Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1020/21.7T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
DOAÇÃO
INOFICIOSIDADE
REDUÇÃO
COLAÇÃO
CADUCIDADE
HERDEIROS
Data do Acordão: 12/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
A inclusão na relação de bens, em processo de inventário, dos bens doados pela Inventariada não tem como única finalidade a sua eventual redução por inoficiosidade, podendo também visar a colação, para igualação dos descendentes, nos termos do artigo 2104.º e seguintes do Código Civil, relativamente à qual é indiferente a eventual caducidade do direito de redução por inoficiosidade.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

Nos autos de inventário a que se procede por óbito de AA, veio a interessada BB apresentar reclamação contra a relação de bens apresentada pelo Cabeça de Casal, CC, acusando a falta de relacionação, para além do mais, de:

- Uma quota no valor nominal de €500,00, na sociedade comercial J..., Ldaª, que a Inventariada cedeu ao Interessado CC, a ser objeto de colação;

- Uma quota no valor nominal de €2.500,00 na sociedade comercial J..., Lda, Ld.ª, que a Inventariada cedeu aos Interessados CC e DD, a ser objeto de colação;

- Um imóvel correspondente ao rés do chão esquerdo do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sobre o nº 27/19841128, que a Inventariada doou com reserva de usufruto aos Interessados CC e DD, a ser objeto de colação.

O Cabeça de Casal respondeu à reclamação, sustentando, no que aqui releva, que em 2016 a Interessada Reclamante aceitou tacitamente a herança e, não tendo intentado qualquer ação para eventual efeito de redução de liberalidades inoficiosas nos dois anos subsequentes, à face do disposto no art.º 2178.º do Código Civil, caducou o seu direito a pedir a redução de liberalidades por inoficiosidade, o que significa que os bens cujo relacionamento é requerido não devem ser relacionados nem devem ser objeto de qualquer redução, tratando-se de bens validamente transmitidos pela Inventariada.

A Interessada Reclamante respondeu à exceção da caducidade invocada, sustentando a sua improcedência.

Seguidamente foi proferido despacho em que, para além do mais, se julgou procedente a exceção da caducidade invocada pelo Cabeça de Casal, com a improcedência da reclamação, na parte respeitante à omissão de relacionação das duas quotas e do imóvel.

Desta decisão recorreu a Interessada Reclamante para o Tribunal da Relação que, por acórdão proferido em 06.07.2023, julgou procedente o recurso, tendo substituído a decisão recorrida por outra em que, na procedência da reclamação apresentada pela Recorrente, quanto à omissão de relacionação de cada uma das referidas quotas e do bem imóvel, determinou o seu aditamento à relação de bens, enquanto bens doados pela Inventariada.

Vem agora o Cabeça de Casal interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça daquele acórdão, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

i) O acórdão recorrido faz uma errada interpretação da lei substantiva, mormente dos artigos 2104.º e 2178.º do CC, não só erra diretamente na interpretação do conteúdo destes preceitos legais, como também determina erradamente a norma aplicável ao caso concreto, ao considerar inútil a interpretação do artigo 2178.º do CC no caso concreto e assim decidir pela inutilidade de conhecer da exceção perentória de caducidade invocada pelo cabeça de casal, violando assim estes preceitos legais.

ii) Em especial, errou o douto acórdão ao interpretar e aplicar separadamente os institutos da colação (artigos 2104.º e ss. do CC) e da redução de liberalidades inoficiosas (artigos 2168.º e ss. do CC) quando, manifestamente, para a boa decisão da causa, deveria ter feito uma aplicação sistematicamente coerente destes preceitos legais, que assim violou. De mais a mais, errou o tribunal a quo ao decidir pela inutilidade de conhecer da exceção perentória de caducidade prevista no artigo 2178.º do CC, preceito que assim violou

iii) Concretamente, errou o tribunal a quo ao julgar que a independência entre o instituto da colação e da redução de liberalidades inoficiosas invalida a estreita interdependência existente entre ambos, em especial nos casos em que os donatários são também herdeiros legitimários.

