Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
27130/21.2T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CAUSA DE PEDIR
ININTELIGIBILIDADE DA CAUSA DE PEDIR
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
EMPREITADA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. Quando o autor refere, na petição inicial, o(s) facto(s) constitutivo(s) da situação jurídica material que quer fazer valer não pode considerar-se que haja falta de indicação da causa de pedir nem, consequentemente, que haja ineptidão da petição inicial nos termos do artigo 186.º, n.º 2, al. a), do CPC.

II. Quando o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão da petição inicial por falta de indicação da causa de pedir, e se verifique que interpretou convenientemente a petição inicial, aquela arguição não pode ser julgada procedente, por força do artigo 186.º, n.º 3, do CPC.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: Sigmabilities, Lda.

Recorrida: Tecniarte - Projetos e Construções, S.A.

1. Sigmabilities, Lda., veio intentar a presente acção, com processo comum, contra Tecniarte - Projetos e Construções, Lda., peticionando que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 420.000,00 e € 277.600,00, no total de € 697.600,00, acrescidos de juros desde a citação até integral pagamento.

2. Citada regularmente, veio a ré contestar a presente acção, invocando a ineptidão da petição inicial.

3. Foi proferido despacho saneador no qual se decidiu:

Pelo exposto, julgo procedente a exceção de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial e, consequentemente, absolvo a Ré da instância”.

4. Inconformada, a autora Sigmabilities, Lda., interpôs recurso de apelação.

5. A ré Tecniarte - Projetos e Construções, S.A., interpôs, por sua vez, recurso subordinado.

6. Os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa acordaram:

a) na improcedência da apelação e manutenção da decisão recorrida;

b) na improcedência do recurso subordinado”.

7. Ainda inconformada, vem agora a autora interpor recurso de revista, “ao abrigo do disposto no número 1 do artigo 671.° do Código de Processo Civil, interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Em todo o caso, e caso assim não se entenda, o recurso é ainda admissível nos termos do número 2 do artigo 672.° do Código de Processo Civil”.

Termina as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. A Recorrente não se conforma com o douto Acórdão proferido nos presentes autos que, julgando improcedente o recurso interposto pela Autora, confirmou (ainda que com voto de vencido) a sentença apelada que julgou procedente a exceção de nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial.

2. Por entender que o Tribunal a quo incorre em erro de julgamento ao considerar, por um lado, que ocorre caso julgado que tornou processualmente inadmissível que a Recorrente funde a obrigação da Ré no contrato de empreitada celebrado e, por outro lado, ao considerar que os factos apresentados não permitem determinar a causa de pedir e que, por isso, se verifica ineptidão da petição inicial.

3. Entende também a Recorrente haver fundamento para a apresentação de Recurso de Revista Excecional.

4. Reitera-se todo o alegado na Petição Inicial da Autora e na Contestação da Ré.

5. Assim, não pode a Recorrente aceitar o entendimento de que é processualmente inadmissível que a Recorrente funde a obrigação de prestação de informação por parte da Ré no âmbito de um contrato de empreitada celebrado entre as partes quando, noutra ação, defendeu que tal contrato nunca chegou a entrar em vigor por não se terem verificado as condições suspensivas nele apostas, pois não pode o julgador afastar o enquadramento da obrigação da Ré, motivando-o na alegação que a Recorrente fez em processo já transitado em julgado, sendo que o instituto do caso julgado ou autoridade do caso julgado do processo que correu termos sob o n.° 17670/20.6T8LSB, no Juízo Central Cível de Lisboa, J..., não pode ter como consequência a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.

6. Ora, inexiste qualquer autoridade de caso julgado, a propósito, uma vez que, apesar de ter sido alegado pela recorrente naquele processo que "tal contrato nunca chegou a entrar em vigor por não se terem verificado as condições suspensivas nele apostas", O CertO é que tal matéria, apesar de alegada, não foi considerada provada.

7. Resulta, antes, da sentença proferida em tal processo que a Recorrente "desistiu" do contrato celebrado com a Ré, o que foi considerado na fundamentação da anterior decisão que considerou que o contrato empreitada vigorou, o que, inclusive, levou a que a Recorrente fosse condenada a indemnizar a Ré dos custos/gastos já suportados e do lucro integral que teria na execução da empreitada.

8. Pelo que, não se poderá dizer que a Recorrente não pode fundamentar a obrigação da Ré em obrigação contratual, adveniente do contrato de empreitada ou outro, quando resulta da decisão proferida naquele processo 17670/20.6T8LSB que o mesmo existiu e vigorou e, inclusive, originou responsabilidade civil para a recorrente.

