Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4208/20.4T8CBR.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
CONTRATO ADMINISTRATIVO
INTERESSE PÚBLICO
MUNICÍPIO
ATO ADMINISTRATIVO
FORO ADMINISTRATIVO
FORO COMUM
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – A al. o) do n.º1 do art.º 4.º do ETAF constituiu um acrescento ao diploma trazido pelo D-L n.º214-G/2015, de 2/10, visando reforçar, na legislação comum, a ideia que se retira do disposto no art.º 212.º n.º3 da CRP, de que aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal compete dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

II – Se a descrição efectuada no petitório revela uma actuação materialmente administrativa do Réu que, embora no quadro da liberdade negocial do art.º 405.º n.º1 do CCiv, previa que, à cedência das parcelas de terreno, por parte da Autora, correspondesse sinalagmaticamente o aumento da capacidade construtiva atribuído aos prédios da Autora, funcionando a cedência das parcelas de terreno como uma alternativa a um processo de expropriação e visando um fim de interesse público prosseguido pelo R. Município, a competência dos tribunais administrativos cabe no disposto na al.o) do n.º1 do art.º 4.º do ETAF, por via da matéria invocada caber no conceito de “relação jurídica administrativa”.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



As Partes, o Pedido e o Objecto do Processo

Apícula – Investimentos, S.A., intentou acção com processo declarativo e forma comum, contra o Município de Coimbra, pedindo que o mesmo seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil euros), acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Em alternativa, condenado o Réu a pagar-lhe esse mesmo valor, também acrescido de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento, em função da existência de enriquecimento sem causa.

Alega que o R., através da Deliberação nº 4484/08 de 28/1, procedeu à aprovação municipal de cedência para o domínio público municipal de dois prédios que lhe pertenciam – que denomina de Parcela A e B - quando, ela, A., era designada por “V... Lda”, o que fez, em consequência, de um prévio acordo, no qual ficou estabelecido entre ambos a integração das referidas parcelas no domínio público municipal por contrapartida da bonificação das áreas a construir no loteamento “Urbanização ...”.

Porém, tal acordo não se concretizou, uma vez que a Câmara Municipal de Coimbra nunca chegou a emitir o alvará que garantiria o domínio sobre aquelas parcelas e áreas.

Não obstante o Réu utilizou a área de tais Parcelas – 28.214,75 m 2 - para executar a Circular Interna a que as destinava, apesar da existência do processo de loteamento “Urbanização ..., ..., e do mesmo ter sido aprovado pelo R.

Conclui assim a A. que permaneceu inconclusa a cedência das referidas parcelas para o domínio público municipal, sendo que o R. até hoje não adquiriu, comprou, expropriou ou ressarciu a A. pela ocupação ou utilização da referida área de terreno da sua propriedade, não obstante os insistentes pedidos da A. nesse sentido.

Afastada que está a hipótese das referidas parcelas A e B voltarem a integrar o seu património, deve ser ressarcida pelo R. relativamente ao valor das mesmas, em função da aplicação das normas do actual CExp, ou, se assim não se entender, em função do enriquecimento sem causa.

Quanto à competência material do Tribunal, não baseia a sua pretensão na prática de actos ilícitos ou por via de que o R. tivesse actuado com dolo ou mera culpa, acentuando, por outro lado, a inutilidade e impossibilidade de reivindicar a propriedade de algo integrado no domínio público.

O R. defendeu-se por excepção e impugnação, invocando em sede de excepção e antes de outras, a incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns, quer quanto ao pedido principal, quer quanto ao subsidiário.

Entendendo que a A. requer um pedido de indemnização contra pessoa colectiva de direito público como emergente duma situação de facto, apropriação irregular ou expropriação indirecta, sem que se mostre acompanhada de pedido de reivindicação, tal implica que a competência para julgar a acção se encontre atribuída aos Tribunais Administrativos, nos termos do art 4º/1 al f) do ETAF.


