Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE MÉDICA INTERVENÇÃO CIRÚRGICA RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL RESPONSABILIDADE CONTRATUAL ILICITUDE NEGLIGÊNCIA MÉDICA NEXO DE CAUSALIDADE DANOS PATRIMONIAIS DANOS NÃO PATRIMONIAIS CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO EXAME CRÍTICO DAS PROVAS PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA NULIDADE DE ACÓRDÃO | ||
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Data do Acordão: | 01/12/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
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Sumário : | I - Nas situações em que o médico se apresenta como um auxiliar do devedor da assistência médica – como é o caso de o doente celebrar um contrato com a clínica/hospital onde o médico exerce a sua atividade – a responsabilidade do médico será extracontratual e da clínica/hospital será contratual. II - Quer se esteja perante responsabilidade contratual, quer se esteja perante responsabilidade extracontratual, o programa prestacional do médico não é diferente, uma vez que em ambas o médico se compromete a empregar os seus esforços, a utilizar o seu saber e as técnicas que a ciência coloca à sua disposição, respeitando as leges artis, em ordem a alcançar a recuperação da saúde do doente; o que torna a ilicitude contratual e a ilicitude extracontratual, nos casos de responsabilidade médica, muito próximas e leva a que um mesmo comportamento lesivo de um médico possa fundar, simultaneamente, uma responsabilidade de natureza contratual e extracontratual. III - Provando-se que, numa intervenção cirúrgica (laparoscopia) para remoção dum adenocarcinoma do cólon/reto, foi seccionado o uréter esquerdo do doente, o que veio a exigir a realização duma nefrostomia (colocação dum dreno, para que a urina fosse expelida para o exterior, por um saquinho), provou-se o ato (ilicitude) – corte do uréter esquerdo – que veio a originar o dano (nefrostomia definitiva), ato esse que constituiu um defeito da prestação médica contratada com a clínica e realizada pelo médico. IV - Ato esse que não pode deixar de ser subjetivamente imputado ao médico – sendo o padrão a empregar, para reconhecer o caráter desvalioso do seu comportamento, o do bom profissional da mesma categoria – a título de imperícia. V - Ato (corte/secção do uréter esquerdo) que – estando provado que foi condição da nefrotomia definitiva (dano) e não estando provado que esta foi uma consequência extraordinária de tal condição – foi causa adequada da nefrostomia definitiva, o que gera a obrigação de eliminar as consequências negativas derivadas de tal comportamento, reconstruindo a situação que hipoteticamente, na falta do referido comportamento, existiria. VI - Assim, todos os gastos com tratamentos e medicamentos decorrentes da referida ação ilícita (corte/secção do uréter esquerdo) constituem danos indemnizáveis, tendo, porém e para tal, que resultar dos factos provados que tais gastos são objetivamente imputáveis a tal ação ilícita (o que não acontece se, da faturação apresentada, não for possível destrinçar o que diz respeito a tal ação ilícita do que diz respeito à intervenção cirúrgica - laparoscopia – contratada e às “normais” complicações com esta relacionadas/associadas). VII - Como são indemnizáveis, a título de danos não patrimoniais, as dores físicas e sofrimentos morais (amarguras, tristeza, perturbação, desgosto, ansiedade, cirurgias, hospitalizações, internamentos e tratamentos derivados da lesão), os complexos, sequelas e limitações de ordem estética, as lesões causadas à integridade física e psíquica (o dano biológico, na vertente não patrimonial), decorrentes de tal ação ilícita, sendo ajustado e equilibrado compensá-los globalmente – tendo a lesada 81 anos à data do evento – com a quantia de € 40 000,00. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Proc. n° 1616/11.5TVLSB.L1.S1 6.ª Secção
