Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1397/16.6T8BCL.G1.S2
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA ATUALIDADE
PERIGO
ADOÇÃO
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGAR A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

A intervenção para salvaguarda do superior interesse de uma criança em situação de perigo deve obedecer ao princípio da prevalência da família – no sentido lato que abarca a prevalência às medidas que a integre em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável –, a par dos princípios da indispensabilidade, da proporcionalidade, da actualidade e da (necessidade de) intervenção precoce, entre os demais previstos no art. 4º da Lei nº147/99, de 1/9.

Decisão Texto Integral:
Revista 1397/16.6T8BCL.G1.S2
           


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1) O Ministério Público requereu a abertura de um processo judicial para aplicação de medida de promoção e proteção a favor da menor AA, nascida em …-2015, filha de BB e de CC, alegando:

- os progenitores não reúnem competências parentais para cuidar da menor, a quem infligiam maus tratos para o seu bem-estar físico e psicológico por força das quezílias existentes entre eles, o que deu origem a um processo-crime por violência doméstica contra o pai, tudo também motivado e agravado pelos seus consumos excessivos de álcool e pelas dificuldades económicas do casal, não tendo a progenitora ocupação profissional;

- a esse circunstancialismo, acrescia a falta de higienização da habitação, que apresentava odor a urina e fezes de cão, com mobiliário degradado e sujidade no chão, estando a cozinha repleta de roupa suja e restos de comida, como sopa destinada à criança com vários dias, não existindo nela qualquer lugar adequado para a criança dormir, nem para o acondicionamento das suas roupas;

- aquando da realização da vista pela equipa da CPCJ, a menor encontrava-se com febre e foi conduzida ao médico, tendo sido orientada para o hospital onde ficou internada.

2) Em 24-6-2019, foi aplicada a favor da menor, a título cautelar e urgente, a medida de acolhimento residencial, no estabelecimento “...”.

3) Por acordo de promoção e proteção firmado a fls. 112, foi aplicada a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial da menor no referido estabelecimento, pelo período de 6 meses, sucessivamente revista e prorrogada.

4) Foi tentada a integração da menor no agregado familiar dos seus tios paternos DD e EE, que não resultou, por razões imputadas à menor pelos seus tios, que optaram pelo reingresso da menor na dita “Casa”.

5) Apesar de ter sido ordenada uma avaliação psicológica para aferir dos motivos pelos quais a menor AA apresentou os comportamentos descritos pelos tios, estes não compareceram nem nunca se disponibilizaram para dar início à avaliação.

6) Foi também averiguada a possibilidade de a menor integrar, em contexto familiar, o agregado de tios maternos e de uma madrinha, que se revelou igualmente infrutífera, tendo-se concluído que estes não reuniam competências para acolher a menor.

7) Face à impossibilidade de integrar a menor em contexto familiar materno ou paterno e tendo-se considerado como não viável a obtenção duma solução negociada, a requerimento do Ministério Público, foi aplicada a favor da menor AA, por acórdão proferido por unanimidade, a medida de confiança com vista a futura adoção sob a guarda da instituição “...”, sendo nomeada curadora provisória a técnica da instituição com um contacto mais directo com a criança, ficando os progenitores inibidos do exercício das responsabilidades parentais e a mesma sem visitas por parte da família biológica.

8) A mãe da AA, CC, interpôs apelação, sustentando que a tia avó da menor, FF, «reúne todos os pressupostos para receber a menor e garantir-lhe todos os cuidados necessários a uma saudável, feliz e familiar educação, alicerçada na unidade familiar e no reaproximar dos laços parentais».

 9) A Relação manteve a decisão de 1ª instância, por ter considerado «adequada a medida escolhida», uma vez que, «depois de esgotadas as soluções junto da família natural e ainda fora dela», o interesse da criança, «a que se deve atender em primeiro lugar, não permite que esta possa ficar indefinidamente à espera que os progenitores reúnam condições para o seu regresso à família natural».

10) A mencionada CC veio interpor revista, ao abrigo das alíneas a) e b) do art. 672º do CPC, pugnando pelo acolhimento da AA junto da sua família natural ou, se assim se não entender, pelo seu acolhimento institucional sujeito a revisão.
11) Perante a dupla conformidade das decisões de ambas as instâncias e depois de apreciada a admissibilidade da revista malgrado o disposto no nº 2 do art. 988º do CPC, foi excepcionalmente admitida a revista pela Formação deste Supremo para o efeito competente.

