Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
956/20.7PARGR.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: HELENA FAZENDA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
ABSOLVIÇÃO CRIME
CONTRAORDENAÇÃO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA DA PENA
CONVOLAÇÃO
Data do Acordão: 04/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Foi o recorrente condenado nos presentes autos pela prática de um crime de detenção de arma proibida, em virtude de ter na sua posse uma “matraca” de fabrico artesanal, constituída por dois pedaços cilíndricos de madeira, cada um com cerca de 25 cm de comprimento, presos com parafusos às extremidades de um pedaço de corrente de ferro (argolas) com cerca de 20 cm de comprimento.

II - Contudo, não resulta da matéria de facto provada a finalidade da detenção da matraca, isto é, que a mesma foi “construída exclusivamente com o fim de ser utilizado como instrumento de agressão”, elemento típico, essencial à incriminação pela al. g) do n.º 1 do art. 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23-02.

III - Em face disso, impõe-se a alteração da qualificação jurídica dos factos, absolvendo-se o recorrente da prática do referido crime e condenando-o pela prática de uma contraordenação prevista nos termos do art. 97.º, n.º 1, por referência ao art. 10.º, da Lei n.º 5/2006, de 23-02.

IV - No que respeita à medida da pena aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes (4 anos e 10 meses de prisão), o acórdão recorrido respeitou as exigências formais de fundamentação em matéria de pena - as exigências de facto, selecionando e discorrendo sobre todos a factualidade que efetivamente relevam para a determinação da sanção, bem como as exigências de direito, enunciando corretamente o quadro legal aplicável, tendo aplicado, de forma adequada, a pena fixada que se situa no patamar necessário às concretas exigências de prevenção geral e especial.

V - Assim, e porque o STJ apenas intervém na pena, alterando-a, quando deteta incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, bem como na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a determinação da sanção, não decidindo como se a sua intervenção se operasse ex novo, mantém-se a referida pena, por adequada, necessária e justa.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. No Processo Comum Coletivo n.º 956/20.... – Juízo Central Cível e Criminal ... – Juiz ..., foi proferido acórdão a condenar AA pela prática de:

i. um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 25º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa, na pena de 4 ano e 10 meses de prisão.

ii. um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, alínea d) da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão.

iii. Efetuado o cúmulo jurídico, condenar AA na pena única de 6 anos de prisão.


2. Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“1 – Objeto do Recurso

O presente recurso tem como objeto a matéria de direito – errada qualificação jurídico-penal dos factos vertidos no ponto 8. e dosimetria das penas parcelares e pena única aplicada em cúmulo jurídico – do acórdão condenatório proferido.

2 – O Recorrente foi condenado na pena de 4 ano e 10 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. p. pelo art. 25.º do D.L. n.º 15/93, de 22 de janeiro, e na pena de 3 anos e 2 meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pela al. d) do art. 86.º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, e

3 – Em cúmulo das penas parcelares acima determinadas, condenou o Recorrente na pena única de 6 anos de prisão.

4 – Ressalvado o respeito devido, não pode o Recorrente conformar-se com tão excessiva e desproporcional condenação.

Vejamos

5 – Da errada qualificação jurídico-penal dos factos vertidos no ponto 8.

Ao integrar a factualidade vertida no ponto 8. no crime de detenção de arma proibida previsto na al. d) do art. 86.º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, o acórdão proferido enferma, nesse concreto, de manifesto erro em matéria de direito.

6 – Com efeito, ao escalonar em função do grau de perigosidade, do fim a que se destinam e do tipo de utilização que lhes é permitido, o legislador classificou as matracas como armas de classe F, fazendo depender a sua detenção de licença de tipo F (Arts. 12.º e 17.º da referida Lei 5/2006).

7 – A detenção de matracas fora das condições legais enunciadas, é punida nos termos do disposto no art. 97.º, e não nos termos da al. d) do art. 86.º.

8 – Todavia, para se apurar da eventual responsabilidade contraordenacional do arguido, necessário seria que se lhe tivesse imputado a detenção das matracas sem que fosse titular da necessária licença, apesar de saber que não as poderia deter fora das condições legalmente previstas.

9 – Sucede que, no caso dos autos, o libelo acusatório e a matéria de facto considerada provada são totalmente omissos quanto a este elemento objetivo do tipo, razão pela qual se impunha a absolvição do arguido.

10 – Da dosimetria das penas aplicadas

Sem prescindir, e para o caso de assim se não entender, sempre se dirá que as penas parcelares e, consequentemente, a pena única de seis anos de prisão aplicada ao Recorrente excederam as necessidades de prevenção geral e especial, prejudicando grandemente a sua ressocialização.

11 – Desde logo, não se vislumbram razões para aplicar ao arguido pena de prisão pela prática do crime de detenção de arma proibida ou, no limite, porque não devia aquela ser substituída por multa ou suspensa na sua execução.

12 – Depois, não se alcança justificação para aplicar ao arguido pena de prisão tão próxima do limite máximo da moldura penal aplicável ao crime de tráfico de menor gravidade.

13 – Deste modo, ao Recorrente deviam ter sido aplicadas penas de dois anos e dez meses de prisão, por referência ao crime de tráfico de menor gravidade, e de 150 dias de multa, à taxa diária de 5€, por referência ao crime de detenção arma proibida

14 – Ao decidir como decidiu, o Tribunal “a quo” fez erradas interpretação e aplicação das normas ínsitas nos arts. 40.º, 70.º, 71.º, 72.º, todos do C.P. e arts. 86.º e 97.º ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser o acórdão recorrido substituído por outro que absolva o arguido recorrente da prática do crime de detenção de arma proibida ou, subsidiariamente, substituído por outro que aplique ao Recorrente as penas de dois anos e dez meses de prisão, pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, e de 150 dias de multa, à taxa diária de 5€, pela prática do crime de detenção arma proibida, por ser de Direito e de elementar.”


