Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A3302
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
VÍCIOS DA COISA
INCUMPRIMENTO PARCIAL
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO
Nº do Documento: SJ200812090033026
Data do Acordão: 12/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I - Em matéria de locação a excepção do não cumprimento do contrato tem um limitado campo de aplicação. A ideia de proporcionalidade ou equilíbrio das prestações aflora a propósito da redução da renda ou aluguer se o locatário sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa - art. 1040.º do CC.

II - Admitindo-se o funcionamento da exceptio mesmo no caso de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso, deve fazer-se intervir, sempre que as circunstâncias concretas o imponham, o princípio da boa fé e a “válvula de segurança” do abuso do direito (arts. 762.º, n.º 2, e 334.º do CC).

III - Provado que o arrendatário deixou de satisfazer na totalidade a renda devida quando o máximo a que teria direito seria suspender o respectivo pagamento em medida proporcionada à privação parcial do gozo, a conclusão a extrair não pode ser outra senão a de que incorreu em mora, com as inerentes consequências (resolução do contrato, entrega do arrendado, e condenação no pagamento das rendas vencidas e vincendas).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório
AA propôs uma acção ordinária de despejo BB e CC, pedindo que, com base na falta de pagamento de rendas relativas ao prédio que identifica, dado para arrendamento comercial ao primeiro réu e de que o segundo se constituiu fiador, se decrete a resolução do contrato, condenando se o 1º réu a despejar o imóvel, e ambos os réus a pagarem lhe o valor de 27.335,59 € referente às rendas em dívida e juros legais, sem prejuízo dos juros vincendos e das rendas que se vencerem na pendência da acção até efectivo e integral pagamento.
Os réus contestaram, por excepção e por impugnação.
Reconvindo, o primeiro réu pediu ainda a condenação da autora no pagamento duma indemnização correspondente a lucros cessantes no estabelecimento comercial instalado no arrendado a partir de Janeiro de 2003 por a sua utilização ter ficado impossibilitada devido a deficiências do edifício que a senhoria, indevidamente, não corrigiu.
Houve réplica e tréplica, sem alteração substancial dos articulados anteriores.
Efectuado o julgamento e estabelecidos os factos, foi proferida sentença que:
a) Julgou a acção parcialmente procedente, decretou a resolução do arrendamento e condenou o 1º réu a entregar à autora o imóvel, devoluto, bem como a pagar-lhe as rendas devidas desde Fevereiro de 2003 até à propositura da acção, e ainda as entretanto vencidas, tudo com juros legais, até à efectiva entrega do arrendado;
b) Julgou a acção improcedente em relação ao 2º réu, absolvendo-o do pedido;
c) Julgou totalmente improcedente a reconvenção deduzida pelo 1° réu.
Inconformado, o 1º réu apelou, mas sem êxito, pois a Relação do Porto confirmou a sentença.
Mantendo-se inconformado, recorre agora de revista para o STJ, defendendo a revogação do acórdão da 2ª instância e a sua consequente absolvição do pedido por violação do disposto nos artºs 428º, 762º, 1031º e 1032º do Código Civil
A autora contra alegou, defendendo a confirmação do julgado.
Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação
a) Matéria de Facto:
1 - Encontra-se inscrita a favor da Autora a aquisição, por compra, da fracção autónoma designada pela letra E, correspondente a estabelecimento comercial situado no rés-do-chão do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, na Rua 62, nº ..., em Espinho, descrita no nº .../230888, da Conservatória do Registo Predial;
2 - Por escritura pública de 20/1/99 foi declarado dar o mencionado prédio de arrendamento à sociedade G... – Comércio e Vestuário, Ldª, que declarou aceitar, destinado ao comércio a retalho e por grosso de pronto-a-vestir, adornos, têxteis lar, móveis e decoração, electrodomésticos e produtos alimentares embalados ou não e serviços;
3 - Ficando convencionado que a renda, livre, anual, é de três milhões trezentos e sessenta mil escudos, a pagar em duodécimos de duzentos e oitenta mil escudos, no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar, na residência da senhoria, ou de quem ela indicar, nos termos que resultam da cópia de fls 16 e sgs.