9. Para além disto, a autoridade de caso julgado não tem o alcance plasmado na decisão recorrida, pois o caso julgado não tem por objeto as alegações das partes (que, inclusive, não constam do elenco dos factos provados e são contrárias à própria decisão proferida em tal processo) e não estamos perante qualquer questão de prejudicialidade entre o objeto da ação já transitada em julgado e a ação dos presentes autos.

10. Acresce que, na ação que transitou em julgado a Recorrente foi responsável perante a Ré por incumprimento do contrato que o Tribunal entendeu imputável à Recorrente e Autora nesta ação. Na presente ação, a Recorrente reclama responsabilidade da Ré por força da responsabilidade contratual adveniente do mandato que celebrou com a Ré para representar a Autora perante a Camará Municipal de Lisboa, mormente para receber correspondência relacionada do licenciamento do prédio, independentemente das obrigações advenientes do contrato de empreitada.

11. Pelo que, não se pode entender que ocorreu ineptidão da petição inicial.

12. Em todo o caso, a Recorrente alegou na Petição Inicial que a Ré agiu como intermediária e representante da Autora junto da Câmara Municipal e que "era intermediária entre a A. e Camará Municipal para efeitos de comunicações respeitantes ao alvará de obra n.° .70/EO-CML/2018, remetendo tais comunicações à A.", o que consubstancia mandato para efeitos de representação da correspondência enviada à Recorrente.

13. Incumbe por isso à Recorrente fazer prova da celebração de contrato de empreitada e também de mandato, nos termos do qual a Ré representava a recorrente junto da Câmara Municipal, servindo de sua intermediária para efeitos de notificações enviadas pela Camará Municipal e dirigidas à Recorrente, conforme factos alegados nos presentes autos.

14. Ora, foi na execução desse contrato de empreitada e de mandato que vigorou entre as partes que a Ré enviou comunicações à Câmara Municipal (e adveniente ele próprio da necessidade de execução do contrato de empreitada) e indicou os seus contactos de email como endereços para o envio de comunicações dirigidas à Recorrente e que assumiu a posição de representante da Recorrente, verificando-se a existência de mandato para efeito de notificações.

15. Como tal, a obrigação da Ré em causa nos presentes autos é uma obrigação decorrente do contrato de mandato que aceitou nestes termos, tendo sido na qualidade de representante da Recorrente junto da Câmara Municipal que a Ré incumpriu com as suas obrigações de entrega à Recorrente das guias recebidas por email, pelo que, mesmo que se desconsidere o alegado contrato de empreitada, sempre existirá responsabilidade da Recorrente no âmbito do contrato de mandato!

16. Assim, não se pode entender que ocorreu ineptidão da petição inicial.

17. Não obstante, mesmo que assim não se entendesse a verificação da existência do mandato e da responsabilidade contratual da Ré por esse via, sempre existiria responsabilidade extracontratual da Ré, uma vez que, inexistindo fundamento para as comunicações realizadas pela Ré à Câmara Municipal e a indicação à mesma dos endereços de email da Ré como endereços para a realização de notificações à Recorrente, sempre a Ré praticou factos ilícitos.

18. Isto pois, não tendo a Ré legitimidade para a comunicar o endereço de email para a realização de comunicações à Câmara Municipal em nome da Recorrente, nem para a indicação e recebimento de notificações em nome da recorrente, sempre praticou a Ré facto ilícito culposo, que, inclusive, acarretou danos à Recorrente.

19. Também por isso não se pode entender que ocorreu ineptidão da petição inicial.

Sem prescindir,

20. Também relativamente aos danos alegados pela Recorrente entendeu o Tribunal a quo que se verificava ausência de alegação de factos necessários para a determinação da causa de pedir, entendimento com o qual a Recorrente não concorda, pois a Recorrente alegou, a propósito, os danos reclamados que se encontram concretizados e justificados.

21. Mas, mesmo que assim não se entenda, deverá o Tribunal a quo convidar a Recorrente ao aperfeiçoamento da Petição Inicial.

22. Em todo o caso, mesmo que assim não fosse, a ausência de indicação concreta dos danos sofridos ou a falta de apuramento do valor dos mesmos sempre acarretaria a condenação em valor que vier a ser liquidado e a instauração posterior de incidente de liquidação de sentença e não a ineptidão da Petição Inicial, nos termos do número 2 do artigo 609.° do Código de Processo Civil.

23. Acresce que, o Tribunal a quo reconhece e identifica os danos peticionados pela Recorrente, pelo que, não se entende a decisão que determina que não é possível razoavelmente determinar a causa de pedir e, mesmo que se entendesse que não existiam elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal sempre condenaria no que viesse a ser liquidado.