3. O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da improcedência, concluindo:

“1. A prova feita em Tribunal foi devidamente ponderada pelo Tribunal recorrido, que aplicou corretamente ao caso a lei aplicável, e encontrou o sancionamento devido, termos em que nenhuma censura merece o douto acórdão.

2. Sempre se dirá que, no caso “sub judice”, ao contrário de que defende o recorrente a descrição do objeto em causa (e se necessário fosse, o exame de fls. 47 e a foto fls. 55) afasta a possibilidade de considerar que se trata de uma matraca, atendendo às dimensões e “dois pedaços cilíndricos de madeira com cerca de 25 cm de cumprimento cada, presos com parafusos às extremidades de um pedaço de corrente em ferro (argolas), com cerca de 20 cm de cumprimento”, bem assim, a dureza do material em que é construído (madeira) também não permite que se considere que se trata de um brinquedo ou objeto destinado ao divertimento pessoal, ou para a prática de uma arte marcial ou atividade ligadas a recriações históricas, por fim, a sua utilização como elemento decorativo também resulta afastada pela natureza do local onde se encontrava, junto à cama do recorrente.

3. Resulta da prova que o engenho fabricado pelo arguido apenas serve como arma de agressão. Pelo que a posse ou detenção do referido objeto ou instrumento visa a utilização como arma de agressão, não sendo necessária a sua utilização efetiva para ser cometido o crime. Consequentemente, praticou o arguido, ora Recorrente o crime que lhe foi imputado, não merecendo censura o acórdão recorrido.

4. Quanto à medida da pena, carece de justificação a pretensão do recorrente, devido ao grau de ilicitude ser elevado, a intensidade do dolo que é acentuada, quanto ao crime de tráfico é ainda de referir que este tipo de crime causa gravíssimos problemas de saúde pública e sociais em geral. Estamos perante um facto típico que tutela o bem jurídico - saúde pública, cujo grau de ilicitude se situa num grau elevado (basta considerar a destruição de famílias devido ao consumo de drogas).

5. A gravidade dos factos ilícitos praticados denota um elevado grau de culpa.

6. O comportamento ilícito do recorrente é sem sombra de dúvidas sentido pela comunidade como sinal de desprezo pela ordem jurídica, fazendo perigar as expectativas dos restantes cidadãos na eficácia do ordenamento jurídico (prevenção geral).

7. As exigências de prevenção geral são relevantes atenta a natureza do ilícito em causa, que nos tempos que correm, dentro dos tipos legais de crimes, é seguramente dos que causa maior repulsa social, face aos malefícios que potencia.

8. A intensidade do dolo - direto -, o modo de execução da atividade delituosa da arguida, relativa ao tráfico de estupefacientes, são circunstâncias que não são suscetíveis de mitigar a responsabilidade do mesmo.

9. Perante este quadro a pretensão do arguido/recorrente no sentido da redução de pena não deve proceder, não devendo ser alterada, já que se situa junto ao limite mínimo da pena, muito aquém do seu meio, e longínqua do limite máximo.

10. Assim, no caso concreto, atendendo a toda a factualidade, entendemos que não se verificam circunstâncias suscetíveis de mitigar a responsabilidade do arguido, concluindo que a pena aplicada é justa e adequada, sendo de manter.

11. Tal pena mostra-se, assim, ajustada não merecendo qualquer censura, pelo que não sendo admissível a pena ser suspensa na sua execução.”


4. No Supremo Tribunal de Justiça a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu desenvolvido parecer no sentido da improcedência do recurso, sufragando a confirmação do acórdão.


5. Não houve resposta ao parecer e, não tendo sido requerida audiência, teve lugar a conferência.


II. Fundamentação

1. O acórdão recorrido, na parte que interessa ao recurso, tem o seguinte teor:

“1. Factos Provados

Com interesse para a causa, provaram-se os seguintes factos:

Da Acusação

1. Entre o início de 2020 e o dia 02/02/2021, o arguido AA dedicou-se, de forma reiterada, à venda de produtos estupefacientes, nomeadamente heroína, a consumidores que o procuraram na sua residência sita na Rua ..., Ribeira ....

2. Com efeito, entre janeiro e março de 2020, na sua residência, o arguido vendeu semanalmente a BB um pacote de heroína pelo preço de 10 €, para consumo deste.

3. Entre outubro e dezembro de 2020 voltou a vender heroína a BB, três vezes por semana, pelo preço de 10 € cada pacote.

4. Nos meses de novembro e de dezembro de 2020, nas indicadas circunstâncias, o arguido vendeu heroína a CC, num número indeterminado de vezes, pelo preço de 5 € ou 10 €, cada pacote, para consumo deste.

5. No início de janeiro de 2021, na sua residência, o arguido AA entregou ao CC um pequeno pacote de heroína, para seu consumo, quando este ali se deslocou para sintonizar a televisão do arguido.

6. Nos dias 31/01/2021 e 01/02/2021, na sua residência, o arguido AA vendeu a DD, para consumo deste, dois pacotes de heroína (um pacote em cada dia) pelo preço de 5 € cada pacote.

7. Entre o final de 2020 e início de 2021, na sua residência, o arguido AA vendeu a EE, para seu consumo, cerca de 10 pacotes de heroína, pelo preço de 5 €/10 €, cada pacote.

8. Acresce que no dia 02/02/2021, pelas 9h45m, o arguido tinha na sua residência, concretamente no interior do guarda-fatos do seu quarto, dois pacotes com heroína (0,076 gramas) e, pendurada na cama, tinha uma “matraca” de fabrico artesanal, constituída por dois pedaços cilíndricos de madeira, cada um com cerca de 25 cm de comprimento, presos com parafusos às extremidades de um pedaço de corrente de ferro (argolas) com cerca de 20 cm de comprimento.

