Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ILÍDIO SACARRÃO MARTINS | ||
| Descritores: | RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL ATROPELAMENTO MENOR CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO DANOS FUTUROS DANO BIOLÓGICO DANOS PATRIMONIAIS DANOS NÃO PATRIMONIAIS EQUIDADE RESPONSABILIDADE PELO RISCO CULPA DO LESADO ACIDENTE DE VIAÇÃO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME O DIREITO EUROPEU | ||
| Data do Acordão: | 03/28/2019 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA | ||
| Área Temática: | DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS /RESPONSABILIDADE PELO RISCO / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO. | ||
| Doutrina: | - Américo Marcelino, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 8.ª ed. revista e ampliada, p. 309 e ss.; - Ana Prata, Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela, Estudos em comemoração dos cinco anos da Fac. de Direito da Univ. do Porto, 2001, p. 345 e ss.; - Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 7.ª ed., p. 690 e 691; - Calvão da Silva, RLJ, Ano 137º, 2007, p. 52 e 53, anotação ao acórdão do STJ de 04-10-2007; - J. C. Brandão Proença, Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado: a lógica do “tudo ou nada”?, Cadernos de Direito Privado, n.º 7 Julho/Setembro 2004, p. 25 e 26 ; A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, Liv. Almedina, Coimbra, 1997., p. 275 e 276 ; Direito das Obrigações, 10.ª ed. reelaborada, Almedina, Setembro/2006, p. 639; - Jorge Sinde Monteiro, Responsabilidade civil, RDEc., Ano IV, n.º 2, Jul./Dez. 1978, p. 313 e ss. ; Responsabilidade por culpa, responsabilidade objectiva, seguro de acidentes, DEc., Ano V, n.º 2, Jul./Dez. 1979, p. 317 e ss. ; Ano VI/VII, 1980/1981, p. 123 e ss.; - José Carlos Moitinho de Almeida, Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, in www.stj.pt; - Maria da Graça Trigo, Direito e Justiça, RFDUCP, Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, Volume II, 2015, p. 473 ; Adopção do conceito de Dano Biológico pelo Direito Português, ROA, Ano 72, Jan/Mar.2012, p. 177; - Sinde Monteiro, Estudos sobre a Responsabilidade Civil, p. 248. | ||
| Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 496.º, N.º 3, 503.º, 505.º, 566.º, N.º 3 E 570.º. CÓDIGO DA ESTRADA (CEST): - ARTIGOS 24.º, N.º 1, 25.º, N.º 1, 27.º, 38.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA A), 99.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEAS A) E B) E 101.º, N.º 1. SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL, APROVADO PELO DL N.º 291/2007, DE 21 DE AGOSTO: - ARTIGO 11.º, N.º 2. | ||
| Referências Internacionais: | DIRECTIVA N.º 2005/14/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 11 DE MAIO, QUE ALTERA AS DIRECTIVAS NºS72/166/CEE; 88/357/CEE E 90/232/CEE DO CONSELHO E A DIRECTIVA 2000/26/CE: - ARTIGO 5.º. | ||
| Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 01-03-2001, IN RLJ ANO 134º, P. 112 E SS.; - DE 04-10-2007, PROCESSO N.º 07B1710, IN WWW.DGSI.PT; - DE 06-05-1999, PROCESSO N.º 99B222; - DE 06-12-2018; - DE 10-05-2008, PROCESSO N.º 08B1343; - DE 10-07-2008, PROCESSO N.º 08B2101; - DE 10-10-2012, PROCESSO N.º 632/2001.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 19-05-2009; - DE 20-05-2010, PROCESSO N.º 103/2022.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 26-01-2017, PROCESSO N.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT. | ||
| Sumário : | I - O texto do artigo 505º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. II - Ao concurso é aplicável o disposto no artigo 570º do Código Civil. III - No caso dos autos, não pode concluir-se que o acidente é unicamente ou exclusivamente imputável à menor, que encetou a travessia da rua em passo de corrida, e que o veículo automóvel foi para ele indiferente, isto é, que a sua típica aptidão para a criação de riscos não contribuiu para a eclosão do acidente. IV – O direito comunitário, apresentando-se como garante de uma maior protecção dos lesados (alargando o âmbito da responsabilidade pelo risco), veio – em várias directivas – consagrar a protecção dos interesses dos sinistrados, vítimas de acidentes de viação, numa sociedade como a nossa em que, o excesso de veículos (estacionados ou em circulação) criou desequilíbrios ambientais, limitou o espaço pietonal e aumentou potencialmente a sinistralidade. V - As disposições das directivas comunitárias em matéria de responsabilidade civil e seguro automóvel obrigatório – nomeadamente da Directiva n.º 2005/14/CE de 11-05 devem estar presentes em sede de interpretação do direito nacional e nas soluções a dar na aplicação desse direito, razão pela qual não é compatível – com o direito comunitário – uma interpretação do artº 505º do CC da qual resulte que a simples culpa ou mera contribuição do lesado para a consecução do dano exclua a responsabilidade pelo risco, prevista no artº 503º do Código Civil. VI - A fixação da indemnização por danos futuros, deve calcular-se segundo critérios de verosimilhança, ou de probabilidade, de acordo com o que, no caso concreto, poderá vir a acontecer; e se não puder, ainda assim, apurar-se o seu exacto valor, deve o tribunal julgar segundo a equidade, nos termos enunciados no artigo 566° nº 3, do Código Civil. VII - O dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/ danos não patrimoniais. VIII - O tratamento do conceito de dano biológico teve todavia a vantagem de permitir percepcionar a existência de componentes do dano real habitualmente esquecidos para efeitos indemnizatórios. Mas damos como certo que apenas danos de consequências não patrimoniais se podem presumir como sendo comuns a todas as pessoas que sofram o mesmo tipo de lesão psico-somática. IX - Os danos não patrimoniais têm uma dimensão que não obedece aos critérios correntes de avaliação. O artigo 496º nº 1 limita-se a fornecer um critério com alguma elasticidade, mas inspirado numa razão objectiva, sobre a qual há-de assentar o juízo de equidade. X - Nessa perspectiva, só são atendíveis os danos não patrimoniais que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I - RELATÓRIO AA, menor, representada pelos seus pais ... e ..., intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário contra Companhia de Seguros BB SA, e Companhia de Seguros CC SA, pedindo a condenação destas no pagamento de € 195.440,65 acrescidos de juros moratórios à taxa legal em vigor, taxa de justiça e procuradoria condigna. Alegou, em síntese, que no dia 21 de Setembro de 2011, como habitualmente, utilizava um transporte colectivo de passageiros e, nesse dia, o condutor conduzia o veículo de matrícula ...-UX, na Estrada Nacional nº 1, ao Km 105,18, no sentido Norte-Sul, imobilizou o veículo na berma por forma a permitir a saída de passageiros. A autora abandonou o veículo pela porta lateral dianteira, contornou o autocarro pela frente com intenção de atravessar a estrada nacional para se dirigir ao Atlantic Retail Park de .... Antes de proceder à travessia da estrada, olhou para ambos os sentidos de trânsito, verificando a possibilidade de o fazer com segurança. Após ter atravessado a via destinada ao sentido Norte-Sul e encontrando-se no eixo da via na área da zebra separadora das vias de trânsito surge, em excesso de velocidade o veículo de matrícula ...-EB, que ultrapassava o autocarro, utilizando para o efeito a área da zebra. O condutor deste veículo, quando se apercebeu da autora, tentou evitar a colisão accionando os travões do veículo, mas não conseguiu evitar o embate na autora. Em consequência deste acidente sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais para ressarcimento dos quais peticiona uma indemnização. A ré BB contestou, referindo, em síntese que aceita a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo EB. No mais alega que o veículo de transporte colectivo de passageiros UX estava parado na berma existente no sentido Norte-Sul, ligeiramente oblíquo, com a sua frente lateral esquerda ocupando cerca de 7 cm da via e fora da zona destinada à paragem de transportes colectivos de passageiros, a qual existe a cerca de 135 metros do local, no sentido Norte-Sul. Mais alega que o veículo EB circulava a uma velocidade de cerca de 40 Km/hora e quando se encontrava a ultrapassar o veículo UX, estacionado na berma, percorrido que estava sensivelmente metade do seu comprimento, surgiu inesperadamente, em corrida, pela frente do veículo UX, a autora a atravessar a estrada da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha do EB, e que se atravessou à sua frente, cortando-lhe a linha de marcha. Apesar de o condutor do EB ter travado e guinado para a sua esquerda não conseguiu evitar o embate no peão, que se deu com a frente direita do EB ao nível do pára-lamas frente direito, tendo a autora tombado para a berma, ficando prostrada imediatamente à frente do veículo UX. Alega ainda que tal embate se situou em plena hemifaixa de rodagem direita, atento o sentido de marcha do EB, a cerca de 2,10 metros da berma direita, sendo que a raia oblíqua delimitada por linhas contínuas só se encontra demarcada na via, a partir do local onde ocorreu o sinistro. Conclui pela culpa do peão na produção do acidente, pedindo a absolvição do pedido. A ré ... contestou, dizendo que aceita a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo UX, que não teve qualquer intervenção directa ou indirecta no acidente. Tal veículo parou na paragem destinada à entrada e saída de passageiros, atento o seu sentido de marcha, pelo que inexiste qualquer comportamento censurável da parte do seu condutor que fundamente a responsabilidade do veículo seguro na produção do acidente. Mais alega que, independentemente do local de paragem do veículo seguro, não se afigura que tal facto seja causa adequada da produção do acidente. A fls 154 e segs o Centro Hospitalar de ... deduziu o incidente de intervenção principal peticionando a condenação das rés no pagamento de € 7.718,22, quantia que despendeu em tratamentos médicos prestados à autora. As rés, a fls. 173 e 176, respectivamente, impugnaram tal pedido por não se tratarem de factos pessoais dos quais devessem ter conhecimento. Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu as rés dos pedidos. A autora recorreu e a Relação, por acórdão de 09.10.2018, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida. Não se conformando com tal acórdão, a autora interpôs recurso de revista excepcional, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES: a) O douto acórdão recorrido é inválido, por erro na interpretação e consequente aplicação do Direito, especificamente do disposto no artigo 505° do Código Civil; b) A doutrina e jurisprudência tradicionais têm vindo a entender que a existência de culpa do lesado exclui, tout court, a aplicação das regras de responsabilidade civil objectiva ou pelo risco. c) Sendo certo que tem existido algum progresso na medida em que tem vindo a ser jurisprudencialmente aceite que a culpa do lesado apenas exclui a responsabilidade pelo risco quando exista única e exclusiva culpa do lesado. d) Pese embora não se reconheça, in casu, que a recorrente tenha tido culpa e essa culpa tenha contribuído exclusivamente para a ocorrência do acidente, a questão - nesta sede - a dirimir é se os menores, que por essa mesma qualidade se encontram incapacitados de entender ou de querer e não se terem colocado culposamente no estado de menoridade - podem ser responsabilizados exclusivamente pela produção de um acidente. e) Entendemos que urge "dar o passo" no sentido de interpretar a norma no sentido das directivas comunitárias, designadamente que os menores por não terem capacidade de entender e querer (por terem uma visão do mundo bela, mas muito irreal e muito inexperiente), não poderem ser considerados culpados e unicamente causadores de um acidente, omitindo-se pura e simplesmente o risco da circulação rodoviária. f) Entendemos que o tribunal a quo olvidou uma interpretação mais progressista e actualista dos artigos 505° e 507° do Código Civil, das directivas comunitárias, da doutrina e da jurisprudência (neste sentido Acórdão STJ, Processo 07B1710 de 04/10/2007 e Acórdão STJ, Processo 100/10.9YFLSB de 05/06/2012). g) O modo tradicional de interpretação dos acidentes de viação com veículos sofreu profunda alteração de origem comunitária (neste sentido, Exmº Senhor Juiz-Conselheiro João Bernardo, na declaração de voto vencido no acórdão supra referido). h) Refere-se ainda que "se encararmos a problemática na perspectiva da vítima, vêm ao de cima muitas realidades que a visão do nosso código deixara obnubiladas. Referindo-nos, por exemplo aos casos em que o acidente é causado pela vítima, mas sem que se lhe possa assacar culpa (por inimputabilidade em razão de anomalia psíquica ou da idade - caso aqui em apreço), sendo a culpa in vigilando de todo desadequada para ser aqui adoptada." (cfr. declaração de voto melhor referida no ponto antecedente). i) É incompatível com o direito comunitário a interpretação do artigo 505° segundo a qual, existindo culpa do lesado e sendo a conduta causa do acidente, é excluída a indemnização pelo risco. j) À criança, menor de 12 anos, não pode ser atribuída "culpa indesculpável" ou "faute inexcusable" no presente acidente. k) Seria mais do que normal que o condutor do veículo pesado de passageiros parasse no local próprio para o efeito e que fosse expectável que condutor do veículo atropelante pudesse prever a possibilidade da existência peões a pretender atravessar a estrada. l) Parece-nos que os veículos, pela própria existência e circulação, têm riscos próprios e que neste caso devem ser valorados. m) No caso concreto, dúvidas inexistem que os riscos próprios dos veículos automóveis que foram intervenientes no acidente contribuíram de forma decisiva para a ocorrência do evento danoso. n) De acordo com a interpretação correcta do artigo 505° do Código Civil, não há culpa da menor e nexo causal exclusivo, pelo que se reclama o apuramento concursal das causas do dano à norma da repartição do dano (570° do Código Civil). o) O tribunal de primeira instância e o Tribunal da Relação, por erro de interpretação e aplicação da lei, violou e/ou não considerou correctamente o disposto nos artigos 503°, 505° e 570° do Código Civil. Termina, pedindo que “deve o presente recurso de revista excepcional ser julgado procedente e consequentemente, revogar-se a sentença e o acórdão a quo condenando-se as recorridas a indemnizar a recorrente no montante a apurar nos termos do artigo 570° do Código Civil. As rés seguradoras contra-alegaram, pedindo que seja negado provimento ao recurso e mantido o acórdão recorrido (fls 542 a 545 e 548 a 550). A Formação, por acórdão de 31.01.2019 (fls 566 e 567), admitiu a revista excepcional. Colhidos os vistos, cumpre decidir. II - FUNDAMENTAÇÃO A) Fundamentação de facto As instâncias deram como provados os seguintes factos 1º - No dia 21.09.2011, pelas 15:00h na Estrada Nacional nº 1, ao Km 105,18, no sentido Norte-Sul, ocorreu um acidente de viação que consistiu no embate da autora pelo veículo de matrícula ...-EB, conduzido por DD, seu proprietário. 2º - A estrada, no local do acidente, configura uma recta com boa visibilidade, piso betuminoso, em bom estado de conservação, com dois sentidos de marcha, divididos a determinada altura por raias oblíquas delimitadas por linhas contínuas, não existindo passadeiras assinaladas para a travessia de peões. 3º - No local referido em 1º o limite máximo de velocidade permitido é de 50 Km/hora. 4º - Antes do atropelamento referido em 1º, a autora havia sido transportada no veículo de transporte colectivo de passageiros com a matrícula ...-UX, propriedade da Rodoviária do Tejo SA. 5º - O condutor do veículo referido em 4º, a fim de permitir a saída de passageiros, entre os quais a autora, imobilizou o veículo na berma existente do lado direito, atento o sentido de marcha Norte-Sul, ligeiramente oblíquo, ocupando a sua frente lateral esquerda cerca de 50 cm da via, fora da zona de paragem destinada a tais veículos. 6º - A cerca de 50 metros do local onde o veículo UX se imobilizou, no mesmo sentido de marcha, existe uma paragem destinada a veículos de transporte colectivo de passageiros. 7º - Usualmente os condutores dos veículos de transporte colectivo de passageiros não utilizam a paragem referida em 6º, porquanto entendem que a mesma não oferece condições de segurança. 8º - Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1º, a autora saiu do veículo UX por uma das portas laterais direitas e contornou o veículo, pela frente do mesmo, com intenção de fazer a travessia da estrada da direita para a esquerda. 9º - A autora encetou a travessia, nos termos referidos em 8º, em passo de corrida, quando o veículo de matrícula ...-EB seguia na via de trânsito no sentido Norte-Sul, a uma velocidade de cerca de 40 Km/hora, ao lado do autocarro, estando a cerca de metade do seu comprimento. 10º - Quando a autora já havia efectuado parte da travessia da via destinada ao sentido de trânsito Norte-Sul, avistou o veículo EB, recuou e apesar do seu condutor ter desviado o veículo para a esquerda, sem ter travado, não conseguiu evitar o embate, o qual ocorreu com a parte lateral dianteira direita do EB na autora que, em consequência do mesmo foi projectada para a frente do autocarro de matrícula UX. 11º - O embate referido em 10º ocorreu na via destinada aos veículos que circulavam no sentido de marcha do EB, antes do início da zona de raias referidas em 2º, a cerca de 2,10 metros da berma direita onde se encontrava imobilizado o veículo UX. 12º - Em consequência do acidente, a autora foi transportada para o Centro Hospitalar de ..., no qual foram realizados exames radiológicos que revelaram fractura epifisiolise distal do fémur bilateral a qual foi de imediato intervencionada com colocação de material de osteossíntese e imobilização gessada cruro-podálica bilateral e indicação de repouso, tendo a autora tido alta para o domicílio em 23.09.2011. 13º - Em 10.10.2011 foi prescrita cadeira de rodas e passada declaração para a escola de impossibilidade de realização de Educação Física durante todo o ano lectivo. 14º - Realizou tratamento de fisioterapia na área de residência de ..., mantendo as deslocações de cadeira de rodas adaptada, tendo iniciado a marcha com canadianas cerca de um mês depois, que manteve durante vários meses. 15º - A autora foi submetida a nova intervenção cirúrgica no dia 08.11.2011 por status pós osteossíntese de fractura condiliana bilateral do fémur com remoção de prótese de fixação interna do fémur, tendo alta três dias depois. 16º - Em consequência das lesões decorrentes do acidente, a autora esteve ausente da actividade escolar até 01.12.2011, tendo retomado as aulas ainda de cadeira de rodas e posteriormente com apoio de duas canadianas até terminar o ano escolar. 17º - Em 28.11.2013 devido a sequelas de fractura supracondiliana do fémur bilateral, apresentava joelho esquerdo em varo sem derrame articular, sem instabilidades, sem dismitria clínica aparente, mobilidade normal à direita e défice de extensão de 5o e uma flexão 110o à esquerda. 18º - Em consequência das lesões decorrentes do acidente, a autora apresenta sinovite residual do joelho esquerdo, desvio em varus do joelho esquerdo em 5o, gonalgia residual antero interna esquerda, amiotrofia da coxa esquerda de 2cm e limitação da flexão a 130o do joelho esquerdo que determinam um défice funcional permanente da integridade física fixável em 8,95 pontos, susceptível de agravamento em função da sequela do joelho esquerdo. 19º - Em consequência das sequelas referidas em 18, a autora apresenta marcha claudicante sem recurso a ajudas técnicas e no membro inferior direito apresenta cicatriz deprimida na face interna do joelho de 1x1 cm e vestígios cicatriciais na face externa do joelho. No membro inferior esquerdo apresenta cicatriz na face interna do joelho de 3,1x1,5 cm, cicatriz na face externa de 2,5x1,5 cm, amiotrofia da coxa, limitação da flexão do joelho e aparente dismetria do membro. 20º - As sequelas referidas em 19º correspondem a um dano estético fixável no grau 4 numa escala de sete graus de gravidade crescente. 21º - Em consequência das lesões decorrentes do acidente, a autora apresenta perturbação de stress pós traumático fixável em 8 pontos que poderá ser reduzida ou desaparecer se a autora beneficiar de acompanhamento pedopsiquiátrico e/ou psicologia clínica. 