Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2839/20.1T8AVR.P1.S2
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
MOTOCICLO
CULPA DO LESADO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Data do Acordão: 05/28/2024
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. Resultando da dinâmica do acidente que foi o condutor do motociclo quem invadiu a faixa de rodagem contrária, onde circulava o veículo pesado e nele embateu, a culpa exclusiva do acidente é do condutor do motociclo.

II. Não há concorrência entre a culpa do lesado e o risco do veículo se o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do lesado.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO

l. AA e BB intentaram ação declarativa de condenação em processo comum contra Companhia de Seguros, Allianz Portugal SA, pedindo a sua condenação no pagamento aos autores da quantia de € 99.500,00 por danos patrimoniais e não patrimoniais, próprios da vítima e próprios dos AA, tudo acrescido de juros de mora vincendos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento à taxa legal de 10%, que resultaram de acidente de viação imputável ao condutor do veículo segurado e que causou a morte do seu filho CC.

2. A ré contestou, pedindo a absolvição pelo facto do acidente se dever a culpa exclusiva do condutor do motociclo que invadiu a faixa de rodagem por onde circulava, em sentido contrário, o veículo segurado; este ainda tentou travar, mas, face à proximidade entre os veículos, o embate entre a lateral esquerda do motociclo e o canto e roda direita do pesado foi inevitável; desconhece os danos sofridos pelos Autores, sendo as quantias reclamadas pelos AA indevidas ou excessivas.

3. Dispensada a realização da audiência prévia, procedeu-se à elaboração de despacho saneador.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento após o que foi proferida sentença que absolveu a ré do pedido, porque, «não resultando que o acidente tenha resultado da infração de regras estradais por parte do condutor do veículo pesado de mercadorias, mas antes à infração de regras estradais por parte do falecido condutor do motociclo, não poderá a Ré ser responsabilizada pelos danos sofridos».

4. Os Autores interpuseram recurso de apelação da sentença, impugnando a matéria de facto no que respeita aos números 13, 14, 15, 16, 17, 19, 20 e 34 dos factos dados como provados e no que respeita às alíneas A, B, C, E, F, G, H e J, dos facos não provados.

Em 12 de setembro de 2022 proferiu-se acórdão no Tribunal da Relação do Porto a julgar improcedente a apelação e nessa conformidade julgar improcedente a impugnação da decisão de facto e confirmar a sentença.

Os Autores interpuseram recurso de revista, suscitando a nulidade do acórdão proferido, tendo a conferência na Relação desatendido a nulidade.

Admitido o recurso, o STJ proferiu decisão sumária, mantendo a decisão recorrida quanto à não admissão e desentranhamento dos documentos juntos com as alegações da apelação e revogou parcialmente o acórdão recorrido, para que se proceda à apreciação dos pontos e alíneas que, relativamente à impugnação da decisão da matéria de facto, foram rejeitados, com as eventuais consequências quanto à matéria de direito.

Em cumprimento da decisão proferida no STJ, a Relação procedeu à reapreciação dos pontos 16, 17, 19 dos factos provados e alíneas E), H) e J) dos factos julgados não provados, reproduzindo-se o já decidido quanto à restante reapreciação da decisão de facto e omitindo-se a apreciação da questão relacionada com a admissão dos documentos, a qual foi já reapreciada por decisão, com trânsito em julgado no STJ, concluindo pela improcedência da impugnação da matéria de facto, mantendo inalterada a decisão de facto, com a consequente confirmação da decisão de direito tomada pela 1.ª instância.

5. Novamente inconformados, os autores interpuseram recurso de revista excepcional, com o fundamento previsto na alínea a) do número 1, do artigo 672° do CPC, apresentando alegações, com as seguintes conclusões:

1ª O Acórdão cuja revisão excecional ora se peticiona violou elementares normas jurídicas como as da apreciação da culpa (artigo 487° n° 2 do Código Civil, da colisão entre veículos e a da gravidade de culpas concorrentes que foram causa direta e necessária do acidente dos Autos (artigos 506 e 570 n° 1, ambos do Código Civil.

2ª Ao desresponsabilizar o condutor do pesado de mercadoria que imprimia, no momento do acidente, uma velocidade excessiva, quer absolta, quer relativa, em mais de 30 km/hora. o Acórdão cuja revisão se pede, é contrário à doutrina dominante, em especial a proferida por Manuel Andrade e Vaz Serra.

3ª Por outro lado, a esmagadora maioria da Jurisprudência responsabiliza sempre, em menor ou maior grau, dependendo das circunstâncias concretas verificadas na produção do acidente, todo o condutor que circule com excesso de velocidade, a causa maior da sinistralidade que ocorre no Pais. De facto,

4ª O nexo de causalidade existente entre a violação das regras estradais, em especial, as contidas nos artigos 27° e 28° do Código da Estrada, e a verificação do acidente existe quase sempre, como existiu no caso dos presentes autos.

5ª Não fora a condução com velocidade excessiva que o condutor do pesado de mercadoria imprimia ao veículo que conduzia, podia ter-se desviado do motociclo, ocupando, com tal desvio, o espaço livre à sua direita, evitando, assim, o acidente.