24. Pelo que, não, pode, por isso, verificar-se a ineptidão da petição inicial.

Sempre sem prescindir,

25. Nos termos do número 3 do artigo 186.° do Código de Processo Civil, se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.

26. Ora, resulta da contestação da Ré apresentada nos presentes autos que a mesma interpretou convenientemente a petição inicial, pelo que, não se pode dizer que a Ré teve qualquer dificuldade na interpretação da petição inicial, interpretando convenientemente a petição inicial e, com isso, o pedido e a causa de pedir.

27. Como tal, não poderia nos presentes autos ser declarada a ineptidão da petição inicial.

28. Em todo o caso, ao invés de considerar inepta a Petição Inicial, o Tribunal a quo deveria ter convidado a Recorrente ao aperfeiçoamento da petição inicial apresentada, para suprir irregularidades ou insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, nos termos da alínea b) do número 2 e números 3 e 4 do artigo 590.° do Código de Processo Civil.

29. Desta forma, não se verifica a omissão do núcleo factual constitutivo da causa de causa de pedir e, consequentemente, ineptidão da petição inicial, motivo pelo qual devem os presentes autos ser julgados em conformidade, revogando-se a decisão proferida e, caso assim se entenda, convidando-se a recorrente a aperfeiçoar a petição inicial apresentada.

Sempre sem prescindir,

DA REVISTA EXCEC10NAL:

30. Entende a Recorrente que se verifica nos presentes autos a necessidade de análise de questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

31. Ora, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça é fundamental para impedir que se sedimente na jurisprudência nacional uma interpretação que não respeita os elementos literal, histórico e teleológico do número 3 do artigo 186.° do Código de Processo Civil e da sua aplicação.

32. A questão em causa nos presentes autos reveste excecional relevância jurídica, que torna claramente necessária a sua apreciação em via de recurso de revista para melhor aplicação do direito porque, pelas dificuldades que suscita a sua resolução, é suscetível de causar, em geral, fortes dúvidas e probabilidade de decisões jurisprudenciais diferentes pois resulta do teor da letra da Lei que, tendo sido arguida ineptidão da Petição Inicial por faltar ou ser ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial

33. O entendimento da jurisprudência dos nossos Tribunais superiores vem correspondendo ao disposto no citado normativo, o que não está em conformidade com a decisão proferida, pelo que, face ao enquadramento da factualidade dos presentes autos e a sua importância no comércio jurídico, de interpretação deste Tribunal o entendimento de que, tendo a Ré contestado e manifestado que interpretou convenientemente a Petição Inicial, não pode ser decretada a ineptidão da Petição Inicial, justificando-se a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para reparar um erro claro de interpretação, quanto a uma questão necessariamente suscitada nos nossos Tribunais e que não deveria merecer dúvidas. Sem prescindir,

34. Acresce que, o Acórdão recorrido está em contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21/10/2019, processo n.° 4138/18.0T8MTS-A.P1, Relator RITA ROMEIRA, que transitou em julgado e que servirá de acórdão-fundamento ao presente recurso de revista excecional e que se junta como documento 1.

35. Ora, trata-se de questão proferida no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito e não existe qualquer acórdão de uniformização de jurisprudência sobre esta matéria.

36. Ambos os acórdãos foram proferidos no âmbito de um processo em que o Réu alegou a ineptidão da petição inicial e, posteriormente, o Tribunal considerou a petição inicial inepta e absolveu o Réu da instância (na totalidade nos presentes autos e parcialmente no caso do acórdão-fundamento).

37. Também, ao invés de considerar inepta a Petição Inicial, o Tribunal a quo deveria ter convidado a Recorrente ao aperfeiçoamento da petição inicial apresentada, para suprir irregularidades ou insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.

38. Assim, contrariamente ao decidido nos presentes autos, foi entendimento no acórdão-fundamento que, pelo facto da ali Ré ter interpretado convenientemente a Petição Inicial, tão impunha que não procedesse a exceção de ineptidão da Petição Inicial invocada.

39. Mais, deveria, nos termos do número 3 do artigo 590.° do Código Civil, o juiz convidar as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício.

40. Desta forma, verifica-se contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento que reside na necessidade de, tendo a Ré ter interpretado convenientemente a Petição Inicial, improceder a exceção de ineptidão da Petição Inicial invocada.

41. Mais se deve considerar que devo o Tribunal convidar a parte ao aperfeiçoamento da petição inicial apresentada, para suprir irregularidades ou insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.

42. Como tal, verificando-se uma flagrante contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, proferido no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, está preenchido o fundamento do recurso de revista excecional”.