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I – Relatório AA – entretanto falecida (após a prolação do acórdão recorrido) e de que foi habilitada a sua única filha, BB – instaurou ação declarativa, sob a forma comum, contra o Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, CC e Macif Portugal - Companhia de Seguros, SA (atualmente, Caravela – Companhia de Seguros, SA) pedindo que: “O 1.º R. seja condenado a anular todas as faturas emitidas em nome da A desde 03/11/2010 e a reembolsar os montantes entretanto cobrados, acrescidos de juros à taxa legal; Todos os RR sejam condenados, solidariamente, a suportar os encargos vitalícios resultantes de todas as intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos, consultas, todos os exames clínicos, assistência médica e medicamentosa, quer sejam prestadas nas suas unidades de saúde, quer sejam nas de outras prestadores, segundo o critério e escolha da A, decorrentes da lesão por estes provocada, nomeadamente a reparação/substituição da nefrostomia. Todos os RR sejam, solidariamente, condenados a pagar à A. a título de indemnização a quantia global de € 244.752,00 (…)” Alegou, em resumo, que, no dia 02/11/2010, foi internada no “Hospital ...” – hospital privado de que a 1.ª R. é dona e administradora – para ser submetida, no dia 03/11, a uma cirurgia – a realizar, pela 2.ª R., médica-cirurgiã contratada pela 1.ª R e a exercer a sua profissão no “Hospital ...” – para remoção de um adenocarcinoma do colon/reto, intervenção cirúrgica esta (laparoscopia) que foi realizada pela 2.ª R. com total imperícia médica, sem observância das legis artis e sem o dever de zelo e cuidado a que estava obrigada durante o período intra-operatório e no período pós operatório, agindo assim com negligência grosseira que lhe causou danos irreversíveis e vitalícios. Efetivamente, realizada a cirurgia, de imediato, no post-operatório, surgiram as inúmeras complicações que relata, sendo que o corte negligente do uréter esquerdo – detetado no dia 09/11 e que deu origem a uma cirurgia de urgência e à realização duma nefrostomia então “provisória” – e a perfuração do intestino delgado – que deu origem a uma nova intervenção cirúrgica no dia 11/11 – estiveram na origem da sua grave condição (uma vez que a urina não estava a ser canalisada para a bexiga, mas sim para a cavidade retroperitoneal, o que fez com que contraísse sépsis, um derrame pleural bilateral e entrasse em coma), sendo os RR. “responsáveis por todo o processo subsequente”. Acabando a A. por ter alta no dia 16/12/2010 – não sem antes ter sido submetida a uma nova intervenção cirúrgica, para “reparação” da nefrostomia – tendo de ficar, em definitivo, com a nefrostomia e passando, por isso, a ter que ser submetida, de 2 em 2 meses, a uma reparação da nefrostomia através de um procedimento cirúrgico e ficando vulnerável a contrair infeções urinárias. Pretende pois ser indemnizada pelo risco de vida que sofreu, pelos tratamentos médico-cirúrgicos a que foi submetida, por todas as dores e mal estar que sofreu, pela falta de atempado diagnóstico e resolução do problema e pela violação do direito à integridade física e psíquica; e também por danos patrimoniais, que incluem as despesas incorridas até Maio de 2011 e todas as despesas futuras, nomeadamente encargos vitalícios resultantes de todas as intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos, consultas, etc. decorrentes da lesão provocada pela conduta negligente da 2.ª R..