*

Para apreciar e decidir a questão enunciada pela recorrente releva a matéria de facto tida como assente pela Relação:

(…) 2.º No dia 24/05/2016 foi instaurado, na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo ..., processo de promoção e proteção a favor desta menor na decorrência de uma sinalização onde, em síntese, se indiciavam (…) os seguintes sinais de perigo: a) desadequação parental dos progenitores, tendo em conta maus tratos para a sua saúde e equilíbrio e bem-estar psicológicos levados a cabo pelo pai sobre a mesma, devidos a recorrentes discussões e gritarias deste contra a mãe, descambando repetidas vezes em insultos e agressões, levadas a cabo em casa e também perante a criança, desde há um ano a essa parte, que deu origem ao NUIPC nº 228/16.1PABCL, pela alegada prática pelo pai de factos que integrariam um crime de violência doméstica, motivado pelo alcoolismo de que padecia, b) dificuldades económicas do casal, c) quezílias reiteradas e habituais entre ambos os progenitores motivadas por desacordos e perspetivas opostas no concreto exercício das suas funções parentais e na gestão da vida doméstica comum do agregado familiar, d) a progenitora não se interessava por angariar um emprego, e os progenitores não cuidavam da casa de morada da família, a qual se apresentava mal arejada, com intenso odor de urina e fezes dum cão que se encontrava fechado na lavandaria, com mobiliário degradado e com sujidade no chão e na cozinha que se apresentava repleta de louça por lavar e com restos de comida e sopa de três dias, sujidade nas paredes, portas, janelas bem como os vários objetos que se encontram em tais divisões e sobre o atrás eludido mobiliário, não existindo qualquer espaço adequado à mesma criança nem ao adequado acondicionamento das suas roupas, e) situação esta que a progenitora nunca melhorou apesar da ajuda oferecida pela CPCJ ..., sendo que aquelas quezílias e discussões se refletiam-se, muito negativamente, quer na saúde, quer no equilíbrio psico-emocional da menor, f) a menor foi internada de urgência no Hospital ... em 16/06/2016, com febre alta sem que os pais houvessem providenciado por atempados cuidados médicos, 

3.º Após (…) ter sido tentado consensualizar com os pais da AA a aplicação da medida de promoção e proteção de Acolhimento Residencial, o que estes recusaram, o processo transitou para o Ministério Público, tendo em 20/06/2016 sido aplicada judicialmente - fls. 43/44 -, a título cautelar e urgente, a favor da mesma menor a medida de promoção e proteção de "Confiança a pessoa idónea", na pessoa do Diretor do Hospital de … ..., no qual a criança se encontrava internada. 

4.º A partir de 24-05-2016, após a inicial avaliação da referida C.P.C.J. ... e avaliação diagnóstica levada a cabo pela Equipa Multidisciplinar de Apoio aos Tribunais do Centro Distrital da Segurança Social de …, constataram-se os seguintes indicadores de perigo relativos à menor AA: a) reiterados consumos abusivos de álcool por parte do progenitor; b) instabilidade psico-emocional de ambos os progenitores; c) higiene e organização da habitação do agregado familiar muitíssimo deficitária; d) falta de prestação de cuidados básicos de saúde à menor, a qual foi internada de urgência no Hospital ... em 16.06.2016, com febre alta sem que os pais houvessem providenciado por atempados cuidados médicos; e) progenitores incapazes de encetar esforços de procura de emprego e pouco conscientes da necessidade de se autonomizarem financeiramente para poderem dar resposta às necessidades deles próprios e da filha; f) ausência de projetos de vida consistentes ao nível social e profissional; g) inadequadas competências pessoais e parentais de ambos os pais na resolução de problemas em diferentes áreas dos cuidados de alimentação, saúde e segurança da menor. 

5.º Só após o acolhimento residencial, que ocorreu quando a menor tinha 12 meses, a AA teve os cuidados que uma criança da sua faixa etária necessita, e que lhe estão, desde então, a ser proporcionados pela Casa de Acolhimento, porquanto verificou-se que nenhum dos progenitores alterou ou melhorou a sua vida, aos vários níveis, para poder acolher e responsabilizar-se pelo acompanhamento do processo desenvolvimental da filha. 

6.º Durante a intervenção judicial protetiva a progenitora, apesar de manter constantes verbalizações de que pretendia autonomizar-se e conseguir a guarda da filha, manteve-se sem ocupação ou atividade laboral, o que implica que vá solicitando sucessivamente a amigos e familiares que a acolham e permitam que resida nas suas habitações. 

7.º Assim, ao longo destes três anos, exerceu atividade para quatro empresas, num total de 29 dias, sendo da sua iniciativa a cessação de contratos, e existe notícia de desempenho laboral, em ..., onde trabalhou 19 dias, no mês de abril, no ..., Lda., tendo a cessação de contrato sido comunicada à Segurança Social como despedimento com justa causa. 