8. A ré contra-alegou pugnando por que seja:

(a) Indeferida a admissão do recurso de revista excecional;

(b) Negado provimento ao recurso de revista interposto pela Recorrente

(c) E ser negado provimento ao recurso de revista excecional (caso seja admitido) interposto pela Recorrente,

(d) Devendo, por conseguinte, ser confirmado, na íntegra, o acórdão recorrido”.

9. O Exmo. Senhor Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa determinou a subida do recurso nos termos seguintes:

“Por versar sobre decisão recorrível- não existe dupla conforme, dado que o acórdão sob recurso tem voto de vencido -, ser tempestivo, interposto na forma legal e por quem para tal tem legitimidade, recebo o recurso interposto por Sigmabilities, Lda,o qual é de revista (art. 671º nº 1 do CPC), a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (art. 675º nº 1 do CPC)”.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se o Tribunal recorrido decidiu bem ao confirmar a decisão do Tribunal de 1.ª instância julgando inepta a petição inicial.

*


II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

O Tribunal recorrido considerou relevantes para a questão a decidir certos elementos constantes do processo, reproduzindo quanto a tal matéria o que constava da decisão do Tribunal de 1.ª instância, a saber:

Como fundamento dos pedidos deduzidos, a recorrente alegou que foi emitido o alvará de obra n.º .70/EO-CML/2018, de acordo com o processo n.º ..86/EDI/2015, tendo tal Alvará de construção sido levantado pelo Diretor Técnico da Empreitada, o Sr. Eng AA, funcionário da Ré, a qual (através do seu funcionário AA) era intermediária entre a A. e Câmara Municipal para efeitos de comunicações respeitantes ao alvará de obra n.º .70/EO-CML/2018, remetendo tais comunicações à A. O alvará inicial esteve válido de 11/12/2018 até 10/04/2020.

Neste âmbito, e de acordo com o processo camarário n.º ..43/OTR/2020, com entrada a 12/03/2020, foi solicitado pela Autora, a prorrogação de prazo nos termos do no n.º 5 do artigo 58.º do RJUE, uma vez que a realização da obra estava atrasada, dado o problema da desocupação dos referidos estabelecimentos.

A Ré, na qualidade de requerente do processo, foi notificada no dia 18/04/2020, para o endereço eletrónico ..., do despacho de deferimento, acompanhado das referidas taxas para pagamento, sem nunca ter dado conhecimento à A. do deferimento do pedido de prorrogação do Alvará.

Ora, as referidas taxas estiveram para pagamento até ao dia 14/06/2020, no entanto, não foi pago qualquer valor, levando a que as referências para pagamento tivessem expirado e, por consequência, não fosse prorrogado o alvará.

Assim, o referido alvará de obra apenas esteve válido até ao dia 10/04/2020. O referido email tinha sido indicado à Câmara para efeitos de comunicações entre o beneficiário A. e a Câmara Municipal, sendo a Ré representante da A. para os referidos efeitos.

O certo é que, a Ré nunca deu conhecimento destes factos à Autora, nunca tendo informado a A., quer da decisão de deferimento da prorrogação, quer da necessidade de se proceder ao pagamento das taxas, tendo apenas a A. conhecimento em 05/05/2021, pelo que o Alvará caducou sem que a A. tivesse possibilidade de o prorrogar ou pagar.

Tendo impossibilitado, com a sua omissão, a prorrogação do mencionado Alvará desde abril de 2020, estando obrigada a comunicar tal facto à A. por ter sido indicada pessoa e email de contacto com a Câmara Municipal.

Com tal atraso a Ré causou prejuízo à A. até hoje, pelo menos, de € 805 000, conforme infra se explanará, pela falta de rentabilidade da exploração do Hotel de € 70 0000 (setenta mil euros)/mês, acrescido de € 245 000,00 (duzentos e quarenta e cinco mil euros) correspondente ao acrescimento do orçamento da empreitada obtido de € 6 940 000,00 face aos anteriormente recebidos pela A. para a referida obra de € 5.535.319,00 no ano de 2018, € 6.048.168,85 no ano de 2019, € 6.695.234,78 no ano de 2020 e € 6.940.000,00 no ano de 2021 e ainda acrescido de € 1.750.000 pela desvalorização atual do imóvel pela ausência de Alvará – doc. 12 a 15.

Considerando que o atraso apenas ocorreu desde o passado dia 14/03/2021, data em que a A. solicitou informações à Câmara Municipal sobre a validade do Alvará, uma vez que não tinha obtido deferimento ao pedido de prorrogação, decorre de tal data até hoje 248 dias.

Tendo a A., em 7 de maio de 2021, apresentado novo pedido de Alvará para realizar a mesma obra não tendo até hoje recebido o seu deferimento. De acordo com o Plano de Negócios, conservador, a exploração de cada quarto de Hotel (50) permite lucro de 2.000€ mês, pelo que, no total mensal permite lucro de 100.000,00€.

