Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ISABEL SALGADO | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL CONFISSÃO JUDICIAL CONHECIMENTO OFICIOSO DECISÃO SURPRESA REAPRECIAÇÃO DA PROVA RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL ACIDENTE DE VIAÇÃO INDEMNIZAÇÃO SEGMENTO DECISÓRIO RECURSO DE REVISTA ADMISSIBILIDADE DE RECURSO DUPLA CONFORME ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 09/14/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE COM * DEC VOT | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | I. Em aplicação da jurisprudência uniformizada pelo AUJ nº 7/2022, fica inviabilizada a revista, na situação em que os valores indemnizatórios arbitrados pelo Tribunal da Relação correspondam a um favorecimento da posição do recorrente- reformatio in mellius- conquanto não exaurindo a pretensão recursiva. II. É residual a margem de intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na matéria de facto fixada pelas instâncias, destinando-se fundamentalmente a sindicar o modo de exercício pela Relação dos poderes previstos no artigo 662.º do CPC e, a observância das regras do direito probatório material, conforme prevenido no artigo 674º, nº3 do CPC. III. A aquisição pelo Tribunal da Relação de factualidade plenamente provada em razão da confissão escrita de facto desfavorável a um dos litigantes, alterando a decisão de facto, inscreve-se no âmbito da oficiosidade da sua actuação e emerge das regras impositivas de direito probatório material. IV. Assente que o acidente de viação se ficou a dever à culpa exclusiva do condutor da viatura automóvel segurada, a reapreciação da matéria de facto sobre as causas do embate impugnada pela recorrente, redundaria em actividade manifestamente inútil, ao arrepio da economia e celeridade processuais. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I . Relatório 1.A acção AA demandou Generali Seguros, SA. em acção declarativa de condenação em processo comum, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 65.433,61 €, acrescida de juros de mora vencidos desde a citação, devida a título de indemnização pelos danos que sofreu , na sequência do acidente de viação ocorrido no dia ... .04.2020 , em ..., o qual envolveu o seu velocípede sem motor que conduzia e, o veículo ligeiro de mercadorias, segurado pelo seu proprietário na Ré. Para tanto , alegou em síntese que, circulava na faixa interior da rotunda indicada e após assinalar com o braço, ingressou na faixa exterior, atento o sentido que iria seguir, sendo então embatido pelo veículo segurado, cujo condutor indevidamente ingressou diretamente naquela faixa. Mais alegou que, o acidente se ficou a dever à culpa exclusiva do condutor do veículo segurado, conforme a Ré assumiu por carta enviada ao Autor . A Ré contestou; impugnou a versão do acidente descrita na petição inicial pelo Autor , mais alegando que enviou a aludida carta, em que assumiu o pagamento dos danos do velocípede, por virtude de errada análise do acidente, pois que, conforme resultou da sua averiguação posterior, também o Autor contribuiu para a ocorrência, e impugnou ainda a extensão os danos corporais e os valores reclamados pelo Autor. No final, pugna pela improcedência da acção ou procedência parcial com as devidas consequências de lei. 2. A sentença Prosseguiu a instância, foram fixados os temas de prova, realizada prova pericial e teve lugar a audiência de discussão e julgamento, seguindo-se sentença com o dispositivo seguinte - « 1. Condenar a Ré a pagar ao autor, a título indemnização por danos patrimoniais a quantia de € 50 433, 61, a que acrescem necessariamente juros vencidos e vincendos (actualmente, à taxa de 4%, desde ... de ... de 2003, cfr. Portª nº 291/2003, de 8-4) calculados desde a citação e, até efectivo pagamento. 2 - Condenar a Ré a pagar ao autor a quantia de € 15.000 € (quinze mil euros) a título de indemnização por danos morais, a que acrescem juros vencidos e vincendos (actualmente, à taxa de 4%, desde ... de ... de 2003, cfr. Portª nº 291/2003, de 8-4) calculados a partir da data da prolação da sentença, até efectivo pagamento. 4 - Condenar a ré no pagamento das custas» 3. A Apelação Inconformada, apelou a Ré para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão proferido em....11.2022 «(…)julgou parcialmente procedente o recurso\ de apelação intentado pela Ré seguradora, revogando-se, na parte impugnada a decisão da sentença recorrida e condenando-se a Ré a indemnizar ao Autor pelas despesas que teve de 150,00 € em consulta e relatório de avaliação de dano corporal, 27,61 € em medicamentos, 76,00 € numa certidão da participação do acidente de viação e por “dano biológico”, no sentido de consequências patrimoniais da afetação da capacidade geral ou funcional deste, no montante de € 25.000,00 e pelos danos não patrimoniais no montante de 10.000€, tudo acrescido de juros moratórios desde a citação e até integral pagamento .Custas pela R/recorrente e autor na proporção do decaimento.» 4. A Revista Permanecendo inconformada, a Ré pede revista , pugnando pela revogação do acórdão da Relação nos termos e com os fundamentos que constam das conclusões de recurso : «I - A norma da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC não consente a ampliação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação. II - Verificando-se, no entendimento do Tribunal da Relação, a necessidade de ampliar a matéria de facto, deve ser anulada a decisão e o processo remetido, de novo, ao Tribunal de Primeira Instância, de forma que seja aí apreciada tal questão. III - A única possibilidade de o Tribunal da Relação alterar decisão proferida pelo Tribunal de primeira Instância quanto à matéria de facto é a que está prevista no n.º1 daquela disposição e está dependente, por sua vez, do prévio cumprimento pelas partes que tenham interesse nessa alteração do que vem estabelecido no artigo 640º do CPC, IV - Como tal, a decisão em causa, no sentido de aditar aos factos assentes um novo facto, é ilegal, porque viola a lei processual, mais precisamente a já citada norma da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC. V- E, como tal, impõe-se a revogação, nessa parte, do douto Acórdão, eliminando-se dos factos assentes o novo facto com o número 39, ou seja, “Por carta datada de ... .06.2020, dirigida ao autor, pela seguradora foi dito que…” concluímos que a responsabilidade pelo acidente de ... .04.2020 foi de quem conduzia o veículo que garantimos, por isso vamos pagar a reparação dos danos acusados no seu veículo…”VI - Ao proferir decisão no sentido de aditar um novo facto (ponto 39) à matéria de facto, o Tribunal da Relação pronunciou-se sobre questão que não lhe era lícito conhecer, o que determina a nulidade desse douto acórdão, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea d) do CPC, vício esse que, expressamente, se invoca. VII - A decisão de dar como provado esse facto – quando sobre o mesmo não se pronunciou o Tribunal de Primeira Instância – constitui, assim uma decisão-surpresa, com a qual nenhuma das partes poderia, legitimamente, contar.VIII - E, como tal, antes de ser proferida aquela decisão, impunha-se que o Tribunal da Relação tivesse ordenado a notificação das partes para se pronunciarem quanto ao aditamento desse novo facto, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do CPC. IX - Porém, al notificação não foi ordenada, tendo as partes sido confrontadas, já no próprio douto Acórdão, com essa decisão X - Logo, foi preterida uma formalidade que a própria Lei impõe (cfr n.