguido que procurou acompanhamento psicológico entre março e abril de 2020, além do facto de a intervenção do Centro de Respostas Integrada ter apresentado um resultado favorável quanto ao consumo do álcool. Assim como, próximo de sua mãe e do seu padrasto, supostamente se encontrar “inserido social e familiarmente”. Mais que duas faces de Janus, parecem ser duas pessoas diferentes. Os Autos, nos factos provados, revelam, porém, sem prejuízo de a realidade não ser a preto-e-branco, encontrando sempre matizes, qual se encontra mais próxima da verdade plausível, precisamente no sentido da apreciação de uma pessoa de normal ponderação, do observador comum, o que se consegue aplicando as regras da experiência comum. Não tanto apenas o “senso comum” (simples communis opinio ou vox populi, que pode ser criticável a muitos títulos, cf., v.g. estudos de Allaor Caffè Alves, Estado e Ideologia. Aparência e Realidade, São Paulo, Brasiliense, 1987, ou Timothy Sprigge, Philosophy and Common Sense, “Revue Internationale de Philosophie”, col. 40, n.º 158 (3), (1986), pp. 195-206, e ainda, por exemplo (com pontos desmitificadores muito certeiros), Marilena Chauí, Senso Comum e Transparência, apud http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/discrim/preconceito/sensocomum.html), mas o bom senso (cf., v.g., P. Ferreira da Cunha, Desvendar o Direito, Lx., Quid Juris, 2013, p. 147 ss.) Evidentemente que não se trata de um bom senso acima de críticas e de discussões, mas, em geral, como aquelas regras básicas e comuns às pessoas (no caso) conformadas com o Direito e as regras mais elementares de convivência humana, e a fortiori familiares. Regras de respeito familiar, de reconhecimento das evidências pelo menos mais imediatas dos sentidos (sem preciosismos), como que “a neve é branca”, como já eram as postas por Aristóteles, no Organon, para um entendimento mínimo entre as pessoas. Pontos de partida lógicos (e, se quisermos, também retóricos) para sequer se começar a disputar. Sob pena de um diálogo de surdos. Pontos de partida prudenciais também, que são essências para o jurista e a Justiça (v.g., Jean Lauand, Saber Decidir: a Virtude da Prudentia, in “Notandum”, n.º 11, ed. online: http://www.hottopos.com/notand11/jean_mauro.htm). 6. Muito avisada e agudamente refere o Parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto a necessidade perscrutar a personalidade do agente, e de procurar uma unidade de sentido entre os factos e a personalidade, nomeadamente para o efeito, importante, de se verificar se estamos perante pluriocasionalidade de factos, ou uma tendência da personalidade do agente: “Mutatis mutandis a invocada inobservância do art.º 71º, n º 2, alíneas d) e e), do Código Penal- conclusões 8ª e 9ª, que enquadra numa pretensa «não valoração devida das condições socioeconómicas do arguido» também não mostra qualquer adesão à realidade processual. Com efeito, é patente que desde logo no domínio da determinação da medida de cada pena parcelar, o Tribunal Colectivo, procedeu à ponderação prevista no art.º 71º do Código Penal, alicerçando a medida da pena, na consideração do binómio culpa / prevenção, como uma simples leitura do acórdão recorrido, ainda que «à vol d oiseau» permite ex abundanti evidenciar. De resto, o acórdão recorrido, não só cumpriu as exigências de tal critério geral, como não descurou as exigências do chamado critério especial, em que por imposição legal-ut art.º 77º, n º 1, do Código Penal, «ponderou em conjunto os factos e a personalidade do agente». Para tanto, como a doutrina e a jurisprudência vêm de há muito a dizer, impõe-se a superação de uma visão atomística dos factos integrantes dos crimes em concurso em ordem a se alcançar a imagem global do facto, perscrutando a personalidade do agente. Importará, indagar a existência de uma interligação entre os factos e averiguar da existência de uma conexão autoris causa. Tal permitirá apreender a existência de uma unidade de sentido e concluir se estamos perante uma tendência delituosa ou uma mera pluriocasionalidade que não radica na personalidade do agente.” Ora a diuturnidade com que os