As Decisões Judiciais

Conhecendo da excepção de incompetência em razão da matéria do tribunal comum, em 1.ª instância foi julgada procedente a invocada excepção e declarada a incompetência material do tribunal comum, com a consequente absolvição do Réu da instância.

Tendo a Autora recorrido de apelação, a Relação confirmou o antes decidido.


Ainda inconformada, recorre agora de revista a Autora, formulando as seguintes conclusões de recurso:

1) Em acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, foi pela A. peticionado contra o Município de Coimbra, o pagamento da quantia de € 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil euros), acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento, “em consequência do incumprimento de um acordo prévio, pelo qual ficou entre a A. e o Município de Coimbra estabelecida, a cedência e integração de duas parcelas com a área de 28.214,75m2, destacadas de dois prédios seus com os números 799 e 739, no domínio público municipal, como contrapartida da bonificação das áreas a contruir no loteamento Urbanização ..., em Coimbra”.

2) Aprovado o loteamento em 01/01/2008 (processo n.º ...6) que considerou a bonificação acordada, apenas aguardando a emissão do alvará, logo de seguida 28/01 do mesmo ano, pela deliberação ...8 foi concretizada a cedência para o domínio público municipal (artigo 6º da PI) das referidas parcelas, que passaram a integrar a chamada circular interna (Avenida ...; artigo 2º da PI), concretizando o suprarreferido acordo entre as partes.

3) Que, todavia, se mostra inconcluso, porque o R. Município de Coimbra nunca veio a emitir o alvará de loteamento (artigo 8º da PI) ainda que sempre a A. tenha reivindicado a titularidade dessas parcelas, diga-se que nunca contestada pelo Município de Coimbra.

4) Utilizou, todavia, essas faixas cuja cedência estava acordada e, após a aprovação do loteamento, considerando a bonificação das áreas de construção também acordadas, como contrapartida, o que é dizer, como preço das referidas áreas integradas no domínio público municipal.

5) Ficou apenas a faltar à conclusão do negócio o pagamento efectivo deste preço acordado, que embora correspondendo à bonificação das áreas a construir no loteamento aprovado, não foi até hoje acessível à A. porque o loteamento caducou sem que o alvará tenha sido emitido.

6) E afastada passou a estar a possibilidade das referidas parcelas de terreno voltarem a integrar o património da A., que nesta acção o que veio pedir foi exclusivamente o valor dessas parcelas, por incumprimento do acordo ou residualmente por enriquecimento sem causa.

7) Nesta acção não pede qualquer indemnização pela ocupação, utilização ou suas consequências, mas apenas – repita-se – o preço acordado para as referidas parcelas.

8) Pede apenas o preço determinado no loteamento aprovado, no valor actualizado das bonificações aprovadas pelo próprio R. Município de Coimbra, mas cujo alvará nunca foi emitido, como indemnização pela perda definitiva das referidas parcelas de terreno.

9) Outro método que admitiu em alternativa para a determinação do preço que todavia se encontrava ab initio determinado, foi a aplicação das normas do actual código de expropriações, que pela avaliação independente de avaliador certificado, de resto ex-director municipal, obteve o preço constante dos autos e que corresponde ao pedido.

10) Apesar de muitas insistências, o Município de Coimbra foi adiando o pagamento devido.

11) O que obrigou a A. ao recurso à jurisdição comum, com uma acção declarativa de condenação, na impossibilidade de retoma das suas propriedades, numa indemnização correspondente ao seu valor, ou por actualização da avaliação das áreas bonificadas ou pelo valor encontrado na avaliação junta aos autos, ambas actualizadas à data em que for efectuado o pagamento.

12) O Município de Coimbra excepciona a incompetência em razão da matéria da jurisdição comum, com o impertinente argumento de que a A. “requereu um pedido de indemnização contra pessoa colectiva de direito público, consequente da situação de facto”, que identifica como “apropriação irregular” ou “expropriação indirecta”, que se não mostra acompanhada diz, de “pedido de reivindicação” daí concluindo erradamente pela “competência dos tribunais administrativos nos termos do artigo 4º, nº1, alínea f) do ETAF”.