22º - Para tratamento das lesões decorrentes do acidente a autora esteve totalmente incapacitada para realizar, de forma autónoma, actos da vida diária, familiar, social e escolar desde 21.02.2011 a 30.11.2011, no total de 71 dias. 23º - Após a data referida em 22º, a autora passou a conseguir realizar os actos da vida diária, familiar e social com algum grau de autonomia, ainda que com limitações desde 01.12.2011 até 15.06.2015, num total de 1293 dias. 24º - Após a data referida em 22º, a autora passou a conseguir realizar os actos da vida escolar com algum grau de autonomia, ainda que com limitações, desde 1.12.211 até 31.07.2012, num total de 244 dias. 25º - Em consequência das lesões decorrentes do acidente e tratamento das mesmas a autora sofreu dores, quantificáveis num grau 6, numa escala de 7 de gravidade crescente. 26º - As sequelas referidas em 18, dependente da área de formação a seguir pela autora, são passíveis de determinar esforços suplementares no exercício da sua actividade profissional. 27º - Em consequência das lesões decorrentes do acidente, a autora não pode executar ginástica acrobática e tem dificuldades na prática da natação, actividades a que se dedicava, o que lhe acarreta uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável num grau 6 numa escala de 7 de gravidade crescente 28º - Antes do acidente a autora era saudável e feliz com o seu corpo e actualmente, em consequência das sequelas decorrentes do acidente sente-se complexada, triste e com falta de confiança. 29º - Para tratamento das lesões que a autora sofreu decorrentes do acidente, o Centro Hospitalar de ... despendeu a quantia total de € 7.718,22. 30º - Os pais da autora para tratamento das lesões decorrentes do acidente despenderam, pelo menos a quantia de € 393,66. 31º - A autora tinha, à data do acidente, 12 anos, tendo nascido no dia 13.04.1999. 32º - À data do acidente a autora frequentava o Instituto Educativo do ... fazendo frequentemente as deslocações entre a casa e a escola em transporte colectivo de passageiros. 33º - A responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ...-EB encontrava-se transferida para a ré Companhia de Seguros BB SA mediante contrato de seguro titulado pela apólice no .... 34º - A responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ...-UX encontrava-se transferida para a ré Companhia de Seguros ... SA mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º .... 35º - A autora participou o acidente a ambas as rés, tendo estas informado que não assumiam a responsabilidade do mesmo. Não se provou que: a) O local referido em 1º situa-se na localidade de ...; b) O limite máximo de velocidade está indicado no local, por sinalização vertical C13, tendo como limite 60 Km/hora. c) As raias referidas em 2 tinham cerca de 1,5 metros de largura; d) Nas circunstâncias referidas em 8º, a autora saiu pela porta lateral dianteira, uma vez que apenas esta foi aberta; e) Nas circunstâncias referidas em 8º a autora, chegada à frente esquerda do autocarro, parou e olhou para ambos os sentidos de trânsito e verificando da possibilidade de atravessar a via de trânsito em segurança, iniciou a travessia em passo normal; f) A autora atravessou completamente a via de trânsito reservada aos veículos que circulam no sentido Norte-Sul e quando já estava no eixo da via e na área das raias referidas em 2º, surgiu em excesso de velocidade o veículo de matrícula ...-EB; g) O condutor do veículo EB, nas circunstâncias referidas em 9 tenha utilizado a zona das raias oblíquas mencionadas em 2º, tendo-se apercebido tardiamente da presença da autora nessa zona; h) Nas circunstâncias referidas em 10º, o condutor do EB tenha travado. B) Fundamentação de direito A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável aos autos por força do seu artigo 5º nº 1, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, consiste em saber se se verificam os pressupostos da responsabilidade civil, por facto ilícito ou pelo risco implicando a obrigação de indemnizar por parte das recorridas. A sentença da primeira instância julgou a acção improcedente e absolveu as rés do pedido, não aceitou a tese do concurso do risco com a culpa do lesado, não perfilhando, assim, a interpretação actualista do artigo 505º do Código Civil. Entendeu a sentença que o atropelamento de que a autora foi vítima tão somente se deveu a conduta por si perpetrada, afastando, por um lado, qualquer actuação do condutor do EB para a sua concorrência e entendendo que a infracção contra-ordenacional do veículo UX não entra sequer no processo causal que conduziu ao mesmo. O acórdão da Relação afinou pelo mesmo diapasão, concordando com a decisão recorrida. A recorrente tenta convencer que, de acordo com a interpretação correcta do artigo 505° do Código Civil, não há culpa da menor e nexo causal exclusivo, pelo que se reclama o apuramento concursal das causas do dano à norma da repartição do dano (570° do Código Civil). As instâncias afastaram a possibilidade de responsabilização do condutor do veículo automóvel com base no risco porque concluíram ser o acidente imputável à própria lesada, não se demonstrando a culpa do condutor do veículo. Haverá, então, concorrência entre risco e culpa da lesada na responsabilidade civil pelo acidente de viação sub judice? A este propósito, Maria da Graça Trigo, escreveu o seguinte[1]: “ O Acórdão do STJ de 04-10-2007 (Santos Bernardino)[2] constitui o marco de viragem na jurisprudência nacional, ao admitir[3] a concorrência da responsabilidade pelo risco do detentor do veículo com a culpa do lesado. Estava em causa um acidente em que uma ciclista de 10 anos de idade, saindo de uma estrada sem prioridade, foi embater num veículo automóvel. Dando expresso acolhimento às vozes discordantes mais antigas (Vaz Serra, Sá Carneiro, Sinde Monteiro) e mais recentes (Brandão Proença, Calvão da Silva, Ana Prata), o Supremo entendeu que a orientação de exclusão automática da responsabilidade pelo risco perante a conduta, culposa ou não, do lesado, tende a gerar resultados injustos pelo que decidiu reinterpretar o artº 505º “ no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso do lesado com o risco próprio do veículo (sublinhado nosso), ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo” (adoptando aqui a fórmula de Calvão da Silva). Aplicou-se ao caso concreto o regime do artigo 570º nº 1, e reduziu-se a indemnização em 60% devido à culpa da lesada. Fundamentou-se, de forma desenvolvida, a posição inovadora na necessidade e justiça de uma interpretação actualista do artº 505º, que, ademais, respeitasse um princípio de unidade do sistema jurídico, uma vez que, ao longo dos anos, foram surgindo múltiplos regimes de responsabilidade objectiva em que a culpa do lesado não exclui a obrigação de indemnizar. Invocou-se, além disso, que, “ na interpretação do direito nacional, devem ser tidas em conta as soluções decorrentes das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, já as jurisdições nacionais estão sujeitas à chamada obrigação de interpretação conforme, devendo interpretar o respectivo direito nacional à luz das directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas”[4]. O Acórdão sub judice, de inegável importância, opta, num caso de colisão entre um velocípede sem motor e um automóvel, pela não aplicação do artº 506º[5]. O núcleo essencial da matéria de facto que respeita à dinâmica do acidente é o seguinte: No dia 21.09.2011, o veículo de matrícula ...-EB, conduzido por DD, seu proprietário embateu na autora, então com 12 anos de idade. A estrada, no local do acidente, configura uma recta com boa visibilidade, piso betuminoso, em bom estado de conservação, com dois sentidos de marcha, divididos a determinada altura por raias oblíquas delimitadas por linhas contínuas, não existindo passadeiras assinaladas para a travessia de peões. No local do embate o limite máximo de velocidade permitido é de 50 Km/hora. Antes do atropelamento, a autora havia sido transportada no veículo de transporte colectivo de passageiros com a matrícula ...-UX, propriedade da Rodoviária do Tejo SA. O condutor do veículo UX, a fim de permitir a saída de passageiros, entre os quais a autora, imobilizou o veículo na berma existente do lado direito, atento o sentido de marcha Norte-Sul, ligeiramente oblíquo, ocupando a sua frente lateral esquerda cerca de 50 cm da via, fora da zona de paragem destinada a tais veículos. A cerca de 50 metros do local onde o veículo UX se imobilizou, no mesmo sentido de marcha, existe uma paragem destinada a veículos de transporte colectivo de passageiros. Usualmente os condutores dos veículos de transporte colectivo de passageiros não utilizam aquela paragem, porquanto entendem que a mesma não oferece condições de segurança. A autora saiu do veículo UX por uma das portas laterais direitas e contornou o veículo, pela frente do mesmo, com intenção de fazer a travessia da estrada da direita para a esquerda. A autora encetou aquela travessia em passo de corrida, quando o veículo de matrícula ...-EB seguia na via de trânsito no sentido Norte-Sul, a uma velocidade de cerca de 40 Km/hora, ao lado do autocarro, estando a cerca de metade do seu comprimento. Quando a autora já havia efectuado parte da travessia da via destinada ao sentido de trânsito Norte-Sul, avistou o veículo EB, recuou e apesar do seu condutor ter desviado o veículo para a esquerda, sem ter travado, não conseguiu evitar o embate, o qual ocorreu com a parte lateral dianteira direita do EB na autora que, em consequência do mesmo foi projectada para a frente do autocarro de matrícula UX. O embate referido ocorreu na via destinada aos veículos que circulavam no sentido de marcha do EB, antes do início da zona de raias acima referidas, a cerca de 2,10 metros da berma direita onde se encontrava imobilizado o veículo UX. As instâncias afastaram a possibilidade de responsabilização do condutor do veículo automóvel EB com base no risco porque concluíram ser o acidente imputável à própria lesada, não se demonstrando a culpa do condutor do veículo. Seguiram, pois, o entendimento jurisprudencial segundo o qual não pode haver concurso de responsabilidades do lesado, a título de culpa, e do titular da direcção efectiva do veículo, assente no risco. Apurada culpa da autora, Sara Patrícia e excluída a culpa do condutor do EB, nada mais é preciso indagar: está excluída a responsabilidade deste pelos danos sofridos pela primeira. Todavia, na esteira do acórdão do STJ, “este modo de ler e de entender a lei vem sendo objecto, ultimamente, de profundas críticas provindas de uma parte significativa da doutrina nacional, que – desde logo em atenção ao prestígio científico e à auctoritas dos juristas de que promanam – justificam deste Alto Tribunal uma análise e uma atenção que até agora, ao que parece, não mereceram. Não deve o Supremo, a nosso ver, acomodar-se perante o reparo de que aquela uniforme jurisprudência é tributária “de uma mera compreensão lógico-formal dos textos legais, de sabor cristalizado, com rejeição de um pensamento jurídico moderno, actualizado, e que faz da tutela dos lesados no tráfego rodoviário o seu leitmotiv” São palavras de J. C. BRANDÃO PROENÇA, Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado: a lógica do “tudo ou nada”? in Cadernos de Direito Privado, n.