8.º Atualmente não lhe são conhecidas ocupações laborais, continuando sem apresentar um projeto de vida para a AA, não sendo capaz de contextualizar as necessidades quotidianas, estruturadas, para uma criança da idade da filha. 

9.º A progenitora acordou com a Casa de Acolhimento visitas aos sábados e aos domingos, registando-se ausências sem comunicação e ou justificação, e comparece preferencialmente ao domingo, apesar de ser vista pela cidade ... durante a semana. 

10.º O progenitor da AA nunca diligenciou por obter condições que indiciem competências para proceder a um adequado acompanhamento da AA, aos vários níveis, admitindo que não tem condições para ter a menor ao seu cuidado. Tem uma outra filha, fruto de um anterior relacionamento, a favor da qual existiu processo de promoção e proteção.

11.º Nos últimos três anos registam-se cessações de contrato por sua iniciativa, tendo trabalhado:  20 dias entre 15.12.2016 e 04.01.2017, 13,5 dias em 2018 (entre 03.03.2018 e 02.04.2018). Não lhe são conhecidas ocupações laborais desde então. 

12.º Desde 20.01.2019 que não efetua qualquer convívio com a AA, apesar de ter acordado com a Casa de Acolhimento visitas aos sábados e aos domingos. 

13.º Nem o progenitor, nem a progenitora apresentam situação estável e capaz de ter a filha a seu cargo, verificando que, quer familiares maternos, quer paternos também não possuem adequadas condições ou vontade de acolher a menor, não apresentando, pois, aqueles qualquer suporte familiar ou vontade para se autonomizarem. 

14.º Quanto à família alargada também se concluiu pela inexistência de alternativas viáveis e credíveis que pudessem ser consideradas como projeto de vida securizante para os superiores interesses da menor. 

15º Ambos os progenitores tiveram intervenção ao nível de processo de menores em perigo e de promoção e proteção, tendo, ambos, estado acolhidos em instituições por alegada negligência familiar. O progenitor justifica os seus comportamentos agressivos/violentos e os seus problemas de alcoolismo "pelo facto de ter estado institucionalizado". 

16.º CC que é natural de ...passou a residir em ... por a mãe ter encetado relacionamento com um individuo dessa localidade. Entre os 5 e os 10 anos de idade esteve acolhida em instituição em …. A sua mãe veio residir para ..., com outro companheiro, tendo CC integrado o agregado familiar da mãe, onde permaneceu até aos 13 anos, idade com que foi proposto novo acolhimento institucional, tendo fugido da instituição - ...- passado cerca de dois meses. 

17.º A avó paterna, GG, faleceu em 2005/…, por suicídio. 

18.ºA avó materna, HH, residia na … e encontra-se a cumprir pena de prisão, por homicídio, no estabelecimento prisional de …. O avô materno encontra-se emigrado, desconhecendo-se em que país. 

19.º No que toca aos irmãos da progenitora verifica-se o seguinte: II, com 23 anos, tem um filho de 4 anos, e reside em ... com um novo companheiro, que tem três filhos, mas verbaliza não se disponibilizar pelo acolhimento da sobrinha; JJ, com 30 anos de idade, divorciada, desempregada, reside em … e tem quatro filhos, porém, dois acolhidos por uma tia, um entregue a outro familiar e uma filha de quatro anos que reside com a mãe e com o seu atual companheiro; KK, de 32 anos, solteiro, está emigrado; LL, de 20 anos, encontra-se a cumprir pena de prisão por homicídio; MM, de 32 anos, está emigrado, … com três filhos, a mais velha a residir com o progenitor e os mais novos, com o seu companheiro. 

20.º Após avaliação diagnóstica para aferir da possibilidade da menor ser integrada no agregado familiar de NN(tio paterno), emigrado em … e OO(companheira deste), apurou-se que estes demonstram défices nas práticas educativa aplicadas aos seus filhos menores (de 15 e 11 anos de idade), os quais apresentam falta de assiduidade, alta taxa de absentismo às aulas, instabilidade emocional e bastantes dificuldades na regulação do comportamento, baixo autoconceito e autoestima, práticas pouco seguras e pouco saudáveis na utilização da internet, comportamentos de conflito com colegas, desobediência às indicações de professores, e com aproveitamento escolar negativamente comprometido. A que acresce o facto da CPCJ de ... ter realizado intervenção, por sinalização de alegada prática de prostituição de OO, que seria proprietária de um bar de alterne, deixando os filhos sozinhos em casa ou os filhos frequentarem, até altas horas, o referido estabelecimento, e por a filha, na altura com 13 anos de idade, ter eventuais consumos de substâncias ilícitas. 