13) Interpretando menos bem a excelente Jurisprudência e Doutrina que cita nos fundamentos do acórdão recorrido, mormente as posições do tribunal de conflitos, em que afirma aperceber-se, mas decidindo em sentido contrário.

14) Com efeito afirma que “uma deliberação do órgão camarário exprime um acto de autoridade e não um acordo” quando o litígio existente é de natureza privada.

15) Ao que nos importa, a questão já foi apreciada e decidida pelo tribunal de conflitos em 24-05-2017, determinando que o pedido de condenação no pagamento de uma indemnização pela perda definitiva de bens imoveis, não determina a incompetência material da jurisdição comum.

16) No caso concreto, o valor equivalente até foi consensual, porque correspondeu à bonificação atribuída ao projecto de loteamento aquando da sua aprovação, rigorosamente estabelecido na decisão que o aprovou e não mereceu qualquer reparo por parte da A.

17) A Superior Instância recorrida, citando boa Jurisprudência e também muito boa Doutrina, sustenta posição contrária à que vem sustentada neste acórdão, na definição da competência dos tribunais administrativos para conhecer o pedido nos presentes autos, que só pode resultar de uma deficiente leitura do entendimento do tribunal de conflitos, da norma da alínea i) do artigo 4º do ETAF.

18) Norma que terá que ser interpretada no sentido de “atribuir competência aos tribunais administrativos para as acções em que apenas está em causa a remoção de actuações ilegais da administração”, situação que já se verificava de resto antes de 2015, sendo que a legislação só a veio reforçar por estar em causa ainda “situações materialmente administrativas da administração”.

19) Mesmo nos casos em que estamos perante “ataques de apropriação particular” ou perante “um acto consumado à margem de qualquer processo legal”, ou mesmo num pedido de justa indemnização por uma “apropriação de facto” ou “apropriação ilegal” ou “expropriação indirecta”, tal pedido deve ser feito ainda nos tribunais comuns.

20) A posição dominante é da incompetência dos tribunais administrativos mesmo para fixar indemnizações da “via de facto”, ou seja, “em flagrante ilegalidade” ou “flagrante violação dos direitos de um particular” ou “ocupação da sua propriedade”. O que está em causa é a qualidade em que a administração intervém. Se no uso dos seus poderes próprios ou enquanto qualquer cidadão comum.

21) A Instância recorrida vem afirmar nas suas conclusões que “não está em causa a titularidade do direito de propriedade sobre a área das antigas parcelas … tanto mais que o pedido na acção se restringe à condenação do R. em indemnização pelo valor dos terrenos de que aquele se apropriou de facto”.

22) Não se trata propriamente de uma apropriação de facto porque existiu um acordo de cedência dessas parcelas a ser pagas por bonificação das áreas a construir no loteamento das ....

23) O que, como sabemos apenas aconteceu por o loteamento já aprovado, em que essa bonificação foi considerada, ter caducado antes da emissão do respetivo alvará.

24) Mas mesmo se se tivesse tratado de uma apropriação de facto, a competência continuava a caber à jurisdição comum, porque não é pedida nestes autos qualquer indeminização por responsabilidade extracontratual.

25) É a própria Instância recorrida que reconhece que não está em causa “uma situação manifestamente ilegal por parte da administração por ter existido um acordo entre ela e a A. que não foi observado ou foi incumprido”.

26) Conclui por isso erradamente que, “na linha interpretativa que entende decorrer das decisões do tribunal de conflitos, a competência em razão da matéria para conhecer do pedido nos presentes autos cabe aos tribunais administrativos “ex vi” alínea i) do artigo 4º do ETAF.

27) A conclusão do tribunal recorrido é por isso inconclusiva das premissas que invoca e da Jurisprudência e Doutrina que cita.


Não foram apresentadas contra-alegações.


