Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5604/19.5T9LSB.S1-C
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: ESCUSA
JUIZ CONSELHEIRO
IMPARCIALIDADE
SUSPEIÇÃO
Data do Acordão: 02/28/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/RECUSA
Decisão: PROCEDÊNCIA/DECRETAMENTO TOTAL
Sumário :
A ligação profissional e pessoal existente entre o juiz conselheiro requerente e a juíza conselheira visada na instrução de processo crime, decorrente do exercício de funções por ambos na mesma secção criminal, integrando muitas vezes o mesmo colectivo, independentemente de o mesmo juiz conselheiro se considerar ou não afectado na sua imparcialidade, pode ser tida como ligação da pessoa do julgador a um dos “lados” do processo, circunstância que é susceptível de ser vista como adequada a poder influenciar a sua imparcialidade no caso concreto.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência, na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório

AA, juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça colocado na ....ª Secção Criminal, veio, nos termos dos arts. 43.º e ss. do CPP, formular pedido de escusa de intervir no processo acima referenciado, onde, na qualidade de 2.° adjunto, integra o coletivo formado para apreciar o recurso interposto pelas assistentes Ordem ... e BB, da decisão de de rejeição do requerimento de abertura de instrução por aquelas apresentado em reacção ao prévio despacho do Ministério Público determinativo do arquivamento parcial do inquérito, com os seguintes fundamentos:

“No identificado processo figura como denunciada, entre outros, a senhora Dra. CC, juíza conselheira na ....ª Secção Criminal do STJ.

Foi relativamente à denúncia/queixa contra ela apresentada que o Ministério Público proferiu o despacho de arquivamento parcial do inquérito a que a mesma dera lugar.

E foi desse despacho de arquivamento parcial que as assistentes reagiram mediante a apresentação do requerimento de abertura de instrução agora rejeitado e de que vem interposto o aludido recurso.

Pese embora a senhora juíza conselheira CC não tenha sido constituída arguida pelo Ministério Público, ela passou a assumir essa qualidade com a apresentação do requerimento de abertura de instrução, nos termos do artigo 57º, n.º1, do CPP.

Nesta qualidade ou na de denunciada, a verdade é que a senhora juíza conselheira CC integra a referida 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, secção a que o requerente também pertence desde que tomou posse no STJ, em 4 de outubro de 2023.

Nos julgamentos na 5.ª Secção o requerente tem sido adjunto ou tido como adjunta a senhora juíza conselheira CC, por aplicação das leis do processo e de acordo com as regras de distribuição diária vigentes, em função das quais integraram, integram e continuarão a integrar, quando a sorte assim o ditar, o mesmo coletivo.

Pode acontecer que no mesmo dia em que o requerente intervenha nos supra referidos autos, ambos - requerente e a senhora conselheira - subscrevam noutros processos decisões conjuntas como, respetivamente, relatores ou adjuntos.

É facto notório que entre os membros do coletivo que em cada secção julga os processos que lhe são distribuídos há, por esse motivo, um contacto permanente e necessário, para troca de impressões e debate de questões jurídicas suscitadas nos processos, quer presencialmente, quer pelos mais variados meios de comunicação disponíveis e por contacto pessoal.

Este relacionamento próximo e constante verifica-se, natural e inevitavelmente, entre o requerente e a senhora juíza conselheira CC desde o início do conjunto de funções que derivaram da sua colocação na mencionada 5.ª Secção Criminal, ambos participando nos trabalhos comuns no mesmo dia das sessões, em geral uma vez por semana, à quinta-feira, mantendo desde então uma sã convivência e um relacionamento amistoso (tratando-se pelo nome e por tu, almoçando juntos, com os demais elementos da secção, tendo uma relação afectuosa e cordial, que, aliás, vem de muitos anos antes).

Neste quadro circunstancial, admite o requerente que se considere - tal como já sucedeu relativamente a outros quatro conselheiros a quem anteriormente foi deferido idêntico pedido de escusa [cf. apensos A), B), C e D)] -, que para a comunidade em geral e para a comunidade jurídica em particular, uma decisão do requerente, mesmo colegial, desde que favorável à senhora conselheira CC, e por mais fundada e fundamentada que se mostre, corre, ainda assim, um sério risco de ser por elas olhada com desconfiança por, no seu entender, ser tendenciosa e parcial, dado ter sido proferida por quem sempre trabalhou a seu lado no Supremo Tribunal de Justiça, discutindo e deliberando permanentemente sobre todos os processos por ambos relatados, o que continuará, aliás, a suceder nos processos em que, em resultado da distribuição, devam intervir, respetivamente, como relatores ou adjuntos,

Esta situação, embora desconfortável, não afeta a capacidade do signatário para apreciar e decidir as questões colocadas no presente processo de forma objetiva e isenta.

Constitui, porém, pelo menos no plano das representações da comunidade - ampliadas pela crescente mediatização da intervenção processual dos conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça -, motivo sério e grave suscetível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão, se favorável à denunciada/arguida.