Citados, os RR contestaram. A R. MACIF admitiu ter celebrado contrato de seguro com a 1.º R., invocando os tipos de danos e limites indemnizatórios garantidos; impugnando, por desconhecimento, os factos alegados pela A. e concluindo pela improcedência da ação. O R. Sindicato, após confirmar ter sido a A. submetida, no “Hospital ...”, a cirurgia para remoção de um adenocarcinoma do colon/reto (e para colecistectomia por colecistite crónica liásica), alegou os antecedentes pessoais da A. e o facto de esta ter sido informada, antes da operação, das complicações que poderiam advir, sendo que a sua evolução clínica foi compatível com as intervenções realizadas, tendo em conta a sua idade e antecedentes. Assim, impugnou ter existido um qualquer seccionamento do uréter no decurso da cirurgia e alegou que a perfuração intestinal resultou de isquemia decorrente de alterações circulatórias da A e não de qualquer ato praticado pela 2.ª R., que seguiu as recomendações existentes e adequadas para a cirurgia realizada, tendo cumprido os seus deveres profissionais no acompanhamento pós-operatório da A, procedendo com a devida e exigível diligência, razão pela qual concluiu pela total improcedência da ação. A R. CC aludiu aos antecedentes clínicos e medicamentosos da A e que a corticoterapia que a A. fazia poderia causar problemas de cicatrização, referiu que a evolução clínica da A. até dia 9 foi compatível com as intervenções cirúrgicas que foram realizadas e que as complicações que a partir dessa data se verificaram não se ficaram a dever a qualquer ato ou omissão da sua parte; invocou não ter tido qualquer intervenção na colocação do cateter que deu origem ao edema no braço da A, impugnando que tivesse seccionado o uréter da A ou dado origem à perfuração do intestino; e alegou ter sempre agido com o cuidado e diligência que lhe são impostos e de acordo com as melhores práticas médicas e cirúrgicas, quer durante as cirurgias que realizou quer no pós operatório. Conclui pela total improcedência da ação e requereu a intervenção principal das seguradoras – Axa Portugal e AMA – Mútua de Seguros dos Profissionais de Saúde – para as quais transferiu a sua responsabilidade civil profissional. Foi admitida apenas a intervenção da seguradora AXA Portugal – atualmente, Ageas Portugal – como associada da Ré CC, a qual apresentou contestação, fazendo sua a apresentada pela 2.ª R.. A A. respondeu, referindo que nunca foi devidamente informada dos riscos das cirurgias e que se limitou a assinar um papel "para fazer a operação" sem que lhe tenha sido explicado o alcance do seu consentimento e os eventuais riscos.
Foi proferido despacho saneador, em que foi declarada a total regularidade da instância, estado em que se mantém; tendo-se, ainda, selecionado a matéria de facto relevante e fixado a base instrutória. Instruído o processo e realizada a audiência, a Exma. Juíza proferiu sentença, em que se julgou a ação totalmente improcedente. Inconformada com tal decisão, interpôs a A. recurso de apelação, recurso que, por Acórdão da Relação ... de 08/10/2020, foi julgado parcialmente procedente e, em consequência, “(…) revogada a decisão recorrida que se substitui por outra que: i) Condena o 1.º réu a anular, por não devidas, as faturas elencadas na alínea D) dos factos provados; ii) Condena as rés a suportarem, solidariamente, os gastos futuros da autora com reparações da nefrostomia e tratamentos de infeções urinárias, no montante que se vier a apurar em incidente de liquidação, respondendo as seguradoras nos limites das apólices mencionadas nas alíneas A) e C) dos factos provados, ou seja, com redução do valor das franquias; iii) Condena as rés a pagarem, em solidariedade, à autora a quantia de €113.982 ,42 (cento e treze mil, novecentos e oitenta e dois euros e quarenta e dois cêntimos), respondendo as seguradoras dentro das forças das apólices, conforme alínea anterior. iv) Absolve as rés do demais peticionado. (…)”