A atuação da Ré implicou atraso na obtenção do Alvará de construção do Edifício e igual atraso na sua conclusão. Até hoje a A. ainda não obteve o requerido Alvará. Desde 7 de Maio de 2021 até hoje, 17/11/2021, decorreram mais de 6 meses, pelo que, a este título e por defeito sofreu a A. dano correspondente a 420.000,00€ (quatrocentos e vinte mil euros) pela perda da rentabilidade da exploração do Hotel.

Em 2018 a A. obteve orçamento para a realização da obra de € 5.535.319,00. Em 2019 a A. obteve orçamento para a realização da obra de € 6.048.168,85. Em 2020 a A. obteve orçamento para a realização da obra de € 6.695.234,78.

Em 2021 a A. obteve orçamento para a realização da obra de € 6.940.000,00. A atuação da Ré implicou atraso de, pelo menos, um ano, pelo que a este título reclama-se 4% do último orçamento correspondente a € 277 600,00. Acresce que a ausência de Alvará de construção em vigor implica desvalorização do imóvel de, pelo menos, 1.750.000,00€.

O DIREITO

Brevíssima nota sobre a admissibilidade do recurso

O presente recurso é interposto por via normal e, subsidiariamente, por via excpecional.

Dado que a decisão recorrida preenche os requisitos gerais de recorribilidade e os requisitos especiais da revista do artigo 671.º, n.º 1, do CPC, o presente recurso é admitido por via normal.

Esclareça-se que a via excepcional, indicada a título subsidiário, sempre seria imprópria, atendendo à existência de um voto de vencido, o que impede que a presente hipótese se qualifique como de dupla conforme (cfr. artigo 671.º, n.º 3, a contrario, do CPC).

Da ineptidão da petição inicial

O Tribunal de 1.ª instância decidiu julgar inepta a petição inicial apresentada pela autora, ao abrigo do artigo 186.º, n.º 2, al. a), do CPC, com fundamento em falta de indicação da causa de pedir, e, consequentemente, absolveu a ré da instância.

Confirmando esta decisão, o Tribunal recorrido reafirmou a ineptidão da petição inicial e a absolvição da ré da instância.

No Acórdão recorrido pode ler-se, a titulo de fundamentação, na parte mais relevante:

Apenas a falta dos factos essenciais na petição inicial determina a inviabilidade da ação por ineptidão daquela. Ao invés, em regra, se se formula um pedido com fundamento em facto aduzido e inteligível, mas que não pode ser subsumido no normativo invocado, o caso será de improcedência e não de ineptidão da petição.

A jurisprudência tem vindo a defender, uniformemente, que a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa de pedir, não fulmina, em termos apriorísticos, a petição de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a procedência ou a atendibilidade do pedido.

Nesta conformidade, só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedir (sublinhado nosso- cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/11/2022, proferido no proc. 118395/21.4YIPRT.L1-2, versão integral em www.dsgi.pt).

No que diz respeito à fonte da obrigação invocada pela autora-contrato de empreitada celebrado com a ré- , há que entrar em linha de conta com o instituto do caso julgado, o qual implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma acção posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa e abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado ( cfr. Acórdão do STJ, de 22.02.2018 (revista nº 3747/13.8T2SNT.L1.S1).

Como é sublinhado na sentença recorrida, a autoridade do caso julgado decorrente da sentença proferida que correu termos sob o n.º 17670/20.6T8LSB, no Juízo Central Cível de Lisboa, J... torna processualmente inadmissível que a autora funde a obrigação de prestação de informação por parte da Ré no âmbito de um contrato de empreitada celebrado entre as partes quando, naqueloutra acção, defendeu que tal contrato nunca chegou a entrar em vigor por não se terem verificado as condições suspensivas nele apostas.

Excluído o contrato de empreitada, enquanto fonte da obrigação jurídica que a autora entende ter sido violada, não se vislumbram factos dos quais se possa extrair a existência de outra fonte susceptível de enquadrar a pretensão da recorrente ser indemnizada pela ré.

Outrossim, alega a autora ter sofrido danos na sequência do incumprimento da obrigação de informação a que a ré estaria vinculada: quer pela perda da rentabilidade da exploração do Hotel; do acréscimo de valores da empreitada; e, ainda, da desvalorização do imóvel sem Alvará.

No que respeita ao primeiro grupo de danos - perda da rentabilidade da exploração do Hotel-, alega a autora um prejuízo de € 420.000,00, como base em estimativa que carece de ser sustentada com factos, a saber: a data concreta de desocupação das discotecas a partir da qual poderia iniciar a execução da obra e respetiva data, pois, segundo a sua alegação, tal era impeditivo da realização da obra.

