Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | JORGE RAPOSO | ||
| Descritores: | RECURSO PER SALTUM INCÊNDIO PENA ÚNICA | ||
| Data do Acordão: | 02/05/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário : | I. A circunstância do arguido, apesar de ser primário, ter sido bombeiro e ter ateado fogos em dois verões sucessivos revelam necessidades de prevenção especial prementes. II. A pena única fixada em 6 anos de prisão para a prática de 7 crimes de incêndio previstos no art. 274º nº 1 do Código Penal, abaixo do 1/4 da moldura da pena única, com o mínimo de 3 anos (pena parcelar mais alta) e o máximo de 16 anos (soma de todas as penas parcelares), nos termos do art. 77º nº 2 do Código Penal, pela sua moderação, mostra-se justa – proporcional, adequada e necessária – e conforme aos critérios plasmados nos art.s 71º e 77º do Código Penal, na consideração do facto global, da gravidade desse ilícito global e por referência à personalidade unitária do arguido. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I – RELATÓRIO Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, o arguido AA, filho de BB e de CC, natural de ..., nascido a .../.../1995, solteiro, ..., residente no Caminho de ... foi julgado e a final: 1 ─ Absolvido da prática de três crimes de incêndio florestal, p. e p. pelo art. 274º nº 1 do Código Penal, que lhe vinham imputados; 2 ─ Condenado pela prática de sete crimes de incêndio florestal, p. e p. pelo artigo 274.º, n.º 1 do Código Penal, nas penas de dois anos e seis meses de prisão, dois anos e nove meses de prisão, dois anos de prisão, dois anos de prisão, dois anos e seis meses de prisão, três anos de prisão e um ano e três meses de prisão, respectivamente; 3 ─ Em cúmulo jurídico, condenado na pena única de seis anos de prisão. * Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, apresentando a seguinte síntese conclusiva: 1ª O tribunal a quo violou o disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 71º do Código Penal, ao fixar a medida da pena. 2ª In casu, o grau de ilicitude não é reduzido, mas também não é elevado, visto que os incêndios foram provocados em terrenos compostos por matos, tendo uma das testemunhas descrito que o incêndio era pequeno, com pouca intensidade, sem ninguém nas imediações, ou seja, sem habitações. 3ª Deste modo, apenas se pode concluir que o grau de ilicitude é moderado. 4ª O relatório social (artigo 370º do CPP) apenas vale quanto aos pontos que forem adotados pelo tribunal e que sejam transpostos para a matéria de facto provada. Na sentença recorrida, estão em causa os artigos 39 a 49 dos factos provados. O demais constante do relatório social não releva. 5ª O tribunal determinou a medida concreta da pena considerando o modo de execução dos factos e a gravidade das suas consequências , a intensidade do dolo directo, o facto do arguido ser primário, o facto de todos os incêndios não ter resultado um dano significativo, o facto das áreas ardidas não se mostrarem cultivadas, o facto do arguido já ter exercido funções de bombeiro, a postura do arguido em audiência. 6ª O tribunal fixou a pena tendo em consideração as necessidades de prevenção geral que são elevadíssimas, contudo não teve em conta o seu actual contexto social e profissional do arguido e o tratamento médico a que se sujeitou para tratar as dependências, desrespeitando o que estabelece a alínea d) do nº 2 do artigo 71º do CP. 7ª A pena concreta é achada considerando as exigências de prevenção especial e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido. 8ª A moldura penal abstrata é de 3 a 16 anos de prisão. 9ª A pena não pode ultrapassar a medida da culpa, sob pena de se atingir a dignidade da pessoa humana, pelo que tal limite encontra consagração no artigo 40º do Código Penal. 10ª A aplicação da pena de prisão efectiva em nada contribui para a reabilitação do arguido, o qual finalmente encontrou a estabilidade emocional, psicológica e física que necessitava. 11ª O arguido não tem antecedentes criminais, não havendo pois necessidades de prevenção especial. 12ª Afigura-se suficiente para garantir as exigências de prevenção quanto à prática de futuros crimes a suspensão por igual período, da pena de prisão, subordinada a deveres e/ou regras de conduta. TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADO O DOUTO ACORDÃO. ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!!!!! Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público, concluindo pela improcedência do recurso: - A medida da pena aplicada, que se fixou em 6 anos de prisão a pena única pela qual o arguido foi condenado, é a adequada para salvaguardar os fins das penas e garantir a prevenção especial e geral que o caso merece, tendo a mesma sido fixada em cumprimento dos princípios que regem o julgador, não nos merecendo a decisão recorrida qualquer reparo, por manifestar integra justeza. - Tendo o arguido sido condenado em pena de prisão superior a 5 anos de prisão, igualmente não pode esta ser suspensa na sua execução, por inadmissibilidade legal - Face ao exposto, entende-se ser de manter, na íntegra, a decisão recorrida por nenhum reparo nos merecer. Assim, deverá ser julgado improcedente o recurso interposto. Vossas Excelências mantendo a decisão recorrida, farão a costumada JUSTIÇA.! * Após parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Lisboa, o Exmo Senhor Desembargador, naquele Tribunal, proferiu despacho em 10.1.2025 em que “conclui-se pela competência do Supremo Tribunal de Justiça para o conhecimento do recurso, pelo que se determina a remessa dos presentes autos a esse Venerando Tribunal”. Concordamos na totalidade com a fundamentação e decisão tendo em consideração o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência 5/2017, de 23 de Junho1, no sentido de que «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas». * Neste Supremo Tribunal de Justiça o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer com a seguinte síntese e conclusão: III Em síntese: A pena única concretamente aplicada não é excessiva, vista a amplitude da moldura abstractas do concurso; A suspensão da execução da pena de prisão é uma questão prejudicada. IV Em conclusão: Motivo porque o Ministério Público dá Parecer que: O presente recurso não merece provimento, sendo de manter os termos da decisão recorrida. Em resposta ao Parecer, o Recorrente conclui: A aplicação da pena de prisão efectiva em nada contribui para a reabilitação do arguido, o qual finalmente encontrou a estabilidade emocional, psicológica e física que necessitava. Deve pois ser dado provimento ao presente recurso, revogando a decisão recorrida. * Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (art.s 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal). II – FUNDAMENTAÇÃO Recorre-se directamente para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos dos nºs 2 e 3 do art 410º do Código de Processo Penal (art. 432º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal). É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. * O Recorrente não argui expressamente a existência de nulidades ou vícios e, analisado o acórdão recorrido, não se encontram nulidades ou vícios de conhecimento oficioso (art.s 379º e 410º do Código de Processo Penal). A questão a decidir é a medida da pena única e a possibilidade de suspensão. *** Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada: 2.1. Factos Provados: Com interesse para a decisão da causa ficaram provados os seguintes factos: 1. No dia ... de ... de 2020, cerca das 22:00 horas, no Lugar ..., em ..., o arguido passou junto a uma estrada de terra batida, a que correspondem as coordenadas geográficas “38.....09, -9.....35”. 2. Naquele local os terrenos são compostos por uma mancha de mato de grandes dimensões, com continuidade horizontal de combustíveis herbáceos, arbustivos e arbóreos que, na referida data, se encontravam secos. 3. Cerca das 22:00 horas, o arguido abeirou-se da vegetação rasteira no indicado local, junto à referida estrada e, fazendo uso de um isqueiro de que se munira previamente, encostou-o aceso à referida vegetação, ateando-lhe fogo, através de ignição por chama directa. 4. Após, devido à acção do vento, da temperatura e humidade relativa do ar, que eram propícias a uma rápida e intensa propagação e projecção do fogo, este alastrou por aqueles terrenos de mato, consumindo uma área de cerca de 25 000 m2. 5. O incêndio em causa apenas não se propagou aos demais terrenos compostos por matos por força da intervenção dos Bombeiros Voluntários que, tendo sido accionados para aquele local, combateram o incêndio, com recurso a nove viaturas e 33 Bombeiros, de cinco corporações, tendo o mesmo sido extinto pelas 01 horas e 12 minutos. 6. No dia ... de ... de 2020, cerca das 16:00 horas, junto à berma da Rua da ..., pouco antes do ... em ..., o arguido passou de bicicleta junto a uma estrada de terra batida, a que correspondem as coordenadas geográficas “38.....49, -9.....15”. 