Inconformado agora o 1.º R., interpõe o presente recurso de revista – a que aderiram a R. CC e a Interveniente Ageas Portugal – visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que repristine a absolvição sentenciada em 1.ª Instância. Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões: “(…) 1. Nos termos do art. 662 nº 1 do CPC o Tribunal da Relação deve alterar a decisão proferida sobre matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. 2. Tal alteração deve fundamentar-se numa análise crítica das provas, ou seja, num juízo valorativo sobre os meios de prova produzidos, como se tratasse de um novo julgamento. 3. Tal juízo valorativo deve ter em consideração a totalidade da prova produzida, apenas assim se assegurando, em termos práticos, um duplo grau de jurisdição em matéria de facto. 4. O douto Acórdão não observou os preceitos legais convocados em sede de reapreciação da matéria de facto, não havendo procedido ao exame crítico das provas. 5. O douto acórdão alterou (eliminando) a matéria de facto da alínea xx) de forma redutora, não tendo tido em consideração a prova integral produzida sobre tal matéria. 6. Em relação a esta matéria foi produzida prova testemunhal (a única considerada), prova pericial e prova por declarações de parte. 7. Na sua fundamentação o douto Acórdão ignorou em absoluto e reduziu a zero tais provas – pericial e por declarações de parte. 8. Impunha-se à Relação, o que não foi feito, “desconstruir” o iter de raciocínio feito na Primeira Instância e construir de forma fundamentada o raciocínio inverso, pelo que, não tendo tal sucedido e não se especificando os fundamentos de facto que justificaram a decisão, tal é aqui equivalente à falta de fundamentação e desconsideração absoluta da prova produzida. 9. Neste segmento é nula a decisão por falta de fundamentação e violação de Lei – arts. 615 nº 1 b) e 662 nº 1 do CPC, devendo ser mantida a matéria de facto em causa. 10. O douto acórdão eliminou, sem qualquer fundamentação, a matéria do ponto yy) dos factos provados. 11. Não é fundamentação uma interrogação, uma hipótese levantada por testemunha ou uma “imagem curiosa” dada por outra. 12. Só que, acrescidamente, sobre esta matéria foi produzida prova pericial constante da Consulta Médico-Legal de Fls., a qual foi omitida em absoluto, antes se refugiando a fundamentação em considerações subjectivas e parcelares. 13. Impunha-se assim que a divergência do Tribunal com a perícia tivesse fundamentado a alteração, o que não ocorreu, pois ignorou-se a prova pericial. 14. Assim, ocorre evidente nulidade do acórdão, no segmento que elimina a matéria da alínea yy) dos factos provados, por desconsiderar a prova pericial produzida e omitir a devida fundamentação contrária à mesma, bem como omitir demais prova produzida - arts. 615 nº 1 b) e 662 nº 1 do CPC. 15. A douta decisão recorrida entendeu eliminar os pontos jjj) e nnn) do elenco dos factos provados, baseando-se na falta de elementos seguros e desconsiderando no que respeita ao ponto jjj) o relatório pericial por se fundar em elementos fornecidos pela própria Ré. 16. Porém, no segmento de resposta à matéria de facto contida em nnn), a prova pericial constante da Consulta Médico-Legal é pura e simplesmente ignorada, sendo de sentido totalmente contrário ao propugnado pela Relação, aqui em matéria de matriz de conhecimento técnico-científico. 17. Assim é evidente que, não estando no domínio do livre e absoluto arbítrio, a Relação não podia desconsiderar a prova pericial em matéria do conhecimento técnico-científico e, fazendo-o, sem cumprir o ónus de fundamentação aqui especialmente exigível, incorreu em nulidade do acórdão neste segmento, ao eliminar as alíneas Jjj) e Nnn – arts. 615 1 b) e 662 nº 1 do CPC. 18. A eliminação da matéria do ponto mmm) do elenco dos factos provados com base num entendimento meramente subjectivo plasmado na expressão “nada existe de consistente” não cumpre a exigência de fundamentação e análise crítica da prova legalmente exigida. 19. Tal eliminação colide frontalmente com a matéria de facto não questionada constante das alíneas m) e n) dos factos provados. 