9. No interior de outro quarto tinha dentro de um armário 2.544 gramas de canábis (Fls./Sumid.) e vários pedaços de plástico de onde foram extraídos recortes habitualmente utilizados para dosear heroína e cocaína.

10. Nessas circunstâncias o arguido tinha ainda consigo na sua carteira a quantia de 10 € preveniente da venda de produto estupefaciente.

11. O arguido agiu na prática da factualidade acima descrita de forma livre, voluntária e consciente, detendo e vendendo os mencionados produtos estupefacientes a consumidores, conhecendo as características dos mesmos e sabendo que não tinha autorização para tal.

12. O arguido conhecia as características da referida matraca e sabia que não a podia deter, não obstante não se absteve de agir do modo descrito, detendo aquela arma nas descritas circunstâncias, resultado que quis e logrou alcançar.

13. Sabia ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

14. AA é o quarto de uma fratria de cinco, sendo ele o único elemento masculino. É oriundo de um agregado com parcos recursos financeiros. O pai, carpinteiro de profissão, emigrou para o ... poucos meses antes do nascimento do filho, por forma a melhorar a situação económica do núcleo constituído.

15. Aos dois anos de idade, AA e restante família juntaram-se ao pai, então residente em ..., indo a família, em poucos meses, fixar residência em ....

16. O progenitor apresentava consumo abusivo de bebidas alcoólicas e era uma figura rígida e agressiva para com todos os elementos do agregado.

17. Concluiu, aos dezanove anos de idade, a escolaridade obrigatória no país de acolhimento – 12º Grau – registando algumas retenções de ano e baixo aproveitamento, uma vez que faltava às aulas para ocupar o tempo com o grupo de pares, adolescentes com comportamentos de risco.

18. O desempenho escolar ficou condicionado pelo consumo de estupefacientes (cannabis), iniciado aos catorze anos de idade, tornando-se dependente de cocaína cinco anos mais tarde.

19. Com a saída da escola, integrou o mercado de trabalho, como ajudante de carpinteiro, em empresas ligadas à construção civil, mas sempre sujeito a vínculos laborais precários. Aos vinte e três anos decidiu autonomizar-se do agregado de origem, passando a residir sozinho, não obstante os contactos regulares com a mãe, que lhe continuava a disponibilizar apoio nas lides domésticas (tratamento de roupa, alimentação, limpeza da casa, etc.).

20. Aos 26 anos, estabeleceu o primeiro contacto com o Sistema de Justiça canadiano, vindo a ser condenado em quatro penas de prisão, de curta duração, pela prática de ilícitos relacionados com estupefacientes e crimes estradais.

21. Em 1997, AA veio repatriado, sendo a primeira vez que veio aos ... após ter emigrado com dois anos de idade. Sem qualquer vínculo afetivo à terra natal nem apoio familiar, foi apoiado pelo então CAR – Centro de Apoio ao Repatriado, e pela ... – ..., que lhe disponibilizaram alojamento e inserção laboral, na área da carpintaria.

22. Decorridos poucos meses, os pais vieram a esta ... e adquiriram moradia, onde AA passou a residir. Com o regresso dos pais ao estrangeiro, passou a acolher outros indivíduos repatriados, com comportamentos marginais, mantendo o consumo de heroína e um estilo de vida desregrado, em função da manutenção da dependência.

23. O seu tempo era ocupado a fazer tatuagens, atividade que, aparentemente, segundo o próprio, o ajudava a custear os consumos diários de heroína. Chegou a dedicar-se à venda de automóveis usados e a serviços de mecânica.

24. Em 1999, submeteu-se a tratamento de desintoxicação na Clínica ..., mas sem resultados positivos.

25. Durante dois anos, viveu, maritalmente, com uma jovem de ... – ..., com quem teve uma filha, atualmente maior de idade.

26. Em novembro de 2002, AA foi preso preventivamente, vindo a sofrer condenações sucessivas em pena de prisão efetiva (20 meses; 6 anos; 2 anos e 4 meses), à ordem de processos judiciais distintos, pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes e de condução de veículo sem habilitação legal.

27. A situação jurídico-penal determinou o termo da pena para 23 de março de 2010, tendo beneficiado da concessão de liberdade condicional a 29 de outubro de 2008.

28. O arguido cumpriu a referida pena de prisão no Estabelecimento Prisional ..., mantendo, ao longo deste período, um comportamento adequado às normas institucionais, pelo que ensaiou, com sucesso, medidas de flexibilização da pena.

29. De regresso a FF, em outubro de 2008, AA fixou residência no concelho ..., na moradia dos pais. Cerca de um mês após a libertação dele, os progenitores vieram aos ..., numa tentativa de o auxiliarem economicamente, regressando o casal ao país de emigração em fevereiro de 2009.

30. Sujeito às obrigações da liberdade condicional, AA apresentou-se com regularidade na Equipa de Reinserção Social. Contudo, revelou-se muito rígido à intervenção e orientação do técnico responsável.

31. Foi detido, preventivamente, a 13 de maio de 2009, ainda decorria o período de liberdade condicional, que, posteriormente, foi revogada.

32. Em liberdade, manteve-se desempregado, obtendo alguns rendimentos com a realização de tatuagens, ocupando o tempo com o mesmo grupo de pares do passado, constituído por indivíduos ligados ao mundo da criminalidade.

33. Ainda antes da prisão preventiva, sofreu acidente de viação, que lhe deixou algumas sequelas num dos membros inferiores, sequelas a que atribuiu as recaídas nos consumos, numa tentativa de colmatar as dores, cuja medicação prescrita pelo ortopedista não surtia, na ótica do arguido, efeito analgésico.