6ª Ainda, por outro lado, os acidentes de viação, mormente as colisões entre os veículos, são causa de grande perturbação pública que a comunidade, em geral, e o poder jurisdicional, em especial, deve reprimir continuadamente e de forma persistente de forma a dissuadir a condução de veículos com excesso de velocidade, quer absoluta quer relativa.

7ª Tais são os fins que se pretende obter com a Revisão do objeto em litígio dos presentes autos, encontrando-se, deste modo, preenchidos os concretos pressupostos definidos no artigo 672°, n° 1, alínea a) e n° 2-, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil.

8ª Em ... de ... de 2020, os ora Recorrentes, AA e sua mulher BB, intentaram no Tribunal Judicial de ..., da Comarca do Baixo Vouga, a presente ação contra a aqui Recorrida, Companhia de Seguros Allianz, S.A. para o pagamento de indemnização resultante de Acidente de Viação ocorrido no dia ... de ... de 2015, pelas 23horas e 40 minutos, na Estrada Nacional n° 1, ao Km ..., na localidade das ..., União de Freguesia de ..., concelho de ...;

9ª Em tal acidente foram intervenientes o motociclo de matrícula ..-BF-.., que pertenceu a CC e por este tripulado, filho único dos identificados Recorrentes e o veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-HI-.., pertencente à Sociedade ..., Lda"., com sede social no ..., cidade e concelho de ... e que era conduzido no interesse, sob as ordens e direção efetiva da referida Sociedade por DD.

10ª A responsabilidade civil, a favor de terceiros, pelos danos causados pelo pesado de mercadorias ..-HI-.., havia sido transferida para a Recorrida Seguradora, Ré na ação, por contrato válido de seguro, titulado pela Apólice n° .......29/5.

11ª Deste acidente de viação resultou a morte do condutor do identificado motociclo, o já referido CC e a perda total do motociclo ..-BF-...

12ª Como indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais, próprios e da vítima CC, os Recorrentes peticionaram o montante de 99.500,006, cujo pagamento reclamaram da Companhia Seguradora Allianz, S A.

13ª A Ia Instância deu como provado que o local onde se verificou o acidente, consistente numa colisão entre os dois veículos intervenientes, a Estrada Nacional n° 1 é uma extensa recta, com cerca de 300 metros, ladeada de ambos os lados com passeios, sendo precedida por uma curva de desenho à direita, atento o sentido Sul-Norte, ampla e com boa visibilidade, tem uma largura de 6 metros e no piso, asfáltico, encontra-se desenhada, no eixo da via, uma linha longitudinal contínua.

14ª Ainda na zona onde se verificou o acidente, existem, em ambos os sentidos, sinais de trânsito proibitivos de transitar a velocidade superior o 50km/hora;

15ª A colisão entre os dois veículos verificou-se entre a frente do lado esquerdo (canto esquerdo) do pesado de mercadorias e a parte lateral esquerda do motociclo.

16ª A 1.ª Instância proferiu Douta Decisão na qual o acidente ficou a dever-se, exclusivamente, ao condutor do motociclo ..-BF-.. que à hora do acidente circulava pela Estrada Nacional n° 1, sentido Sul-Norte, porque o seu condutor, o malogrado CC, violou, culposamente, o artigo 13°, n° 1, do Código da Estrada, ao invadir a faixa de rodagem contrária à sua e por onde circulava, no sentido contrário, Norte - Sul, o pesado de mercadorias ..-HI-...

17ª Embora o Tribunal da Ia Instância tenha dado como provado que o pesado de mercadorias, constituído por trator com reboque acoplado, circulava à velocidade de cerca de 60km/hora no momento do acidente, violando assim, as regras estradais contidas nos artigos 27°, n° 1 e 28°, n° 1, b) ambos do Código da Estrada e ainda o artigo 24°, Cl3 do Regulamento de Sinalização de Trânsito, desvalorizou tal facto com o fundamento de que a velocidade excessiva em que vinha animado o pesado, 60km/hora, em nada contribuiu para o acidente, desresponsabilizando, assim, o condutor do pesado na produção do acidente.

18ª Inconformados com tal Decisão, os ora recorrentes apelaram para o Tribunal da Relação do Porto que no seu Douto Acórdão confirmou, inteiramente e sem voto de vencido, a Decisão do Tribunal da Ia Instância quer na decisão sobre a matéria de facto quer na decisão de mérito.

19ª Estas Doutas Decisões, a da Ia Instância e do Acórdão do Tribunal da Relação, são erróneas, ofendem a lei substantiva, são contrárias à melhor doutrina e opõem-se à jurisprudência dominante, causando uma enorme estupefação na comunidade geral e em particular na população da localidade das ... e zonas limítrofes, onde se têm verificado muitos acidentes de viação devido, essencialmente, ao excesso de velocidade com que circulam os veículos, de diversas categorias, pelo troço da E.N. n° 1.

20ª Resultando do croqui do acidente, elaborado pela GNR e que se encontra junto aos Autos, que o local provável do embate se verificou à distância de 2,50 metros da berma direita da estrada e na faixa de rodagem pertencente ao veículo pesado, fácil é de concluir que a tal invasão da faixa contrária à sua, realizada pelo condutor do motociclo, foi feita em apenas 0,50 centímetros ou meio metro, uma vez que tal faixa de rodagem tem a largura de 3 metros.