Os factos relevantes consistem no conteúdo do douto petitório, que se reproduz:

I. DOS FACTOS

1.º - A Autora anteriormente usava a denominação de V..., Lda., tendo alterado de denominação por deliberação da Assembleia Geral de 22/01/2013 (Doc. 1 e 2).

2.º - Com vista à execução da Avenida ..., em Coimbra, mais conhecida como Circular Interna desta cidade, a Ré, no ano que se julga de 1989, ocupou duas parcelas de terreno, com a área total de 28.214,75m2, pertencentes à então “V...”, ora A., assinaladas na planta anexa como parcelas “A” e “B”, a que corresponde o documento junto (Doc. 3).

3.º - Foi designada por parcela “A” a parcela ocupada ao prédio misto correspondente ao artigo descrito na Conservatória do registo Predial ..., sob o nº ...87, com uma área de 13 739m2 cedida ao domínio público para passeios, arruamentos e estacionamentos a que acrescem 2 800m2 para espaços verdes (16 539m2).

a) Prédio que passou a estar inscrito na matriz urbana sob os nºs 2613 e 2614, da Freguesia ..., do qual foi desanexado o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...00, abrangendo os artigos matriciais urbanos nºs ...97 e ...98 e o nº 2614. Esta Parcela “A”, com a área de 16.094,99m2, de acordo com a planta cadastral produzida pelos serviços técnicos da Divisão de Cadastro, Solos, Património Imobiliário e Informação Geográfica, Departamento de Obras Municipais, corresponde à Parcela 79 x sendo, entre 26/12/96 (ap.19, de 1996/12/26) e 5/1/2010 (ap.3065, de 2010/01/05), propriedade da empresa V..., ora A.

b) Foi designada como parcela “B” a parcela ocupada do prédio correspondente ao artigo descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o nº ...39, então inscrito na matriz rústica sob o nº ...18, atual matriz rústica sob o nº ...99, da Freguesia ..., com a área de 12.195,34m2 cedida para passeios, arruamentos e estacionamentos e 4.863m2 para espaços verdes, de acordo com a planta cadastral produzida pelos serviços técnicos da Divisão de Cadastro, Solos, Património Imobiliário e Informação Geográfica, do Departamento de Obras Municipais, corresponde à Parcela 80 q., sendo, entre 11/04/91 (ap.24 de 1991/04/22) e 02/11/2009 (ap.358 de 2009/11/02), propriedade da “V...”, ora A.

4.º - Das desanexações referidas no artigo 3º supra, a) e b), constituíram-se três novos prédios daqueles 799 e 739, individualizados e fisicamente separados, ainda hoje omissos à matriz e não descritos na Conservatória do Registo Predial.

5.º - Como supra se referiu, ambos os prédios pertenceram, por aquisição derivada entre 1996 e 2010, à empresa “V...”, ora A.

6.º - A Ré, através de uma aprovação municipal em Câmara, fez a cedência para o domínio público municipal de tais parcelas “A” e “B”, da propriedade da então “V...”, ora A., por deliberação nº 4484/08, de 28 de Janeiro.

7.º - Não obstante aquela deliberação para o domínio público municipal, a realidade é que as referidas parcelas continuam omissas à matriz, razão pela qual justificaram os inúmeros pedidos da A. à Ré, entre outros, pelas cartas de 20/05/16, 28/06/16, 25/10/16, 27/11/17, solicitando a certificação por parte da Câmara da correspondência das referidas parcelas com os supra referidos prédios 739 e 799, para registo a favor do município, com o pagamento do respetivo preço. (Doc. 4, 5, 6 e 7).

8.º - No acordo de cedência estabeleceu-se a integração das referidas parcelas no domínio público municipal por contrapartida da bonificação das áreas a construir no loteamento “Urbanização ...”, acordo esse que se não concretizou uma vez que a Câmara Municipal de Coimbra nunca chegou a emitir o alvará que garantiria o domínio sobre aquelas parcelas e áreas.