º 7 Julho/Setembro 2004, pág. 25”. Seguimos agora o mencionado acórdão do STJ de 04.10.2007, comentado e elogiado por Maria da Graça Trigo e por Calvão da Silva, em que se relata uma situação semelhante à dos presentes autos. Voltando à questão a decidir: haverá concorrência entre risco próprio do veículo EB e a culpa da lesada (autora) na responsabilidade civil pelo acidente de viação sub judice? A causa de pedir, nas acções de indemnização por acidente de viação, é o próprio acidente, e abrange todos os pressupostos da obrigação de indemnizar. Se “o autor pede em juízo a condenação do agente na reparação do dano, num dos domínios em que vigora a responsabilidade objectiva, mesmo que invoque a culpa do demandado, ele quer presuntivamente (a menos que haja qualquer declaração em contrário) que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar.” E assim, “ se o autor invocar a culpa do agente na acção destinada a obter a reparação do dano, num caso em que excepcionalmente vigore o princípio da responsabilidade objectiva, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu.” Prof. A. Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª ed., pág. 690/691. Continuando na senda do acórdão do STJ de 04.10.2007 “A jurisprudência e a doutrina tradicionais, na questão que vimos considerando, ancora o seu ideário no ensino e no entendimento do Prof. Antunes Varela. Para este saudoso Mestre, o artº 505º coloca um problema de causalidade: a verificação de qualquer das circunstâncias nesse preceito referidas – acidente imputável ao lesado ou a terceiro; acidente resultante de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo – quebra o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano, excluindo a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, pois que o dano deixa, então, de ser um efeito adequado do risco do veículo. Bastará a imputação causal do acidente ao lesado para excluir a responsabilidade objectiva. Não se exige, pois, que o acidente seja devido a facto culposo do lesado, que seja causado pela conduta censurável deste; abrangem-se também todos os casos em que o acidente é devido ao lesado, mesmo que não haja culpa deste. A possibilidade de concurso, em acidente de viação, do perigo especial do veículo com facto de terceiro ou da vítima (culposo ou não culposo), de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade ou a uma atenuação da obrigação de indemnizar fundada no risco, é claramente rejeitada, com o argumento de não ser justa nem ter consagração legal. Se o acidente ocorre porque o lesado ou terceiro não observaram as regras de prudência exigíveis em face do perigo normal do veículo, cessa a responsabilidade do detentor, porque, não obstante o risco inerente à viatura, os danos provêm de facto de outrem. A responsabilidade (objectiva) imposta ao detentor do veículo é já de tal modo severa que não é justo nem razoável “sobrecarregá-la ainda com os casos em que, não havendo culpa dele, o acidente é imputável a quem não adoptou as medidas de prudência exigidas pelo risco da circulação”. “Será de manter este entendimento? Ou justificar-se-á uma inversão de rumo, projectada a partir de uma interpretação menos rígida dos preceitos legais aplicáveis? Não nos parece irrespondível a objecção de que a possibilidade de concorrência do risco do detentor ou condutor do veículo com culpa do lesado não é de sufragar, porquanto, defendida pelo Prof. Vaz Serra nos trabalhos preparatórios do Código, com a formulação do correspondente preceito, este não foi acolhido no texto definitivo do diploma. Repare-se que o próprio Vaz Serra, mesmo após a publicação do Código Civil, continuou a defender a tese da concorrência, argumentando, por um lado, que a expressão acidente imputável ao lesado, do art. 505º, deve ser entendida com o sentido de acidente devido unicamente a facto do lesado, e por outro, que, sendo a situação de concorrência entre risco e culpa semelhante às contempladas no art. 570º, deve este preceito ser aplicado por analogia a tal situação, o que conduz à aplicação dos princípios gerais sobre conculpabilidade do lesado. E não falta quem sustente que “o artº 484º da 1ª revisão ministerial do projecto do Código Civil não é suficientemente persuasivo no sentido de afirmarmos, com Antunes Varela, que foi “repudiada” a tese de Vaz Serra” - BRANDÃO PROENÇA, ibidem, pág. 26. Por outro lado, não podemos deixar de ponderar a justeza da crítica, que à corrente tradicional tem sido dirigida, de conglobar, na dimensão exoneratória da norma do artº 505º, tratando-as da mesma forma, situações as mais díspares, como sejam os comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por um medo invencível ou por uma reacção instintiva, os eventos pessoais fortuitos (desmaios e quedas), os factos das crianças e dos (demais) inimputáveis, os comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, o descuido provocado pelas más condições dos passeios, uniformizando, assim, “as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados por acidentes de viação”, “desvalorizando a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária”, e conduzindo, muitas vezes, a resultados chocantes. Tal corrente mostra, ademais, na sua inflexibilidade e cristalização, uma insensibilidade gritante ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário – e tendo por escopo a garantia de uma maior protecção dos lesados – do âmbito da responsabilidade pelo risco, que tem tido tradução em vários diplomas (a que faremos alusão mais adiante) cujo relevo maior radica, por um lado, na exigência, como circunstância exoneratória, de culpa exclusiva do lesado, e, por outro, na expressa consagração, no sector da responsabilidade civil do produtor ou fabricante de produtos defeituosos, da hipótese de concorrência entre o risco da actividade do agente e “um facto culposo do lesado” (art. 7º/1 do Dec-lei 383/89, de 6 de Novembro). Esta evolução legislativa não pode, a nosso ver, ser ignorada, e dela devem ser retiradas “as devidas consequências para uma actualização interpretativa da rigidez normativa do Código Civil, tanto mais que a partir de meados da década de 80 passaram a coexistir dois regimes diferenciados, ou seja, o rígido sistema codificado e uma série de subsistemas imbuídos de um escopo protector e direccionado para os lesados” Autor e loc. cits. na nota anterior, pág. 29.. Como não deve ser ignorado o papel das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e a sua influência no direito da responsabilidade civil do próprio Código Civil. Sendo embora certo que, como é entendimento do Tribunal de Justiça, “na falta de regulamentação comunitária que precise qual o tipo de responsabilidade civil relativa à circulação de veículos que deve ser coberta pelo seguro obrigatório, a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos é, em princípio, da competência dos Estados-Membros”, não deixa de ser igualmente verdade que as soluções decorrentes da interpretação das disposições das directivas ou do seu efeito útil penetram (ou devem penetrar) as legislações nacionais nesse domínio; e a sua influência no direito português é visível, quer na erradicação, do texto do art. 504º, dos limites aí estatuídos para a responsabilidade do transportador a título gratuito, quer na alteração dos limites máximos indemnizatórios do art. 508º. A corrente jurisprudencial tradicional é igualmente insensível à filosofia que dimana do regime, estabelecido no Código do Trabalho, para os acidentados laborais, onde se estabelece que o dever de indemnização do empregador só é excluído se o acidente “provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”. Estas são razões com força suficiente, a nosso ver, para pôr de remissa a interpretação jurisprudencial a que vimos aludindo. Com a obrigatoriedade de contratação de um seguro de responsabilidade civil como pressuposto da circulação de veículos terrestres a motor – introduzida pelo Dec-lei 408/79, de 25 de Setembro – e verificada a íntima conexão material entre as normas do Código Civil relativas à responsabilidade pelo risco em matéria de acidentes causados por veículos e as deste último diploma (e os subsequentes, sobre a mesma temática do seguro obrigatório), impõe-se que a procura das soluções do nosso direito positivo, nesta matéria, seja penetrada de uma lufada de ar fresco, sensível “às novas linhas de força da relação entre o risco dos veículos e a fragilidade de certos participantes no tráfego” e que conduza à tutela destes últimos, dos lesados mais frágeis. Justifica-se, pois, cada vez mais, que se dê a devida atenção às vozes autorizadas de qualificados professores de Direito, que vêm clamando contra a rigidez da doutrina tradicional. O Prof. Calvão da Silva vem, no seu ensino universitário, entendendo que o texto do artº 505º, devidamente interpretado, expressa a doutrina seguinte Cfr. a sua anotação ao Ac. STJ de 01.03.2001, na RLJ ano 134º, págs. 112 e ss, e designadamente, quanto a este ponto, págs. 115/118. Sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. No entendimento deste ilustre Mestre conimbricense, a lei admite, assim, o concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, sempre que ambos concorram na produção do dano, decorrendo essa admissibilidade (se bem captámos o seu pensamento), do teor da parte inicial do preceito em apreço. Na verdade – diz CALVÃO DA SILVA, decompondo a norma em análise – a ressalva feita no início do art. 505º (“Sem prejuízo do disposto no artigo 570º”) é para aplicar à responsabilidade fixada no n.