Pelo exposto, à semelhança do que já fizeram, pelas mesmas razões, o juiz conselheiro relator e o juiz conselheiro 1.° adjunto nos mesmos autos supra mencionados, requeiro a V. a Exa se digne escusar-me de intervir no presente processo em que é denunciada/arguida a Senhora Juíza Conselheira CC.”

O processo foi aos vistos e teve lugar Conferência.

2. Fundamentação

O art. 6.º da CEDH consagra a garantia de um processo equitativo, na qual se inclui o direito, reconhecido a qualquer pessoa, a que a sua causa seja julgada por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei.

Daqui decorre que é vedada a criação de tribunais ad hoc, a escolha do juiz, a desafectação de um processo do juiz competente para o julgar.

Decorre, também, que o tribunal deve ser independente relativamente ao poder executivo, a grupos de pressão e/ou de influência, bem como às próprias “partes”, exigindo-se ainda, para tanto, que o juiz se mantenha objectiva e subjectivamente imparcial.

Também a CRP consagra o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º) assegurada por tribunais independentes e apenas sujeitos à lei (art. 203.º).

Como nota Cavaleiro de Ferreira, “a organização judiciária é toda vertida no sentido de obter as máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição”, e “não basta a exigência efectiva de imparcialidade. Importa que tenha lugar a confiança geral na objectividade da jurisdição. Por isso naqueles casos em que a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é fundadamente periclitante, o juiz não pode funcionar no respectivo processo” (Curso de Processo Penal, I, 234).

Daí que se costume distinguir entre uma vertente interna e uma vertente externa da imparcialidade, tendo a primeira uma configuração subjectiva – no sentido da especial ligação do juiz ao caso ou a algum sujeito processual do caso – e, a segunda, uma configuração objectiva – no sentido de, independentemente da existência desse especial comprometimento do juiz, assim poder ser entendido pela comunidade em geral.

Por isso o art. 43.° n.º 1 do CPP preceitua que a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

A recusa pode ser requerida pelos sujeitos processuais (Ministério Público, arguido, assistente ou partes civis – n.° 3 do art. 43.º).

O juiz, não podendo embora declarar-se voluntariamente suspeito, pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2 do art. 43.º do CPP (n.º 4 do art. 43º).

A jurisprudência tem vindo a considerar, justamente e sem dissídio, que a seriedade e a gravidade do(s) motivo(s) gerador(es) da desconfiança ou suspeição sobre a imparcialidade do juiz só conduzirão à sua recusa ou à sua escusa quando objectivamente diagnosticados num caso concreto. O puro convencimento subjectivo por parte de um sujeito processual não vale assim, com suficiência, para fundamentar a suspeição.

Também a exigência de que o(s) motivo(s) seja(m) grave(s) e sério(s) afasta a operância de um qualquer outro fundamento, eventualmente gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, mas situado abaixo daquele patamar mínimo de importância. O motivo sério e grave, apropriado a gerar a desconfiança, há-de resultar de concretização material, assente em razões objectivamente valoradas, à luz da experiência comum e conforme um juízo de pessoa-média.

Impõe-se, por tudo, um diagnóstico positivo no sentido de que um cidadão médio possa fundadamente suspeitar de que o juiz deixe de ser imparcial por força da influência do concreto facto ou circunstância invocados.

“As aparências são, neste contexto, inteiramente de considerar”, importando também aferir se a situação em causa “pode ser entendida, pelo lado externo das aparências dignas de tutela, como potenciadora de um espaço de dúvida quanto à existência de riscos para a apreensão objectiva da imparcialidade” (acórdão do STJ de 13.4.2005, rel. Henriques Gaspar).

Do que se trata não é de acautelar eventuais incómodos pessoais do julgador, pois “os incómodos que o juiz poderá sentir em tal situação mais não são do que os ónus de ser juiz” (Decisão n.º 4/2007 do Presidente do TRP, de 17-09-2007). Sendo ainda certo que “o afastamento do juiz (natural) do processo só pode ser determinado por razões mais fortes do que aquelas que o princípio do juiz natural visa salvaguardar, que se relacionam com a independência, mas também com a imparcialidade do tribunal” (acórdão do STJ de 23.09.2009, rel. Maia Costa).

Sucede que, no presente caso e neste mesmo processo, o Supremo foi já chamado a pronunciar-se sobre idêntico objecto de decisão.

Assim, no acórdão do STJ de 21.02.2024 (rel. Teresa Féria de Almeida), proferido neste processo e em situação idêntica à presente, decidiu-se conceder a escusa peticionada pelo senhor conselheiro relator do recurso ora em causa, justificando-se que “a valoração objetiva dos factos em apreço – o exercício de funções na mesma Secção Criminal deste Tribunal e a composição do Coletivo a que estão adstritos o requerente e a visada nos Autos – determina necessariamente que exista uma séria possibilidade de uma forte suspeição sobre a isenção e imparcialidade da decisão a proferir pelo requerente”, e rematando-se que “outra conclusão se não impõe que não seja a de considerar como justificada e legítima a escusa apresentada.”