iv) Em face do exposto, para a boa decisão desta causa, seria sempre necessário fazer uma interpretação coerente e concomitante de ambos os institutos, em casos de redução de doações inoficiosas feitas a herdeiros legitimários:

v) Segundo o preceituado no artigo 2108.º, n.º 2 do CC, se não houver na herança bens suficientes para igualar todos os herdeiros, nem por isso são reduzidas as doações por força de colação, salvo se houver inoficiosidade.

vi) Logo, haverá apenas lugar a redução por força da inoficiosidade. Contudo, este direito de redução por força de inoficiosidade caduca ao fim de decorridos dois anos da aceitação da herança, de acordo com o disposto no artigo 2178.º do CC.

vii) Por imposição do princípio da preclusão (toda a defesa tem de ser apresentada com a contestação/resposta à reclamação). Teria sempre o cabeça de casal de invocar a caducidade do direito no primeiro momento processual possível.

viii) Portanto, deduziu o cabeça de casal oportunamente, na resposta à reclamação, a factualidade tendente à invocada exceção da caducidade.

ix) Para mais, nos termos do disposto pelo artigo 1110.º, n.º 1 alínea a) do CPC, no despacho saneador devem ser resolvidas todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar.

x) Sendo certo que não pode a estabilização da Relação de Bens ser feita independentemente da apreciação de (in)existência do direito a redução da liberalidade inoficiosas assim como sem a apreciação da exceção invocada tempestivamente pelo cabeça de casal.

xi) O momento processual adequado para apreciação, por parte do tribunal, das exceções perentórias é a fase do saneamento, nomeadamente no despacho saneador

xii) Assim, errou o douto acórdão recorrido ao entender que tais bens devem ser relacionados para efeitos de colação sem conhecer da exceção de caducidade invocada pelo cabeça de casal, errando assim na interpretação dos artigos 2014.º e 2178.º do CC, que assim violou.

xiii) Portanto, o douto acórdão recorrido, que revogou a sentença de 1.ª instância e ordenou a relacionação de duas quotas e de um imóvel doados pela inventariada, não pode manter-se.

Sem prescindir,

xiv) O artigo 2104.º do CC não deve ser interpretado no sentido em que foi interpretado pelo douto acórdão, uma vez que a colação corresponde a restituição que, para igualação da partilha, os descendentes que queiram entrar na sucessão do ascendente devem fazer à massa da herança, dos bens ou valores que lhe foram doados por este (art.º 2104.º do Código Civil).

xv) E assim, no caso em análise, nunca seria de chamar à colação a parte da quota cedida pela inventariada ao seu cônjuge, o cabeça de casa e aqui recorrente, CC.

Por outro lado,

xvi) Não deve o artigo 2104.º CC ser visto como uma norma imperativa, mas apenas e só como norma supletiva, como tal, passível de ser afastada pela vontade do autor da sucessão.

xvii) Quanto a este ponto, quando a doação a descendentes é efetuada por conta da legítima da donatária tanto a aquisição por doação como o respetivo ónus de redução estão, obrigatoriamente, sujeitos a registo (artigo 2118.º CC).

xviii) No caso dos autos, pela Ap. 9 de 1995/05/18, conforme documento n.º 4 junto com a reclamação, encontra-se registada, em comum, a aquisição, por doação, a favor de DD e CC, com reserva de usufruto a favor da doadora, sem registo de ónus de redução, porquanto, a doação em causa foi feita por conta da quota disponível

xix) Pelo que também por aqui erra o douto acórdão. Ao contrário do que foi decidido, nunca seria de chamar à colação o imóvel doado pela inventariada aos seus DD e CC.

Concluiu, pedindo que seja revogado o acórdão recorrido, sendo reposta a decisão da 1.ª instância.

Não foi apresentada resposta.


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II – Objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo do acórdão recorrido, cumpre verificar se deveriam integrar a relação de bens da herança as quotas societárias e o imóvel doados pela Inventariada.