º 3 do artigo 3.º do CPC). XI - A preterição dessa formalidade influi, naturalmente, no exame e na decisão da causa (cfr artigo 195.º do CPC). XII - Se o Tribunal da Relação tivesse indicado às partes, previamente à prolação da decisão, que ponderava dar como provado o facto que aditou com o n.º39 ao elenco da matéria assente, isso evidenciaria, desde logo, que o entendimento do Tribunal de Recurso era distinto do adotado em primeira instância e que se dirigia no sentido de dar relevo àquela comunicação. XIII- E, nesse caso, a Ré teria suscitado a nulidade da douta sentença, por omissão de pronúncia quanto àqueles factos alegados nos artigos 11º a 24º e 57º a 66º da contestação da ora exponente e ainda a necessidade de ampliação da matéria de facto, de forma a dispor de base suficiente parta sustentar a sua defesa. XIV - Tais factos, se provados, reforçariam o entendimento- que a Ré mantém – de que a comunicação datada de ... .06.2020 não corresponde a uma confissão. XV- Ou seja, em suma, o facto de à Ré não ter sido comunicado, previamente à prolação do douto Acórdão, que o Tribunal ponderava aditar um novo facto à matéria assente (ponto 39),influiu, decisivamente, na decisão de direito proferida, na medida em que impediu a Ré de suscitar várias questões e diligências processuais que poderiam alterar o sentido da decisão. XVI - Assim, deve concluir-se que o Tribunal da Relação preteriu formalidades que a Lei prevê e que influíram, decisivamente, no julgamento da causa.XVII- Ora, no caso, a nulidade processual cometida foi sancionada pela própria decisão da qual se recorre, uma vez que surge como substituto processual incorreto para o ato que o Tribunal deveria ter praticado, que era o de determinar, previamente à sua prolação, a notificação das partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de aditamento de um novo facto (ponto 39) à matéria assente. XVIII - Assim, a douta decisão proferida nestes autos é nula, nos termos conjugados dos art.ºs 119º, 138º, n.º 2 do CPT, 193º, 195º, n.º 1 e 615º n.º 1, alínea d) do NCPC, devendo como tal ser declarada e ordenada a baixa dos autos à 2ª instância, de forma a que seja facultada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre o aditamento à matéria de facto do facto agora numerado com o número 39, ou seja, “Por carta datada de ... .06.2020, dirigida ao autor, pela seguradora foi dito que…” concluímos que a responsabilidade pelo acidente de ... .04.2020 foi de quem conduzia o veículo que garantimos, por isso vamos pagar a reparação dos danos acusados no seu veículo…”XIX - Da leitura da fundamentação da douta sentença de primeira instância verifica-se, que, no que toca à responsabilidade pelas consequências do acidente, o julgador baseou a sua decisão apenas, na consideração da factualidade dada como provada, a qual, segundo entendeu o julgador, permitiam imputar ao segurado da Ré a culpa exclusiva na produção do sinistro. XX - Em momento algum o Tribunal fundou a decisão de condenar a Ré no pagamento do valor integral das indemnizações consideradas devidas ao Autor em qualquer confissão extrajudicial que a recorrente tenha produzido na fase extrajudicial. XXI - No douto acórdão sob censura entenderam os Srs Desembargadores não ser de reapreciar a decisão proferida em primeira instância no que toca à responsabilidade na verificação do sinistro e, consequentemente, não ser de conhecer a impugnação da decisão proferida quanto aos factos relacionados com a dinâmica do acidente, que a Ré defendeu terem sido incorretamente julgados. XXII - E essa decisão baseou-se na conclusão, a que chegaram os Ilustrados Desembargadores, de que a Ré confessou a responsabilidade na fase extrajudicial, por via de comunicação que dirigiu ao Autor em ... .06.2020. XXIII - Como vem sendo unanimemente entendido pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, os recursos visam o reexame de decisões proferidas sobre questões suscitadas nas instâncias superiores e não a decidir, em primeira instância, novas questões. XXIV - O Tribunal da Relação debruçou-se sobre uma questão que não foi objeto de decisão em primeira instância, mais precisamente a de saber se a Ré, por via da comunicação que remeteu aoAutor em ... .06.2020, confessoua responsabilidade do seu segurado na produção do acidente. XXV - Tal matéria não foi, sequer, abordada na decisão de primeira instância. XXVI - E não o foi porque não era, sequer, questão que tenha sido inserida no objeto do litígio ou nos temas da prova. XXVII - No caso, o Tribunal da Relação conheceu de questão absolutamente inovadora, a qual não foi discutida entre as partes até ao encerramento da discussão em primeira instância e nem sequer foi decidida na douta sentença, consistente em saber se a Ré confessou, extrajudicialmente, a responsabilidade. XXVIII -Neste contexto, nunca o conhecimento das consequências jurídicas daquela comunicação efetuada pela Ré poderia ocorrer, pela primeira vez, já em sede de recurso, como se fez no douto Acórdão sob censura. XXIX - Logo, uma vez que a questão da eventual confissão da responsabilidade por parte da Ré, através da carta datada de ... .06.2020, nunca foi objeto de decisão por parte do Tribunal de primeira instância e não constitui matéria de conhecimento oficioso, entende a Ré que, salvo melhor opinião, estava vedada ao Tribunal da Relação conhecer dessa questão e nela basear a sua decisão. XXX - Logo, ao pronunciar-se sobre essa questão, o Tribunal extravasou a matéria que lhe era lícito conhecer e, por isso, incorreu em excesso de pronúncia o que determina a Nulidade do douto Acórdão sob censura, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea d) do CPC, vício esse que expressamente se invoca e que deve determinar a anulação da decisão e o envio dos autos ao Tribunal a quo, para prolação de nova decisão que supra essa nulidade. XXXI - Na carta que a Ré remeteu ao Autor em .../06/2022 não confessa qualquer facto,manifestado, apenas, uma opinião ou conclusão quanto à