20. Por outro lado, ao dizer-se que do exame do coração de fls. 990 resulta o contrário estamos no âmbito de um juízo médico-legal que carece de ser justificado e o não foi, pois não o sendo provocou a nulidade da fundamentação. 21. Em relação a tal matéria o Conselho Médico-Legal pronunciou-se de forma afirmativa na resposta à questão 13 e a Relação, ao afastar-se de tal entendimento, tinha de fundamentar a divergência, sendo exigido um acrescido dever de fundamentação, aqui inexistente. 22. O juízo técnico-científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador mas este dele pode divergir mediante um acrescido dever de fundamentação, o que não ocorreu na alegada fundamentação para a eliminação da alínea mmm). 23. Acresce que a Relação omitiu a prova testemunhal produzida sobre tal matéria e só considerando toda a prova é que o ónus de julgamento em segunda instância que recai sobre o Tribunal da Relação se deve considerar cumprido. 24. Pelo que, agindo deficientemente, a Relação faz errado uso dos seus poderes de reapreciação da matéria de facto, estando ferida de nulidade a eliminação da matéria de facto da alínea mmm) – art. 615 nº 1 b) e c) e 662º nº 1 do CPC. 25. A douta decisão recorrida eliminou o ponto ooo) da matéria de facto com a singela fundamentação de que é contrariada pelo depoimento do Dr. DD, sem concretizar sequer onde, como e em que medida tal ocorre. 26. Ao afirmar-se tal fundamentação sem mais, está-se na realidade a não fundamentar rigorosamente nada, até porque tal testemunha não contradisse o teor da resposta em causa. 27. Acresce que foi produzida prova pericial sobre tal matéria e a decisão é omissa sobre a mesma, sendo certo que as respostas dadas pelo Conselho Médico-Legal em relação a este facto traduzem juízo técnico-científico. 28. À Relação impunha-se, mais uma vez, um dever de fundamentação acrescido por divergir de tal juízo, mas tal fundamentação foi inexistente, quando é mandatória. 29. Assim, quer por tal facto, quer por não ter concretizado a contradição da prova testemunhal, aliás inexistente, em relação a tal matéria, estamos perante uma total ausência de fundamentação, de onde decorre o incorrecto uso dos poderes de alteração da matéria de facto e, em consequência, a nulidade deste segmento da decisão – art. 615 nº 1 b) e 662 nº 1 do CPC. 30. Ao entender dar como provado o facto de que “durante a 1ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 3 de Novembro de 2010, a 2ª R. seccionou o ureter esquerdo da A.”, a Relação fez errado uso dos poderes que lhe são legalmente cometidos. 31. Tal matéria de facto, como o Acórdão mencionou, não foi objecto de impugnação perante a Relação e constando dos factos não provados, não foi impugnada. 32. Exorbitou assim a Relação os poderes que legalmente tem, pois apenas pode alterar a decisão sobre a matéria de facto quando tenha sido impugnada, ónus que recaía sobre a A. recorrente – art. 640º do CPC, não cabendo igualmente a situação em apreço no âmbito das excepções previstas nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 662 do CPC. 33. Nem tal alteração era imposta pelo facto de ter sido eliminada diversa matéria de facto, pois não havia contradição entre os restantes factos provados e o facto em causa. 34. Cabe dentro dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça apreciar de forma concreta qualquer das situações previstas no art. 662 do CPC em ordem a verificar se a Relação ao usar os nela previstos agiu dentro dos limites legais. 35. No caso concreto foram excedidos tais limites, pelo que ocorre nulidade da decisão, por falta de fundamentação dos poderes invocados pela Relação. 36. Nem tem qualquer fundamento ou legitimação para esta decisão a invocação do disposto nas alíneas a) e b) do art. 5 do CPC, inaplicáveis ao caso concreto. 37. Não estamos perante um facto instrumental que resulta da decisão da causa, mas perante um facto essencial que a A. recorrente não provou e cujo ónus de prova lhe competia. 38. Não estamos também perante facto que seja complemento ou concretização do que as partes hajam alegado e resulte da instrução da causa. 