º 1 do artigo 503º; e esta é a responsabilidade objectiva; logo, a concorrência entre a culpa do lesado (art. 570º) e o risco da utilização do veículo (art. 503º) resulta do disposto no art. 505º, que só exclui a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável – i.e., unicamente devido, com ou sem culpa – ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo. E, efectivamente, parece-nos que só assim interpretado o art. 505º, logra significado e efeito útil a sua parte inicial. Assentando a responsabilidade fixada no n.º 1 do artigo 503º no risco da utilização do veículo, e não na culpa, e estando o concurso da conduta culposa do condutor ou detentor do veículo com facto culposo do lesado previsto directamente no art. 570º, não seria razoável interpretar a parte inicial, acima transcrita, do art. 505º, como aplicável havendo culpas de ambas as partes. Numa tal interpretação, aquela parte inicial seria absolutamente desnecessária: mesmo que o art. 505º dela fosse amputado, sempre o caso de concorrência entre facto ilícito e culposo do condutor e facto culposo do lesado seria regulado pelo disposto no art. 570º. CALVÃO DA SILVA chama ainda, em favor da sua tese, vária legislação avulsa – em matéria de responsabilidade civil por acidentes com intervenção de aeronave (Dec-lei 321/89, de 25 Set., art. 13º; Dec-lei 71/90, de 2 Mar., art. 14º), ou de embarcação de recreio (Dec-lei 329/95, de 9 Dez., art. 43º), ou no domínio da produção e distribuição de energia eléctrica (Dec-lei 184/95, de 27 Jul., art. 44º), e sobretudo, a respeitante à responsabilidade civil do produtor ou fabricante de produtos defeituosos (Dec-lei 389/89, art. 7º/1, já acima referido) – onde expressamente se refere ou da qual decorre a necessidade de conduta culposa exclusiva do lesado para afastar a responsabilidade pelo risco, ganhando particular relevância este último diploma, que consagra “modelarmente” a tese da concorrência entre o risco da actividade do fabricante e a culpa da vítima. Assim, uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta (art. 9º/1) a unidade do sistema jurídico – isto é, que considere o sistema jurídico global de que a norma faz parte e, neste, o referido acervo de normas que consagram o concurso da culpa da vítima com o risco da actividade do agente, e repute adquirida, como princípio geral e universal do pensamento jurídico contemporâneo, essa regra do concurso – e as condições do tempo em que tal norma é aplicada – em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça – impõe, segundo este autor, que se tenha por acolhida, naquele normativo, a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, nem sequer se lhe podendo opor o obstáculo representado pelo n.º 2 do mesmo art. 9º, já que tal interpretação tem um mínimo de correspondência ou ressonância nas palavras da lei. Também BRANDÃO PROENÇA se tem mostrado profundamente crítico em relação ao entendimento tradicional nesta matéria, como logo deixa perceber a passagem, acima transcrita, de sua autoria. Passagem que reflecte e reafirma um pensamento consolidado, já exaustivamente explanado num estudo de grande valia, que constituiu a sua dissertação de doutoramento em Ciências Jurídicas “A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual”, Liv. Almedina, Coimbra – 1997., onde este autor proclama Ob. cit., págs. 275/276. que “a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece, hoje, que, por exemplo, o peão e o ciclista (esse «proletariado do tráfego» de que alguém falava) são vítimas de danos, resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas» vias) ou de «condutas» sem consciência do perigo (maxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução”, de tal modo que bem pode dizer-se “que esse risco da condução compreende ainda esses outros «riscos-comportamentos» ou que estes não lhe são, em princípio, estranhos”. “Numa época em que a relação pura de responsabilidade, nos domínios do perigo criado por certas actividades, se enfraqueceu decisivamente, não parece compreensível, a não ser por preconceitos lógico-formais, excluir liminarmente o concurso de uma conduta culposa (ou mesmo não culposa) do lesado, levando-se a proclamada excepcionalidade do critério objectivo às últimas consequências”. Daí a opção deste reputado jurista por uma interpretação mais harmónica, que não exclua à partida o concurso entre o risco dos veículos e certas condutas dos lesados. E é assim que, na ausência de uma norma específica, idêntica à do art. 7º/1 do Dec-lei 389/89, já acima citado, propende para subsumir tal concurso ao critério do n.º 1 do art. 570º, “atendendo ao paralelismo das duas situações de concorrência, sintonizadas com a necessidade de uma adequada repartição do dano” “A conduta do lesado ...”, pág. 819.. A este entendimento doutrinal mais moderno, de afirmação da concorrência do risco com a culpa da vítima – para cujo desenvolvimento é de justiça salientar também o papel dos estudos desenvolvidos por JORGE SINDE MONTEIRO desde há quase 30 anos Cfr. “Responsabilidade civil”, in RDEc., ano IV, n.º 2, Jul./Dez. 1978, pág. 313 e ss., e “Responsabilidade por culpa, responsabilidade objectiva, seguro de acidentes, in RDEc., ano V, n.º 2, Jul./Dez. 1979, pág. 317 e ss. e ano VI/VII, 1980/1981, pág. 123 e ss. – têm aderido outros prestigiados juristas, como ANA PRATA Cfr. o estudo intitulado “Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela”, in Estudos em comemoração dos cinco anos da Fac. de Direito da Univ. do Porto, 2001, pág. 345 e ss., merecendo referência o actual posicionamento do Prof. ALMEIDA COSTA, que, tendo seguido, durante muito tempo, a posição tradicional, na esteira de A. VARELA, se mostra agora sensível à argumentação de BRANDÃO PROENÇA e dos demais arautos da tese da concorrência “Se um facto do próprio lesado, (...) concorrer com a culpa do condutor, a responsabilidade poderá ser reduzida ou mesmo excluída, mediante aplicação do artigo 570º. E, de igual modo, existindo concorrência de facto de terceiro, quanto à repartição da responsabilidade. Ora, valerá esta doutrina para o caso de haver concurso de facto da vítima ou de terceiro, já não com a culpa do condutor, mas com o risco do veículo? Respondem afirmativamente VAZ SERRA, (...), PEREIRA COELHO, (...), SÁ CARNEIRO, (...), e por último BRANDÃO PROENÇA, (...). Afiguram-se-nos ponderosas as considerações aduzidas, designadamente na perspectiva da tutela do lesado” (Direito das Obrigações, 10ª ed. reelaborada, Almedina, Setembro/2006, pág. 639, nota 1.. Entre os práticos do direito tem sido o Juiz Desembargador AMÉRICO MARCELINO, com argumentação consistente, um estrénuo defensor deste entendimento Cfr. “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 8ª ed. revista e ampliada, pág. 309 e ss” E continua o mesmo acórdão: “Já acima se aludiu à influência das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, defendendo-se que a interpretação das suas disposições ou o seu efeito útil geram soluções que penetram (ou devem penetrar) as legislações nacionais nessas matérias Cfr. a propósito desta temática, o importante estudo do Conselheiro José Carlos Moitinho de Almeida, “Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”, acessível em www.stj.pt (link Estudos Jurídicos). Explicitando melhor o sentido dessa afirmação, diremos que as soluções que, no âmbito da aplicação das cinco directivas comunitárias existentes em matéria de seguro obrigatório automóvel, têm sido afirmadas pelo Tribunal de Justiça, não podem deixar de ser tidas em conta na interpretação do direito nacional. Entende o Tribunal de Justiça (TJ) que, salvo no tocante à situação prevista no art. 2º, n.º 1 da 2ª Directiva – pessoas que se encontrem no veículo causador do acidente e que tenham conhecimento de que este era roubado – não são admissíveis disposições legais ou cláusulas contratuais que excluam, em determinadas circunstâncias, a responsabilidade da seguradora. Assim, v.g., não pode excluir-se a cobertura do seguro quando o condutor se encontre sob a influência do álcool. No acórdão Candolin (acidente provocado por condutor que seguia com uma taxa de alcoolemia de 2,08, daí resultando a morte de um passageiro e danos no veículo, cujo proprietário era outro dos passageiros transportados), o TJ, depois de reafirmar aquele seu entendimento, salientou ainda que o escopo visado pelo legislador comunitário, nas 1ª (art. 3º/1), 2ª (art. 2º/1) e 3ª (art. 1º) Directivas, foi o de “permitir que todos os passageiros vítimas de acidente causado por um veículo sejam indemnizados dos prejuízos sofridos”, não podendo o direito nacional retirar àqueles preceitos o seu efeito útil – consequência que se produziria se, com base em critérios gerais e abstractos, a legislação de um Estado-Membro, fundada na contribuição do passageiro para a produção do dano por ele sofrido, afastasse a indemnização devida pela seguradora ou a limitasse desproporcionadamente. Ora, a fundamentação do acórdão, respeitando embora à obrigação da seguradora, tem igual valimento no domínio da responsabilidade civil. Se o “efeito útil” das aludidas Directivas impõe que os passageiros transportados, que hajam sofrido danos, sejam indemnizados, mesmo que, por sua culpa, tenham contribuído para a verificação desses danos, de concluir é que essa deve ser a solução imposta pelas regras da responsabilidade civil, já que o respectivo seguro se encontra condicionado, no seu funcionamento, por essas regras. E o que se diz para os passageiros transportados vale igualmente para os peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, que constituem, normalmente, a parte mais vulnerável num acidente, e cujo ressarcimento é também preocupação das Directivas comunitárias. Num outro caso, que deu origem ao Acórdão Elaine Farrell, o TJ entendeu que a cobertura do seguro obrigatório deve abarcar os danos causados aos passageiros transportados em parte do veículo não destinada a essa finalidade, e que o “efeito útil” do art. 1º da 3ª Directiva