34. Na comunidade, AA tinha conotação social negativa, associada ao universo da toxicodependência e ao estereótipo do repatriamento. É tido ainda como agressivo, de difícil trato, sendo pouco desejado no meio.

35. Novamente condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, iniciou cumprimento da pena 24/02/2011, tendo sido libertado condicionalmente a 02/05/2019.

36. Requereu o Rendimento Social de Inserção, vindo também a ser apoiado pela cantina social, com refeição diária e foram-lhe prestadas orientações pela assistente social da zona de residência no sentido de requerer pensão de invalidez.

37. Também em maio de 2019 foi solicitada a intervenção da ... (Associação ...) no sentido de AA realizar regular e inopinadamente testes de despiste aos consumos de estupefacientes, o que se verificou entre maio de 2019 e fevereiro de 2020, vindo a ... a manter o cancelamento dos testes em grande parte do ano de 2020 e até março de 2021, devido à pandemia Covid-19. Em todos os testes que realizou AA apresentou sempre resultados negativos a todas as substâncias analisadas.

38. Pela mesma Associação foi também facultada intervenção sócio laboral com vista a uma eventual integração do arguido em atividade ocupacional, que veio a integrar em 06 de agosto de 2019, na Junta de Freguesia ... – Ribeira .... Dois dias depois, abandonou a atividade, alegadamente devido aos problemas de saúde suprarreferidos.

39. Já em 2020, perante alguma estabilidade do quadro de saúde, AA voltou a solicitar ocupação junto da ..., mas não lhe foi conseguida qualquer vaga junto de entidades públicas locais na área de residência.

40. AA revela um perfil antissocial, estabelecendo relações privilegiadas com outros delinquentes de quem recebe e, aparentemente, transmite influências perniciosas e indutoras da prática de crimes.

41. Apresenta também limitações ao nível das competências pessoais e sociais, cujo estilo vivencial ficou condicionado pela ausência de uma figura normativa de referência e por uma longa carreira de consumos, situação que lhe limita, desde muito novo, a capacidade de se integrar nos padrões formais de sociabilidade.

42. Em meio prisional, não se encontra integrado em qualquer programa terapêutico, não realizou testes toxicológicos internos, está inativo e não regista infrações disciplinares.

43. Com antecedentes criminais no país de acolhimento e de origem, AA revela acentuadas dificuldades em manter um percurso vivencial socialmente enquadrado e em inserir-se em estruturas formais de socialização, situação que se agravou com o repatriamento.

44. Estes fatores, associados a um fraco controlo dos impulsos, à tendência em mostrar-se hostil e à reduzida abertura que evidencia para reexaminar as respetivas condutas, crenças e valores pessoais, condicionam uma perspetiva favorável à futura reinserção social.

45. Já foi julgado e condenado:

i. em 15/09/1998, pela prática em 15/09/98, do crime de condução sem habilitação legal, na pena de 30 dias de multa, já declarada extinta (PCS 116/98, do extinto Tribunal Judicial ...);

ii. em 13/08/2001, pela prática em 23/07/2001, dos crimes de condução perigosa, condução sem habilitação legal, detenção de armas proibidas e tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 3 meses de prisão, suspensa por dois anos, já declarada extinta (PCS 330/01...., do extinto Tribunal Judicial ...);

iii. a 28/02/2002, pela prática em 01/10/1999, dos crimes de tráfico de menor gravidade e de apropriação de coisa achada, nas penas de 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa por igual período, e 60 dias de multa, já declaradas extintas (PCS 887/99...., do extinto ... Juízo do Tribunal Judicial ...);

iv. em cúmulo jurídico na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão (processo 80/01.... do extinto ... Juízo do Tribunal Judicial ...), já declarada extinta;

v. em cúmulo jurídico na pena única de 6 anos de prisão (processo 363/02.... do extinto ... Juízo do Tribunal Judicial ...), já declarada extinta;

vi. a 07/07/2006, pela prática, a 22/10/2004, do crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 20 meses de prisão (processo 261/04.... do extinto ... Juízo do Tribunal Judicial ...);

vii. a 28/10/2020, pela prática, a 22/01/2009, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão (processo 20/09...., do extinto ... Juízo do Tribunal Judicial ...), tendo sido concedida liberdade condicional a partir de 02/05/2019 até 03/04/2021.


“1. Enquadramento Jurídico

(…)

Do crime de detenção de arma proibida

O arguido vem ainda acusado da prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 3º, nº2, alínea g) e 86º, alínea d) da Lei nº5/2006, de 23 de fevereiro.

Este tipo legal de crime tutela de forma mediata e preventiva da ordem e segurança pública, com a intenção de evitar toda a atividade idónea a perturbar a convivência social pacífica e especialmente obstar ao cometimento de crimes contra a vida e a integridade física. São crimes com objeto de agressão indeterminado, caracterizados a partir do meio da agressão criadora de perigo, estribados, em sede de tipo de ilícito objetivo, no conceito de arma proibida.

Dispõe o mencionado artigo 86º, alínea d) que quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo: d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, exceto os fogo-de-artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projétil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.

Por seu turno, dispõe a alínea g) do nº2 do artigo 3º que são armas da classe A quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, não tendo aqui aplicação a alínea a) do nº8 do artigo 3º uma vez que não estamos perante umas matracas em sentido próprio, mas perante um instrumento construído artesanalmente pelo arguido, e que se assemelha com umas matracas, com o fim de ser utilizado como arma de agressão.

Em face do exposto, será o arguido condenado também pela prática deste crime.


2. Medida da Pena

Cumpre determinar a medida da pena a aplicar ao arguido, uma vez que a todo o crime corresponde uma reação penal, pela qual a comunidade expressa o seu juízo de desvalor sobre os factos e a conduta realizada pelo agente.