39. E uma vez que a A. fez a sua alegação, mas não a provou e, ao mesmo tempo, não se inserindo a faculdade alegadamente utilizada no escopo da alínea a), também não se aplica a alínea b), ambas do art. 5 do CPC. 40. E não obstante, neste ponto, a Relação ter procurado, em extensa fundamentação, justificar a sua decisão, a verdade é que alega uma conclusão que é uma questão. 41. Tal questão coloca em alternativa serem as causas de obstrução do ureter um non liquet ou antes se poder concluir, com alguma segurança que, como probabilidade preponderante, a causa de interrupção do funcionamento do ureter ter sido a sua secção. 42. Fez a Relação errado uso dos seus poderes em matéria de alteração dos factos partindo de um conjunto de factos conhecidos para tirar uma conclusão de probabilidade preponderante – facto desconhecido. 43. Tal matéria afigura-se assentar no indevido uso de uma presunção judicial, aqui inaplicável, pois não estamos, quanto à decisão, no recurso ao “senso comum”, nas máximas da experiência, em juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados de intuição humana. 44. A decisão omitiu em absoluto a prova pericial produzida sobre tal matéria pelo Conselho Médico-Legal, da qual se divergiu sem a menor fundamentação e que inviabiliza, desde logo, o uso da figura da presunção judicial, ocorrendo assim incorrecta aplicação do disposto no art. 351 do CPC. 45. Ora, não obstante a extensa fundamentação mas que apenas conduz a uma questão, impunha-se recorrer à restante prova produzida quer testemunhal (testemunho de EE), quer pericial e divergindo a resposta do juízo técnico-científico que consta da perícia, impunha-se que a fundamentação tivesse em conta o necessário e imprescindível especial cuidado de fundamentar tal divergência. 46. É assim não relevante a fundamentação para a alteração da matéria de facto em causa, não devendo ser aditado tal facto à matéria de facto dada como provada, por ser nula a decisão – art. 615 b) e 662 nº 1 do CPC, sendo certo que a Relação apenas se limitou a reapreciar a prova testemunhal, assim incumprindo o disposto em tal normativo. 47. E não sendo aditada tal matéria, todos os restantes pedidos formulados pela A. devem, consequentemente, improceder. 48. O douto acórdão fez errada aplicação do Direito ao ordenar a anulação de todas as facturas emitidas em nome da A. desde 03.11.2010, fundando a decisão num alegado não cumprimento do Hospital ..., figura que nem sequer é parte do processo. 49. Tal decisão é contraditória com os termos do próprio Acórdão quando assinala que não se demonstrou que foi qualquer acto da 2ª R. que provocou a perfuração intestinal tratada na 2ª cirurgia, pelo que não havendo incumprimento contratual sempre o R. Sindicato terá o direito de receber o preço de todos os actos médicos praticados, com excepção dos inerentes e ou resultantes à factualidade de secção do ureter, na hipótese, que não se aceita, de ter sido seccionado por acto da 2ª R. 50. Na facturação emitida pelo R. Sindicato constam inúmeros mas concretizados actos médicos que são alheios a tal factualidade, nomeadamente os que se relacionam com a matéria de facto vertida nas alíneas aaa) a ggg). 51. Não tem qualquer fundamento a decisão no sentido de que não é possível distinguir os serviços que se relacionam com o chamado “erro médico” e os restantes, decisão injustificada e não sustentada em qualquer facto objectivo. 52. A facturação emitida pelo R. Sindicato à A. é detalhada, sendo possível separar os encargos relacionados com a alegada secção do ureter (que não se aceita como imputável à 2ª R.) com os restantes encargos decorrentes da assistência clínica prestada à A. 53. O R. Sindicato cumpriu as suas obrigações contratuais ao ser retirado o tumor à A., ao fazer os necessários exames para investigação da peça retirada, ao prestar a necessária assistência pré e pós-operatória, no que respeita à perfuração intestinal ser efectuada a adequada cirurgia, com os actos pré e pós-operatórios necessários – factos provados f), g), h), j), q), w), aaa) a ggg), jjj), ttt), jjjj) a nnnn). 