factos de agressão foram sendo perpetrados, em todos os membros da família nuclear, não é de molde a que se pense que se tratou de explosões de ânimo esporádicas, mas algo interiorizado numa personalidade agressiva, inconformada com os padrões mínimos de respeito doméstico (que não deixa de ser o primeiro círculo de socialidade). Eventualmente, concede-se, com raízes nas alegações desculpantes de uma infância que não foi em berço de oiro, nem com paz doméstica também. Mas tal não é justificação 7. A narrativa das agressões e as suas sequelas nas vítimas deste processo é uma sucessão de atitudes (no mínimo) profundamente deploráveis, completamente evitáveis (gratuitas), culposas, com dolo direto e intenso, e sem causas de exclusão da ilicitude ou da culpa. A narrativa não é senão um espelho (speculum – de onde deriva “especular”) do real, e, nestes casos, sabe-se que a realidade, e sobretudo a realidade sofrida, do lado das vítimas, é muito mais impressiva que um rol de factos provados. Recorde-se apenas este trecho do Acórdão recorrido, para se poder aquilatar do clima de terrorismo doméstico infligido pelo arguido à sua família mais próxima: “(…) extrai-se do acervo factual assente que desde data não apurada, mas pelo menos até 15 de Outubro de 2019, o arguido residiu primeiramente com a mulher e com os filhos, e depois só com estes, na Rua ……., nº ……., …….., sendo que a ofendida DD saiu de tal habitação em Novembro de 2017. Acontece que, desde data não apurada, mas pelo menos desde o ano de 2007, pelo menos semanalmente, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas em excesso e consumiu produtos estupefacientes, o que fazia na presença dos filhos. Desde pelo menos essa data, por diversas vezes, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas em excesso ou consumiu produtos estupefacientes e, nessas ocasiões, o arguido revelou comportamentos violentos e autoritários para com os ofendidos. sempre que o arguido se encontrava alcoolizado ou sob o consumo de produtos estupefacientes, iniciava discussões violentas com os ofendidos, desferindo murros na mesa, exibindo raiva, o que deixava os ofendidos, filhos e mulher, atemorizados. Por esse motivo, no ano de 2017, após o falecimento da sua mãe, a ofendida DD abandonou a residência da família e foi residir sozinha na Avenida …….., ….., ……., ……. Desde pelo menos o ano de 2007, pelo menos entre quatro a cinco vezes, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido dirigiu-se à ofendida BB, sua mulher, bem como à ofendida DD, sua filha, e afirmou “vaca”, “puta”, “não vales nada”, “não andas a fazer nada nesta vida”, e “vocês são uma merda”. Além disso, em data não apurada do ano de 2011, altura em que ofendida EE tinha aproximadamente seis anos de idade, pelo menos entre quatro a cinco vezes, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido dirigiu-se à referida ofendida e disse-lhe “vaca”, “puta”, “não vales nada”, “não andas a fazer nada nesta vida”, “tu nasceste para o mundo para dar problemas”, “qualquer dia mato-te” e “vocês são uma merda”. Além disso, durante o período em que residiram juntos, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido cerca duas a três vezes, dirigiu-se à ofendida DD e afirmou “não és minha filha”, “estragaste a minha vida”, “não vales nada”, “não vais dar mulher na vida”. Desde o ano de 2007 e até ao falecimento da ofendida BB, por diversas vezes, em datas não apuradas, na sequência de discussões no interior da habitação da família, sendo que em algumas semanas diariamente, o arguido desferiu à sua mãe e à ofendida DD murros na face, bofetadas, pancadas de cinto, o que fazia por todo o corpo das mesmas, e sempre com bastante força, causando-lhes dores físicas, sendo que em algumas ocasiões causou-lhes vermelhão e noutras hematomas. Após o funeral da ofendida BB, o que ocorreu em ……. de 2015, GG, avó paterna dos ofendidos DD, EE e FF, a ofendida DD e o arguido reuniram-se para decidir com quem ficavam os ofendidos EE, FF, dado que eram menores. Nessa altura, o arguido e a ofendida DD iniciaram uma discussão dado que o arguido afirmou que ia viver para …….. com os filhos EE e FF e a ofendida DD não concordava com tal alteração na vida dos irmãos. De seguida, o arguido ficou exaltado, agarrou a ofendida pela camisola, rasgou-a e desferiu-lhe um murro na região temporal, tendo embatido com a cabeça numa esquina e caído no chão, onde permaneceu inconsciente por período de tempo não apurado. Na sequência da referida agressão, a ofendida DD foi transportada para o Hospital …….., a fim de receber assistência médica. Em data não concretamente apurada, mas anterior a Agosto de 2017, o arguido iniciou uma relação de namoro com uma pessoa de nome CC. Tal relacionamento não foi aceite pelos ofendidos DD, EE e FF e, nessa medida as discussões entre a ofendida DD e o arguido aumentaram. E, em data não apurada do mês de Novembro de 2017, a ofendida DD abandonou a residência onde vivia com o arguido e os irmãos. Pelo que, entre o mês de Novembro de 2017 e até Outubro de 2019, os ofendidos EE e FF passaram a residir apenas com o progenitor, aqui arguido, e com a namorada deste. Entre Novembro de 2017 e Outubro de 2019, na ausência da ofendida DD, o arguido continuou a iniciar discussões com os ofendidos menores, por qualquer motivo, enervando-se e exaltando-se, e recorrendo a gritos, o que os deixava aterrorizados, com receio do que o mesmo pudesse fazer. Assim, entre Novembro de 2017 até Outubro de 2019, pelo menos uma vez por semana, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido desferiu bofetadas na cara e nas nádegas da ofendida EE, bem como desferiu-lhe murros na cara e na cabeça, o que lhe causou dores no corpo. Também entre Novembro de 2017 até Outubro de 2019, pelo menos uma vez por semana, na sequência de discussões no interior da habitação da família, o arguido desferiu bofetadas por todo o corpo do ofendido FF, causando-lhe dores no corpo. Devido a tais comportamentos do arguido, a ofendida EE ficou revoltada e deprimida. E, pelo menos por três vezes, efectuou cortes no seu corpo, recorrendo a objectos cortantes como facas, tesouras ou x-actos, assim se auto-mutilando. Nesse período, a referida ofendida passou então a receber acompanhamento da psicóloga da escola que frequentava, situação que era desconhecida do arguido. Contudo, a dada altura, o arguido veio a ter conhecimento e, dado que tal acompanhamento era do seu desagrado, iniciou uma discussão com a ofendida EE, tendo-lhe dito que estava a mentir, que lhe estava a fazer vida num inferno e que era doente. E, em virtude de recear que suspeitassem que maltratava a ofendida, o arguido disse-lhe não podia ir à psicóloga com aqueles ferimentos no corpo. No dia 8 de Julho de 2019, a hora não apurada, durante a tarde, no interior da habitação, o arguido molestou fisicamente a ofendida EE, o que causou dores no seu corpo.” 8. A exposição supra, integrada nos Autos, e a análise minuciosa destes, revelam não simples pluriocasionalidade mas vera tendência criminosa, uma personalidade propensa ao crime, o que é demonstrado através da conduta delituosa, dilatada no tempo, presente nos presentes autos, mas também atestada já pelo seu registo criminal: “o arguido possui antecedentes criminais por crimes de injúria e ofensa à integridade física, que configuram os crimes nucleares da violência doméstica, e pelo crime de condução em estado de embriaguez, estando a problemática subjacentes aos factos objecto dos presentes autos”. Releva que todos os factos dos presentes Autos foram perpetrados no seio da Família, precisamente onde as vítimas se deveriam sentir mais seguras. Causando, desde logo, um choque psicológico de mundividência. E importa muito a violência dos atos e a gravidade das suas consequências, ressaltando o sofrimento das vítimas, levando até a atos de automutilação, o que, sendo atos reais, não deixam de pode ter uma interpretação psicológica simbólica, pois um filho violentado por um pai dele está privado, ou que quer dizer, ele mesmo está amputado de parte de si mesmo. Como sublinha o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto: “(…) as condutas do recorrente estiveram na base de grande sofrimento psicológico, designadamente, mas não só da