21ª O veículo pesado, embora o seu condutor tenha avistado o motociclo, dada a extensão da recta da estrada, não virou ligeiramente para a direita, quando podia e devia fazê-lo afim de evitar o acidente nem esboçou qualquer travagem antes da colisão com o motociclo e deixou desenhado no piso um rasto do pneumático traseiro esquerdo com a extensão de 15 metros, só parando quando a roda dianteira esquerda do pesado embateu no lancil do passeio que pelo lado esquerdo, atento o sentido de marcha Norte-Sul, precisamente o sentido de marcha do pesado.

22ª O condutor do veículo pesado, DD, imprimia ao veículo pesado que conduzia no momento do acidente não só uma velocidade excessiva em termos absolutos como também em termos relativos já que atravessava uma localidade, com grande aglomerado urbano, facto que deveria ter alertado o condutor do pesado para imprimir ao veículo que conduzia uma velocidade adequada ao local de modo a fazer estacionar tal veículo no espaço livre e visível à sua frente.

23ª Apesar dos ora recorrentes não se encontrarem convencidos da justeza da decisão de facto, acatam-na e respeitam já que, tal decisão é definitiva, não podendo ser alterada por nenhum outro grau de jurisdição, dado o preceituado no artigo 674°, n° 3 do Código do Processo Civil.

24ª Todavia, a partir desta decisão sobre a matéria de facto, a decisão de mérito tem, necessariamente de ser outra diferente da que foi proferida. A isto obriga a lei em vigor, a doutrina e a jurisprudência.

25ª A culpa na produção do acidente, nos termos do artigo 487°, n° 2, do Código Civil, "é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso", consagrando, assim, o princípio da culpa em abstrato, conforme à diligência de um homem normal, medianamente sagaz, prudente e cuidadoso, em face do condicionalismo próprio do caso concreto.

26ª Em geral e em particular nos casos de acidentes de viação, a culpa constitui um vínculo de natureza psicológica na medida em que compromete a inteligência e a vontade, ligando o facto ao agente e implica, ao mesmo tempo, um juízo normativo de reprovação ou censura. Podendo e devendo fazer coisa diferente, o agente fez o que não devia.

27ª Nos presentes autos, o condutor do pesado de mercadorias não só excedeu o limite máximo de velocidade permitida pelo sinal de trânsito que proíbe uma velocidade superior a 50km/h como viola, ainda, o artigo 27° do Código da Estrada que impõe aos veículos pesados de mercadoria com reboque, uma velocidade não superior a 40km/hora, dentro das localidades.

28ª Assim e contrariamente ao que é dito no Douto Acórdão revidendo, o condutor do pesado de mercadorias excedeu a velocidade que por lei lhe é permitida em 20km/hora. É nesta exata medida que se verifica o excesso de velocidade absoluta em que vinha animado o pesado de mercadoria.

29ª Para além desta velocidade excessiva absoluta, o pesado de mercadoria circulava também com velocidade excessiva relativa visto que, o seu condutor sabia que tripulava um veiculo de grandes dimensões, mais difícil de manobrar e fazer parar no espaço livre e visível à sua frente, atravessa uma localidade densamente povoada, com casas de habitação de ambos os lados da estrada e que, à hora em que se verificou o acidente -23h40m - era noite escura com todas as limitações de visibilidade que tal hora acarreta.

30ª Por tudo isto, o condutor do pesado deveria imprimir ao veículo que conduzia, uma velocidade que lhe permitisse desviar-se, atempadamente, de qualquer obstáculo que lhe surgisse, pessoa, animal ou objeto, ou travar, estacionando de forma a evitar qualquer colisão, pelo que um bom pai de família ou homem de senso comum, critério previsto no artigo 487°, n° 2, do Código Civil, nunca devia circular com um veículo da natureza e dimensão do ..-HI-.., a atravessar uma localidade densamente povoada, a uma velocidade superior a 30 km/hora.

31ª Ao não o fazer, circulando com uma velocidade de 60km/hora, o condutor do pesado de mercadorias, conduzia de modo inadequado, sem respeito ao restante tráfego da via nem aos outros utentes, de forma negligente e descuidada.

32ª Por tudo isto, embora tenha avistado o motociclo a uma distância suficiente para encetar uma manobra de emergência, o condutor do pesado não se desviou para a sua direita para evitar a colisão, embora tivesse espaço suficiente para tal (passeios de baixo relevo com a largura de 5,90 metros que margina a estrada pelo seu lado direito, atento o sentido de marcha Norte-Sul nem travou antes do embate.

33ª A atribuição total da responsabilidade na produção do acidente ao condutor do motociclo é atentatória do direito e da lei substantiva. De facto,

34ª Face a matéria dada como provada pelas Instâncias, em especial no ponto 14 dos factos dados como provados, existirá culpa do condutor do motociclo na produção do acidente por ter violado o artigo 13° do Código da Estrada em 50 centímetros, mas também tem culpa o condutor do pesado ao ter violado os artigos 27° e 28° do Código da Estrada, sendo que, a conduta do condutor do pesado é incomensuravelmente maior do que a culpa que possa ser assacada ao condutor do motociclo.