54. E cumprindo as suas obrigações, o R. Sindicato tem o direito de cobrar o preço relativo aos serviços prestados. 55. Assim deverá ser alterada – apenas e na hipótese de ser entendido que a R. CC seccionou o ureter da A., sempre sem conceder – a decisão recorrida, ordenando apenas a anulação dos actos facturados e relacionados com tal factualidade. 56. Ora, não se aceitando que a R. CC tenha seccionado o ureter da A., devem os RR. ser absolvidos da condenação no que respeita à sua responsabilidade por tratamentos futuros. 57. A fundamentação da atribuição do montante arbitrado pela Relação a título de indemnização por danos patrimoniais não pode ter fundamento nem nos prémios pagos, nem nos lucros das seguradoras, sendo certo que tal factualidade é inaplicável ao R. Sindicato, este sem fins lucrativos e que não recebe quaisquer prémios. 58. Tal fundamento não tem sentido pois em nenhum passo dos autos está demonstrado que os prémios sejam elevados ou quais os lucros das seguradoras. 59. O valor atribuído à A. para ressarcimento de danos não patrimoniais é exagerado, tendo em atenção os factos provados, o cumprimento inquestionável de obrigações por parte dos RR. e ainda os factos ocorridos em 4 de Janeiro e 31 de Março de 2011, os quais nada têm a ver com qualquer incumprimento contratual ou acto ilícito que possa ser imputado aos RR. 60. Face às patologias antecedentes da A., à sua provecta idade e ao acima invocado (ponto 59), e sempre sem conceder, o valor a atribuir não deveria exceder 10.000,00 euros. 61. E quanto à arbitrada indemnização pelo dano estético, entende-se que inexiste qualquer fundamento para a sua atribuição de forma autónoma em relação aos danos morais, uma vez que, pese embora a existência de nefrostomia, não se provou qualquer aspecto desagradável no sentido estrito do relacionamento social. 62. Deve assim ser revogado o segmento do Acórdão que fixou indemnização à A. para ressarcimento de um dano de tal natureza, por inexistir factualidade que origine um dano estético autónomo. 63. Os fundamentos em que o Acórdão assentou para atribuir uma indemnização do dano biológico não se reconduzem a factualidade diversa da que fundamentou o dano não patrimonial. 64. A A. terá nesta data cerca de 91 anos de idade, inexistindo repercussão dos factos, sempre sem conceder, nos seus ganhos, sendo certo que a fundamentação específica constante do acórdão não é autónoma ou diversa da aplicada para fundamentar a indemnização por dano não patrimonial. 65. No entanto, e se tal não se entender, não deveria ter sido atribuída uma indemnização superior a 7.500,00 euros. 66. O acórdão recorrido não aplicou correctamente o Direito, nem fez uso correcto e acertado das faculdades que o direito processual confere ao Tribunal da Relação para alterar a matéria de facto. 67. Alterar a matéria de facto é fazer um novo julgamento, ouvir e ponderar toda a prova produzida e avaliar e analisar criticamente a mesma. 68. O Acórdão ignorou a prova pericial e dela divergiu plúrimas vezes, sem o menor fundamento mesmo quando se tratava de juízos estritamente técnico-científicos do campo da medicina formulados pelo Conselho Médico-Legal. 69. Cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da matéria de facto, sindicar o controle da legalidade do apuramento dos mesmos pela Relação. 70. E inexistindo fundamento para tais alterações, sendo certo que não foram cumpridos os ditames do art. 662 do CPC, deve ser revogada a decisão no que tange à alteração da matéria de facto, uma vez que, à evidência, não se formulou uma análise crítica do acervo probatório, em termos de assegurar, de modo efectivo, um duplo grau de jurisdição, alterando-se os factos com base em apreciações genéricas e abstractas ou em juízos meramente genéricos ou inconcludentes. 71. O douto acórdão fez errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 342º nº 1, 346º, 351º, 483º, 496º e 762º, todos do Código Civil e 607 nº 3 e 4, 615 nº 1 b) e c) e nº 4 e 662 nº 1, todos do CPC. (…)”