9.º - Circular que acabou por ser executada pela Ré e por onde, e desde há vários anos, circulam diariamente dezenas de milhares de veículos automóveis, tornando-se uma via estruturante para a cidade de Coimbra.

10.º - Como se referiu supra, em resultado de vicissitudes várias, apesar da existência do processo de loteamento “Urbanização ..., ... e do mesmo ter sido aprovado pela Ré e requerida a emissão de alvará, a verdade é que o mesmo nunca chegou a ser emitido, permanecendo inconclusa a cedência das referidas parcelas para o domínio público municipal.

11.º - De facto, em Janeiro de 2015 e com referência ao referido processo de loteamento nº 45099/96, foi a Autora notificada pela Ré do cancelamento da garantia bancária que havia prestado e da devolução das taxas urbanísticas que previamente havia requerido, a que se junta o pedido de pagamento das parcelas, em virtude de ter sido declarado extinto o procedimento de emissão do alvará de loteamento.

12.º - A efetiva devolução das quantias referentes às taxas e ao cancelamento da garantia bancária foram comunicadas à A. por ofício de 24 de Abril de 2015.

13.º - Porque é público e notório, dúvidas não restam que a Ré fez suas as referidas parcelas, com uma área total de 28 214,75m2 e utiliza-as até aos dias de hoje, sem nunca as ter pago.

14.º - De facto, até hoje, nunca a Ré adquiriu, comprou, expropriou ou ressarciu a A. pela ocupação ou utilização da referida área de terreno da sua propriedade, ou seja, jamais pagou um “tostão” ou euro que fosse.

15.º - Mas utiliza e continua a utilizar as parcelas e não paga.

16.º - Desde 2015 que a A. vem insistindo com a Ré, vem reunindo com os serviços municipais que já legitimaram aquela A., já lhe enviou dezenas de missivas, já lhe endereçou uma avaliação a pedido desta Ré e até já se dirigiu a uma reunião de câmara a solicitar o pagamento. (Doc. 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16 e 17)

17.º - A Ré, no alto da sua torre de marfim, impassível aos pedidos da A., nada faz ou se digna sequer a dar uma explicação para o facto de não pagar ou querer regularizar esta insólita situação.

18.º - Repete-se, em 2008, por deliberação camarária nº 4484/2008, de 28 de Janeiro, foi aprovada a cedência das referidas parcelas “A” e “B” para o domínio público municipal.

19.º - Meramente para efeitos de inventário patrimonial municipal, nessa mesma deliberação foi ainda decidido aprovar para as áreas de cedência à circular interna o valor de 40,00€ m2.

20.º - As parcelas referidas integram-se no centro urbano da cidade de Coimbra, possuindo uma excelente localização, bons acessos, em vale aberto, com todas as infraestruturas, zona de transição entre a casa do sal (entrada norte da cidade) e os bairros mais centrais e emblemáticos de Celas e dos Olivais, como o Cidral, a Solum/Casal da Eira, Quintas de S. Jerónimo, Lomba etc.

21.º - Nas imediações das parcelas, a menos de 1km, localizam-se os hospitais da Universidade de Coimbra, o Pediátrico, o Polo III da Universidade, a Faculdade de Farmácia, o Hospital CUF, ou a Escola C+S de Martim Freitas.

22.º - De facto, a localização das parcelas pode atualmente ser considerada a grande centralidade da cidade de Coimbra, de uma extraordinária relevância económico-social.

23.º - Mesmo que a Avenida ... / Circular Interna, não tivesse sido executada.

24.º - Pese embora o PDM de Coimbra (Plano Diretor Municipal) de 1994 fosse mais generoso, atualmente o índice de construção acima do solo para as parcelas “A” e “B”, nunca será inferior a 0,12 / 0,15.

25.º - Após uma pesquisa das construções na zona envolvente o valor unitário médio metro quadrado nunca será inferior entre os 2000€ m2 e os 2.500€ m2 de construção acima do solo.