responsabilidade. XXXII - A Ré não reconheceu qualquer facto relacionado com a dinâmica do acidente, tendo apenas declarado que assumia a responsabilidade pelas consequências do acidente. XXXIII- A confissão só pode incidir sobre factos (cfr art. 352º do Cod Civil) e não sobre considerações de direito, nomeadamente no que toca à culpa.XXXIV- Logo, porque não se pode considerar confessada uma conclusão jurídica, aquele documento não tem o valor de uma confissão.XXXV- Por outro lado, como a Ré sustentou na sua contestação – e não foi objeto de apreciação pelo Tribunal- aquela posição resultou de uma errada interpretação e análise dos elementos apurados, que levou a Ré a, por não ter dado o devido relevo ao comportamento do próprio Autor, concluir, num primeiro momento, que só o condutor do veículo seguro tinha dado causa ao acidente. XXXVI - Consequentemente, entende a Ré que a decisão proferida, na medida em que atribui à comunicação remetida pela Ré ao Autor a natureza de confissão, violou as normas dos artigos 352º e 358º do Cod Civil. XXXVII - E, nessa medida, o Tribunal não poderia ter baseado a sua decisão na ocorrência dessa confissão, o que impõe a revogação do douto acórdão. XXXVIII - Ademais, tendo-se o Tribunal da Relação abstido de conhecer, com o fundamento de que existia aquela confissão, as questões suscitadas pela Ré no seu recurso de apelação, mais precisamente a impugnação da decisão proferida quanto aos factos dos pontos 9, 11 e 13 da factualidade dada como provada e a), c), d), e), f), g), H) e i) dos factos dados como não provados, bem como a reapreciação da decisão de direito no que toca à responsabilidade pela eclosão do acidente, deverá o processo ser remetido ao Tribunal a quo para que delas conheça, nos termos do disposto no artigo 682º n.º 3 do CPC e 684º n.º 2 do CPC. XXXIX - Na sequência do que acabou de se expor, verifica-se que o Tribunal a quo não poderia ter baseado a sua decisão na apreciação de uma questão nova, mais precisamente a da alegada confissão extrajudicial da responsabilidade por parte da recorrente, por via da carta que enviou ao Autor em ... .06.2020. XL- Ademais, como se sustentou, a comunicação que a Ré remeteu ao Autor em ... .06.2020 não constitui uma confissão, não podendo ser-lhe dado tal valor. XLI - Assim, não sendo lícito ao Tribunal da Relação conhecer dessa questão, ou concluir pela existência de confissão, não poderia ter-se abstido de conhecer os fundamentos do recurso interposto pela Ré, no que toca à matéria da responsabilidade pelas consequências do acidente. XLII - Consequentemente, o Tribunal a quo deveria ter-se pronunciado sobre as questões que a ora recorrente invocou nas suas alegações de recurso, mais precisamente a impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito do Tribunal de Primeira Instância, em ambos os casos quanto à responsabilidade pelas consequências do sinistro (conclusões I a XVII, XXXVI a XLVIII e XLIX a LV da motivação do recurso de apelação apresentado pela Ré). XLIII - Não se tendo o Tribunal da Relação pronunciado sobre tais matérias, incorreu em manifesta omissão de pronúncia, o que acarreta, também, a nulidade do douto Acórdão sob censura, nos termos do disposto no artigo 615º n.º 1, alínea d) do CPC. XLIV - Como já acima se assinalou, a Ré foi confrontada, desde o início, com a alegação do Autor de que a posição extrajudicial que assumiu (através da carta datada de ... .06.2020) era irreversível e consubstanciava uma confissão, impeditiva da discussão da matéria da dinâmica do acidente. XLV - Em sua defesa, quer quanto aos demais fundamentos da ação, quer quanto a este particular aspeto da fundamentação dos pedidos, a Ré alegou um conjunto de factos que justificavam o envio daquela comunicação e, ainda, a posição de recusa (total ou parcial) da responsabilidade pelas consequências do acidente, que manifestou no seu articulado de contestação (e que aqui se dão por reproduzidos e integrados, para todos os efeitos legais).XLVI- Do mesmo passo, quando interpôs recurso da douta sentença, a Ré entendeu desnecessário arguir a nulidade da douta sentença por omissão de pronúncia quanto aos factos que a Ré alegou na sua contestação (artigos 11º a 24º e 57º a 66º) no sentido de construir a sua defesa quanto à alegação de que a carta que enviou ao Autor em ... .06.2020 constituía uma confissão, na medida em que o próprio Tribunal não lhe conferiu tal natureza. XLVII - Ora, ainda que se considerasse que o teor da comunicação que a Ré remeteu ao Autor em ... .06.2020 assume a natureza do reconhecimento de um facto desfavorável à Ré, a factualidade aleda pela Ré nos artigos 11º a 24º e 57º a 66º da sua contestação afigura-se como uma justificação plausível e atendível para essa tomada de posição. XLVIII - Com os factos que alegou nos artigos 11º a 24º e 57º a 66º da sua contestação, a Ré pretendia evidenciar que essa conclusão, ou opinião, não foi devidamente ponderada, já que não atendeu a aspetos relevantes da dinâmica do acidente, nomeadamente o comportamento do próprio Autor. XLIX - E, assim, entende a Ré que, face à fragilidade da pretensa “confissão” da Ré – que versa apenas sobre uma conclusão- , a contextualização daquela declaração no enquadramento resultante dos factos alegado nos artigos 11º a 24º e 57º a 66º da contestação afastaria, na perspetiva da Ré, a possibilidade de ser dado qualquer real valor probatório à carta que a Ré remeteu ao Autor em .../06/2022. L - Sendo que,dentro das várias soluções plausíveis de direito, configura-se a possibilidade de, conjugando-se a circunstância de a carta datada de .../06/2022 não conter, em si mesma, uma confissão de factos e se demonstrar que a conclusão (ou opinião) dela constantes ter sido o resultado de uma precipitada análise de elementos ligados ao acidente, ser afastada a sua natureza confessória- LI. Face ao exposto, entende a Ré que, caso não seja atendido o que acima se expos, deverá o Supremo Tribunal de Justiça ordenar a, nos termos do disposto no artigo 682º n.º 3 do CPC, que o processo volte ao tribunal recorrido, de forma a que seja ampliada a matéria de facto, com a indicação, em Primeira Instância, dos factos alegado nos artigos 11º a 24º e 57º a 66º da contestação, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito. LII. O dano biológico poder assumir diversas repercussões, mas tal não significa que tenha sempre várias vertentes. LIII - No caso dos autos não está demonstrado que a incapacidade permanente de que o Autor é portador acarrete efetiva perda de rendimentos ou seja suscetível de gerar tal perda no futuro. LIV -Tendo em conta a matéria de facto na qual se pode basear a decisão, não é previsível a ocorrência de qualquer dano patrimonial futuro (cfr art. 564º n.