A determinação definitiva da pena é alcançada através de um procedimento que decorre em três fases distintas: na primeira investiga-se e determina-se a moldura penal aplicável ao caso (medida abstrata da pena); na segunda investiga-se e determina-se a medida concreta (dita também individual ou judicial); na terceira escolhe-se (de entre as penas postas à disposição do legislador e através dos mecanismos das penas alternativas ou penas de substituição) a espécie de pena que, efetivamente, deve ser cumprida (Figueiredo Dias, Direito Penal – As consequências jurídicas do crime, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 229).

Vejamos, em concreto, estas diversas etapas, para o crime praticado pelos arguidos.


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O crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto punido no artigo 25º, alínea a), do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

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O crime de detenção de arma proibida é punido com pena de prisão de 1 a 4 anos ou com pena de multa de 10 a 480 dias [artigos 41º e 47º ambos do Código Penal e artigo 86º, nº 1, alínea d) do Regime Jurídico das Armas e Munições].

*


Uma vez que um dos mencionados ilícitos admitem, em alternativa, pena principal de prisão e de multa, importa, em primeiro lugar, proceder à escolha do tipo de pena principal a aplicar aos arguidos para seguidamente determinar a medida concreta da pena escolhida.

Em conformidade com o disposto no artigo 70º do Código Penal, a escolha da pena deve ser feita dando preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta se mostre suficiente para promover a ressocialização do delinquente e satisfaça a proteção dos bens jurídicos (artigo 40º do Código Penal), sendo alheias, neste momento, considerações relativas à culpa que apenas funciona como limite (e não como fundamento) no momento da determinação da medida concreta da pena já escolhida.

A aplicação de penas visa, por um lado, reafirmar na comunidade a manutenção da validade das normas violadas, repondo a confiança dos cidadãos na validade e vigência da norma violada sempre que a mesma tenha sido abalada pela prática de um crime (prevenção geral positiva) e, por outro, a reintegração do agente na sociedade através da «prevenção da reincidência» (prevenção especial positiva).

O Tribunal dará preferência à pena não privativa da liberdade a não ser que por razões ligadas à necessidade de ressocialização da arguida ou à defesa da ordem jurídica o desaconselhem.

No caso em análise, do ponto de vista das exigências de prevenção geral, há que ter em consideração a natureza e a relevância dos bens jurídicos protegidos pelo tipo legal de crime em análise, manutenção da ordem e segurança pública, sendo acentuadas as exigências de prevenção geral no sentido de fazerem apelo a uma maior necessidade de sancionamento para que se restabeleça a confiança, validade e eficácia na norma jurídico-penal violada, sendo ainda premente uma eficaz proteção e tutela do bem jurídico violado.

No que concerne às exigências de prevenção especial ou individual, haverá que ter em consideração o longo rol de antecedentes criminais do arguido (pela prática de diversos crimes, destacando-se o tráfico), o que revela uma personalidade avessa ao direito e pouco permeável às normas, elevando a um nível muito alto as exigências de prevenção especial, persistindo assim a necessidade de prevenir o cometimento de mais crimes e de os fazer interiorizar, de vez, o desvalor das suas condutas.

Assim, nos termos expressamente previstos pelo artigo 70º do Código Penal, o Tribunal opta pela aplicação de uma pena privativa da liberdade ao arguido, uma vez que se mostra evidente que a pena de multa não realiza de forma adequada e suficiente a proteção dos bens jurídicos e a reintegração dos agentes na sociedade (artigo 40º do Código Penal).


*


Importa, agora, determinar as medidas concretas das penas e que serão fixadas dentro da respetiva moldura penal abstrata.

Determinar-se-ão as penas de prisão que se mostrem adequadas ao comportamento do arguido, atendendo-se, nos termos do artigo 71º, nº 1 do Código Penal, à culpa do agente e às exigências de prevenção, tendo em atenção que a medida da pena jamais pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, nº 2 do Código Penal).

A prevenção geral positiva está incumbida de fornecer o limite mínimo abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar e a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva, cabendo à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, atendendo, ainda, às circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao agente na medida em que se mostrem relevantes, como preceitua o artigo 71º, nº 2 do Código Penal, encontrando-se assim a pena adequada e justa.

No caso em análise, as exigências de prevenção geral são extremamente elevadas, devido à frequência com que estes tipos de crimes são praticados. Especificamente quanto ao tráfico, este crime continua a ser um dos crimes mais frequentes no nosso país. Acresce referir que, em particular neste arquipélago, o tráfico de estupefacientes assume valores preocupantes, sendo do conhecimento geral da população esta realidade. Dada a grande incidência deste tipo de crime, como são expressão os dados referidos, são acentuadas as exigências de prevenção geral no sentido de fazerem apelo a uma maior necessidade de sancionamento para que se restabeleça a confiança, validade e eficácia na norma jurídico-penal violada, sendo ainda premente uma eficaz proteção e tutela do bem jurídico violado.

No que concerne às exigências de prevenção especial ou individual, há que atender ao grau de ilicitude das condutas, que, para além do que já é valorado pelo tipo legal de crime e respetiva moldura abstrata, é acentuado em face da potencialidade danosa da heroína, suscetível de lesar a saúde de número indeterminado de consumidores. Quanto à intensidade da culpa, a mesma é elevada, porquanto o arguido agiu com dolo direito relativamente a todas as condutas e durante o período da sua liberdade condicional. Não podemos ignorar, ainda, o seu vasto rol de antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza (inclusive pelo crime de detenção de arma proibida). A favor do arguido, nada milita, sendo que não demonstrou o mínimo arrependimento pelos factos praticados.