Do mesmo problema padecem os outros dois grupos de danos – do acréscimo de valores da empreitada e da desvalorização do imóvel sem Alvará –, como sublinha a decisão recorrida, no que concerne ao segundo grupo de danos, refere a autora que calculou 4% sobre o último orçamento obtido, mas, em momento algum, alega se tal orçamento foi por si aceite. No que tange à desvalorização do imóvel sem alvará de construção válido, de forma certeira de refere na decisão recorrida: não conseguimos alcançar, face aos demais danos peticionados a autonomia de tal dano, sendo a petição inicial totalmente omissa quanto a uma eventual venda do prédio no estado atual e quais os valores de mercado praticados (sic).

De todo o exposto, resulta que tanto a ausência de factos, como da forma como são apresentados os factos alegados na petição inicial, não permite razoavelmente determinar a causa de pedir, pelo que estamos perante vícios geradores de ineptidão da petição inicial, com a consequente absolvição da Réu da instância (arts. 186.º, n.º 2, al. b), 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, nº 2, e 577.º, al. b)”.

A recorrente insurge-se contra esta decisão, pondo em causa, no essencial, por um lado, que o caso julgado formado naquela anterior acção (Proc. 17670/20.6T8LSB) torne processualmente inadmissível que a recorrente funde a obrigação da ré no contrato de empreitada e, por outro lado, que os factos por ela apresentados não permitam determinar a causa de pedir da presente acção.

Aprecie-se.

Como é do conhecimento geral, não há acção sem petição (não há concessão oficiosa da tutela jurisdicional)1, sendo, justamente, a petição – a petição inicial – o articulado cuja função específica é a propositura da acção, em que o autor formula a pretensão de tutela jurisdicional que visa obter e expõe as razões de facto e de direito em que a fundamenta.

Explica Lebre de Freitas que é na petição inicial que o autor deve formular o pedido [cfr. artigo 552.º, n.º 1, al. e), do CPC], isto é, solicitar ao tribunal a providência processual quer julgue adequada para tutela da situação jurídica ou do interesse que afirma materialmente protegido, e deve indicar a causa de pedir [cfr. artigos 552.º, n.º 1, al. d), e 581.º, n.º 4, do CPC], isto é, identificar o(s) facto(s) constitutivo(s) da situação jurídica material que o autor quer fazer valer ou, numa fórmula mais genérica, o(s) facto(s) concreto(s) que terão constituído o efeito pretendido2.

Pode acontecer que o pedido tenha sido claramente formulado mas não a causa de pedir3. Foi isso que o Tribunal recorrido entendeu que se passava na presente acção, precisando que os factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo tornariam impossível ou, pelo menos, razoavelmente inexigível determinar a causa de pedir.

Não pode, todavia, com o devido respeito, acompanhar-se o Tribunal recorrido nesta sua conclusão. Explique-se por que razão.

Lendo a petição inicial logo se conclui que não há falta a indicação de factos concretos dirigidos a sustentar o direito alegado ou constitutivos do direito alegado, portanto, integrantes da causa de pedir.

Alega aí a autora, para sustentar a titularidade de um direito de indemnização contra a ré, os seguintes factos:

- que celebrou um contrato de empreitada com a ré em 29.01.2019, visando, em suma, a construção de um hotel (cfr. artigo 2.º da p.i.);

- que a execução dos trabalhos dependia da desocupação de certa área, o que era da responsabilidade da Câmara Municipal de Lisboa (cfr. artigos 4.º, 5.º, 6.º e 7.º), do que a ré estava ciente (cfr. artigos 9.º a 12.º da p.i.);

- que, por razões não imputáveis a nenhuma das partes, não se reuniram as condições para a consignação da obra na data aprazada (até 30.03.2019 (cfr. artigo 20.º da p.i.) e, face a isto, ficou acordado que a ré apresentaria novo orçamento (cfr. artigos 23.º a 25.º da p.i.);

- que o novo orçamento não respeitava o contratualmente acordado para o caso de adiamento da obra (o preço era bastante superior) (cfr. artigo 27.º a 30.º da p.i.), razão pela qual a autora não o aceitou (cfr. artigo 31.º da p.i.);

- que a ré, “intermediária” / “representante” da autora junto da Câmara Municipal para efeitos de comunicações respeitantes ao alvará de obra (cfr. artigos 37.º e 45.º da p.i.), não cumpriu o seu dever de informar a autora do facto de as taxas para prorrogação do alvará estarem para pagamento, tendo com isso impossibilitado aquela prorrogação e o início das obras (cfr. artigos 41.º a 48.º da p.i.) e, consequentemente, causado à autora danos resultantes quer da falta de rentabilidade da exploração do hotel, quer do acréscimo dos custos da empreitada, quer da desvalorização do imóvel (cfr. artigos 49.º a 63.º).