II. DO DIREITO

26.º - Embora nunca se tenha sequer iniciado formalmente o procedimento expropriativo, na prática e de facto as referidas parcelas integram já o domínio público municipal.

27.º - A expropriação pode ocorrer quando bens imóveis e os direitos a eles inerentes são declarados como possuindo utilidade pública compreendida nas atribuições, fins ou objeto da entidade expropriante, mediante o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização.

28.º - Ademais, e conforme se apura da deliberação n.º 4484/08 de 28 de Janeiro, existiu a aprovação municipal de cedência para o domínio público municipal das parcelas referidas do art.º 3.º supra, os terrenos pertencentes à A.

29.º - Assim, e nestes termos se compreende como preenchido o requisito essencial de admissão de expropriação.

30.º - O que não sucedeu, foi a justa indeminização a que A. Tinha direito, uma vez que a Ré, se apropriou, sem mais, de terrenos que não são seus.

31.º - Para efeitos de ressarcimento à A., este só pode ser em valor monetário, afastada que está a hipótese de as referidas parcelas “A” e “B” voltarem a integrar o seu património.

32.º - Esse valor monetário a encontrar deve resultar da aplicação das normas do atual Código das Expropriações, sempre na procura de uma justa indemnização.

33.º - Ora, prevê o art.º 23.º do Código das Expropriações aprovado pela Lei n.º 168/99 de 18 de Setembro com as suas sucessivas alterações, que a justa indemnização visa ressarcir o “prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efetivo ou possível numa utilização económica normal.”

34.º - Na justa Indemnização deve ter-se em linha de conta permitir ao expropriado poder adquirir, no momento presente, um terreno de características semelhantes ao que lhe foi subtraído por razões de interesse público.

35.º - Assim, a A. deve ser ressarcida pela Ré em montante global nunca inferior a 3.600.000,00, valor conservador e que resultou de uma avaliação que a A. fez seguir para a Ré.

36.º - A A. não entra em linha de conta com desvalorizações ou valorizações e partes sobrantes, nem com benfeitorias destruídas.

37.º - Afastada deve ter-se a avaliação das parcelas pelos critérios do Código de Expropriação de 1989, aprovado pelo Dec. Lei 845/76, de 11 de Dezembro, pela declaração de inconstitucionalidade do seu artigo 33º (ATC nº 210/93, 16/3, ou 264/93) e pelo facto de ter sido revogado pela presente lei que aprovou o atual código das expropriações, nomeadamente a Lei 168/99, de 18 de setembro. Sem prescindir,

38.º - Em caso de não se entender como preenchidos os requisitos para o pedido indemnizatório por via das regras do Código das Expropriações, o que só se entende por mero efeito de raciocínio a verdade é que as supra referidas parcelas foram ocupadas e não pagas.

39.º - Sempre se deve atender à existência clara de enriquecimento sem causa, nos termos no n.º 1 do art.º 473.º do Código Civil “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.”

40.º - Ora, e atendendo ao preceituado no artigo supra, estão verificados os pressupostos para a existência do enriquecimento sem causa, ou seja, o enriquecimento de alguém, obtido à custa de outrem e inexistência de causa justificativa para o enriquecimento.

41.º - Pois que, como se consegue facilmente perceber pelo exposto, a Ré ao apropriar-se de terrenos da Autora sem nunca a ter ressarcido, não só enriqueceu, como o fez à custa desta.

42.º - Tendo em linha de conta que a Ré não usou do mecanismo legal da expropriação, e de tal modo abusiva que foi esta apropriação por parte da Ré, que se compreende como preenchido também o requisito da inexistência de causa que justifica o enriquecimento.

43.º - Enriquecimento este que, como se logrou provar, se verifica pelo valor dos terrenos apropriados por si, bem como o valor que a Ré economizou por não ter pago o preço à Autora.

Termos em que e nos melhores de direito que V. Exa. mui doutamente suprirá deve a presente ação ser julgada provada por procedente e, em consequência:

- Ser a Ré, Município de Coimbra, condenada a pagar à A. a quantia de € 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil euros), acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento, assim como em custas e condigna procuradoria.