impede que, com base em critérios gerais e abstractos, um direito nacional exclua ou limite de modo desproporcionado a indemnização de um passageiro, pelo simples facto de ter contribuído para o dano. Não se afigura, assim, compatível com o direito comunitário – e, designadamente, com o art. 1º da 3ª Directiva – a interpretação que, do artº 505º, vem fazendo a doutrina tradicional, no sentido de que a simples culpa ou a mera contribuição do lesado para a produção do dano exclui a responsabilidade pelo risco, contemplada no artº 503º O efeito útil das disposições comunitárias acima aludidas impõe sempre a indemnização das vítimas de acidentes causados por veículos automóveis, excepto se se tratar de passageiros transportados, com seu conhecimento, em veículo roubado. Como é entendimento do TJ, que diz decorrer dos arts 189º (actual 249º) e 5º do Tratado CE, as jurisdições nacionais devem, dentro do possível, interpretar o respectivo direito nacional à luz das Directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas. É a chamada obrigação de interpretação conforme. É também a esta luz que entendemos, procedendo, dentro do possível, a uma interpretação conforme com o direito comunitário, das regras nacionais sobre a responsabilidade civil objectiva, que essas normas consagram a possibilidade de concurso do risco do condutor do veículo com a conduta culposa do lesado, e que a responsabilidade pelo risco só é excluída, tal como entende CALVÃO DA SILVA, quando o acidente for imputável – i.e., unicamente devido, com ou sem culpa – ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Não sendo esse o caso, logrará aplicação, na fixação da indemnização, o art. 570º”. No caso concreto dos autos importa saber se, para além da culpa da autora, terá contribuído para a eclosão do sinistro o risco próprio do veículo automóvel EB. De acordo com os factos provados, a resposta não pode deixar de ser afirmativa, não sendo possível concluir que o acidente é exclusivamente imputável à autora que, no momento, fazia a travessia da estrada da direita para a esquerda. O veículo EB não foi indiferente ao embate sofrido pela autora já que a sua típica aptidão para a criação de riscos contribuiu para o dito acidente. Quando a autora, na altura com 12 anos de idade, já havia efectuado parte da travessia da via destinada ao sentido de trânsito Norte-Sul, avistou o veículo EB, recuou e apesar do seu condutor ter desviado o veículo para a esquerda, sem ter travado, não conseguiu evitar o embate, o qual ocorreu com a parte lateral dianteira direita do EB na autora que, em consequência do mesmo foi projectada para a frente do autocarro de matrícula UX. Apesar da culpa da autora, o condutor do EB nem sequer travou o veículo que conduzia, limitando-se a desviar o mesmo para a esquerda, o que é revelador de falta de capacidade de reacção instintiva perante uma situação complexa e a exigir extrema rapidez de actuação, tanto mais que até conduzia a uma velocidade muito moderada (cerca de 40Km/hora), estando a cerca de metade do comprimento do autocarro. Ora, dentro dos riscos próprios do veículo, a que se refere o artigo 503º do Código Civil, cabem, “além dos acidentes provenientes da máquina de transporte, os ligados ao outro termo do binómio que assegura a circulação desse veículo (o condutor)”[6]. No caso dos autos, a conjugação da culpa da autora e do perigo do próprio veículo, são dois factores que contribuíram para a verificação do acidente. Vejamos se assim é, convocando algumas normas do direito estradal que interessam para o caso concreto. As pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias (artº 3º nº 2, do Código da Estrada, na redacção do D.L. 82/2011, de 20/6, aplicável ao caso em análise). No que se refere ao trânsito de peões, estes devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas, podendo transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nomeadamente, quando efectuem o seu atravessamento ou na falta dos locais supra referidos ou na impossibilidade de os utilizar (art.º 99º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), do CE). Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente (artº 101º nº 1, do CE). A conduta da autora, porque violadora das regras do direito estradal acima mencionadas, é culposa. O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (artº 24º nº 1, do CE). Sem prejuízo deste princípio geral e quando circulam nas localidades, os condutores de automóveis ligeiros não podem exceder a velocidade instantânea de cinquenta quilómetros por hora (artº 27º do CE), sendo que a velocidade deve ser especialmente moderada, designadamente, nas localidades ou vias marginadas por edificações (artº 25º nº 1, alínea c), do CE). No que concerne à manobra de ultrapassagem, o condutor não a deve iniciar sem se certificar que a pode realizar sem perigo de colidir com veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário, devendo especialmente certificar-se que a faixa de rodagem se encontra livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança (artº 38º nºs 1 e 2 alª a), do C.E). No que respeita ao condutor do EB, a sua conduta está isenta de culpa; todavia, o veículo contribuiu para o acidente na medida com os riscos próprios inerentes à sua circulação. Afigura-se-nos, pois, que o relacionamento entre os riscos inerentes ao próprio veículo e a conduta culposa da lesada constituem a solução mais equilibrada e coesa com vista à atribuição harmoniosa de uma equilibrada indemnização[7]. Finalmente, uma breve referência ao direito comunitário. O direito comunitário apresentando-se como garante de uma maior protecção dos lesados, alargando o âmbito da responsabilidade pelo risco veio, em várias directivas, consagrar a protecção dos interesses dos sinistrados, vítimas de acidentes de viação. Toda esta ideia de protecção da vítima, numa sociedade onde o excesso de veículos, estacionados ou em circulação, criou desequilíbrios ambientais, limitou o espaço pietonal e aumentou potencialmente a sinistralidade, tem levado a União Europeia a criar normas de maior incidência indemnizatória. Disso não é alheia a 5ª Directiva (Directiva nº2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Maio que altera as Directivas nºs72/166/CEE; 88/357/CEE e 90/232/CEE do Conselho e a Directiva 2000/26/CE) transposta para a ordem jurídica interna pelo Decreto-Lei nº291/07 de 31 de Dezembro. Embora o Tribunal de Justiça da União Europeia diga que “na falta de regulamentação comunitária que precise qual o tipo de responsabilidade civil relativa à circulação de veículos que deve ser coberta pelo seguro obrigatório, a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos é, em princípio, da competência dos Estados-membros”, com a criação de um seguro de responsabilidade civil como pressuposto da circulação de veículos terrestres a motor - Decreto-Lei nº291/07 de 31 de Dezembro – dada a conexão material entre as normas do Código Civil, relativas à responsabilidade pelo risco em matéria de acidentes de viação, e este último diploma, há que enveredar por novos caminhos interpretativos que permitam dar corpo a novas soluções, no nosso direito positivo, na consideração do binómio risco dos veículos/fragilidade dos demais utentes das vias públicas[8]. Escreveu Calvão da Silva[9]: “Na verdade, pelo artº 4º da 5ª Directiva foi introduzido o seguinte artº 1º-A na Directiva 90/232/CEE (3ª Directiva automóvel): “ O seguro referido no nº 1 do artigo 3º da Directiva 72/166/CEE assegura a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor, têm direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. O presente artigo não prejudica nem a responsabilidade civil nem o montante das indemnizações”. E continua o mesmo autor: “ Preceito este assim justificado no considerando nº 16 da citada 5ª Directiva: “ Os danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, que constituem habitualmente a parte mais vulnerável num acidente, deverão ser cobertos pelo seguro obrigatório do veículo envolvido no acidente caso tenham direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. Esta disposição não condiciona a responsabilidade civil nem o nível da indemnização por um acidente específico, ao abrigo da legislação nacional”. “ Conquanto decorra do artigo da Directiva e seu considerando transcritos o expresso reconhecimento da comparência dos Estados-membros para a determinação do regime da responsabilidade civil automóvel – competência de princípio que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias não pode pôr em causa -, resulta igualmente desta jurisprudência que aquela competência dos Estados deve ser exercida no respeito pelo direito comunitário (também pelo artº 1º da 3ª Directiva), por forma que as legislações nacionais da responsabilidade civil automóvel não privem as Directivas relativas ao seguros obrigatório do seu efeito útil. Assim se previne um “circulus inextrincabilis” (obrigação de seguro automóvel garantida e definida pelas Directivas comunitárias; indemnização das vítimas regida pelos direitos nacionais), com as competências dos Estados-membros de determinarem os requisitos ou pressupostos da responsabilidade civil automóvel a deverem ser exercidas no quadro das Directivas europeias, complementadas ou integradas pelo conhecido princípio da interpretação conforme às Directivas das correspondentes normas de sua transposição para o ordenamento jurídico interno. É neste pano de fundo que deve ser compreendido e aplicado o artº 11º nº 2 do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto (Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel)[10]: “ O seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º[11] abrange os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas quando e na medida em que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine o ressarcimento desses danos”. Na certeza de que peões, ciclistas e afins, vector do contemporâneo aumento de protecção das vítimas da circulação rodoviária – “habitualmente a parte mais vulnerável num acidente” – assegurado pelo sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, se subsumem na (mais) ampla categoria de beneficiários da responsabilidade referida na primeira parte do nº 1 do artº 504º: “A responsabilidade pelos danos causados por veículos aproveita a terceiros”. Em conclusão, prevalecendo, pois, a concorrência entre o risco do veículo e a culpa da lesada, resta determinar quais os danos indemnizáveis e em que medida o são. O quantum indemnizatório A autora recorre de revista excepcional, pedindo que seja revogada a sentença e o acórdão a quo, condenando-se as recorridas a indemnizar a recorrente no montante a apurar nos termos do artigo 570° do Código Civil. A lesada pede uma indemnização no montante de € 195.440,65 acrescidos de juros moratórios à taxa legal. Segundo o disposto no artigo 483º nº 1, do Código Civil, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.” Deste dispositivo legal retira-se que a responsabilidade civil extracontratual pressupõe um facto voluntário e ilícito, o nexo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Estabelece-se no artigo 564º, do Código Civil que: o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, mas também os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (nº1); na fixação da indemnização pode ainda o tribunal atender aos danos futuros, desde que previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (nº2). A obrigação de indemnizar, a cargo do causador do dano, deve reconstituir a situação que existiria "se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação" – artº 562º do Código Civil. Não sendo isso possível ou quando a reconstituição natural não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro – artº 566º nº 1, do Código Civil. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará segundo a equidade, conforme preceitua o nº 3, do artº 566º do Código Civil. Vejamos separadamente cada um dos danos peticionados Danos patrimoniais A autora pediu que as rés fossem condenadas a pagar-lhe a quantia de € 440.65 respeitantes a tratamentos e a outros gastos médicos. Relativamente aos danos patrimoniais os mesmos foram alegados nos artigos 39º a 43º da petição inicial. No artigo 40º alegou que despendeu a título de tratamentos e outros gastos médicos a quantia de € 440,65,00. Este facto não se mostra provado, como, aliás, decorre da fundamentação da sentença da 1ª instância relativamente à matéria de facto (cfr. fls 417). Alega ainda a autora no artigo 42º e 43º da petição inicial que foi ainda solicitada pelo Centro Hospitalar de ... o pagamento da quantia de € 7.693,72, cujo valor não foi pago por manifesta incapacidade da autora. Efectivamente, o interveniente principal Centro Hospitalar de ... veio deduzir, contra as rés seguradoras, o pagamento da quantia de € 7.718,22 (Fls 154 a 157). Uma tal quantia lhe deverá ser paga, pois ficou provado no nº 29 da Fundamentação de facto que: “Para tratamento das lesões que a autora sofreu decorrentes do acidente, o Centro Hospitalar de ... despendeu a quantia total de € 7.718,22”. Pelo dano patrimonial futuro, a autora pede a quantia de € 90.000,00, alegando os respectivos factos nos artigos 71º a 87º da petição inicial. O núcleo essencial dos factos provados é o seguinte: - Em consequência das lesões decorrentes do acidente, a autora apresenta sinovite residual do joelho esquerdo, desvio em varus do joelho esquerdo em 5o, gonalgia residual antero interna esquerda, amiotrofia da coxa esquerda de 2cm e limitação da flexão a 130o do joelho esquerdo que determinam um défice funcional permanente da integridade física fixável em 8,95 pontos, susceptível de agravamento em função da sequela do joelho esquerdo – (18). - Em consequência das sequelas referidas em 18, a autora apresenta marcha claudicante sem recurso a ajudas técnicas e no membro inferior direito apresenta cicatriz deprimida na face interna do joelho de 1x1 cm e vestígios cicatriciais na face externa do joelho. No membro inferior esquerdo apresenta cicatriz na face interna do joelho de 3,1x1,5 cm, cicatriz na face externa de 2,5x1,5 cm, amiotrofia da coxa, limitação da flexão do joelho e aparente dismetria do membro – (19). - Em consequência das lesões decorrentes do acidente, a autora apresenta perturbação de stress pós traumático fixável em 8 pontos que poderá ser reduzida ou desaparecer se a autora beneficiar de acompanhamento pedopsiquiátrico e/ou psicologia clínica – (21). - As sequelas referidas em 18, dependente da área de formação a seguir pela autora, são passíveis de determinar esforços suplementares no exercício da sua actividade profissional- (26). - Em consequência das lesões decorrentes do acidente, a autora não pode executar ginástica acrobática e tem dificuldades na prática da natação, actividades a que se dedicava, o que lhe acarreta uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável num grau 6 numa escala de 7 de gravidade crescente (27). -A autora nasceu no dia 13-04-1999, tinha 12 anos à data do acidente e frequentava o Instituto Educacional do ... (31). A lesada tem direito a ser indemnizada por danos patrimoniais futuros resultantes de incapacidade permanente, prove-se ou não que, em consequência dessa incapacidade, haja resultado diminuição dos seus proventos do trabalho (diminuição da capacidade geral de ganho)[12]. A lei ordinária não contém regras precisas destinadas à fixação da indemnização por danos futuros, devendo a mesma calcular-se segundo critérios de verosimilhança, ou de probabilidade, de acordo com o que, no caso concreto, poderá vir a acontecer; e se não puder, ainda assim, apurar-se o seu exacto valor, deve o tribunal julgar segundo a equidade, nos termos enunciados no artigo 566° nº 3, do Código Civil. O recurso à equidade não afasta, todavia, a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade (cf. artº 13º, nº1, da CRP), o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível, naturalmente, com a devida atenção às circunstâncias do caso. Quer isto significar que as decisões judiciais devem ter em consideração os critérios jurisprudenciais adoptados em casos idênticos por forma a obter, tanto quanto possível, uma interpretação e aplicação uniforme do direito (cf. art.º 8º nº 3, do CC). Assim, é com base na equidade que este tribunal deve fixar os montantes indemnizatórios aqui em causa. O julgamento de acordo com a equidade envolve um juízo de justiça concreta e não um juízo de justiça normativa, razão por que a determinação do quantum indemnizatório não traduz, em rigor, a resolução de uma questão de direito. Neste contexto, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça deve reservar-se à formulação de um juízo crítico de proporcionalidade dos montantes decididos em face da gravidade objectiva e subjectiva dos prejuízos sofridos. A sua apreciação cingir-se-á, por conseguinte, ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado[13]. Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, mostra-se consolidado o entendimento de que a limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz esta incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial. E tem sido considerado que, no que aos primeiros respeita, os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física; por isso mesmo, não deve ser arbitrada uma indemnização que apenas tenha em conta aquela redução[14]. Retomando o decidido no acórdão do STJ de 06-12-2018: “Quer isto significar que, tal como se referiu no ac. do STJ de 26.1.2017 (proc. 1862/13.7TBGDM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), “havendo uma incapacidade permanente, mesmo que sem rebate profissional, sempre dela resultará uma afectação da dimensão anatomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efectiva utilidade do seu corpo ao nível de actividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que de futuro terá de levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo. E é neste agravamento de penosidade que se radica o arbitramento de uma indemnização”. Efectivamente, e acolhendo o entendimento plasmado no acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012 (proc. nº 632/2001.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt): “ (…) A compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou conversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas. Na verdade, a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado - constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável – e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição -, erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais (…)”. “Nesta perspectiva, deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua junta compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal …”. “Para além de danos de natureza não patrimonial, a afectação da integridade físico-psíquica de que o lesado fique a padecer é susceptível de gerar danos patrimoniais, caso em que a indemnização se destina a compensar não só a perda de rendimentos pela incapacidade laboral, mas também as consequências dessa afectação, no período de vida expectável, seja no plano da perda ou diminuição de outras oportunidades profissionais e/ou de índole pessoal ou dos custos de maior onerosidade com o desempenho dessas actividades. Neste contexto, para determinar a indemnização pelos danos futuros, utilizam-se habitualmente os seguintes critérios orientadores: - A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinga no final do período provável de vida do lesado; - As tabelas financeiras ou outras fórmulas matemáticas, a que, por vezes, se recorre, têm um mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equidade; - Pelo facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros, o montante apurado deve ser, em princípio, reduzido de uma determinada percentagem, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado, à custa alheia; Por outro lado, o julgamento de equidade, como processo de acomodação dos valores legais às características do caso concreto, não deve prescindir do que é normal acontecer (id quod plerumque accidit) no que se refere à expectativa de vida do cidadão masculino médio, à progressão profissional, e aos previsíveis aumentos da remuneração salarial”. No tocante aos danos patrimoniais futuros, tendo em conta os factos a considerar no caso concreto e a que já nos referimos como constituindo o núcleo essencial, atendendo às repercussões danosas das lesões sofridas pela autora, no plano estritamente material e económico, tendo