Também da resposta da autora à arguição de ineptidão da petição inicial apresentada em 14.02.2022 resultam alguns dados relevantes, nomeadamente que, segundo a autora:

[a] causa do pedido da presente ação decorre, como é bom de ver e foi devidamente interpretado pela R., do impedimento da prorrogação da construção do edifício em causa por única e exclusiva atuação da Ré, pois o DOC. 2 junto com a contestação reflecte e demonstra preexistente a decisão que antes inexistia sobre a validade do Alvará de Construção” (cfr. 7.)4.

É possível concluir que, não obstante nem sempre rigorosamente formulados, o pedido é a indemnização pelos danos relacionados com a impossibilidade de construir e a causa de pedir é o incumprimento / a omissão do cumprimento de um dever de informação por parte da ré, dever que não pode deixar de se relacionar, na visão da autora, com o contrato de empreitada referido logo no princípio da p.i.

Não há, em suma, falta de indicação dos factos em que a autora funda o seu pedido, pelo que não há fundamento para a ineptidão da petição inicial.

A terminar, fazem-se dois esclarecimentos.

Primeiro, entende-se que, como se observa na declaração de voto de vencida da Exma. Senhora Desembargadora 2.ª Adjunta, ainda que houvesse falta de indicação da causa de pedir nos termos do artigo 186.º, n.º 2, al. a), do CPC, a arguição de ineptidão da petição inicial pela ré / ora recorrida não poderia ser julgada procedente, ao abrigo do artigo 186.º, n.º 3, do CPC, porque, tendo a ré contestado, se verifica que interpretou convenientemente a petição inicial.

Para confirmar isto basta olhar para o teor da contestação, em que, logo à cabeça, a ré / ora recorrida alega:

Conforme resulta da petição inicial já apresentada, são imputados vários danos emergentes de alegadas omissões alegadamente imputáveis à Ré consubstanciados num alegado incumprimento das obrigações contratuais decorrentes do contrato de empreitada” (cfr. artigo 1.º da contestação).

Segundo, não deixa de se notar que o pressuposto em que a autora apoia o seu pedido é diferente do que a autora / ora recorrente sustentou em juízo em momento anterior. A autora tentou fazer valer, então, a ideia de que o contrato de empreitada não produziu efeitos jurídicos.

Na acção que correu termos sob o n.º 1717670/20.6T8LSB, proposta pela ora ré / recorrida Tecniarte - Projetos e Construções, S.A., contra a ora autora / recorrente Sigmabilities, Lda., pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.02.2022, transitado em julgado em 16.03.2022 (cfr. certidão junta aos presentes autos a requerimento da ré / recorrida):

“TECNIARTE - PROJETOS E CONSTRUÇÕES, LDA propôs contra SIGMABILITIES, LDA esta ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo a sua condenação a entregar-lhe a quantia de € 672.591,86, acrescida de juros de mora, desde a citação até efetivo e integral pagamento, com fundamento, em síntese, em que celebraram entre ambas um contrato de empreitada, de que a R desistiu, assistindo à A o direito a ser indemnizada pelos gastos com materiais e trabalho executado e pelo ganhos que esperava retirar da obra.

Citada, contestou a R dizendo, em síntese que o contrato ficou sujeito a condições suspensivas que não foram cumpridas pela A, como a assinatura do contrato e a prestação de garantia bancária on first demand a favor da R, não tendo a A entregue um exemplar do contrato de empreitada por si assinado nem a garantia bancária, pedindo a improcedência da ação e a absolvição do pedido”.

E nas alegações de apelação diz a autora / também então recorrente (cfr. conclusões de apelação 47 a 49):

A falta de verificação de duas das condições indicadas na Cláusula 30. do contrato de empreitada determinou assim a não entrada em vigor do mesmo, não podendo a Recorrida pretender, através desta acção, extrair consequências de um contrato que, por culpa sua, não chegou a entrar em vigor.

Sobre o comportamento da Recorrente ao alegar que o contrato não chegou a entrar em vigor note-se que, para além de se encontrar absolutamente sustentado no clausulado contratual, não visa eximir a Recorrente das suas responsabilidades quanto aos trabalhos prévios que a Recorrida efectivamente realizou e cujo pagamento a Recorrente sempre assumiu como devido, desde logo em sede de contestação e no doe. 3 junto com a mesma, pelo que inexiste qualquer comportamento abusivo da Recorrente.