21.º Em 24.09.2019 a madrinha da criança, PP, contactou a EMAT ... verbalizando disponibilidade para visitar a afilhada na Casa de Acolhimento.

22.º Porém, apurou-se que esta mantém atividade por conta própria, com venda ambulante de ...por feiras/festas populares pelo país, sem horários para acompanhar diariamente a menor, e sem disponibilidade para a acolher, nem para a visitar com regularidade. 

23.º No seguimento do acompanhamento efetuado à situação da AA foi tentada a sua integração no agregado familiar dos seus tios paternos, DD e EE, porém, tal acolhimento não resultou, face aos comportamentos adotados pela criança, manifestando, designadamente alterações a nível de sono, de alimentação, comportamentais e outras, o que levou a que esses tios optassem pelo regresso da menor à instituição onde antes estava acolhida “...", que voltou a reintegrar, em 11.09.2018. 

24.º Por sua vez, a tia avó materna, FF, que inicialmente apresentou-se, apesar de relutante, como disponível para acolher a menor AA, tendo-se procedido à avaliação das suas condições, constata-se que logo início do processo se havia aferido através do sistema de informação da SS que constavam como fazendo parte do seu agregado familiar 11 elementos: a própria, o pai de 80 anos de idade, uma filha de 27 anos, um filho QQ a cumprir pena de prisão por homicídio, três sobrinhas e quatro crianças. 

25.º Na sequência de uma visita domiciliária efetuada à mesma apurou-se que a mesma se encontrava com sentimentos de revolta perante a progenitora por esta ter abandonado a sua residência e, por outro lado, apresentando resistência em acolher a sobrinha neta, alegando ausência de condições. 

26.º Acresce que a mesma conta já com 53 anos, exerce funções como ... num restaurante, com atividade ao fim de semana, e tem a seu cargo dois menores adolescentes, a beneficiarem de processo de promoção e proteção, revelando a mesma, dificuldades na imposição de regras a estes e incongruências na gestão familiar e implementação de rotinas. 

27.º O pai deixou de visitar e de conviver com a AA em janeiro de 2019, tendo apenas efetuada uma outra visita em Janeiro de 2020, e reconhece não ter condições para ter a menor a seu cargo.

28.º A AA apesar de reconhecer a figura dos pais, e subsistirem alguns laços afetivos, principalmente com a mãe, desapega-se muito facilmente dos mesmos, não demonstrando qualquer dificuldade no final das visitas em afastar-se destes, denotando apenas interesse pelas guloseimas que estes lhe trazem, tendo outrossim, educadores de como referência na equipa educativa da casa de acolhimento, não verbalizando, nem falando dos pais em contexto de creche. 

29.º Nenhum dos progenitores pretende efetuar alterações no seu modo de vida, e apesar de alertados para a necessidade de mudanças conducentes à aquisição de competências parentais, nunca apresentaram motivação para as necessárias alterações comportamentais. 

30.º Desde 24.06.2016 a AA está, pois, acolhida na «…» e (…) verifica-se que nenhum dos progenitores realizou uma única ação com vista a melhorar a sua situação aos vários níveis, nunca apresentaram condições e nunca revelarem competências parentais adequadas para se poder perspetivar um projeto de vida para esta criança junto da família biológica, apesar de estarem cientes dos compromissos assumidos em Tribunal (…).

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A pretensão formulada em primeira linha pela recorrente mostra-se inviabilizada pela inelutável realidade que factualidade apurada patenteia.

A intervenção para salvaguarda do superior interesse da AA, perante a situação de perigo em que se encontra, deve obedecer ao princípio da prevalência da família – mas no sentido lato que abarca a prevalência às medidas que a integre em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável –, a par dos princípios da indispensabilidade, da proporcionalidade, da actualidade e da (necessidade da) intervenção precoce [cf. art. 4º als. a), c), d), e) e h) da Lei nº147/99 de 1/9].

Assim, terá de reconhecer-se, em tese, a pertinência da argumentação aduzida pela recorrente, apontando, em abstracto, para a primazia da integração familiar das crianças (prevalência da família), como modo de exercício do direito/dever de providenciar pelo normal desenvolvimento, formação, educação e manutenção dos filhos, designadamente plasmado no princípio constitucional evocado no recurso e que recai sobre os pais ([1]).