35ª A excessiva velocidade com que tripulava o pesado, velocidade excessiva quer absoluta quer relativa, o facto de nada ter feito para evitar, facilmente, a colisão, quer usando o travão quer fazendo desvio para a sua direita, torna o condutor do veículo pesado muito mais culposo na verificação do acidente.

36ª Assim, as Instâncias ao decidirem pela culpa exclusiva do condutor do motociclo, falecido em consequência direta e necessária do acidente, fizeram tábua razão, não tomando em consideração, o preceituado nos artigos 506° e 570°, n° 1, do Código Civil.

37ª A culpa na verificação do acidente deve ser atribuída a ambos os condutores dados que ambos contribuíram, culposamente, para a produção do acidente, verificando-se aqui uma autêntica concorrência da culpa.

38ª Na fixação da contribuição da culpa aos condutores intervenientes na colisão dos veículos, deve ser atribuída 25% ao condutor do motociclo, CC e 75% ao condutor do pesado, DD, porque a conduta deste é muito mais censurável e reprovável do que a daquele.

39ª Sendo este, igualmente, o Douto entendimento de Vossas Excelências, fixando a concorrência da culpa de ambos os condutores na proporção acima referida ou outra proporção que o Vosso sábio entendimento fixar, reproduz-se, sinteticamente, para efeito de ser apurado o montante da indemnização a pagar pela Recorrida Companhia de Seguros Allianz, SA., o valor indemnizatório peticionado na ação, artigos 45° a 61° da petição inicial, excetuando o dano patrimonial resultante da perda total do motociclo (artigo 66° da petição) dado o facto não provado na alínea J, reduzindo-se o valor do motociclo para 1.000,006 (mil euros), o que perfaz o montante indemnizatório total na quantia de 98.500,006 (noventa e oito mil e quinhentos euros), tendo sempre em linha de conta a matéria dada como provada, para este efeito, nos pontos 25, 26, 27, 28,29, 30, 31, 32,33 e 34.

6. Por decisão singular foi determinado a remessa dos autos à formação deste Tribunal nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 672 do CPC

7. Por Acórdão da Formação de 03-04-2024 foi admitida a revista excepcional.

Consta desse Acórdão o seguinte:

«6. A Formação tem vindo a defender que a relevância jurídica de uma questão decorre do elevado grau de complexidade que lhe é inerente, da circunstância de suscitar controvérsia a nível doutrinário e/ou jurisprudencial ou do seu caráter inédito, a demandar uma intervenção do Supremo Tribunal de Justiça suscetível de constituir orientação jurisprudencial na matéria.

Alegam os recorrentes que a aplicação que no caso conheceram as normas jurídicas atinentes à apreciação da culpa, colisão de veículos e gravidade de culpas concorrentes (artigos 487.º, n.º 2 506.º, 570.º, n.º 1 do Código Civil) contraria o entendimento da doutrina dominante e da jurisprudência, que “responsabiliza sempre, em maior ou menor grau, dependendo das circunstâncias verificadas na produção do acidente, todo o condutor que circule com excesso de velocidade, a causa maior da sinistralidade que ocorre no País.”

Está em causa, no processo em apreço, apurar a repartição de responsabilidades na causação de um acidente de viação, provocado pela colisão do motociclo conduzido pela vítima mortal (filho dos autores) com o veículo pesado de mercadorias, cuja responsabilidade civil por danos causados a terceiros decorrentes da circulação se encontrava, à data do sinistro, transferida para a ré seguradora.

Tendo resultado provado que a colisão ocorreu pela circunstância de o motociclo ter invadido a faixa de rodagem por onde circulava o pesado, a velocidade superior ao permitido no local, consideraram as instâncias que “não resultando que o acidente tenha resultado da infracção de regras estradais por parte do condutor do veículo pesado de mercadorias mas antes à infracção de regras estradais por parte do falecido condutor do motociclo, não poderá a Ré ser responsabilizada pelos danos sofridos.”

7. O tema em apreço, que nuclearmente se prende com a matéria do concurso entre a

culpa do lesado e o risco do veículo (e que igualmente convoca a interpretação da norma previsto no artigo 505.º do Código Civil), não obstante ser objeto de recorrente análise por parte dos tribunais, tem vindo a suscitar renovado debate doutrinário e jurisprudencial, à luz dos desenvolvimentos da jurisprudência do TJUE na matéria e da necessidade de revisitação da problemática atinente à culpa e causalidade, e à articulação entre o direito europeu do seguro automóvel e o direito da responsabilidade civil. Justifica-se, assim, com este enfoque e a nosso ver, a intervenção clarificadora e estabilizadora do Supremo Tribunal de Justiça num caso, como o presente, em que do acidente de viação resultou a perda da vida do lesado.

Conclui-se, pois, pela relevância jurídica qualificada da questão objeto de recurso, conducente à admissão da revista excecional».

II – FUNDAMENTAÇÃO

Foram dados como provados os seguintes factos:

1. Os Autores são pais e únicos herdeiros de CC, falecido que foi no dia ........2015 em virtude do acidente de viação.

2. A responsabilidade civil por danos causados a terceiros decorrentes da circulação do veículo com a matrícula ..-HI-.., encontrava-se transferida, à data do acidente, para a Ré Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA através de contrato de seguro titulado pela apólice com o n.º .......29/5.