º 2 do Cod Civil), o que é o mesmo que dizer que nenhum dano haverá a indemnizar neste campo, ou a este título. LV-Tendo em conta os elementos coadjuvantes invocados no corpo destas alegações, entende a Ré que a indemnização pelo défice funcional permanente que afeta o A, que abarca todas as vertentes do seu dano biológico, deve ser fixada, em equidade no valor de 13.500,00€. LVI-Requer, assim, a revogação do douto Acórdão na parte em que arbitrou ao demandante a quantia de 50.000,00€ pelo seu dano biológico, fixando-se essa indemnização nos indicados 13.500,00€, pelos quais a Ré será responsável apenas na proporção em que o seu segurado tenha contribuído para a ocorrência dos danos, a qual se entende ser a de 50%. LVII - Ou, caso se entenda não ser este o valor adequado – o que, não se conceberia – sempre se imporia a redução da verba na qual esse dano foi fixado no douto Acórdão, o que, subsidiariamente, se requer. LVIII - A verba arbitrada para compensação dos danos morais sofridos pelo Autor é exagerada. LIX- Entende a recorrente que seria mais adequada a compensar o sofrimento físico do Autor a verba de 5.000,00€ para a qual se pede que seja reduzida a compensação pelos danos morais devida ao Auto, LX - Ou, caso se entenda não ser este o valor adequado – o que, não se conceberia sempre se imporia a redução da verba na qual esse dano foi fixado no douto Acórdão XI - O douto Acórdão sob censura violou as normas dos artigos 3º, n.º 3, 608.º n.º 2 e 662º m.º 2, alínea c) do CPC e 483.º, 496.ºe 566º do Cod Civil. Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o douto Acórdão sob censura e decidindo-se antes nos moldes acima apontados, como é de inteira e liminar JUSTIÇA.» * O Autor apresentou contra alegações , argumentando, em suma, que deverá improceder a revista e manter -se o acórdão da Relação. * O Tribunal da Relação por acórdão subsequente pronunciou-se pela improcedência da nulidade por excesso de pronúncia suscitada pela recorrente. * Da admissibilidade da Revista Questão prévia – cindibilidade do objecto processual; dupla conforme Os quantitativos arbitrados pelo Tribunal da Relação ( por unanimidade) a título de indemnização pelo dano biológico( Euros 25.00.00) e pelos danos morais(10.000,00)correspondem a um favorecimento da posição da Ré recorrente, ( a 1ª instância fixara no mesmo âmbito, as quantias de Euros 50.000,00 e 15.00,00), conquanto não tenham exaurido a sua pretensão recursiva; 1 o Autor não recorreu. Em ações de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, através AUJ nº 7/2022, 2uniformizou-se a jurisprudência no sentido de que "a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, [deve ser] avaliada em função do benefício que o apelante retirou do acórdão da Relação (…)”. 3 A adesão a determinada jurisprudência deverá presumir-se como o acatamento da solução correta, em nome da desejada unanimidade e consequente segurança do direito, como postulado no artigo 8º, nº3, do Código Civil. Doravante, na interceção do enunciado critério uniformizado, que prosseguimos, ao quadro decisório dos autos, ocorre dupla conformidade de julgados, para os efeitos do disposto do artigo 671º, nº3, do CPC, e por consequência, nesse segmento a reapreciação dos valores indemnizatórios dos danos está excluída da revista. No restante objecto do recurso, verificados os requisitos gerais de recorribilidade e a divergência dos julgados das instâncias, atento o disposto nos artigos 629º, nº1 e 671º, nº1 do CPC, admite-se a revista.4 * Objecto do Recurso Delimitadas as conclusões da recorrente, em interface com o acórdão impugnado, cabe decidir se, o Tribunal da Relação incorreu em excesso pronúncia e proferiu decisão surpresa ao atribuir o valor probatório de confissão extrajudicial da responsabilidade pelo acidente a declaração - carta junta. II. Fundamentação A. Factos Vem provado que:5 1. Cerca das 18h35 do dia ... .04.2020 ocorreu um acidente de viação no Largo de ..., na cidade de ..., em que intervieram os veículos: velocípede sem motor, conduzido pelo demandante, seu proprietário e ..-..-TZ, ligeiro de mercadorias, propriedade de BB e conduzido por CC. 2. O local onde ocorreu o acidente é uma rotunda com duas pistas de rodagem e, no local onde ocorreu o acidente, de sentido descendente. 3. Nessa altura fazia bom tempo e o ar estava limpo, propiciando-se boas condições de visibilidade. 4. Esse acidente ocorreu do seguinte modo: 5. O velocípede sem motor do demandante circulava pela rua de ..., no sentido centro da cidade – rotunda de .... 6. Ao atingir a rotunda de ..., pretendia contorná-la para seguir em direcção ao Nó Rodoviário de .... 7. Para isso, depois de se ter certificado de que não circulava qualquer veículo no interior da rotunda, entrou na referida rotunda de ..., por onde passou a circular pela pista de rodagem mais à esquerda.8. E porque pretendia passar a circular pela pista de rodagem mais à direita para seguir em direcção ao Nó Rodoviário de ..., sinalizou essa sua intenção através da extensão do braço direito.9. E quando estava a entrar na pista de rodagem mais à direita acabou por ser embatido na parte lateral direita do velocípede sem motor e no seu membro inferior direito pela parte lateral esquerda do veículo ..-..-TZ, após o que caiu ao solo juntamente com o seu velocípede sem motor.10. Por seu lado, o veículo ..-..-TZ circulava pela rua ... pretendendo aceder à rotunda de ... para seguir em direcção à rua .... . 11. Mas o seu condutor fazia-o sem atenção à sua condução, à manobra que pretendia realizar e ao restante trânsito. 12. Ao invés de aceder à rotunda de ... e passar a circular pela pista de rodagem mais à esquerda, até porque pretendia sair na segunda saída, circulava pela pista de rodagem mais à direita;13. Motivo por que, ao seguir em direcção à rua ... não se apercebeu da presença do velocípede sem motor do demandante e, acabou por barrar a passagem ao velocípede sem motor do Autor, embatendo-lhe na parte lateral direita com a parte lateral esquerda do veículo ..-..-TZ. 14. Entre a Ré, como seguradora, e BB, foi celebrado o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice ........97. 15. Mediante esse contrato de seguro foi transferida para a Ré a responsabilidade civil em relação a terceiros decorrente da circulação do veículo automóvel com a matrícula ..-..-TZ. 16. A ré pagou a reparação do velocípede sem motor, e o equipamento que o demandante levava vestido. 17. Em consequência do acidente o Autor sofreu: traumatismo da mão e perna direitas; traumatismo do cotovelo esquerdo e traumatismo do ombro esquerdo. 18. No local do acidente foi assistido pelo INEM, após o que foi transportado para o S.U. do Hospital de , onde foi submetido a exames imagiológicos. 