7. Naquele local os terrenos são compostos por uma mancha de mato de grandes dimensões, com continuidade horizontal de combustíveis herbáceos, arbustivos e arbóreos que, na referida data se encontravam bastante secos. 8. Cerca das 16:00 horas, o arguido abeirou-se da vegetação rasteira junto à referida estrada e, fazendo uso de um isqueiro de que se munira previamente, encostou-o aceso à referida vegetação, ateando-lhe fogo, através de ignição por chama directa. 9. Após, devido à acção do vento, da temperatura e humidade relativa do ar, que eram propícias a uma rápida e intensa propagação e projecção do fogo, este alastrou por aqueles terrenos de mato, consumindo uma área de cerca de 30.000 m2. 10. O incêndio em causa apenas não se propagou aos demais terrenos compostos por matos por força da intervenção dos Bombeiros Voluntários que, tendo sido accionados para aquele local, combateram o incêndio, com recurso a 14 (catorze) viaturas, 59 (cinquenta e nove) operacionais, 10 (dez) corporações e dois helicópteros, tendo o mesmo sido extinto pelas 19 horas e 50 minutos. 11. No dia ... de ... de 2021, entre as 22:15 e as 22:52 horas, o arguido passou junto à Rua ..., Lameiro ..., em ... 12. Naquele local os terrenos são compostos por matos rasteiros, com continuidade horizontal de combustíveis herbáceos, arbustivos e arbóreos que, na referida data, se encontravam secos, para outras manchas florestais e aglomerados habitacionais. 13. Pouco antes das 22:52 horas, o arguido abeirou-se da vegetação rasteira junto à referida estrada, no local a que correspondem as coordenadas geográficas “38.....98, -9.....69” e, fazendo uso de um isqueiro de que se munira previamente, encostou-o aceso à referida vegetação, ateando-lhe fogo, através de ignição por chama directa. 14. Após, devido à acção do vento, da temperatura e humidade relativa do ar, que eram propícias a uma rápida e intensa propagação e projecção do fogo, este alastrou por aqueles terrenos de mato, consumindo uma área de cerca de 350 m2. 15. O incêndio em causa apenas não se propagou aos demais terrenos, floresta e aglomerados habitacionais por força da intervenção dos Bombeiros Voluntários que, tendo sido accionados para aquele local, combateram o incêndio, com recurso a três viaturas e treze Bombeiros, tendo o mesmo sido extinto pelas 23 horas e 27 minutos. 16. No dia ... de ... de 2021, pouco antes da 01:00 horas, no Lugar da ... em ..., o arguido passou junto à Estrada Municipal ..., na intercepção com o ..., no lugar da .... 17. Naquele local os terrenos são compostos por uma mancha de mato e eucaliptos, com continuidade horizontal de combustíveis herbáceos, arbustivos e arbóreos que, na referida data, se encontravam secos, para outras manchas florestais e aglomerados habitacionais. 18. Pouco antes da 01:00 horas, o arguido abeirou-se da vegetação rasteira junto à referida estrada, a que correspondem as coordenadas “38.....08, -9.....95” e, fazendo uso de um isqueiro de que se munira previamente, encostou-o aceso à referida vegetação, ateando-lhe fogo, através de ignição por chama directa. 19. Após, devido à acção do vento, da temperatura e humidade relativa do ar, que eram propícias a uma rápida e intensa propagação e projecção do fogo, este alastrou por aqueles terrenos de mato, consumindo uma área de cerca de 4000 m2. 20. O incêndio em causa apenas não se propagou aos demais terrenos, floresta e aglomerados habitacionais por força da intervenção dos Bombeiros Voluntários que, tendo sido accionados para aquele local, combateram o incêndio, com recurso a três viaturas e treze Bombeiros, tendo o mesmo sido extinto pelas 01 horas e 45 minutos. 21. No dia ... de ... de 2021, entre a 00:14 horas e a 01:00 horas, o arguido passou entre o Caminho de ... e o Caminho dos ..., no Lugar da ... 22. Naquele local os terrenos são compostos por uma mancha de mato, com continuidade horizontal de combustíveis herbáceos, arbustivos e arbóreos que, na referida data, se encontravam secos, para outras manchas florestais, compostas por pinheiros e eucaliptos e aglomerados habitacionais. 23. Entre as 00:14 horas e a 01:00 horas, o arguido abeirou-se da vegetação rasteira junto à referida estrada, no local a que correspondem as coordenadas geográficas “38.....74, -9.....88” e, fazendo uso de um isqueiro de que se munira previamente, encostou-o aceso à referida vegetação, ateando-lhe fogo, através de ignição por chama directa. 