sua filha EE e do seu filho FF, com a primeira a protagonizar actos de automutilação, acabando, por ser aplicada aos dois no âmbito de processo tutelar de promoção e protecção, a medida de acolhimento residencial, ficando, assim, mercê da reiterada conduta do recorrente, consumidor de álcool e estupefacientes, privados do tecto, supostamente protector, de uma casa de família.” Olhando para a globalidade dos factos, resulta dos autos que ocorreram ao longo de vários anos, com gravidade crescente ao logo do tempo (como é normalmente o caso). Tudo isto, conjugável com um dado de facto revelador de personalidade: a auto desculpabilização do arguido, que obviamente arguido não interiorizou o desvalor da sua conduta, dando assim muito poucas esperanças de que pudesse, como é seu desejo, alcançar uma redução de pena que lhe pudesse assegurar uma suspensão na respetiva execução. Aliás, pelo percurso criminal anterior se deduz com segurança que as condenações já sofridas “não foram suficientes para o trazer de volta ao direito e à vivência em comunidade”, como é acentuado na Resposta da Digna Magistrada do Ministério Público no Tribunal a quo. 9. Não se diga que não se olha o outro lado do problema, ou o outro prato da balança. A verdade, porém, é que o fiel da balança não pode esquecer que os elementos interagem e mutuamente se esclarecem. Por exemplo: a alegação de estar o arguido social e familiarmente inserido de pouco aproveita, porquanto essa inserção nunca foi óbice ao reiterado comportamento delituoso por anos a fio, deixando marcas, precisamente, na família. Ou apenas se tem de considerar a atual inserção (com a mãe e padrasto), já com a família nuclear profundamente esfacelada e ferida depois de tudo o ocorrido? Como refere a Resposta do Ministério Público: “(…) ao contrário que que alega o recorrente, o facto de o arguido ter apoio familiar foi levado em consideração na determinação da pena única; porém, não se demonstra suficiente, apesar de relevante, para que se mostre fiável um grau de probabilidade de futura fidelidade à lei, no sentido de uma condução de vida de forma responsável e normativa, e assim que permita aplicar uma pena mais próxima do mínimo da moldura penal.” Também não se olvidam as condições económicas nem a infância do arguido. Apenas tout comprendre não pode ser tout pardonner, para retomar Jean-Marie Guyau (Esquisse d'une Morale sans Obligation ni Sanction, 16.ª ed., Paris, Félix Alcan, 1921). 10. A moldura penal do concurso em causa é de 3 a 12 anos e 4 meses de prisão. A pena aplicada ficou ligeiramente abaixo do meio entre estes dois valores: seis anos. Embora, como se sabe, não se esteja perante uma tabela meramente aritmética, os padrões numéricos são um utensílio pelo qual se podem aferir algumas valorações, porquanto podem dar uma noção de grandeza e proporção. De todo o modo, seguimos a perspetiva sintetizada no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 03/12/2014, no Proc.º n.º 273/07.8PCGDM.S2 (Relator: Conselheiro Santos Cabral): “I - Na aplicação de uma única pena no concurso de infracções desenham-se duas correntes no STJ: uma delas (a tradicional) efectua a valoração conjunta dos factos e da personalidade do agente sem recurso a regras matemáticas; a outra faz intervir, dentro da nova moldura penal, ingredientes de natureza percentual ou matemática. II - Ainda que não devam ser aceites critérios matemáticos alheios duma valoração normativa, não repugna que a convocação dos critérios de determinação da pena conjunta tenha como coadjuvante a definição dum espaço dentro do qual os mesmos funcionam. III - Na formulação da pena conjunta e na ponderação da imagem global dos crimes e da personalidade, admite-se que, conforme uma personalidade mais ou menos gravemente desconforme com o direito, o tribunal determine a pena única somando à pena concreta mais grave entre 1/2 e 1/5 das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso. IV - Na definição da pena concreta dentro daquele espaço situa-se a dimensão dos bens jurídicos tutelados pelas diferentes condenações, pelo que importa considerar a necessidade de um