3. O acidente referido em 1 ocorreu no dia ... de ... de 2015, cerca das 23horas e 40 minutos, na Estrada Nacional nº 1, ao Km ..., na localidade das ..., União de Freguesia de ..., concelho de ..., sendo intervenientes o motociclo de matrícula ..-BF-.., que pertenceu a CC e o veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-HI-.., pertencente à Sociedade ..., Lda, com sede social no ..., cidade e concelho de ....

4. O veículo pesado de mercadorias era conduzido por DD que o fazia sob as ordens e interesse da proprietária de tal veículo a “Sociedade ..., Lda

5. Este pesado de mercadorias ..-HI-.. era composto de trator que trazia acoplado o semirreboque de matrícula L-142104.

6. O tempo estava seco, a estrada era de bom piso asfaltado, sendo o local do acidente uma reta precedida por uma curva de desenho à direita, aberta e de boa visibilidade, atento o sentido Sul – Norte.

7. Ainda no local onde ocorreu o acidente, a estrada era constituída por duas vias de trânsito, uma em cada sentido, separadas por uma linha longitudinal contínua, com 6 metros de largura total, ladeada de ambos os lados com passeio e em ambos os sentidos existia, e existe, um sinal proibitivo de exceder a velocidade máxima de 50km/hora.

8. Imediatamente antes da referida curva de desenho à direita e atendendo sempre ao sentido Sul – Norte, existe um sinal luminoso de semáforo que é acionado por sensor de velocidade existente a cerca de 100 metros do referido semáforo, para quem circule com velocidade superior a 50 km/hora.

9. No dia e hora em que ocorreu o acidente, o sensor e o semáforo referidos encontravam-se em pleno funcionamento.

10. No sentido Norte-Sul da referida estrada Nacional nº 1, esta configura uma extensa reta, com mais de 300 metros.

11. No dia, hora e local do acidente, o referido motociclo ..-BF-.. era conduzido pelo seu proprietário CC, no sentido SUL-NORTE (Coimbra - Porto) daquela E.N. nº 1, pela hemifaixa direita de trânsito;

12. Por sua vez, o aludido pesado de mercadorias ..-HI-.., conduzido por DD, circulava no sentido NORTE-SUL (Porto - Coimbra), daquela referida via.

13. O pesado de mercadorias circulava pela faixa de rodagem da direita, a cerca de 60 km/h, quando em determinado momento do seu trajeto, surgiu a circular em sentido contrário, ou seja no sentido Sul – Norte, o motociclo com a matrícula ..-BF-...

14 - Este, ao desfazer a ampla e aberta curva para a sua direita, alargou de tal forma a sua trajetória que, já em plena reta invadiu a faixa de rodagem da esquerda, atento o seu sentido de marcha, faixa essa por onde circulava o pesado.

15. Embatendo os dois veículos entre a lateral esquerda do motociclo e a frente do lado esquerdo do pesado,

16. O embate ocorreu dentro da faixa de rodagem direita atento o sentido de marcha do veículo pesado de mercadorias.

17. Após o embate, o condutor do pesado acionou os travões do veículo que conduzia.

18. Só parando quando embateu com o rodado dianteiro esquerdo no referido lancil do passeio que pelo lado esquerdo ladeia a E.N. nº 1.

19. Na sequência do acidente rebentou o pneu dianteiro do lado esquerdo do ..-HI-...

20. Ficou um rasto do pneumático esquerdo desenhado no piso da estrada com a extensão de cerca de 15 metros, o qual se inicia a 2,20 mtºs da berma direita, atento o sentido de marcha do pesado.

21. Em consequência do embate o falecido CC e o motociclo foram projetados para cima do passeio que margina o lado direito da E.N. nº 1, atendendo ao sentido Sul-Norte.

22. A distância entre o fim da curva em que está colocado o semáforo e o local provável de embate, assinalado no croqui, é de cerca de 45,50 metros.

23. O passeio que margina a Estrada Nacional n.º 1, pelo seu lado direito, atento o sentido norte-sul, é de pequeno relevo, tem uma largura de 5,90 metros, interrompido com inúmeras entradas de veículos.

24. Os ferimentos mais graves sofridos pelo condutor do motociclo, situam-se todos nos membros superiores e inferiores esquerdo.

25. Como consequência direta e necessária do acidente descrito, resultaram para o malogrado CC múltiplas lesões traumáticas meningo-encefálicas, tóraco-abdominais e dos membros superiores e inferiores que constituem causa adequada da sua morte.

26. Sendo o seu óbito declarado, no local, pelas 00h10m do dia ... de ... de 2015.

27. À data do acidente o falecido CC tinha 35 anos de idade

28. Era ... da ..., prestando serviço no ..., com boa saúde, forte e robusto e teria muito mais anos de vida não fora o terrível acidente.

29. Os Autores sofreram e ainda sofrem um grande desgosto com o desaparecimento súbito e trágico do CC, seu filho.

30. O CC era o seu único filho e entre este e os Autores existia uma profunda ligação sentimental, com respeito e muita estima mútua,

31. Os Autores, sexagenários à data da morte do CC, tinham neste um forte e único amparo que, devotadamente, lhes prestava, vivendo praticamente na mesma residência em ....