24. Após, devido à acção do vento, da temperatura e humidade relativa do ar, que eram propícias a uma rápida e intensa propagação e projecção do fogo, este alastrou por aqueles terrenos de mato, consumindo uma área de cerca de 20 000m2. 25. O incêndio em causa apenas não se propagou aos demais terrenos, floresta e aglomerados habitacionais por força da intervenção dos Bombeiros Voluntários que, tendo sido accionados para aquele local, combateram o incêndio, com recurso a seis viaturas e vinte e quatro Bombeiros, tendo o mesmo sido extinto pelas 03 horas e 30 minutos. 26. No dia ... de ... de 2021, entre as 02:21 horas e as 02:44 horas, o arguido passou entre o Caminho de ... e o Caminho dos ..., no Lugar da ..., em .... 27. Naquele local os terrenos são compostos por uma mancha de mato, com continuidade horizontal de combustíveis herbáceos, arbustivos e arbóreos que, na referida data, se encontravam secos, para outras manchas florestais, compostas por pinheiros e eucaliptos e aglomerados habitacionais. 28. Entre as 02:21 horas e as 02:44 horas, o arguido abeirou-se da vegetação rasteira junto à referida estrada, no local a que correspondem as coordenadas geográficas “38.....33, -9.....48” e, fazendo uso de um isqueiro de que se munira previamente, encostou-o aceso à referida vegetação, ateando-lhe fogo, através de ignição por chama directa. 29. Após, devido à acção do vento, da temperatura e humidade relativa do ar, que eram propícias a uma rápida e intensa propagação e projecção do fogo, este alastrou por aqueles terrenos de mato, consumindo uma área de cerca de 40 000 m2. 30. O incêndio em causa apenas não se propagou aos demais terrenos, floresta e aglomerados habitacionais por força da intervenção dos Bombeiros Voluntários que, tendo sido accionados para aquele local, combateram o incêndio, com recurso a doze viaturas e quarenta e nove Bombeiros, tendo o mesmo sido extinto pelas 06 horas e 20 minutos. 31. No dia ... de ... de 2021, pouco antes das 10:36 horas, o arguido passou entre o Caminho de ... e o Caminho dos ..., no Lugar da ..., em .... 32. Naquele local os terrenos são compostos por uma mancha de mato, com continuidade horizontal de combustíveis herbáceos, arbustivos e arbóreos que, na referida data, se encontravam secos, para outras manchas florestais, compostas por pinheiros e eucaliptos e aglomerados habitacionais. 33. Pouco antes das 10:30 horas, o arguido abeirou-se da vegetação rasteira junto à referida estrada, no local a que correspondem as coordenadas geográficas “38.....18, -9.....12” e, fazendo uso de um isqueiro de que se munira previamente, encostou-o aceso à referida vegetação, ateando-lhe fogo, através de ignição por chama directa. 34. Após, devido à acção do vento, da temperatura e humidade relativa do ar, que eram propícias a uma rápida e intensa propagação e projecção do fogo, este alastrou por aqueles terrenos de mato, consumindo uma área de cerca de 50 m2. 35. O incêndio em causa apenas não se propagou aos demais terrenos, floresta e aglomerados habitacionais por força da intervenção dos Bombeiros Voluntários que, tendo sido accionados para aquele local, combateram o incêndio, com recurso a duas viaturas e seis Bombeiros, tendo o mesmo sido extinto pelas 11 horas e 25 minutos. 36. O arguido agiu da forma descrita, com o propósito de provocar incêndios nos descritos terrenos compostos por mato, eucaliptal, assim como naqueles que lhes são contíguos, tendo perfeito conhecimento da continuidade horizontal de combustíveis secos de natureza herbácea, arbustiva e arbórea para outros de idêntica composição e para aglomerados habitacionais, que o tempo seco proporcionaria a sua rápida propagação e que alcançaria maiores dimensões não fosse a intervenção oportuna dos corpos de Bombeiros que ali compareceram. 37. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. 38. O arguido não tem antecedentes criminais. 39. O arguido é o mais velho de dois filhos de um casal, sendo a mãe, doméstica, e o pai ..., com negócio próprio. 40. AA ingressou no sistema educativo na idade adequada e completou o 12.º ano de escolaridade, tendo nos últimos três anos frequentado o curso de técnico de ..., que lhe permitiu a equivalência ao 12º ano pela via profissional. 41. Regista uma retenção no 6.º ano de escolaridade, não sendo referenciados problemas ao nível comportamental, ocupando os tempos livres em práticas desportivas ou no convívio com amigos da sua zona residencial. 