Pelo exposto, o Tribunal decide aplicar as seguintes penas:

 Pela prática do crime de tráfico: 4 anos e 10 meses de prisão;

 Pela prática do crime de detenção de arma proibida: 3 anos e 2 meses de prisão.


*


Cúmulo jurídico

Verificando-se um concurso real e efetivo de infrações, a punição deve realizar-se de acordo com o disposto no artigo 77º do Código Penal.

Nos termos do nº 2 da norma acima referida, a pena única deverá ter como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos três crimes, a saber, 9 anos de prisão. Já o limite mínimo das penas corresponderá à mais elevada das penas concretamente aplicadas a todos os crimes (4 anos e 19 meses de prisão).

Dentro desta moldura, há também que atender aos factos e à personalidade do agente, apreciados conjuntamente (artigo 77º, nº 1, parte final do Código Penal), pelo que, realizando uma análise genérica e consequencial de toda a factualidade, de modo a fazer corresponder a punição aos factos e às exigências pessoais e sociais que a sua prática suscitou, com o máximo rigor e acerto, e recorrendo ao que já se escreveu aquando das exigências de prevenção geral e especial, demonstra-se adequada a fixação da pena única do concurso em 6 anos de prisão.”


2. O objeto do recurso do arguido, atentas as conclusões da respetiva motivação que delimitam e fixam o objeto do recurso, prende-se com as seguintes questões:


2.1 – Matéria respeitante ao enquadramento jurídico dos factos constantes do ponto 8, da matéria provada, com referência ao seu ponto 12, como crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, alínea d) da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão.

2.2 – Matéria relativa à determinação da medida das penas parcelares e da pena única aplicadas


3. Como decorre do artigo 412º, nº 1 do CPP, as conclusões da motivação de recurso constituem uma súmula, lógica e sintética, dos fundamentos das razões jurídicas com que se pretende obter o provimento do recurso (razões do pedido).


4. No que se refere à matéria de facto o recorrente pode agora, em face da nova redação do art.º 432º n.º 1 al. ª c) do CPP, invocar como fundamento do recurso os vícios enumerados nas alíneas a), b) e c), do n.º 2 e as nulidades insanáveis a que se refere o n.º 3 do artigo 410º, nº 2, do CPP.


5. Relativamente aos vícios a que alude o artigo 410º, nº2, do CPP, têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum.


6. Porém, no caso dos autos, analisando a motivação do recorrente e as respetivas conclusões, verifica-se que o arguido não alega vícios da decisão nem nulidades insanáveis nos termos do artigo 410º, nº2, do CPP.


7. Por outro lado, analisando o acórdão recorrido por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, não se vislumbram quaisquer dos vícios a que alude o citado artigo 410º, nº2, do CPP.


8. Assim sendo, os factos dados como provados pelo Tribunal Coletivo têm-se por assentes, não podendo este Tribunal proceder à sua alteração.


Vejamos então:

9. Relativamente ao enquadramento jurídico-penal, foi o arguido condenado no acórdão recorrido, pela prática do citado crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, alínea d) da Lei nº 5/2006, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão, tendo por base a seguinte factualidade:

“8. Acresce que no dia 02/02/2021, pelas 9h45m, o arguido tinha na sua residência, concretamente no interior do guarda-fatos do seu quarto, dois pacotes com heroína (0,076 gramas) e, pendurada na cama, tinha uma “matraca” de fabrico artesanal, constituída por dois pedaços cilíndricos de madeira, cada um com cerca de 25 cm de comprimento, presos com parafusos às extremidades de um pedaço de corrente de ferro (argolas) com cerca de 20 cm de comprimento.

.(…)

12. O arguido conhecia as características da referida matraca e sabia que não a podia deter, não obstante não se absteve de agir do modo descrito, detendo aquela arma nas descritas circunstâncias, resultado que quis e logrou alcançar.”


10. Dispõe o artigo 86º, nº 1, alínea d), da mencionada lei 5/2006, na sua redação atualizada, sob a epígrafe “Detenção de arma proibida e crime cometido com arma”, que:

“Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo

(:…)

d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, exceto os fogos‐de‐artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projétil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.”

 

11. Ora, da matéria de facto provada e inserta nos pontos 8 e 12 do acórdão recorrido, resulta que, nas ali aludidas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido detinha uma matraca, descrevendo-se este instrumento através das caraterísticas de uma matraca (que o arguido conhecia –ponto 12), tal como é comumente definida.


12. Daí a impossibilidade, contrariamente ao afirmado no acórdão, de se aceitar que “não estamos perante umas matracas em sentido próprio, mas perante um instrumento construído artesanalmente pelo arguido, e que se assemelha com umas matracas, com o fim de ser utilizado como arma de agressão”, sempre se salientando que não é, certamente, pelo facto de ser de construção artesanal que deixa de ser matraca, passando, antes, a assemelhar-se com uma matraca.


13. Sem prejuízo, não resulta da matéria de facto provada, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, a finalidade da detenção da matraca, isto é, que foi “construída exclusivamente com o fim de ser utilizado como instrumento de agressão”, elemento típico, essencial à incriminação pela al. g) do n.º 1 do citado artigo 86.º (cf. ainda art.º 3.º nº 2, alínea g), relativamente a arma da classe A.


14. Assim sendo, perante a matéria de facto provada nos pontos 8 e 12 do acórdão recorrido, consideradas as exigências de interpretação restritiva das normas incriminadoras, há-de concluir-se que a matéria de facto provada não suporta que se conclua ter o arguido do cometido o crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo citado artigo 86º, nº 1, alínea g) da citada lei das armas. Impondo-se, consequentemente, a sua absolvição pela prática do referido crime.

15. Excluída a punição do arguido pelo crime de detenção de arma proibida, impõe-se ponderar se a matéria de facto provada, integra, como o mesmo alega, a contraordenação que o próprio indica. Adianta-se que assim é.