Todavia, essa prevalência deverá ceder, sem tibiezas, quando se concluir que, por acção ou omissão dos pais, a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o são desenvolvimento da criança ou do jovem estejam postos em perigo, a que os próprios pais não se oponham ou que não consigam remover de modo adequado ([2]).

Ora, salvo o devido respeito, tudo na matéria factual apurada indica ser o que sucede na actual situação da AA. Realmente, não obstante a frustração, o desespero e o (digno) propósito da recorrente, como mãe, em manter alguma espécie de ligação com a menor, esta não tem garantidas no seu próprio seio familiar as condições mínimas para que o apontado perigo seja removido.

Com efeito, tal como se constata na decisão recorrida, devendo «existir sempre a preocupação de salvaguardar o valor da família natural», «nenhum dos progenitores alterou ou melhorou a sua vida, aos vários níveis, para poder acolher e responsabilizar-se pelo acompanhamento do processo de desenvolvimento da filha». «(…) determinar a colocação da AA, com retorno ao seu meio natural de vida, integrando-a no seio da família materna ou paterna, seria sujeitá-la a um perigoso ensaio susceptível de comprometer o seu futuro, a sua segurança e a sua estabilidade psíquica e afectiva».

É também evidente que tal se deve à falta de competências dos pais – também, em grande medida, às insuficiências que afectam a mãe da AA – e à impossibilidade de o Estado – em sentido amplo – concretizar o seu dever de prestar oportuno apoio à família.

Por outro lado, essa mesma (dura) realidade afasta qualquer outra solução alternativa, com viabilidade e consistência, de acolhimento da AA no seio da sua família alargada (materna e paterna), depois de avaliadas todas as abstractas possibilidades nesse sentido.

O que se estende à hipótese – ora sugerida pela recorrente – de FF, tia-avó materna da menor: a mesma, não só denotou sentimentos de revolta perante a progenitora ter abandonado a sua residência, como mostrou resistência e relutância em acolher a sobrinha neta, a par de não dispor de condições para tal, nem dos factos provados resultar que com ela mantenha qualquer ligação psico-afectiva ou que demonstre sincero interesse ou esforço para com ela conviver e estabelecer tais laços.

Assim, não poderia o perigo ou risco que, presentemente, constituiria a reversão da medida anteriormente estabelecida ser aqui omitido, o qual, no interesse (prioritário) da menor, cumpre aos tribunais arredar e não dispensa a medida adoptada pelas instâncias, a única idónea a produzir as condições que se impõem, de imediato, para ultrapassar a situação de facto existente e que faz perigar a segurança, a saúde, a formação e o são desenvolvimento daquela.

Do que flui, igualmente, a improcedência da pretensão ao acolhimento institucional sujeito a revisão, subsidiariamente formulada pela recorrente.

Encontrando-se esgotadas as possibilidades de aplicação de medida de apoio junto da família natural, terá que dar-se prioridade, em prol do superior interesse da AA, à garantia de lhe proporcionar condições para que os seus desenvolvimento e formação da personalidade passem a ocorrer no seio duma outra família, o mais precocemente possível, na medida em que, como ensina a experiência comum, a probabilidade de êxito dessa via diminui com o crescimento da criança.

Acompanhamos, pois, a fundamentação da decisão recorrida:

O interesse da menor requer uma medida «que lhe permita vir a usufruir de uma família, ainda que não a natural, que lhe possibilite uma boa estruturação da personalidade e dê seguimento ao desenvolvimento que já atingiu ao longo da sua institucionalização»; «(…) a AA está institucionalizada desde um ano de idade e … quanto mais tempo se prolongar a sua situação, mais difícil  será conseguir encontrar uma família disposta a adotá-la e a dar lhe todos os cuidados e carinho de que a mesma precisa para se desenvolver saudavelmente. A integração noutra família numa idade mais jovem terá mais possibilidade de ser bem sucedida.»

Em suma, a medida decretada pelas instâncias mostra-se indispensável para, precocemente, salvaguardar com proporcionalidade o perigo que, actualmente, persiste para a menor AA.

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Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar a decisão recorrida.

Sem custas.    

Lisboa, 13/10/2020

Alexandre Reis [com assinatura digital e declarando, nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Juízes Conselheiros que compõem este colectivo]
Lima Gonçalves

Fátima Gomes

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[1] Em sintonia com o art. 9º da Convenção Sobre os Direitos da Criança, também dispõe o art. 37º da CRP que «Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos» e «Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial».

[2] Nos termos do art. 69º da CRP, as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, devendo o Estado assegurar especial protecção às crianças por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal e, de harmonia com tais princípios fundamentais, preceitua art. 3º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei 147/99 de 1/9) que a intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.