42. A primeira experiência laboral do arguido ocorreu após conclusão dos estudos, no desempenho de funções indiferenciadas numa empresa de distribuição de brinquedos e jogos, “S...... ... ...”, em ..., tendo beneficiado de contrato laboral e de remuneração salarial equivalente ao salário mínimo nacional atribuído a essa data. 43. A sua actividade laboral seguinte, aos vinte e um anos de idade, foi como ... para uma estação dos CTT, também em ..., com vínculo laboral precário, onde permaneceu cerca de seis a sete meses. 44. De seguida, trabalhou na separação de material numa sucata, actividade onde auferiu um salário na ordem dos 600 a 700 €, durante aproximadamente três anos, data em que a sucata encerrou. 45. Os trabalhos que se seguiram foram maioritariamente pontuais, como ajudante de ... em oficinas da sua zona residencial. 46. A sua última actividade laboral foi numa sucata explorada por um conhecido da família. 47. O arguido iniciou-se no consumo de substâncias estupefacientes por volta dos 15/16 anos de idade, com consumos de haxixe e canábis, prática que viria a ser diária, por volta dos seus 22/23 anos. 48. Aos 15/16 anos, o arguido iniciou consumo de cerveja e vodka, ainda que numa primeira fase apenas em contexto de diversão, aos fins-de-semana, junto de amigos. 49. O consumo etílico aumentou de forma significativa a partir dos 19/20 anos, com a ingestão diária de cerveja, por vezes em quantidades que refere terem chegado entre as 10 e 12 cervejas numa só noite. 50. O arguido já exerceu função de bombeiro. Quanto à “medida concreta da pena”, o acórdão recorrido ponderou: Realizado pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora determinar a natureza e medida das sanções a aplicar. As finalidades das penas estão previstas no artigo 40.º do referido diploma legal e visam, por um lado, proteger bens jurídicos (prevenção geral e especial) e, por outro, reintegrar socialmente o agente. Assim, devem ser tidas em consideração as exigências de prevenção que no caso se façam sentir, incluindo-se as exigências de prevenção geral – que visam o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, na medida do indispensável para estabilizar as expectativas comunitárias na validade da norma violada – e aquelas de prevenção especial – que visam tanto a reintegração do arguido na sociedade, como o evitar a prática de novos crimes, impondo-se, assim, a consideração da conduta e personalidade do agente. Cada um dos crimes de incêndio florestal praticado é punido com pena de prisão de um a oito anos. A determinação da medida concreta da pena será efectuada segundo os critérios consignados no artigo 71.º do Código Penal. Este dispositivo impõe o entendimento de que o julgador se encontra limitado pela exigência do respeito pela dignidade da pessoa humana, pelas exigências de prevenção e que toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta. Segundo Figueiredo Dias o poder punitivo do Estado exerce-se «primariamente no sentido do controlo do crime; ou vistas as coisas do outro lado, no sentido da protecção das condições essenciais da vida do homem na comunidade e, assim, de livre realização e desenvolvimento da personalidade de cada um»2. Defende ainda o insigne penalista que «através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção»3. Nestes termos, importa proceder à ponderação dos factores relevantes para a determinação da medida concreta da pena, à luz do n.º 2 do artigo 71.º, importando ponderar: - O modo de execução dos factos e a gravidade das suas consequências – todos os incêndios incidiram sobre zona de mato, não cultivada; arderam, respectivamente, áreas de 25 000 m2 [no primeiro incêndio], 30 000 m2 [no segundo incêndio], 350 m2 [no terceiro incêndio], 4 000 m2 [no quarto incêndio], 20 000 m2 [no quinto incêndio], 40 000 m2 [no sexto incêndio] e 50 m2 [no sétimo incêndio]; quanto ao segundo incêndio é de considerar que houve necessidade da intervenção de 59 operacionais, com dois helicópteros; - A intensidade do dolo – directo; - Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os motivos que o determinaram – o arguido agiu após a ingestão de bebidas alcoólicas; o arguido já exerceu funções de bombeiro; - O modo como o arguido se encontra inserido na sociedade – está integrado familiarmente; - A postura do arguido em audiência – confessou alguns dos crimes, o que será valorado favoravelmente quanto a tais factos; - A ausência de antecedentes criminais; - As necessidades de prevenção geral que são elevadíssimas, na medida em que os incêndios florestais colocam em perigo a vida, a integridade física e bens patrimoniais alheios, sendo um flagelo no nosso país. Assim, considera o Tribunal que ponderando conjuntamente as circunstâncias atrás referidas, as políticas de reinserção social e as exigências de prevenção quanto à prática de futuros crimes e atendendo à moldura penal prevista para o crime de incêndio florestal, tem-se por adequado aplicar ao arguido, respectivamente, a pena de dois anos e seis meses de prisão [1.