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III – Os factos

Neste incidente de reclamação da relação de bens, foram julgados provados os seguintes factos com interesse para a decisão do recurso:

1) Em 1987, foi constituída a sociedade comercial “J..., Lda” com o NIPC .......18, cujo capital social inicial, no valor de 100.000$00, era detido, em partes iguais, pela Inventariada e pelo Cabeça de Casal CC.

2) O capital social da referida sociedade foi objeto de reforço, no valor de 300.000$00, realizado em dinheiro, por ambos os sócios em partes iguais, passando a Inventariada a ser detentora de uma quota no valor nominal de 200.000$00.

3) Em 03.02.1993, a Inventariada cedeu ao Interessado CC, uma quota no valor nominal de 100.000$00.

4) O capital social da referida sociedade foi objeto de novo reforço, em 29.01.2002, passando a Inventariada a ser titular de uma quota no valor nominal de € 2.500,00.

5) A quota da Inventariada foi objeto de transmissão, em 21.07.2009, a favor dos interessados CC e DD.

6) Mostra-se inscrita a favor dos Interessados DD e CC, pela apresentação n.º 9 de 18.05.1995, a aquisição por doação do rés-do-chão esquerdo do prédio urbano sito na Rua ..., n.º 7, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 27/19841128 da freguesia de ....

7) Mostra-se inscrita a favor de AA, pela apresentação n.º 9 de 18.05.1995, a constituição de usufruto por reserva em doação do rés-do-chão esquerdo do prédio urbano sito na Rua ..., n.º 7, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 27/19841128 da freguesia de ....


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IV – O direito aplicável

O presente recurso vem interposto do acórdão do Tribunal da Relação que, revogando a decisão da 1.ª instância, determinou o aditamento à relação de bens apresentada em processo de inventário das quotas acima referidas sob os n.º 2) e 5), assim como o imóvel referido em 6), dado tratarem-se de bens que haviam sido doados pela Inventariada.

Efetivamente, quando há herdeiros legitimários, os institutos da colação (artigos 2104.º e seguintes) e da redução por inoficiosidade (artigos 2168.º e seguintes), determinam que os bens que hajam sido doados pelo inventariado integrem a relação de bens, prevista no artigo 1097.º, n.º 3, c), do Código de Processo Civil.

O Recorrente entende, em primeiro lugar que, já se encontrando caducado o direito a requerer a redução, por inoficiosidade daquelas doações, nos termos do artigo 2178.º do Código Civil, não devem os bens doados ser incluídos na relação exigida pelo referido artigo 1097.º, n.º 3, c), do Código de Processo Civil, tal como havia sido decidido na 1.ª instância.

Além de não ser consensual que essa caducidade ocorra quando os beneficiários das doações forem interessados na partilha da herança, como sucede no presente caso, e de ainda não ter sido pedida tal redução, o que poderá suceder até à abertura das licitações (artigo 1118.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), a inclusão na relação dos bens doados não tem como única finalidade tal redução, podendo também visar a colação, para igualação dos descendentes, nos termos do artigo 2104.º e seguintes do Código Civil, relativamente à qual é indiferente a eventual caducidade do direito de redução.

Invoca agora o Recorrente nas alegações de revista que não existem bens suficientes na herança para efetuar essa igualação, o que afastaria a colação, nos termos do artigo 2108.º, n.º 2, do Código Civil, e que, por outro lado, não está sujeita a colação quer a parte da quota social doado ao cônjuge da inventariada, por não ser seu descendente, quer o imóvel, por tal ónus não se encontrar registado e por a doação ter sido efetuada por conta da quota disponível.

Tais questões nunca foram colocadas nas instâncias, tendo sido suscitadas pela primeira vez nas alegações do recurso de revista.

Visando os recursos o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas, não podem as mesmas serem conhecidas neste recurso, pelo que deve o mesmo ser julgado improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.


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Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo Cabeça de Casal, confirmando-se a decisão recorrida.


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Custas pelo Recorrente.

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Notifique.

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Lisboa, 7 de dezembro de 2023

João Cura Mariano (relator)

Emídio Santos

Fernando Baptista