19. Após o que foi tratado conservadoramente, recebendo, de seguida, alta hospitalar medicado, recolhendo a sua casa, onde se manteve em repouso durante cerca de dois meses. 20. Em finais do mês de Maio de 2020 passou a ser seguido pelos Serviços Clínicos a cargo da demandada, na Clínica ..., onde realizou tratamento fisiátrico durante duas semanas. 21. Por persistência das queixas álgicas a nível do polegar direito, efectuou uma R.M.N. e Ecografia ao polegar direito, onde foi detectada fractura com avulsão de fragmento ósseo, com cerca de 3 mm, na base deste polegar direito. 22. Perante a existência desta fractura o demandante foi informado pelos Serviços Clínicos da demandada que deveria ter ser submetido a uma intervenção cirúrgica nos 8 dias seguintes à ocorrência da lesão, mas que, constatada a existência dessa fractura vários meses após a ocorrência da lesão, a intervenção cirúrgica já não teria o efeito pretendido. 23. No dia ... .09.2020 acabou por ter alta definitiva dos Serviços Clínicos da demandada na Casa de Saúde ..., no Porto. 24. Apesar dos tratamentos a que se submeteu o demandante ficou a padecer definitivamente: reação dolorosa tempestiva à mobilização ampla da articulação metacarpo-falângica do polegar e dificuldades na condução automóvel prolongada ou frequente e dificuldade , a a a apertar os pequenos botões da camisa , rodar tampas e todas as actividades que impliquem força de rotação e preensão com o polegar direito e dificuldades a escrever, digitar e teclar. 25. As lesões sofridas provocaram-lhe um défice funcional parcial de 173 dias e um quantum doloris de grau 4 numa escala de 1 a 7. 26. As sequelas de que ficou a padecer definitivamente provocam-lhe uma incapacidade parcial permanente para o trabalho de 3 pontos, que, embora seja compatível com o exercício da sua profissão habitual, lhe exigem esforços acrescidos e uma repercussão nas actividades desportivas e de lazer de grau 1 numa escala de 1 a 7.27. As lesões sofridas provocaram-lhe dores físicas tanto no momento do acidente, como no decurso do tratamento. 28. E as sequelas de que ficou a padecer definitivamente continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodo e mal estar, que o vão acompanhar durante toda a vida e que se exacerbam com as mudanças de tempo. 29. Na altura do acidente tinha 49 anos de idade. 30. E era saudável, fisicamente bem constituído, dinâmico, alegre, trabalhador, jovial, social e sociável. 31. Por força das sequelas e dos receios de que ficou a padecer definitivamente, o demandante deixou de realizar trilhos mais exigentes de bicicleta ,o que lhe provoca a maior tristeza, amargura e mal estar. 32.No que respeita aos movimentos que o demandante tenha de realizar que impliquem a mobilização ampla da articulação metacarpofalângica do polegar direito, como por exemplo apertar um botão, retirar uma cápsula ou abrir qualquer recipiente , sente dificuldade em fazê-lo . 33. O que, para além de lhe provocar dor, lhe causa profundo desgosto, incómodo e mal estar, pois passou a ter dificuldade em realizar tarefas que impliquem a mobilização ampla da articulação metacarpofalângica do polegar, assim como, na sua actividade profissional, passou a ter dificuldades em actos que impliquem a mobilização ampla da articulação metacarpofalângica do polegar. 34. O que, lhe causa profundo desgosto, incómodo e amargura. 35. O A. é gestor na área de electromedicina, exercendo tarefas de comercial na venda de máquinas para realização de analises clinicas e seus reagentes e especialista em electromedicina, na calibração dessas mesmas máquinas. 36. Tem um salário liquido mensal de 2.380,41€, 14 vezes por ano. 37. Depois do acidente o Autor foi fazendo teletrabalho, motivo pelo qual não teve qualquer perda salarial. 38. O demandante gastou 150,00 € em consulta e relatório de avaliação de dano corporal, 27,61 € em medicamentos, 76,00 € numa certidão da participação do acidente de viação. Em ampliação da matéria de facto, o Tribunal da Relação considerou ainda provado - 39º Por carta datada de ... .06.2020, dirigida ao autor, pela seguradora foi dito que…” concluímos que a responsabilidade pelo acidente de ... .04.2020 foi de quem conduzia o veículo que garantimos, por isso vamos pagar a reparação dos danos acusados no seu veículo…”. E, não provado que: a) Na altura do acidente circulavam no corredor esquerdo (ou interior da rotunda) outros veículos, a par do ..-..-TZ, o que impediu o condutor do TZ de ingressar no corredor interior da rotunda. b) O autor circulava sobre a linha divisória dos dois corredores de trânsito. c) O embate ocorreu no corredor direito (exterior) da rotunda. d) O velocípede conduzido pelo Autor transpôs a linha que separava os dois corredores existentes no interior da rotunda e invadiu o corredor direito (ou exterior) dela. e) Antes de ingressar no corredor exterior da rotunda, o autor não atentou na presença do TZ. f) No momento em que o A mudou de corredor de trânsito e ocupou com o velocípede o corredor direito (exterior) dessa praça, o TZ era-lhe perfeitamente visível e encontrava- se imediatamente à sua frente, ou seja, à sua direita, a par do velocípede. g) No momento em que o velocípede invadiu o corredor direito da rotunda, o TZ contornava a rotunda, não evidenciando uma trajetória que fosse compatível com a saída da rotunda para a EN 101, uma vez que já tinha a sua frente voltada para a Rua .... h) No momento da colisão o TZ encontrava-se a circular no corredor direito da rotunda, de forma paralela à linha que dividia os dois corredores existentes no interior dessa praça e a par do autor. i) O autor, antes de mudar de corredor de transito, podia e pôde avistar o TZ. B. O Direito 1. A intervenção do Supremo Tribunal e a decisão da matéria de facto ; as regras do direito probatório material A recorrente censura o acórdão recorrido em virtude de atribuir o valor probatório de confissão (extrajudicial) da responsabilidade do condutor da viatura segurada e assunção da reparação dos danos pelo acidente, à carta enviada ao Autor junta aos autos e que motivou o aditamento do ponto 39º aos factos provados. Constitui jurisprudência firme e abundante do Supremo Tribunal de Justiça que enquanto tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado, sendo a sua intervenção em sede de matéria de facto, meramente residual e dirigida fundamentalmente a averiguar da observância das regras de direito probatório material, como dispõe o artigo 674º, nº3, do CPC. No alinhamento do vertido inter alia no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, tirado nesta 2ª secção, em 23.05.2023 - “A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no tocante à decisão sobre a matéria de facto é residual, sendo apenas admissível no recurso de revista apreciar a (des)conformidade com o Direito probatório material, nos termos do artigo 674.