32. A morte deste representa para os Autores um enorme vazio que jamais será preenchido.

33. Os Autores vivem amargurados sem o seu ente querido e têm grande dificuldade para superar a perda do seu único filho.

34. Por causa direta do acidente, o motociclo interveniente de matrícula ..-BF-.., propriedade do CC ficou destruído, sendo irreparável.

35. O motociclo ..-BF-.. encontrava-se, à data do acidente, em bom estado de conservação e utilização,

36. Por causa deste acidente ocorreu um processo de inquérito aberto pelo Ministério Público da ..., Proc. nº 331/15.5..., processo em esse que veio a ser arquivado em .../2016 por não se ter apurado nenhuma responsabilidade do condutor do veículo seguro na R.

Não se provou que:

A. O condutor do veículo pesado ..-HI-.. imprimisse ao referido pesado uma velocidade superior a 60 km/hora,

B. Ao aproximar-se da curva referida em 6, invadisse a hemifaixa de rodagem em que seguia o motociclo ..-BF-.. e a este pertencente.

C. A colisão ocorresse na hemifaixa de trânsito sul-norte.

D. O condutor do motociclo circulasse a uma velocidade superior a 70 Km/h.

E. O condutor do pesado, antes do embate, ainda tentasse travar.

F. Os dois pneumáticos do motociclo e respetivas jantes, os seus faróis dianteiros, o guiador e os amortecedores dianteiros não sofressem danos.

G. O guarda-lamas que protege o pneu dianteiro esquerdo do pesado de mercadorias se encontre intacto.

H. As marcas no pavimento do pneumático do pesado se devam a rastos de travagem.

I. As marcas no pavimento do pneumático do pesado se devam ao rebentamento do pneu.

J. O valor do motociclo referido em 34 e 35 se compute em 2.000,00€ (dois mil euros), já deduzido o valor dos salvados.

III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.

A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação da Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

Ponderando as conclusões formuladas pelos Recorrentes e tendo em consideração o Acórdão da formação deste Tribunal a única questão a apreciar é a de se saber se o acidente em causa nestes autos deve ser atribuído apenas á culpa da vítima ou se deve haver concurso de culpas ou ainda se há concurso entre a culpa do lesado (vitima) e o risco.

1- A questão a decidir nos presentes é, assim, apenas uma a saber:

Quem foi o culpado pela produção do acidente em causa?

Foi o condutor do veículo pesado? Ou terá sido o lesado? Ou foram ambos os intervenientes e em que proporção?

Vejamos.

A) A presente acção tem por objecto a responsabilidade civil por danos decorrentes de acidente de viação.

Em matéria de acidente de viação a obrigação de indemnização tem por fonte a responsabilidade civil emergente de facto ilícito ou do risco.

Nos termos do artigo 483º, nº 1 do Código Civil (de cujo diploma passarão a ser os demais normativos que se vierem a citar sem referência à origem), «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

Dispõe o art. 487º, nº 1 do C.C. que “é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa”.

Acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo que «A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso».

Estatui também o artigo 506.º, do Código Civil, relativo á Colisão de veículos, indicado pelos Recorrentes nas suas alegações que:

1. Se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar.

2. Em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores.

E, nos termos do n.º 1 do artigo 570.º do mesmo diploma legal «quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».

B) O primeiro dispositivo atrás citado onde se consagra a teoria tradicional fixa, como pressupostos da obrigação de indemnizar, o facto, a ilicitude, o nexo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre este e o facto, cfr. A. Varela «Das Obrigações em Geral», Vol. I, pág. 404.

E a lei geral, consagrada no art. 483º, nº 1 do Cód. Civil, estabelece como pressuposto fundamental da responsabilidade civil por factos ilícitos a existência de culpa, seja na modalidade de dolo ou de mera culpa.

A responsabilidade objectiva ou pelo risco só existe em casos especificados na lei e inexiste «qualquer disposição legal abrangedora deste caso, que comine responsabilidade a título objectivo ou responsabilidade por acto lícito».

Assim, como «não deve ser considerada qualquer presunção de culpa » ( cfr., neste sentido, Sinde Monteiro, RLJ, ano 131º, pág. 378, e o citado Ac. da RP de 18/05/2000 ).

A culpa na definição dada pelo Prof. Galvão Telles, in «Manual de Direito das Obrigações», pág. 196, é a imputação psicológica de um resultado ilícito a uma pessoa. Se se produz um evento contrário à lei e esse evento é psíquico ou moralmente imputável a certo indivíduo diz-se que este agiu com culpa.

No Código Civil a culpa é apreciada em abstracto (artigo 487º, n.º 2 e 799, n.º 2).

2- Impõe-se apreciar agora, face aos supra enunciados princípios legais, o caso concreto.

Relembremos a matéria de facto com interesse para a decisão.

3. O acidente referido em 1 ocorreu no dia ... de ... de 2015, cerca das 23horas e 40 minutos, na Estrada Nacional nº 1, ao Km ..., na localidade das ..., União de Freguesia de ..., concelho de ..., sendo intervenientes o motociclo de matrícula ..-BF-.., que pertenceu a CC e o veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-HI-.., pertencente à Sociedade ..., Lda, com sede social no ... cidade e concelho de ....