Ainda que assim se não se entenda, e em alternativa,

- Deve ser pago à Autora o valor de € 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil euros) acrescido de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento, assim como em custas e condigna procuradoria, fundado na existência de enriquecimento sem causa.


Conhecendo:


I


É pacífico no processo, mas, por uma mera questão de ordenamento do raciocínio, cumpre-nos reafirmar:

- nos termos do disposto no art.º 40.º n.º1 da LOSJ (D-L n.º 62/2013 de 26/8) e no art.º 64.º do CPCiv, os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional;

- tal competência fixa-se no momento em que a acção se propõe (art.º 38.º n.º1 da LOSJ).

Nos termos do art.º 1.º n.º1 do ETAF, “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.

Por sua vez, lê-se no art.º 4.º n.º1 do ETAF, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

“a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;”

“e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;”

“f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;”

“i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;”

“o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.”

Estas alíneas devem ser interpretadas à luz do conceito legal e doutrinário de “relação jurídica administrativa”, no âmbito da qual, possua essa relação um fundamento contratual ou extracontratual, nas relações com todos os cidadãos, a administração desenvolve uma actividade típica ou nuclearmente dotada de poderes de autoridade para cumprimento das principais tarefas que lhe incumbem na realização do interesse público (Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Dicionário de Contencioso Administrativo, 2006, pg. 117).

Relação jurídica administrativa será então aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração, perante os particulares, ou que atribui direitos, ou impõe deveres públicos, aos particulares perante a administração (Freitas do Amaral, Lições de Direito Administrativo, 1989, pgs. 439 e 440).

Neste sentido, as relações jurídico-administrativas não têm por fonte apenas os actos unilaterais da administração, mas também os contratos e, de forma mais vasta, quaisquer acordos negociais, os quais não são incompatíveis com a prossecução de interesses de direito público.

Marcello Caetano exprime o que verdadeiramente caracteriza o contrato administrativo, como o contrato que, mesmo na geral tradição civilista, revele a específica sujeição nele do interesse particular ao interesse público (Manual de Direito Administrativo, I, 1980, pg. 590).

Está em causa não um simples critério estatutário, reportado a concretos actos da administração, mas a um critério teleológico, relativo ao escopo subjacente às normas (Mário Aroso de Almeida, Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, pg. 57).



II


O acórdão recorrido situou a apreciação da matéria dos autos no disposto no art.º 4.º n.º1 al.i) supra citado.

Baseou-se na doutrina do Tribunal de Conflitos, nos termos da qual se excluem da norma de competência dos tribunais administrativos as situações em que se visa definir a titularidade sobre determinado bem (da competência do tribunal comum), ou em que se impugna uma actuação manifestamente injustificada da administração, ficando abrangidas as demais situações em vias de facto.

Já em 1.ª instância se considerou que é formulado um pedido de indemnização contra uma pessoa colectiva de direito público, emergente de uma expropriação de facto (sem que se formula pedido de reivindicação) – desta forma, julgou melhor enquadrada a situação que funda o pedido no disposto no art.º 4.º n.º1 al.f) do ETAF cit.

Ainda que se considerasse de integrar a causa de pedir no incumprimento de um acordo da Autora com a administração, então estaria em causa a deliberação que culminou na cedência das parcelas para o domínio municipal (veja-se a deliberação aludida no art.º 6.º da petição inicial) e, dessa forma, a norma da al.o) do n.º1 do art.º 4.º do ETAF.

As alegações de revista insistem em que se está perante a invocação de um acto de natureza privada, peticionando a Autora o valor da contrapartida acordada para as parcelas, relativamente às quais resultou, para a Autora, uma perda definitiva.

Mesmo que a situação fosse de enquadrar no disposto na al.i) do art.º 4.º do ETAF, como se considerou no acórdão recorrido, estaríamos perante uma situação de flagrante ilegalidade, que exclui a competência dos tribunais administrativos e a confere aos tribunais comuns.