º, n.º 3, do CPC, e o modo de exercício, pelo Tribunal recorrido, dos poderes-deveres que lhe são atribuídos pelo artigo 662.º do CPC.»6 No caso em juízo o objecto da revista vai mais além, ao colocar em causa o reconhecimento operado pelo Tribunal da Relação, no sentido da declaração - confissão escrita contida na carta junta aos autos, nela firmando a convicção de prova da responsabilidade pelo acidente assumida pela Ré, e dispensar a discussão e prova da dinâmica do sinistro. Em explicação aos fundamentos da revista, refere Abrantes Geraldes que apesar da sua vocação de tribunal de revista, “(..) outras situações, a que estão subjacentes verdadeiros erros de aplicação do direito, podem justificar a “intromissão “do Supremo na delimitação da realidade que será objeto de qualificação jurídica . Assim acontece (…) designadamente quando …. o facto alegado ( nos articulados) por uma das partes foi objecto de declaração confessória com força probatória plena ou quando esse facto encontra demonstração plena em documento junto aos autos, naquilo que nele emerge com força probatória plena, incluindo a eventual confissão nele manifestada.7 E, mais adiante desenvolve - “ É verdade que essas situações não se encontram formalmente assinaladas nos preceitos que especificamente delimitam os poderes do Supremo Tribunal de Justiça e o âmbito do recurso de revista, mas parece evidente que a assunção de factualidade que esteja plenamente provada, como questão de direito que realmente é, deve ser considerada (….) constitui um fator para melhor integração jurídica do caso, sem necessidade de reenvio do processo para o Tribunal da Relação.” 8 Em diferente plano se situa a apreciação da convicção alcançada pela Relação quanto ao documento-carta em evidência, domínio no qual o Supremo não tem poder de intervenção, pois o que compete a este tribunal é pronunciar-se acerca da legalidade do apuramento dos factos, designadamente sobre a ocorrência de obstáculo legal a que a convicção de prova formada nas instâncias se possa firmar no sentido acolhido. Para concluir que , conheceremos do objecto da revista nos estritos limites e razões assinalados. 2.1. As nulidades - excesso de pronúncia ; decisão surpresa; erro de julgamento A discordância crucial da recorrente, reside na circunstância de a Relação considerar que a mesma confessou a responsabilidade do condutor da viatura segurada pelo acidente, através da carta enviada ao Autor e, por consequência, desnecessária a indagação e discussão da dinâmica do sinistro, e por idêntica razão, inútil a reapreciação da factualidade adrede que impugnou . Sustenta em primeira linha, que ao assim decidir , a Relação extravasou os poderes de modificação da matéria de facto , à margem do regime legal de impugnação contemplado no artigo 640º do CPC e, sem prévia audição das partes, ficando confrontadas com uma decisão surpresa, pelo que incorreu em nulidade por excesso de pronúncia. Um breve distinguo. Como tem sido reiteradamente afirmado na doutrina e na jurisprudência, não há que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento. As primeiras, (errores in procedendo) são vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade do silogismo judiciário) da peça processual que é a decisão, nada tendo a ver com supostos erros de julgamento (errores in iudicando), seja em matéria de facto seja em matéria jurídico-conclusiva (direito). As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao direito aplicável ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico).9 A alegada modificação indevida da matéria de facto pela Relação , mercê da atribuição dos efeitos probatórios da confissão extrajudicial à declaração contida na carta enviada pela Ré ao Autor, traduzirá, por conseguinte, um eventual erro de julgamento de facto e de direito; que não se confunde com o vício formal relativo aos limites da decisão, associado à inobservância das regras de elaboração da sentença, a apreciar no domínio das nulidades da decisão tipificadas no artigo 615º, nº1, do CPC. Já no que concerne à alegada decisão surpresa por preterição da audição prévia das partes, do nosso ponto de vista, deverá ser tratada enquanto nulidade. Subsiste amiúde alguma hesitação no enquadramento concreto das denominadas nulidades intrínsecas à decisão sob o regime previsto no artigo 615º do CPC, ou , resolúveis enquanto nulidades processuais gerais do artigo 195º, nº1, do CPC, cuja distinção avulta seja no prazo e condições da respetiva arguição, seja nos efeitos diversos a sua procedência . Abrantes Geraldes identifica a dificuldade na distinção entre estes dois tipos de nulidade, precisamente quando em causa está a prolação de sentença por omissão de formalidade de cumprimento obrigatório prévio, nomeadamente por não cumprimento do princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa.10 Neste contexto, alerta que é mais seguro assentar em que sempre que o juiz, ao proferir a decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio de reação será a interposição de recurso fundado na nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º n.º 1 al. d).11 Entendimento que sufragamos, posto que a falta /omissão em questão , correspondendo a um (único) vício de procedimento, adequa-se ao vício da nulidade de decisão por excesso de pronúncia e prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), CPC, em virtude de se pronunciar sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar. Dito isto, nesse tocante, o apontado vício é antes de mais uma nulidade na tramitação do processado, a qual precede a decisão de prolação da sentença/acórdão, sendo o recurso interposto o meio adequado ao seu conhecimento e a integrar os respetivos fundamentos. 2.2.Os poderes da Relação na alteração/modificação da matéria de facto Constitui hoje jurisprudência firmada por este Supremo Tribunal, que no exercício dos poderes-deveres de reapreciação da decisão de facto impugnada, a Relação tem autonomia decisória, não se limitando à verificação da existência de erro notório por parte do tribunal a quo, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, por parte do tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir. Decorre inequivocamente do preceituado no artigo 662º, nº1, do CPC , que à Relação caberá, sob impulso da oficiosidade, reapreciar a decisão de facto advinda do tribunal a quo , sempre que no confronto da adequada aplicação das regras vinculativas do direito probatório material, se imponha a sua modificação. Actuação ex officio que provém da regra geral da aplicação do direito, sem embargo da intervenção respeitar o objecto e efeito útil para o recurso interposto, e bem assim o eventual caso julgado parcelar. Á luz desse enquadramento normativo, situamos, precisamente, o caso sub judicio , em que a Relação, suportada nos efeitos da prova plena por confissão da Ré no tocante à responsabilidade do condutor da viatura segurada pelo acidente, que considerou refletida na carta enviada ao Autor , concluiu estar afastada a pretendida discussão e prova sobre dinâmica factual do sinistro. No âmbito daquela previsão legal, em que a Relação se limita a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, designadamente quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova, como refere Abrantes Geraldes , cabem, « (…) entre outros, quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória, constante de documento ou resultante do processo (art. 358° do CC e arts. 454°, n° 1 e 463 do CPC)(…), optando por se atribuir prevalência à livre convicção formada a partir de elementos probatórios (v.g. testemunhas, documento particular sem valor confessório ou prova pericial).» 