16. Efetivamente, daqueles dois pontos da decisão em matéria de facto, resulta que o arguido estava na posse de uma arma da classe F (número 8, alínea a. do artigo 3º da citada Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro - são armas da classe F  a) As matracas, sabres e outras armas brancas tradicionalmente destinadas às artes marciais), cuja detenção não lhe estava autorizada (cf. artigo 10º), mediante obtenção de licença conforme artigo 17º.


17. Conclui-se, portanto que, com aquela factualidade, incorreu o arguido em responsabilidade contraordenacional nos termos do disposto no artigo 97º nº 1, da citada lei, punida com uma coima de (euro) 400 a (euro) 4000.


18. Considerando que o arguido conhecia as características da referida matraca, sabendo que a não podia deter nas aludidas circunstâncias não se abstendo, porém, de o fazer, bem como as demais circunstâncias relativas à culpa e à sua situação económica, têm-se por adequada a aplicação da coima de 800 (euros) ao arguido recorrente pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 97º nº 1 da citada Lei 5/2006, de 23 de fevereiro (cf. ainda artigo 18º nº 1 do Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro, aplicável ex vi artigo 105º da Lei 5/2006).


19. Assim sendo, pugnando o recorrente, na respetiva alegação pela alteração da condenação do referido crime para a indicada contraordenação, entende-se ser de acolher a peticionada convolação pelo que, dispensando-se qualquer notificação (cf. artigos 358º e 424º n.º 3, ambos do CPP), procede o recurso nesta parte, impondo-se, consequentemente, condenar o arguido pela contraordenação p. e p. pelo art.º 97º n.º 1 da Lei n.º 5/2006.


20. Pugna o arguido recorrente ainda pela redução das penas aplicadas para:

i. dois anos e dez meses de prisão, pela prática do crime de tráfico de menor gravidade,

ii. 150 dias de multa, à taxa diária de 5€, pela prática do crime de detenção arma proibida, sendo que nesta parte e, como demonstrado, encontra-se a questão apreciada, nada mais se impondo acrescentar.

21. Cingindo-se agora a apreciação à pena aplicada pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, pugnando o recorrente pela pena de dois anos e dez meses de prisão,  destaca, para tal,  as circunstâncias de cuja valoração resultaria um excesso de pena aplicada, destacando a circunstância de ter 56 anos de idade, revelar um historial de toxicodependência desde tenra idade, o período de tempo a que se dedicou à traficância, o modo de execução do crime (venda através de contacto direto a reduzido número de consumidores), a qualidade e a quantidade do produto estupefaciente apreendido (parte do qual destinava ao seu consumo) o que revela, em seu entender, grau da ilicitude mediano, (…)   pelo que, defende, a pena parcelar aplicada excede  as necessidades de prevenção geral e especial, prejudicando a possibilidade da sua reinserção.


Vejamos se lhe assiste razão.

22. No que se refere à decisão sobre a pena, mormente a sua medida, o Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado que, também aqui, os recursos não são novos julgamentos da causa, mas unicamente remédios jurídicos, pelo que em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.


23. Tal significa que o Supremo Tribunal de Justiça intervém na pena, alterando-a, quando deteta incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, bem como na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a determinação da sanção.


24. Não decide como se a sua intervenção se operasse ex novo, isto é, como se inexistisse uma decisão de primeira instância.


25. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.


26. A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respetivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos fatores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”[1]


27. Dentro desta margem de atuação e, sublinha-se na parte relativa à pena de 4 anos e 10 meses de prisão aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, constata-se que o acórdão recorrido respeitou as exigências formais de fundamentação em matéria de pena - as exigências de facto, selecionando e discorrendo sobre todos a factualidade que efetivamente relevam para a determinação da sanção, bem como as exigências de direito, enunciando corretamente o quadro legal aplicável, tendo aplicado, de forma adequada, a pena fixada que se situa no patamar necessário às concretas exigências de prevenção geral e especial.


28. No pensamento de Figueiredo Dias[2] , acompanhado por Anabela Rodrigues[3], a pena prossegue finalidades exclusivamente preventivas.


29. Efetivamente, “Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais[4].


30. A prevenção geral positiva ou de integração apresenta-se como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, não podendo a prevenção especial positiva pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, tendo a culpa como limite.


31. Efetivamente, nas palavras de Souto de Moura[5],  “sempre que o procedimento adoptado se tenha mostrado correcto, se tenham eleito os factores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparo, sempre que nada disto seja objecto de crítica, então o «quantum» concreto de pena já escolhido deve manter-se intocável”.


32. Como se sabe, na determinação de tal pena, o tribunal, para além de lançar mão do enunciado critério geral a que se reporta o art.º 71º e 40º do Código Penal (por via da culpa), necessário se torna a consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, o chamado critério especial, em conformidade com o artigo 77º, n º 1 do mesmo diploma legal.


33. Como refere o acórdão de 06.05.2004, do STJ[6], “O que interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime, ou é antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido”.


34. Partindo dos princípios enunciados e da jurisprudência dominante invocada, olhando o acórdão, constata-se que o tribunal seguiu os passos legais de ponderação, identificando, de forma rigorosa, as exigências de prevenção geral e especial.


35. Efetivamente, quanto ao crime de tráfico de estupefacientes, concluiu serem “extremamente elevadas” as exigências de prevenção geral, nomeadamente que assume valores preocupantes no ....


36. Tendo considerado, de forma expressa, que, quanto às necessidades de prevenção especial:  “há que atender ao grau de ilicitude das condutas, que, para além do que já é valorado pelo tipo legal de crime e respetiva moldura abstrata, é acentuado em face da potencialidade danosa da heroína, suscetível de lesar a saúde de número indeterminado de consumidores. Quanto à intensidade da culpa, a mesma é elevada, porquanto o arguido agiu com dolo direito relativamente a todas as condutas e durante o período da sua liberdade condicional”.