4 - A renda mensal é de € 1.396,63;
5 - Estipulou-se ainda, na referida escritura, que o 2º Réu fica como fiador e princi­pal pagador durante a duração deste contrato e suas prorrogações, renunciando, desde já, ao benefício de excussão prévia;
6 - Por escrito, com data de 28/6/02, a sociedade G... – Comércio e Vestuário, Ldª declarou trespassar o estabelecimento instalado na fracção indicada em “1” para o 1º Réu, que declarou aceitar, tomando nessa data posse do mesmo, nos termos que constam da cópia junta a fls 20 e 21.
7 - A 4/12/02 e 14/11/03 a autora comunicou ao 1º réu as actualizações legais que incidiam sobre a renda do imóvel;
8 - Foi intentada contra a autora a acção nº 195/2000, do 2º Juízo do Tribunal de Espinho, na qual foi pedida a condenação daquela, além do mais, a efectuar obras de reparação da placa de tecto, com vista à eliminação de todas as infiltrações de água e humidades e na redução da renda mensal em 1/3 do seu montante, nos termos que cons­tam da certidão junta a fls. 130 e segs
9 - As rendas respeitantes a Fevereiro de 2003 e meses seguintes não foram pagas à autora;
10 - A correspondência relativa ao pagamento das rendas de Setembro, Novembro e Dezembro de 2002 foi enviada para uma morada que não pertencia à autora;
11 - Tais rendas foram pagas à autora;
12 - Desde Novembro de 1999 começaram a surgir infiltrações e humidade pela placa do tecto da fracção, sendo que tais infiltrações são provenientes do terraço de cobertura e pátio das fracções M e O do mesmo prédio e/ou da escorrência de águas no alçado posterior do edifício;
13 - Em consequência, formaram-se manchas no tecto e águas acumuladas no chão;
14 - A autora pagou as despesas determinadas em assembleia de condóminos para as obras de reparação nos estragos na fracção.
b) Matéria de Direito
A única questão levada às conclusões da minuta e que, por isso, constitui objecto da presente revista, é a relativa à decretada improcedência da excepção de não cumprimento (artº 428º, nº 1, do CC).
O recorrente insiste perante este Supremo Tribunal na tese de que a recorrida cumpriu a sua prestação em termos defeituosos visto que, por sua culpa, o arren­dado se mantém desde 1999 inundado de águas e humidades no tecto e chão; e porque tais factos, atendendo a que o locado é um estabelecimento destinado ao comércio a retalho de pronto a vestir, electrodomésticos, produtos alimentares embalados, etc, configuram “vícios significativos”, legitima-se a sua recusa no cumpri­mento da obrigação de pagamento da renda enquanto perdurar a privação parcial do local arrendado.
Entende-se, porém, que, assim estruturado, o recurso não merece provimento, sendo certo que a Relação, com fundamentação adequada e convincente, para a qual se remete nos termos do artº 713º, nº 5, do CPC, já afastou, e bem, a aplicação da exceptio à situação ajuizada.
É entendimento comum, desde logo, que em matéria de locação a excepção do não cumprimento do contrato tem um limitado campo de aplicação, talvez porque, como salienta Aragão Seia (Arrendamento Urbano, 7ª edição, pág. 412), “uma vez entregue ao locatário a coisa locada, o sinalagma em grande medida se desfaz. Certo, o locador continua obrigado a proporcionar o gozo da coisa ao locatário; mas esta é uma obrigação sem prazo ou dia certo para o seu cumprimento, ao passo que é a termo a do pagamento da renda”.