No acórdão do STJ de 29.03.2023 (rel. Teresa Féria de Almeida) proferido igualmente neste processo, fora já decidida a concessão da escusa peticionada pelo senhor juiz conselheiro a quem o processo fora distribuído, então para a instrução, juiz conselheiro que integrava também a 5.ª secção criminal.

No acórdão do STJ de 22.06.2023 (rel. José Eduardo Sapateiro), voltou a ser concedida a escusa peticionada pelo senhor juiz conselheiro a quem o processo foi redistribuído para instrução, juiz conselheiro que integrava igualmente a 5.ª secção criminal.

Aqui se justificou:

“I. Não estando em dúvida as qualidades de objetividade, isenção e imparcialidade que o Juiz Conselheiro escusante possui como juiz de direito e que consolidou ao longo de uma experiência de várias décadas de exercício de funções jurisdicionais, também não se pode ignorar a relação judiciária e pessoal que existe entre aquele e a Juíza Conselheira e que tem de ser aqui devidamente pesada e pensada, pelas repercussões negativas [apesar de injustas e infundadas] que poderão ter na percepção enviesada da marcha dos autos em questão por parte dos assistentes e de terceiros e na inerente distorção da ideia e da imagem de independência e isenção da Justiça.

II. Esse quadro de proximidade constante e quase quotidiana, quer em termos profissionais, como pessoais - por referência à distribuição que foi feita ao aqui requerente e escusante do referido processo criminal, que, por força do pedido de abertura da instrução, se mostra ainda pendente e tem como visada a Juíza Conselheira -, é suscetível de gerar uma considerável, expectável e duradoura perturbação, desconfiança e suspeição, quer internamente, entre os queixosos/assistentes e respetivos mandatários judiciais, como externamente, nos órgãos de comunicação social e no seio da opinião pública.

III - O convencimento mais ou menos comum de que a referida instrução, a manter-se a distribuição do respetivo processo ao aqui escusante, será conduzida em moldes parciais, tendenciosos, favoráveis à posição processual da Juíza Conselheira por parte do Requerente é um risco efetivo que não pode ser aqui ignorado, desconsiderado ou desvalorizado.

IV - Tal perigo é agravado pela qualidade dos ofendidos, pelo objeto da instrução criminal, pela qualidade da pessoa visada, pela cobertura que é feita pelos media e pelo interesse da população em geral.

V - A escusa da intervenção do Juiz Conselheiro deste Supremo Tribunal de Justiça na fase de instrução do processo criminal instaurado na sequência de queixa feita contra a Juíza Conselheira tem de ser deferida, por ser manifesto o risco de aquela ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”

No acórdão do STJ de 28.09.2023 (rel. Agostinho Torres), voltou a ser concedida a escusa peticionada pelo senhor juiz conselheiro a quem o processo foi então, e de novo, redistribuído para instrução, juiz conselheiro que integrava igualmente a 5.ª secção criminal.

E aqui se justificou que “no caso dos presentes autos de escusa a valoração objetiva dos factos em apreço - o exercício de funções na mesma Secção Criminal deste Tribunal e a composição do Coletivo a que estão adstritos o requerente e a visada nos Autos - determina necessariamente que exista uma séria possibilidade de uma forte percepção comunitária de suspeição sobre a isenção e imparcialidade da decisão a proferir pelo requerente.

Sendo assim, por existência de fundamento suficiente para tal, defere-se, sem mais, o pedido de escusa do Juiz Conselheiro deste Supremo Tribunal de Justiça.”

No caso presente, o senhor juiz conselheiro vem deduzir o incidente de escusa com um fundamento que, neste mesmo processo e num quadro de inteira similitude, o Supremo tem vindo sempre a considerar como configurando uma situação concreta e objectivamente atendível, por os motivos da escusa se revelarem suficientemente graves e sérios, atentos os princípios gerais a que se fez inicialmente alusão, e as razões já concretizadas em todos os acórdãos citados.

Na verdade, a ligação profissional e pessoal existente entre o senhor juiz conselheiro requerente e a senhora juíza conselheira visada na instrução, que aquele detalhadamente descreve no pedido que formula, independentemente de o mesmo senhor juiz conselheiro se considerar ou não afectado na sua imparcialidade (acreditando-se seriamente que o não esteja), pode ser tida como ligação da pessoa do julgador a um dos “lados” do processo. Circunstância que é susceptível de ser vista como adequada a poder influenciar a imparcialidade do juiz no caso concreto.

Por esta razão, constitui fundamento de escusa. O que se decide, ainda na coerência dos acórdãos do Supremo anteriormente proferidos, nos precedentes pedidos de escusa formulados com idêntico(s) fundamento(s).

3. Decisão

Face ao exposto, acorda-se em conceder a escusa.

Sem tributação.

Lisboa, 28.02.2024

Ana Barata Brito (relatora)

Antero Luís

José Luís Lopes da Mota