em atenção a sua idade (actualmente com 18 anos), considerando a vida activa pelo menos até aos 65 anos, reputamos como adequado e não excessivo o montante indemnizatório de € 80.000,00, (oitenta mil euros) valor que é alcançado através de juízos de equidade. O dano biológico e os danos não patrimoniais Esta matéria vem alegada nos artigos 44 a 69 da petição e ficou provada, designadamente nos nºs 13 a 28 da Fundamentação de facto. A autora pede as quantias de € 75.000,00 e de € 30.000,00, respectivamente, para o dano biológico e para os danos não patrimoniais. Comecemos pelo dano biológico Segundo o acórdão do STJ de 20-05-2010[15] “ A maioria da jurisprudência, e certa doutrina, consideram o dano biológico como de cariz patrimonial. (cf., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 2009 e os Acórdãos de 4 de Outubro de 2007 – 07B2957, de 10 de Maio de 2008 – 08B1343, 10 de Julho de 2008 – 08B2101, e de 6 de Maio de 1999 – 99B222, e Prof. Sinde Monteiro, in “Estudos sobre a Responsabilidade Civil”, 248). Em abono deste entendimento refere-se que, mesmo não havendo uma repercussão negativa no salário ou na actividade profissional do lesado – por não se estar perante uma incapacidade para a sua actividade profissional concreta- pode verificar-se uma limitação funcional geral que terá implicações na facilidade e esforços exigíveis o que integra um dano futuro previsível, segundo o desenvolvimento natural da vida, em cuja qualidade se repercute. Mas também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial (sublinhado nosso). Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso como decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos…) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia. E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica. Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta directa – ou indirectamente – no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral. A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade. E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial. Este tema foi tratado por Maria da Graça Trigo[16] que, após uma análise exaustiva da doutrina e de alguma jurisprudência, concluiu da seguinte forma: “2. O dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/ danos não patrimoniais; 3. Quando a prática jurisprudencial nacional se afasta das conclusões do número anterior tende a obscurecer a clareza dos fundamentos das decisões e a causar eventuais injustiças; 4. O tratamento do conceito de dano biológico teve todavia a vantagem de permitir percepcionar a existência de componentes do dano real habitualmente esquecidos para efeitos indemnizatórios. Mas damos como certo que apenas danos de consequências não patrimoniais se podem presumir como sendo comuns a todas as pessoas que sofram o mesmo tipo de lesão psico-somática; 5. A compensação destas consequências de índole não patrimonial poderá efectuar-se mediante recurso a uma tabela indemnizatória de carácter indicativo que, porém, não dispensa a ponderação casuística pelo julgador de outros danos não patrimoniais, danos variáveis de sujeito para sujeito e que, na senda da doutrina italiana, poderemos qualificar como “danos não patrimoniais subjectivos”. Danos não patrimoniais Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (artº 496º, nº 1). O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º (artº 496º, nº 3). Embora sejam insusceptíveis de avaliação pecuniária bastante para contrapor às dores e sofrimentos, uma situação que, se não anule, ao menos atenue ou minore, de modo significativo os danos dela provenientes. Compreende tais danos as fortes dores devidas ao acidente e em correlação com os tratamentos e intervenção cirúrgicas sofridas. Trata-se de danos cuja dimensão não obedece aos critérios correntes de avaliação. O artigo 496º nº 1 limita-se a fornecer um critério com alguma elasticidade, mas inspirado numa razão objectiva, sobre a qual há-de assentar o juízo de equidade. Nessa perspectiva, só são atendíveis os danos não patrimoniais que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Ora, um dano grave não é um dano exorbitante ou excepcional, mas é aquele que sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade. É um dano considerável que, no seu mínimo espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação. Para a dor moral ou psíquica é impossível estabelecer escalas peremptórias: dentro do critério da gravidade, seguir-se-ão os ensinamentos da experiência humana em termos de afectividade e sentimento, segundo um prudente arbítrio de indemnização. Importa, neste âmbito, encontrar o adequado quantitativo em dinheiro, através do qual se alcança um prazer de neutralizar a dor sofrida. Nestes danos interfere em especial a natureza e intensidade do sofrimento causado e a sensibilidade do lesado e duração da dor. Aqui chegados, há que formular um juízo equitativo que conduza à quantificação do dano biológico sofrido pela lesada (autora). O montante da indemnização do dano biológico, nas circunstâncias do caso concreto, será fixado pelo tribunal conjuntamente (não o autonomizando) com os danos não patrimoniais. Assim, ponderando as circunstâncias concretas constantes dos factos provados, afigura-se-nos conforme a equidade fixar tais danos (o biológico e o não patrimonial) no montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros). Todavia, importa ainda fazer intervir o disposto no artigo 570º do Código Civil. Preceitua o nº 1 deste artigo que: “ Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que dela resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”. No concurso entre o risco e o facto da lesada, a actuação da autora teve um peso significativo na produção do dano, considerada a gravidade que encerra o atropelo das regras de trânsito no caso violadas, a justificar, por isso, a redução significativa da indemnização. Assim, afigura-se-nos, no plano de uma adequada ponderação de interesses, que a justiça do caso concreto, em que a equidade se funda, não pode perder de vista a própria condição da vítima ao tempo da produção do dano – uma criança de 12 anos que, com a despreocupação e imprudência próprias da idade, atravessou a estrada da direita para a esquerda, em passo de corrida, quando o veículo ...-EB seguia na via de trânsito no sentido Norte-Sul, a uma velocidade de cerca de 40 Km/hora, ao lado do autocarro, estando a cerca de metade do seu comprimento. Por conseguinte, os montantes de indemnização acima aludidos não devem ser objecto de redução que ultrapasse 60% do seu valor, entendendo-se conforme à equidade fixá-la, no quadro do artigo 570º nº 1, em € 52.000,00 (cinquenta e dois mil euros) - (€ 80.000,00 + € 50.000,00 = € 130.000.00 x 60% = € 52.000,00). Responsável por esta indemnização é a ré Companhia de Seguros ... SA, cuja responsabilidade civil decorrente da circulação de veículo de matrícula ...-EB foi transferida para esta ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ... – Facto provado sob º nº 33. A ré Companhia de Seguros BB SA, é também responsável pelo pagamento ao Centro Hospitalar ... no montante de € 7.718,22 – Cfr facto provado sob o nº 29. À ré Seguradoras EE, SA, na qualidade de seguradora do veículo de matrícula ...-UX, pesado de passageiros, nenhuma responsabilidade se lhe pode atribuir, já que tal veículo não foi responsável pelo acidente. III - DECISÃO Atento o exposto, julga-se parcialmente procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido, condenando-se a ré Companhia de Seguros BB, SA a pagar à autora a quantia de € 52.000,00, acrescida de juros, à taxa legal, a partir da citação e ao Centro Hospitalar ..., EPE o montante de € 7.718,22. Absolve-se a ré Seguradoras, SA do pedido. Custas aqui e nas instâncias por autora e ré Companhia de Seguros BB, SA na proporção dos respectivos decaimentos. Lisboa, 28 de Março de 2019 Ilídio Sacarrão Martins (Relator) Nuno Manuel Pinto Oliveira Paula Sá Fernandes ---------------------------- [1] “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação”, in “Direito e Justiça”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa”, “Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier”, , Volume II, 2015, pág 473. [2] Proc.º nº 07B1710, in www.dgsi.pt/jstj [3] Ainda que com dois votos de vencido. [4] As Directivas comunitárias em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel são as seguintes: Directiva 72/166/CEE, do Conselho de 24 de Abril; Directiva 84/5/CEE, do Conselho de 30 de Dezembro; Directiva 90/232/CEE, do Conselho de 14 de Maio; Directiva 2000/26/CE, do Conselho de 16 de Maio e Directiva 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Maio. Entretanto, estas directivas foram consolidadas na Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Setembro. Como veremos infra , no ponto 4.1. do texto, é da 5ª Directiva (2005/14/CE) que resulta a necessidade de repensar o direito da responsabilidade civil de forma a tutelar categorias de vítimas tidas como especialmente frágeis. [5] Como assinala Calvão da Silva, que acrescenta: “Modus julgandi este que, com mais ou menos consciência, vai ao encontro do direito comunitário, concretamente da Directiva 2005/14/CE” (“Concorrência entre risco do veículo e facto do lesado: o virar da página?”, in RLJ, Ano 137º (2007), pág. 52). [6] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 7ª ed., pág. 664. [7] Ver Brandão Proença, “ A CONDUTA DO LESADO COMO PRESSUPOSTO E CRITÉRIO DE IMPUTAÇÃO DO DANO EXTRACONTRATUAL”, Reimpressão da edição de Novembro/1997, Almedina, 2007, pág. 266 a 282. [8] Ac. STJ de 05-06-2012, Proc.º nº 100/10.9YFLSB. [9] RLJ, Ano 137º, 2007, pág.52 e 53, em anotação ao acórdão do STJ de 04-10-2007. [10] Declaração de rectificação nº 96/2007, de 19 de Outubro. [11] Danos pessoais e patrimoniais. [12] Ac STJ de 15.01.2004, Proc.º nº 03B3926, in www.dgsi.pt/jstj [13] Ac STJ de 06-12-2018, Proc.º nº 652/16.0T8GMR.G1.S2, in www.dgsi.pt/jstj [14] Entre outros, o acórdão do STJ de 28-01-2016, Proc. nº 7793/09.8T2SNT.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj. [15] Proc.º nº 103/2022.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj [16] “Adopção do conceito de Dano Biológico pelo Direito Português”, in ROA, Ano 72, Jan/Mar.2012, pág 177. |