37. Considerou, igualmente, “o longo rol de antecedentes criminais do arguido (pela prática de diversos crimes, destacando-se o tráfico de substâncias estupefacientes), o que revela uma personalidade avessa ao direito e pouco permeável às normas, elevando a um nível muito alto as exigências de prevenção especial, persistindo assim a necessidade de prevenir o cometimento de mais crimes e de o fazer interiorizar, de vez, o desvalor das suas condutas”;


38. Em concreto, resulta da matéria provada que o recorrente apresenta um longo rol de contactos com o sistema de justiça, nomeadamente:

i. Aos 26 anos, estabeleceu o primeiro contacto com o sistema de justiça canadiano, vindo a ser condenado em quatro penas de prisão, de curta duração, pela prática de ilícitos relacionados com estupefacientes e crimes estradais;

ii. Em 1997 veio repatriado, sendo a primeira vez que veio aos ... após ter emigrado com dois anos de idade;

iii. Em novembro de 2002 foi preso preventivamente, vindo a sofrer condenações sucessivas em pena de prisão efetiva (20 meses; 6 anos; 2 anos e 4 meses), à ordem de processos judiciais distintos, pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes e de condução de veículo sem habilitação legal;

iv. A situação jurídico-penal determinou o termo da pena para 23 de março de 2010, tendo beneficiado da concessão de liberdade condicional a 29 de outubro de 2008;

v. De regresso a FF, em outubro de 2008, foi detido, preventivamente, a 13 de maio de 2009, ainda decorria o período de liberdade condicional, que, posteriormente, foi revogada;

vi. Novamente condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, iniciou cumprimento da pena 24/02/2011, tendo sido libertado condicionalmente a 02/05/2019;

 vii. Os factos pelos quais foi condenado nos autos em avaliação, na parte relativa ao crime de tráfico de substâncias estupefacientes, ocorreram entre o início de 2020 e o dia 02/02/2021, período durante o qual se dedicou, de forma reiterada, à venda de produtos estupefacientes, nomeadamente heroína, a consumidores que o procuraram na sua residência sita na Rua ..., Ribeira ....


39. Como igualmente consta do acórdão recorrido “a favor do arguido, nada milita, sendo que não demonstrou o mínimo arrependimento pelos factos praticados” e “(…) revela um perfil antissocial, estabelecendo relações privilegiadas com outros delinquentes de quem recebe e, aparentemente, transmite influências perniciosas e indutoras da prática de crimes”.


40. Resulta, portanto, que o tribunal recorrido fez uma análise cuidadosa e objetiva das circunstâncias que rodearam a prática dos factos, do grau de culpa manifestado, da ilicitude e das exigências de prevenção especial e geral que no caso se justificam, revelando-se a pena aplicada ao recorrente - de 4 ano e 10 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 25º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa, adequada e proporcional à gravidade dos factos e à perigosidade do agente e respeitadora dos parâmetros decorrentes dos critérios legais fixados nos artigos 40º e 71º, do Código Penal.


41. Aliás, sempre se mencionará que o recorrente acaba por ter sido beneficiado, na medida em que acabou por não ser condenado, como reincidente pelo crime de tráfico de menor gravidade, sendo que se encontrava em liberdade condicional quando praticou os factos provados nos autos, o que revela que a sua reinserção social falhou e acentua as necessidades de prevenção especial.

42. Enfim, ponderando, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, bem como as exigências de prevenção geral - trata-se de um crime muito comum, devendo procurar devolver-se à comunidade a confiança no bem jurídico violado, e de prevenção especial, que assume particular relevo neste caso já que a conduta do arguido impõe uma necessidade de advertência individual que, conforme demonstrado, sofreu várias condenações por crimes da mesma natureza, tendo em atenção que a medida concreta da pena, assenta na «moldura de prevenção», cujo limite máximo é constituído pelo ponto ideal da proteção dos bens jurídicos e o limite mínimo aquele que ainda é compatível com essa mesma proteção, que a pena não pode, contudo, exceder a medida da culpa, e que dentro da moldura da prevenção geral são as necessidades de prevenção especial que determinam o quantum da pena a aplicar», dentro da moldura penal prevista para o crime de tráfico de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 25º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa tem-se por adequada, necessária e justa a aplicada pena de 4 ano e 10 meses de prisão.


43. Logo, assim sendo, qualquer redução da pena nos termos pretendidos pelo recorrente iria comprometer as finalidades da punição, quer ao nível da prevenção geral, quer da prevenção especial.

           

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:

a) Absolver o arguido AA da prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, alínea d) da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro.

b) Por alteração da qualificação jurídica dos factos provados nos pontos 8 e 12 da decisão em matéria de facto e tal como vinha peticionado pelo recorrente, condena-se o arguido AA pela prática de uma contraordenação, prevista e punida pelo artigo 97º nº 1, por referência ao disposto nos artigos. 3º n.º 8 al. ª a), 10º e 17º, todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na coima de 800€

c) Negar, provimento ao recurso e manter o acórdão recorrido e a condenação do recorrente pela prática de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 25º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa, na pena de 4 ano e 10 meses de prisão.

d) Mantendo, no mais, a decisão recorrida.

Sem tributação.


Lisboa, 27 de abril de 2022


Maria Helena Fazenda (relatora)

José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Seção)

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[1] Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197
[2] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005
[3] A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995
[4] Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral I, Coimbra Editora, 2004, p.81
[5] A Jurisprudência do STJ Sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena, www.stj.pt/ficheiros/estudos/soutomoura, 2010
[6] In CJ 2004, II, p. 191