12 O Tribunal da Relação não estava, pois, impedido de empreender oficiosamente a alteração da matéria de facto sob esse fundamento, agindo dentro dos limites das competências estabelecidas no artigo 662º, nº1 do CPC e, da economia e objecto da apelação da Ré. 13 Mais do que isso, na situação em juízo, não se tratou de decisão surpresa ou excesso de pronúncia, como argumenta a recorrente . É comummente aceite que a inibição da prolação de decisões-surpresa, sendo um princípio de actuação crítico para um processo justo, equitativo e igualitário, tem subjacente que os fundamentos usados pelo julgador não foram perspetivados pelas partes, e assumiram reflexo inovatório relevante no sentido da decisão . Au contraire, no caso sub judicio , de acordo com o disposto no artigo 608º, nº2 do CPC, a Relação estava adstrita a apreciar o valor probatório da aludida declaração da Ré na constante da carta em apreço, apesar do tribunal a quo não lhe ter atribuído significado probatório . 14 Olvida, por certo, a Ré que , o Autor, à semelhança do alegado na petição inicial, reafirmou nas contra-alegações da apelação, o propósito de beneficiar da confissão extrajudicial emergente da carta da Ré . De outro lado, o Tribunal da Relação na perspectiva de poder vir a lançar mão da referida carta para decidir, deu às partes a oportunidade adversial de se pronunciarem sobre a matéria.15 Do que resulta, que desde o começo da instância que a invocada confissão da culpa do segurado na produção do acidente , constante da carta junta e confirmada a sua autoria, constituiu objecto de discussão nos respetivos articulados, e mereceu, aliás, extensa refutação pela Ré na contestação ; as partes podiam então prever o desfecho e sentido decisório prosseguido pela Relação, enquanto uma das soluções jurídicas plausíveis, face ao direito aplicável. 16 Em suma, a Relação ao conhecer do valor probatório da carta enquanto confissão extrajudicial de factos desfavoráveis à Ré, não incorreu em erro de julgamento, debruçando-se sobre matéria debatida nos articulados, não traduzindo apreciação de questão nova ou decisão surpresa, observado ainda o contraditório em sede recursiva. Importa agora decidir se, tal como se concluiu no acórdão impugnado, a declaração da Ré constante da carta indicada, assumirá o valor probatório de confissão para os efeitos que se colocam em discussão, i.e, as circunstâncias factuais do sinistro. Está em discussão a carta junta a fls. 18 , cuja autoria reconhecida pela Ré, foi vertida pela Relação no ponto 39º da matéria de facto provada- “ Por carta datada de ... .06.2020, dirigida ao autor, pela seguradora foi dito que…” concluímos que a responsabilidade pelo acidente de ... .04.2020 foi de quem conduzia o veículo que garantimos, por isso vamos pagar a reparação dos danos acusados no seu veículo…”. Em facilidade de exposição, antecipamos, que se acompanha o acórdão recorrido, no sentido confessório da missiva endereçada ao Autor . Do seu teor, à luz do sentido extraído pelo normal declaratário, comunicado o sinistro à Ré seguradora da viatura automóvel interveniente no embate que envolveu o velocípede conduzido pelo Autor, a Ré reconheceu a responsabilidade do seu segurado/condutor pelo acidente. E, assumiu claramente o pagamento - regularização dos prejuízos advindos , o que concluiu e efetivou, após averiguação que por sua conta e para o efeito realizou, i.e, a Ré aceitou sem reserva ou condição a obrigação (contratual) de reparar os danos causados pelo condutor da viatura segurada ao lesado -Autor . Neste contexto em concreto , tal declaração, s.d.r., não pode deixar de valer como instrumento confessório extrajudicial de factualidade desfavorável, vertida em documento particular, dirigido à parte contrária, e à qual a lei atribui a força probatória plena. Aproximando. Nos termos do artigo 376º do Código Civil, o documento particular cuja autoria se encontre reconhecida faz prova plena “quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento” (n.º 1), implicando ainda que “os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (...)” (n.º 2)). E, de harmonia com o disposto no artigo 352° do Código Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, e como dispõe o artigo 355°, n° 1 do mesmo código, a confissão pode ser judicial ou extrajudicial. Por outro lado, sabido que na aceção comum do termo “responsabilidade “ pelo acidente rodoviário, equivale à actuação do - condutor /interveniente que lhe deu causa - enquanto sequência dos factos naturalísticos, dinâmicos e causais do evento, supomos, ocioso, contrariar o sentido de declaração confessória no domínio dos “factos” desfavoráveis ao confidente -declarante. Outro sentido , s.d.r., na normalidade social, não pode retirar-se da comunicação da Ré, afirmando inequivocamente “ ..concluímos que a responsabilidade pelo acidente de ... .04.2020 foi de quem conduzia o veículo que garantimos, por isso vamos pagar a reparação dos danos acusados no seu veículo…” Vem a contendo citar os ensinamentos de Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora a propósito do instituto da confissão - «A meio termo entre a confissão do facto e a confissão do pedido se situam aqueles casos em que a parte reconhece o direito ou a relação jurídica invocada pela contraparte contra ela.»17 Objeta ainda a recorrente que na sua contestação impugnou a declaração constante da carta, motivada por erro de avaliação inicial do acidente , matéria que não foi incluída nos temas de prova , sem reclamação do Autor, pelo que não podia a Relação considerar verificados os efeitos de prova da confissão. Cuidamos que não logrou por tal via infirmar o valor confessório da missiva dirigida ao Autor. Perante a irretratabilidade da confissão, para atingir a sua eficácia, o confidente terá de demonstrar que além do facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou acerca dele ou que foi vítima de outra causa de falta ou de vício da vontade. Sucede que a Ré, na contestação limitou-se a “contrariar” a confissão , sem fundamento operante, alegando que errou na análise dos elementos do acidente , e que após a citação, veio a reavaliar, concluindo que afinal o Autor também contribuiu para o embate, ao entrar inopinadamente na faixa exterior da rotunda onde foi embatido pelo veículo segurado. Entre outras vantagens de meios materiais e humanos, o segurador dispõe na normalidade de peritos/técnicos aprestados a indagar e avaliar das causas e dinâmica dos acidentes em fase litigiosa, estando de resto legal adstrita, a apresentar com brevidade uma proposta de resolução do diferendo ou, declinar a responsabilidade contratual . Observe-se, que a Ré não alegou qualquer facto superveniente à comunicação dirigida ao Autor , como seja o conhecimento de outra circunstância do acidente, ou até a prestação de informações erradas pelo segurado, simplesmente , “reavaliou” a situação factual sob o seu juízo e critério , que envolvia a culpa do Autor na produção do embate. Vale isto para concluir que, a declaração produzida pela Ré na carta, constitui o reconhecimento da assunção da responsabilidade pela ocorrência do acidente em nome do seu segurado. Declaração de factualidade desfavorável à posição da confidente , realizada com os requisitos exigidos para que a confissão tenha eficácia probatória plena, na fase do processo judicial que a opõe ao Autor, apta a alicerçar a convicção probatória quanto à dinâmica do acidente, e da culpa exclusiva do condutor do veículo segurado. O Tribunal da Relação exerceu, pois, em regularidade, os poderes de modificabilidade da decisão de facto que lhe estão acometidos e, em observância das regras do direito probatório material convocadas, conforme o preceituado nos artigos 662°, nº1, 674º, n.º 3, do CPC; mantém-se, pois, o consignado na decisão de facto. Por último, perante o enquadramento jurídico operado, assente que as causas do acidente de viação são imputáveis, em exclusivo, ao condutor da viatura segurada na Ré, a reapreciação pela Relação da matéria de facto impugnada sobre a dinâmica do sinistro , redundaria em actividade manifestamente inútil, ao arrepio dos princípios de economia e celeridade processuais. III. DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar improcedente a revista , mantendo o acórdão recorrido. As custas da revista são a cargo da Ré que nela decaiu. Lisboa, 14.09.2023
Isabel Salgado (relatora)
Declaração de Voto Votei o acórdão com a seguinte ressalva a respeito da respectiva fundamentação: a vinculação da ré seguradora à declaração extrajudicial de aceitação da responsabilidade do seu segurado pelo acidente não assenta, a meu ver, no carácter confessório da mesma, uma vez que, em rigor, se afigura não estar em causa a confissão de factos; a vinculação da seguradora resulta antes do entendimento de que, tendo a mesma aceite formalmente a responsabilidade pelo acidente na fase pré-judicial, constitui uma grosseira violação do princípio da boa fé que preside ao cumprimento das obrigações (no caso, das obrigações legais especialmente densificadas impostas às seguradoras pelo regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) vir, na fase judicial, rejeitar a assunção de responsabilidade pelo acidente sem, para tal, invocar qualquer circunstância justificativa (como seria, por exemplo, o conhecimento, superveniente do carácter fraudulento das declarações dos envolvidos no acidente). Maria da Graça Trigo Catarina Serra _____ 1. A Ré recorrente apelou no sentido de os valores não ultrapassarem ,respetivamente 13.500,00 e Euros 5,000,00, quantitativos que também indica na revista. 2. DR N.º 201, 1.ª , de 18.10.2022 “ (..) Trata-se, como já referido, de um critério de conformidade assente na ideia de coincidência racional, que se afasta da coincidência formal de julgados (por esta se revelar mecânica e redutora dos propósitos subjacentes à própria figura da dupla conforme face à imponderação do elemento teleológico na interpretação da norma), que inicialmente equacionado relativamente às decisões de condenação numa prestação pecuniária (acções com objectos processuais economicamente divisíveis, ainda que não se esgote nesse âmbito)[47], parte da ideia e encontra justificação no facto de carecer de sentido admitir o recurso de revista nas situações em que o recorrente tenha obtido uma decisão mais favorável que aquela que teria com a confirmação irrestrita da decisão de 1.ª instância, inviabilizadora da revista. “; (a denominada questão da reformatio in mellius). “ 3. Como consta no texto do AUJ indicado- (..) Nas situações de objecto processual plural[59] a conformidade decisória terá, em princípio, de ser avaliada, separadamente, para cada uma das pretensões autónomas e cindíveis decididas pelas instâncias[60].” 4. A redação dos pontos 24, 25, 26, 31, 32, 33, 37, 38 e o aditado ponto 39 dos factos provados resultou do acórdão da Relação, e indicam-se a negrito. 5. No 1950/20.3T8VFR.P1.S1, relatado por Catarina Serra que integra este Colectivo, disponível in ww. dgsi.pt. 6. In Recursos em Processo Civil, 7ª, pág.468/9 ( sublinhado nosso) 7. No mesmo local e obra citados. 8. Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa in CPC anotado, I, 2ª, pág762/64; e na jurisprudência, inter alia, o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 23 de Junho de 2016, proferido no processo 1937/15.8T8BCL.S1, disponível in www.dgsi.pt. 9. In Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2022,7.ª Ed., pág. 25 a 28. 10. Em igual sentido, cfr. Teixeira de Sousa in Jurisprudência 250 in https://blogippc.blogspot.pt/). 11. In Recursos em Processo Civil, 7ªedição, pág. 335, citando também Tomé Gomes in Um olhar sobre a prova em demanda da verdade no processo civil-Revista do CEJ, nº3, pág.153 e sg. 12. Quod abundantet, também não constitui motivo impeditivo o facto de o Autor que invocou a seu favor a confissão a Ré, não ter reclamado do despacho saneador que incluiu nos temas de prova matéria relativa às circunstâncias do acidente, visto que a decisão que viesse a ser proferida sobre a reclamação por excesso, apenas seria de impugnar com o recurso interposto da decisão final, atento o disposto no artigo 596º, nº 3, do Código de Processo Civil. 13. Na sentença a motivação da convicção relativa à dinâmica do acidente não faz qualquer menção ao documento e ao seu conteúdo -cfr. pontos 1 a 13 dos factos provados- assentou sobretudo nos depoimentos das testemunhas. 14. Cfr.desp.. de fls.188, de 19.09.2022, e subsequente resposta da Ré. 15. Cfr. artº 19º, 20º da PI ; artº 5º , 58º a 66º da Contestação↩︎ 16. In Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, pág. 537, nota 2. |