tratamento diferente para a criminalidade bagatelar, média e grave. V - Paralelamente, à apreciação da personalidade do agente interessa averiguar se ocorre uma certa tendência, que no limite se identificará com uma carreira criminosa, ou se há uma mera pluriocasionalidade que não radica na personalidade do arguido. VI - As necessidades de prevenção especial aferem-se tendo em conta a personalidade do agente, onde se fazem sentir factores como a idade, a integração ou desintegração familiar, o apoio que possa encontrar a este nível, as condicionantes económicas e sociais que tenha vivido e que se venham a fazer sentir no futuro. VII - Igualmente importante é a consideração da existência de uma manifesta antipatia na convivência com as normas que regem a vida em sociedade, quando não de anomia, que na maior parte das vezes é evidenciada pelo próprio passado criminal. Também esclarece os critérios orientadores e a razão de ser do nosso cúmulo jurídico nacional (com referência à doutrina corrente), o Ac. de 11/02/2015 deste STJ, proferido no Proc.º n.º 175/12.6GBLLE.E1.S1 (Relator: Conselheiro Pires da Graça): “Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo) nem pelo da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e dos singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente: como doutamente diz Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 290-292), como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado. Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso. – v. Ac. deste Supremo e desta Secção de 06-02-2008, Proc. n.º 4454/07 Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização). Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993; Acs de 11-10-2006 e de 15-11-2006 deste Supremo e 3ª Secção in Proc. n.º 1795/06, e Proc. n.º 3268/04.” 11. Voltando ao caso vertente. O arguido, praticou crimes de violência doméstica e ainda de ameaça. Sem exame crítico da sua conduta, o arguido revela uma manifesta insensibilidade aos valores, princípios e normas penais, sociais e éticas e aos bens jurídicos que lhes andam associados (uma espécie de Rechtsfeindschaft). As exigências de prevenção especial são notórias, em consequência. As condutas ilícitas e típicas praticadas são graves, dolosas, reiteradas temporalmente (mas não há crime continuado de violência doméstica), as vítimas são familiares próximos, a reclamar proteção e afeição e não agressividade e depreciação, relevando também a idade, e o género (pelo menos no caso das vítimas do género feminino). À pluralidade de crimes deve corresponder um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. O alarme social potencial de tais condutas, sobretudo se tratadas de forma excessivamente indulgente, ou mesmo laxista, é seguramente causa de erosão da confiança no direito e potenciador até de princípios de anomia, porquanto, apesar da invisibilidade que muitas vezes existe nestes crimes, quando se revelam, ultrapassando várias opacidades e até preconceitos, como que têm efeito catártico de anagnórise, e podem resultar em grave comoção social. Daí saírem reforçadas as consequentes exigências elevadas de prevenção geral 12. Consequentemente, uma pena única que, com este quadro, de facto e de personalidade do agente (art. 77, n.º 1, in fine CP), se encontra já abaixo da metade da moldura penal possível (seis anos de prisão), revelará decerto indulgência mais que suficiente (como aliás de algum modo reconhecido pelo Ministério Público no Tribunal a quo). Sendo adequada e proporcional à globalidade dos factos e à personalidade do agente. III Dispositivo Nestes termos, acorda-se na 3.ª Secção (Criminal) do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso quanto à pena única. Custas pelo Recorrente, fixando-se, em 4 UCs a taxa de justiça. Supremo Tribunal de Justiça, 17 de março de 2021. Ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator atesta o voto de conformidade da Ex.ma Senhora Juíza Conselheira Adjunta, Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida. Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator) Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta) |