De qualquer modo, tem-se admitido o funcionamento do instituto mesmo no caso de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso, mas fazendo intervir então, sempre que as circunstâncias concretas o imponham, o princípio da boa fé e a “válvula de segurança” do abuso do direito (artºs 762º, nº 2, e 334º do CC). E isto porque, como justamente observa o Prof. Almeida Costa na RLJ 119º, pág. 144, “seria contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação, só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo. Na mesma linha, surge a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção. Uma prestação significativamente incompleta ou viciada justifica que o outro obrigado reduza a contraprestação a que se acha adstrito. Mas, em tal caso, só é razoável que recuse quanto se torne necessário para garantir o seu direito”. Em particular no âmbito da locação, este mesmo Autor (loc. cit., pág. 145/146), depois de chamar a atenção para o facto de a ideia de proporcionalidade ou equilíbrio das prestações aflorar a propósito da redução da renda ou aluguer se o locatário sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa, conclui o seguinte: “O recurso do arrendatário a este instituto, se existe cumprimento defeituoso ou parcial pelo senhorio, apenas o dispensa de pagar a renda correspondente à falta verificada. A quantificação pode tornar-se mais ou menos difícil. Quando as partes não chegarem a acordo sub­siste o remédio da consignação em depósito, mas o arrendatário corre o risco de o seu cálculo pecar por defeito, depositando uma renda menor do que a devida”. Este Supremo Tribunal tem seguido o entendimento exposto, como pode ver-se na anotação ao artº 1040º do CC que consta da obra Arrendamento Urbano – Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, da autoria de Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge (2ª edição, pág. 160 e sgs), onde vem referida a jurisprudência mais significativa sobre o assunto.
Na situação ajuizada, valorando os factos apurados à luz das considerações expostas, a Relação ponderou que:
“...considerando a factualidade dada como provada, verifica-se que o locado pouco depois de ser entregue foi objecto pela primitiva inquilina de uma demanda judicial da senhoria, para a rea­lização de obras de reparação da placa de tecto, com vista à eliminação de todas as infiltrações de água e humidades e para a redução da renda mensal em 1/3 do seu montante.
Mas não se provou que a actividade de comércio tivesse deixado de aí ser exercida, ou tivesse sofrido uma significativa diminuição, em razão desses vícios, nem então, nem depois, sob a exploração do ora apelante.
Donde resulta que, o arrendatário apenas poderia invocar a “exceptio” pela privação parcial do gozo do prédio, imputável ao senhorio, na forma de suspensão parcial do pagamento da renda, ou pagamento parcial da renda.
Tal redução constitui, no caso, a consequência adequada à falta cometida pela senhoria e concordante com o princípio da boa fé.
Assim, no caso de privação parcial do gozo do prédio ou da existência de vícios, imputáveis ao senhorio, que não comprometam de forma significativa a sua utilização para os fins destinados, o arrendatário tem apenas o direito de suspender o pagamento da parte proporcional da renda.
Tal consequência mostra-se conforme com o preceituado no artº 1040º do CC, alusivo à redução da renda ou aluguer : “Se, por motivo não atinente à sua pessoa ou à dos seus familiares, o locatário sofrer privação ou diminuição da coisa locada, haverá lugar a uma redução da renda ou aluguer proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta, sem prejuízo do disposto na secção anterior”.
Essa, aliás a opção tomada pela primitiva inquilina na acção supra referida e que veio a ter a sua procedência nos seguintes termos: - “…condenar a ré AA a efectuar obras de reparação da placa do tecto do rés-do-chão do arrendado, com vista a eliminar todas as infiltrações de águas e humidades…. E a ver diminuída a renda mensal na proporção de 1/7 do seu montante, enquanto perdurarem as humidades” – cfr. certidão de fls. 391.
No caso, não é legítima a “exceptio” invocada pelo apelante respeitante à falta de pagamento total das rendas vencidas respeitantes a Fevereiro de 2003 e seguintes.
E, não o sendo, o despejo, com fundamento em tal não pagamento deve proceder”.
Está perfeitamente correcto o julgamento emitido pelo acórdão recorrido, tanto mais que, para além de tudo quanto ali se pôs em relevo, ficou ainda provado que a recorrida pagou oportunamente as despesas determinadas em assembleia de con­dóminos para as obras de reparação nos estragos na fracção (facto 14).
Deste modo, uma vez que o réu deixou de satisfazer na totalidade a renda devida quando o máximo a que eventualmente teria direito seria, em função de tudo o que antecede, sus­pender o respectivo pagamento em medida proporcionada à privação parcial do gozo, a conclusão a extrair não pode ser outra senão a de que incorreu em mora, com as inerentes consequências, correctamente decretadas pelas instâncias (resolu­ção do contrato, entrega do arrendado, devoluto, à autora, e condenação no pagamento das rendas vencidas e vincendas).
Improcedem ou mostram-se deslocadas, assim, todas as conclusões do recurso.

III. Decisão
Nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 09 de Dezembro de 2008

Nuno Cameira (Relator)
Salreta Pereira
João Camilo