º incêndio], dois anos e nove meses de prisão [2.º incêndio], dois anos de prisão [3.º incêndio], dois anos de prisão [4.º incêndio], dois anos e seis meses de prisão [5.º incêndio], três anos de prisão [6.º incêndio] e um ano e três meses de prisão [7.º incêndio]. Fazendo apelo aos critérios plasmados no artigo 77.º do Código Penal, importa considerar uma moldura penal de três anos a dezasseis anos de prisão. Considerando cada uma das circunstâncias que presidiram à aplicação das penas parcelares, que aqui se dão por reproduzidas, há que salientar, designadamente, a intensidade do dolo – directo. Dever-se-á ter ainda em consideração a imagem global do facto, no sentido em que toda a actuação ocorreu no período dilatado de um ano, em períodos de Verão, em locais próximos da residência do arguido. Por último, há ainda a ponderar a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais e de todos os incêndios não ter resultado um dano significativo, pelo facto de as áreas ardidas não se mostrarem cultivadas, sendo, contudo, de ponderar a dimensão da área ardida – 119 400 m2 no total e o facto de o arguido já ter exercido funções de bombeiro. Nessa medida, entende o Tribunal que se impõe uma compressão das penas parcelares aplicadas e, nesse sentido, entende-se como adequado aplicar ao arguido a pena única de seis anos de prisão. *** Pena e suspensão Os crimes de incêndio praticados pelo Recorrente, previstos no art. 274º nº 1 do Código Penal são puníveis com pena de prisão de 1 a 8 anos, tendo o tribunal a quo fixado as penas por tais crimes em dois anos e seis meses de prisão [1.º incêndio], dois anos e nove meses de prisão [2.º incêndio], dois anos de prisão [3.º incêndio], dois anos de prisão [4.º incêndio], dois anos e seis meses de prisão [5.º incêndio], três anos de prisão [6.º incêndio] e um ano e três meses de prisão [7.º incêndio]. A pena única foi fixada em 6 anos de prisão. Como se viu, o Recorrente não questiona as penas parcelares, limitando-se a pugnar pela aplicação de pena única inferior e pela suspensão da execução da pena. Das conclusões do recurso resulta que o Recorrente se insurge contra a pena única apelando à ponderação de um grau de ilicitude moderado à idade do arguido, às necessidades de reabilitação do arguido, que finalmente encontrou a estabilidade emocional, psicológica e física que necessitava, à ausência de antecedentes criminais e à ausência de necessidades de prevenção especial. Nota ainda que, relativamente à sua situação pessoal, familiar, económico-social e laboral, o que releva é a matéria de facto provada nos art.s 39º a 49º é que importa e não o que consta do relatório social. É exacto que, como afirma o Recorrente, o que releva é a factualidade provada e não o que consta do relatório social4. Porém, o acórdão recorrido fixou as penas parcelares e única tendo em atenção os factos provados e não, meramente, o que consta do teor do relatório social. Não ficaram demonstrados factos que evidenciem que o arguido “finalmente encontrou a estabilidade emocional, psicológica e física que necessitava” e, quanto às necessidades de prevenção especial, pese embora a ausência de antecedentes criminais, a factualidade relativa ao consumo de substâncias estupefacientes e etílico (factos 47 a 49), a circunstância do arguido, tendo sido bombeiro (facto 50) ter ateado fogos em dois verões sucessivos (2020 e 2021, conforme factos 1 a 37) revelam necessidades de prevenção especial prementes. Como decorre da fundamentação da medida das penas transcrita supra, o Tribunal a quo enquadrou devidamente a determinação das penas concretas e única, enfatizando as elevadíssimas necessidades de prevenção geral quanto ao crime de incêndio, aliás em linha com a jurisprudência deste Tribunal5 que também merece a nossa concordância. Elencou e apreciou todas as circunstâncias pertinentes (com pendor atenuante e agravante) a que alude o nº 2 do art. 71º do Código Penal. Respeitou como se impunha, os princípios gerais, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena. Quanto à pena única, o acórdão recorrido ponderou “a imagem global do facto, no sentido em que toda a actuação ocorreu no período dilatado de um ano, em períodos de Verão, em locais próximos da residência do arguido” e “… a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais e de todos os incêndios não ter resultado um dano significativo, pelo facto de as áreas ardidas não se mostrarem cultivadas, sendo, contudo, de ponderar a dimensão da área ardida – 119 400 m2 no total e o facto de o arguido já ter exercido funções de bombeiro”. Concluiu “que se impõe uma compressão das penas parcelares aplicadas”, aplicando pena única de seis anos de prisão. Os critérios para a fixação da pena única devem reflectir uma ponderação das “características da personalidade do agente, em termos de revelar ou não tendência para a prática de crimes ou de determinado tipo de crime, devendo a pena única reflectir essa diferença em termos substanciais”, sendo essencial considerar o tipo de criminalidade em causa e efectuar uma “conveniente avaliação da totalidade dos factos como unidade de sentido, enquanto reportada a um determinado contexto social, familiar e económico e a uma determinada personalidade”. “Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização.» Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita” 6. A pena única fixada no acórdão encontra-se abaixo do 1/4 da moldura da pena única, com o mínimo de 3 anos (pena parcelar mais alta) e o máximo de 16 anos (soma de todas as penas parcelares), nos termos do art. 77º nº 2 do Código Penal. Apesar de existirem factores que apontam para uma certa reiteração, consubstanciada na prática dos factos em dois verões diferentes, o acórdão recorrido entendeu justificar-se “uma compressão das penas parcelares aplicadas”, salientando em termos atenuantes a ausência de antecedentes criminais e que os incêndios foram provocados em locais próximos da residência do arguido, não tendo resultado um dano significativo, pelo facto de as áreas ardidas não se mostrarem cultivadas. Importa salientar que o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena e a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas, de acordo com Figueiredo Dias7 não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se “tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”8 reconhecendo-se, assim, uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável se não mesmo impossível de sindicar9. Como resulta do exposto, a pena única não ofende os princípios e as operações de determinação da pena e considera todos os factores pertinentes, não se vislumbrando qualquer excesso. Assim, pela sua moderação, a pena mostra-se justa – proporcional, adequada e necessária – e conforme aos critérios plasmados nos art.s 71º e 77º do Código Penal, na consideração do facto global, da gravidade desse ilícito global e por referência à personalidade unitária do arguido, ora Recorrente. * Face ao exposto, porquanto o art. 50º nº 1 do Código Penal apenas admite a possibilidade de suspensão quanto a penas de prisão aplicadas em medida não superior a cinco anos, ao contrário do que o Recorrente parece pretender, não é admissível a suspensão da execução da pena de prisão. Neste contexto, não pode a pena de prisão aplicada ao Recorrente ser suspensa na sua execução. III – DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo na íntegra a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 6 UC. Lisboa, 05-02-2025 Jorge Raposo (relator) José Carreto Carlos Campos Lobo ________ 1. Diário da República n.º 120/2017, Série I, de 23.6.2017. 2. in “Jornadas do CEJ - Pressupostos da Punição”, pág. 47 3. “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, 1993, pág. 215. 4. Como bem assinala, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.9.2022, no proc. 469/21.0GACSC.S1 5. Cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.9.2007, 8.11.2018, 15.7.2020, respectivamente nos proc.s 07P2270, 158/17.0GATND.S1, 415/19.0JAVRL.S1. 6. Conselheiro António Artur Rodrigues da Costa em “O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ”, texto disponível in http://www.stj.pt/ficheiros/estudos /rodrigues_costa_cumulo_juridico. pdf, pg. 12. 7. Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009, §255, pg. 197. 8. Neste sentido também os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.2008 e 11.7.2024, respectivamente nos proc.s 08P1964 e 491/21.6PDFLSB.L1.S1. 9. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.3.2004, CJ 2004, 1, pg. 220 e de 20.2.2008, proc. 07P4639. |