4. O veículo pesado de mercadorias era conduzido por DD que o fazia sob as ordens e interesse da proprietária de tal veículo a “Sociedade ..., Lda

5. Este pesado de mercadorias ..-HI-.. era composto de trator que trazia acoplado o semirreboque de matrícula L-142104.

6. O tempo estava seco, a estrada era de bom piso asfaltado, sendo o local do acidente uma reta precedida por uma curva de desenho à direita, aberta e de boa visibilidade, atento o sentido Sul – Norte.

7. Ainda no local onde ocorreu o acidente, a estrada era constituída por duas vias de trânsito, uma em cada sentido, separadas por uma linha longitudinal contínua, com 6 metros de largura total, ladeada de ambos os lados com passeio e em ambos os sentidos existia, e existe, um sinal proibitivo de exceder a velocidade máxima de 50km/hora.

8. Imediatamente antes da referida curva de desenho à direita e atendendo sempre ao sentido Sul – Norte, existe um sinal luminoso de semáforo que é acionado por sensor de velocidade existente a cerca de 100 metros do referido semáforo, para quem circule com velocidade superior a 50 km/hora.

9. No dia e hora em que ocorreu o acidente, o sensor e o semáforo referidos encontravam-se em pleno funcionamento.

10. No sentido Norte-Sul da referida estrada Nacional nº 1, esta configura uma extensa reta, com mais de 300 metros.

11. No dia, hora e local do acidente, o referido motociclo ..-BF-.. era conduzido pelo seu proprietário CC, no sentido SUL-NORTE (Coimbra - Porto) daquela E.N. nº 1, pela hemifaixa direita de trânsito;

12. Por sua vez, o aludido pesado de mercadorias ..-HI-.., conduzido por DD, circulava no sentido NORTE-SUL (Porto - Coimbra), daquela referida via.

13. O pesado de mercadorias circulava pela faixa de rodagem da direita, a cerca de 60 km/h, quando em determinado momento do seu trajeto, surgiu a circular em sentido contrário, ou seja no sentido Sul – Norte, o motociclo com a matrícula ..-BF-...

14 - Este, ao desfazer a ampla e aberta curva para a sua direita, alargou de tal forma a sua trajetória que, já em plena reta invadiu a faixa de rodagem da esquerda, atento o seu sentido de marcha, faixa essa por onde circulava o pesado.

15. Embatendo os dois veículos entre a lateral esquerda do motociclo e a frente do lado esquerdo do pesado,

16. O embate ocorreu dentro da faixa de rodagem direita atento o sentido de marcha do veículo pesado de mercadorias.

17. Após o embate, o condutor do pesado acionou os travões do veículo que conduzia.

18. Só parando quando embateu com o rodado dianteiro esquerdo no referido lancil do passeio que pelo lado esquerdo ladeia a E.N. nº 1.

19. Na sequência do acidente rebentou o pneu dianteiro do lado esquerdo do ..-HI-...

20. Ficou um rasto do pneumático esquerdo desenhado no piso da estrada com a extensão de cerca de 15 metros, o qual se inicia a 2,20 mtºs da berma direita, atento o sentido de marcha do pesado.

21. Em consequência do embate o falecido CC e o motociclo foram projetados para cima do passeio que margina o lado direito da E.N. nº 1, atendendo ao sentido Sul-Norte.

22. A distância entre o fim da curva em que está colocado o semáforo e o local provável de embate, assinalado no croqui, é de cerca de 45,50 metros.

23. O passeio que margina a Estrada Nacional n.º 1, pelo seu lado direito, atento o sentido norte-sul, é de pequeno relevo, tem uma largura de 5,90 metros, interrompido com inúmeras entradas de veículos.

3- Perante esta factualidade a decisão da 1ª. Instância entendeu que o acidente se ficou a dever à culpa exclusiva da infeliz vítima, o que foi confirmado pelo Tribunal da Relação.

Em revista, pretendem os Autores que se altere o decidido e que se fixem as culpas de ambos os intervenientes em 25% para a infeliz vítima e em 75% para o condutor do pesado.

Perante entendimentos tão diversos qual a posição a adoptar?

Qual a percentagem correcta e justa da culpa de ambos os intervenientes no acidente, isto na hipótese de haver concorrência de culpas?

Ora, em nossa opinião não há que equacionar qualquer tipo de proporção de culpas dos intervenientes no acidente, pois que, sem qualquer margem para dúvidas, no caso concreto a culpa no desenrolar do acidente ficou a dever-se única e exclusivamente à infeliz vítima.

Em nossa opinião, com o devido respeito por opinião contrária e apesar da subjectividade que a concretização das condutas humanas sempre comporta, afigura-se-nos, sem qualquer dúvida, que a razão se encontra do lado da sentença da primeira instância e do Acórdão recorrido, que não merecem censura.

Da factualidade provada resulta inequivocamente que foi o condutor do motociclo (a infeliz vítima) quem teve culpa no desenrolar do acidente. Foi ele que com a sua conduta negligente deu causa ao acidente.

Basta relembrar a dinâmica do acidente para se concluir com segurança que a culpa na produção do acidente foi da infeliz vítima. E foi exclusiva.