Assim, a decisão recorrida quanto à questão da não entrada em vigor do contrato de empreitada por falta de entrega pela Recorrida do original assinado e da garantia bancária de boa execução está em contradição com o que havia sido contratualizado entre as partes e viola o disposto nos arts. 236.°, n.° 1, 270.°, 334.° e 406.° do CC”.

A verdade é que o Tribunal aderiu ao entendimento do Tribunal de 1.ª instância, no sentido de que o contrato de empreitada produziu efeitos jurídicos, reproduzindo-se, naquele Acórdão, excertos da sentença:

"Não se diga que o contrato "não existia" (por não ter sido entregue assinado pela Autora à Ré e não lhe ter sido feita chegar a garantia bancária). Tal visão é, no mínimo, abusiva e contraria frontalmente o princípio da boa fé que deve nortear todos os contratos, quando é certo que, conforme resultou demonstrado, a Autora fez saber à Ré que tinha nos seus escritórios o exemplar do contrato de empreitada por si assinado, assim como a garantia bancária, para que a mesma os pudesse ir buscar quando quisesse, em troca do cheque de 500 mil euros de adiantamento.

A postura da Autora, reconhecidamente "honesta", foi a de não exigir o pagamento do cheque de adiantamento antes da deslocalização das discotecas e a Ré, sabendo que assim era, não se preocupou em ir buscar os documentos cuja falta vem agora acusar.

Da mesma forma, não se vê que se possa concluir pela "caducidade" ou pela "impossibilidade”.

No que respeita em especial à invocada não "entrada em vigor" do contrato, a que se reporta a cláusula 30, com essa epígrafe, acima constante sob o n.° 9 dos factos provados da sentença, dispondo esta que:

"... A entrada em vigor do presente CONTRATO verifica-se com o cumprimento cumulativo das seguintes condições: a) Assinatura do CONTRATO; b) A rubrica, por ambas as partes, dos anexos que dele farão parte integrante; c) Efectivação da garantia bancária, irrevogável, "on first demand", com validade desde a assinatura do CONTRATO até 30 dias após a recepção definitiva dos trabalhos, para os efeitos do disposto na Cláusula 12", a matéria de facto acima descrita permite concluir que o contrato foi assinado (n.° 59) e que a garantia bancária foi "efectivada" (n.°s 17 e 18).

Aliás, o contrato não só foi assinado como entrou em execução a contento de ambos os contraentes, revelando esta questão da não "entrada em vigor" do contrato alguma incoerência em relação à realidade e à própria ação da apelante que a invoca (…)”.

Depois de tudo, o que se pretende sublinhar é que, sendo embora inegável que o pressuposto de que parte agora a autora (a vigência da relação contratual) é diferente ou mesmo oposto daquele de que partiu na acção que correu termos sob o n.º 1717670/20.6T8LSB (alegou ela, então, que o contrato não havia entrado em vigor), não se vê, em primeiro lugar, que aquilo que a autora alegou nestes autos esteja abrangido pela autoridade do caso julgado formado pelo Acórdão aí proferido; nem se vê, em segundo lugar, que a autoridade do caso julgado formado por esse Acórdão tenha como efeito vedar à autora invocar aqui que o contrato de empreitada produziu efeitos jurídicos.

Bem ao contrário, a autoridade do caso julgado (o efeito positivo ou vinculativo do caso julgado) formado por aquele Acórdão impõe, na presente acção, que se adopte a premissa de que o contrato de empreitada entrou em vigor e produziu efeitos jurídicos. E o que estaria vedado à autora seria tentar fazer valer, na presente acção, qualquer premissa incompatível com ela.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, concede-se provimento à revista, revogando-se o Acórdão recorrido e determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal de 1.ª instância a fim de este Tribunal lhes dar prosseguimento em conformidade com o decidido.


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Custas a final.

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Catarina Serra (relatora)

Isabel Salgado

Fernando Baptista

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1. Cfr., neste sentido, Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985 (2.ª edição), pp. 243-244.

2. Cfr. Lebre de Freitas, A acção declarativa comum à luz do Código revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 2011 (2.ª edição), pp. 37 e s., e Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo Código, Coimbra, Gestlegal, 2017 (4.ª edição), pp. 66 e s. Cfr. ainda, no mesmo sentido, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, Coimbra, Almedina, 2018 (4.ª edição), pp. 373-374.

3. Nas palavras de Manuel de Andrade (Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, p. 111), o pedido é “o direito para que [o Autor] solicita ou requer a tutela jurisdicional e o modo por que intenta obter essa tutela (a providência judiciária requerida); o efeito jurídico pretendido pelo Autor” e a causa de pedir é “o acto ou facto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) donde emerge o direito que o Autor invoca e pretende fazer valer”.

4. Sublinhados nossos.