III


Não se sufraga o entendimento de que a tese da Autora se funda na al.i) cit. (“condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”)  - título existe a favor do Réu, confessadamente (veja-se a deliberação camarária de cedência das parcelas), e não é peticionada a condenação à remoção da situação constituída (apenas a indemnização correspondente ao valor do bem, ou ao valor da contraprestação acordada com o Réu ou ainda o valor do enriquecimento do mesmo Réu).

Também não cabe falar de responsabilidade civil extracontratual, ao menos em qualquer das modalidades a que se reporta o disposto no art.º 483.º n.º1 do CCiv – o que está em causa, para a Autora, é o incumprimento de um acordo negocial anterior à exercida posse do Réu sobre as parcelas.

Mas não pode deixar de se classificar a matéria exposta no petitório, considerando, seja o pedido principal, seja o pedido subsidiário, como a de uma “relação jurídica administrativa”, prevista, para a competência dos tribunais administrativos, pelo disposto na al.o) do n.º1 do art.º 4.º do ETAF.

É útil recordar que a citada al.o) constitui um acrescento ao ETAF, trazido pelo D-L n.º214-G/2015, de 2/10, após o qual se reforçou, na legislação comum, a ideia, já retirada do disposto no art.º 212.º n.º3 da CRP, de que aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal compete dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

A descrição efectuada revela a actuação do Réu nas vestes e com a competência própria da pessoa colectiva pública, uma actuação materialmente administrativa que, respeitando o princípio da liberdade negocial do art.º 405.º n.º1 do CCiv, previa que, à cedência das parcelas de terreno, por parte da Autora, correspondesse sinalagmaticamente o aumento da capacidade construtiva atribuído aos prédios da Autora, funcionando a cedência das parcelas de terreno como uma alternativa a um processo de expropriação visando um fim de interesse público prosseguido pelo R. Município.

Neste sentido, por força ou pelo encontro de vontades entre a administração e o particular, comprometia-se a administração a gerar ou modificar uma relação jurídica regulada por normas de direito público, no que consistia a licença (ou o alvará, como alegado) para o aumento da capacidade construtiva.

Por outro lado, o escopo do Réu era, directa e materialmente, administrativo, consistindo na aquisição, ainda que pela via invocada do contrato, de terreno para aí instalar parte da via denominada Circular Interna da cidade de Coimbra, na troço nomeado Avenida ....

A via contratual na execução do interesse público é assim, no caso concreto, meramente circunstancial e irrelevante para a exclusão do acto da competência dos tribunais da jurisdição administrativa.

Situação semelhante foi dilucidada no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 14/7/22, p.º 016/22, rel. Teresa de Sousa, no qual se afirmou a competência da jurisdição administrativa e fiscal.

Concluindo:

I – A al.o) do n.º1 do art.º 4.º do ETAF constituiu um acrescento ao diploma trazido pelo D-L n.º214-G/2015, de 2/10, visando reforçar, na legislação comum, a ideia que se retira do disposto no art.º 212.º n.º3 da CRP, de que aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal compete dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

II – Se a descrição efectuada no petitório revela uma actuação materialmente administrativa do Réu que, embora no quadro da liberdade negocial do art.º 405.º n.º1 do CCiv, previa que, à cedência das parcelas de terreno, por parte da Autora, correspondesse sinalagmaticamente o aumento da capacidade construtiva atribuído aos prédios da Autora, funcionando a cedência das parcelas de terreno como uma alternativa a um processo de expropriação e visando um fim de interesse público prosseguido pelo R. Município, a competência dos tribunais administrativos cabe no disposto na al.o) do n.º1 do art.º 4.º do ETAF, por via da matéria invocada caber no conceito de “relação jurídica administrativa”.


Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela Autora.


S.T.J., 2/2/2023


Vieira e Cunha (Relator)

Ana Paula Lobo

Afonso Henrique Cabral Ferreira