Efectivamente está provado (ponto 13 dos factos provados) que «O pesado de mercadorias circulava pela faixa de rodagem da direita, a cerca de 60 km/h, quando em determinado momento do seu trajeto, surgiu a circular em sentido contrário, ou seja no sentido Sul – Norte, o motociclo com a matrícula ..-BF-..».

E o motociclo (ponto 14 dos factos provados) «ao desfazer a ampla e aberta curva para a sua direita, alargou de tal forma a sua trajetória que, já em plena reta invadiu a faixa de rodagem da esquerda, atento o seu sentido de marcha, faixa essa por onde circulava o pesado».

É, pois, o motociclo quem vai invadir a faixa de rodagem do pesado, ocorrendo o embate dentro da faixa de rodagem direita atento o sentido de marcha do veículo pesado de mercadorias, ou seja, dentro da faixa de rodagem do pesado (ponto 16 dos factos provados).

Foi o condutor do motociclo que com a sua conduta negligente, invadindo a faixa de rodagem onde circulava o pesado, quem deu causa ao acidente.

Ao condutor do pesado, apesar de circular com velocidade superior á permitida para o local, não pode ser imputada qualquer culpa no desenrolar do acidente.

Ninguém é obrigado a contar com a negligência alheia, pois apesar de o pesado circular a uma velocidade superior à permitida para o local se o motociclo não tivesse invadido a faixa de rodagem do pesado nunca o acidente teria ocorrido.

Foi devido à conduta da infeliz vítima que o acidente ocorreu.

A culpa é, assim, exclusiva do condutor do motociclo que devia ter tomado as cautelas necessárias para não invadir a faixa de rodagem contrária, na qual circulava o pesado em sentido contrário ao seu. Cautelas essas que claramente não tomou.

Concordamos inteiramente com o acórdão recorrido neste ponto particular.

Temos que o condutor do motociclo foi imprudente na sua conduta, circulando de forma temerária, sem atentar ao demais trânsito, de modo que invadiu a faixa de rodagem do pesado, que circulava na sua mão de trânsito, nas condições descritas.

Deste modo entendemos que o condutor do motociclo tem culpa na produção do acidente não podendo imputar-se ao condutor do pesado qualquer culpa, não obstante ter também desrespeitado uma regra estradal pois que deveria circular dentro dos limites legais de velocidade.

Não foi essa violação de uma regra estradal que deu causa ao acidente nem para ele contribuiu em qualquer medida, pois o condutor do pesado viu a sua faixa de rodagem ocupada pelo motociclo e nessas circunstâncias o acidente é inevitável.

Em suma, o acidente em causa nos autos ficou a dever-se à culpa exclusiva do condutor do motociclo.

C) Na decisão recorrida entendeu-se que a culpa da produção do acidente se ficou a dever ao próprio lesado e, por isso, julgou a acção improcedente.

Como se viu supra entendemos que que essa decisão deve manter-se inalterada, não se acolhendo a versão dos Recorrentes (que imputavam a produção do acidente à culpa de ambos os intervenientes).

Mas será que a acção deveria proceder pois que sempre haveria concorrência entre «culpa do lesado e o risco do veículo».

Pela nossa parte não temos qualquer dúvida em afirmar (sempre com o devido respeito por opinião contrária) que «Se, da dinâmica do acidente, se apurar a culpa exclusiva do lesado, o art. 505.º do CC exclui, de forma taxativa, a possibilidade de concorrência entre risco e culpa», Ac. do STJ de 9 de Setembro de 2014, in www.dgsi.pt.

Não desconhecemos que na Doutrina e também na Jurisprudência há quem defenda a possibilidade de concorrência entre um juízo de culpabilidade do lesado com o risco do veículo.

São conhecidas as posições e os argumentos esgrimidos por ambas as partes, pelo que nos dispensamos de aqui os repetir, por desnecessários (veja-se sobre esta matéria o supra citado Ac. do STJ)

Pela nossa parte, entendemos que quando o acidente se ficou a dever à culpa exclusiva do lesado não há concorrência entre a «culpa» e o «risco».

Deste modo, estando demonstrado que o acidente dos autos se ficou a dever a culpa exclusiva do lesado arredada fica a possibilidade de responsabilizar a Seguradora do outro veículo interveniente pelo risco inerente à circulação do veículo.

Nem se diga que esta posição, interpretação e aplicação do sistema legal vigente ofende o Direito Comunitário, pois que o Tribunal de Justiça da União Europeia já decidiu que está de acordo com as “Directivas Automóvel”, logo com o Direito da União, a possibilidade de o direito dos Estados Membros afastar a «responsabilidade pelo risco» quando o evento se ficou a dever apenas a culpa do lesado, cfr. Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandez, Cadernos de Direito Privado, n.º 34, págs 3 -19.

Sem necessidade de outras considerações, face à clareza da situação, entendemos que se impõe a improcedência da acção, tal como, aliás, decidiu a decisão recorrida.

Em suma e em conclusão, impõe-se a improcedência das conclusões dos Recorrentes e, consequentemente, da presente revista Revista, devendo manter-se o Acórdão recorrido.

III - Decisão

Nos termos expostos acordam os juízes que compõem este Tribunal em julgar improcedente a presente revista e, em consequência, confirmam o Acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 28 de Maio de 2024

José Sousa Lameira (relator)

Conselheira Fátima Gomes

Conselheiro Nuno Pinto de Oliveira