A A. respondeu, sustentando, em síntese, que o Acórdão recorrido não violou qualquer norma processual ou substantiva, designadamente, as referidas pelo recorrente, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos. Terminou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões. “(…) A) A agora recorrida mantém na íntegra a posição expressa nas alegações e conclusões constantes do seu recurso contra a decisão do tribunal de primeira instância e dirigido ao Tribunal da Relação .... B) O recurso apresentado pelos rtes. não evidencia qualquer razão material ou formal, de direito ou de facto, susceptível de contrariar o deliberado no douto Acórdão do tribunal “a quo”, o qual deve ser mantido por não merecer qualquer das censuras deduzidas pelos rtes.. C) Desde logo, os rctes. reincidem no pecado já cometido aquando das suas contralegações, ou seja, não dão cumprimento ao disposto no art. 640.º, n.º 2, a) e b) do CPC, porquanto não identificam o concreto ficheiro a que se reportam as transcrições que fazem, sendo certo que estas não correspondem à temporalização referida. D) Por exemplo, relativamente aos depoimentos do Dr. EE, e uma vez que foi ouvido, não só em momentos distintos como mesmo em dias distintos, os rctes. não podem limitar-se à indicação dos minutos do depoimento, sem identificar concretamente o ficheiro (ou o momento) em causa. Por isso, as remissões que fazem para os excertos de certos depoimentos não podem ser atendidas, na medida em que violam aquela disposição processual. E) A rda. dá aqui por reproduzido, brevitatis causa, o teor da fundamentação de facto e de direito do douto Acórdão proferido, porque seria ocioso repeti-lo. F) O douto Acórdão do Tribunal da Relação ... veio corrigir a apreciação errónea da matéria de facto e decidir de acordo com a prova carreada para os autos e nomeadamente a prova testemunhal prestada, fazendo Justiça, como aliás mencionam os próprios rtes. RR. nas suas alegações, quando escrevem: “É evidente que a Relação formou a sua convicção com base em meios de prova produzidos nos autos - depoimentos de testemunhas e documentos – tendo apresentado o que entendeu ser a devida fundamentação para a decisão tomada” (alegações dos RR., fls. 2, 4.º parágrafo). G) Não podemos estar mais de acordo com esta afirmação, acrescentando que o Tribunal “a quo” formou a sua convicção sem parcialidade, nem favoritismos. H) Além disso, o venerando Tribunal recorrido interveio, não ex novo, mas no sentido de sindicar os pontos da matéria de facto impugnados pela A., ora rda. Ou seja, deteve-se sobre a matéria controvertida suscitada pela A. e analisou criteriosamente todas as provas pertinentes, dando parcial razão à então recorrente – e este é um aspecto que os rtes. omitem I) Mal se compreende assim, senão num quadro de manobra dilatória, a alegação ensaiada pelos rtes. imputando ao Acórdão recorrido os vícios de (i) falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, na maior parte das situações, e o de que (ii) os fundamentos estão em oposição com a decisão, e isto em simultâneo, quando é certo que um e outro vício se excluem. Porque (i) ou há falta de fundamentação, ou (ii) esta não falta e há contradição entre os fundamentos e a decisão. Os dois vícios não convivem ao mesmo tempo. J) Pelo contrário, surpreende-se no Acórdão recorrido, escrito numa linguagem elegante e escorreita, o desenvolvimento de um raciocínio lógico, claro e sustentado. K) Como se escreve no ponto 2 das alegações supra e que aqui, brevitatis causa, se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, não assiste razão aos rtes. quanto à eliminação da alínea XX. L) Como se escreve no ponto 3 das alegações supra e que aqui, por economia processual, se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, não assiste razão aos rtes. quanto à eliminação da alínea YY. M) Como se escreve no ponto 4 das alegações supra e que aqui, brevitatis causa, se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, não assiste razão aos rtes. quanto à eliminação das alíneas Jjj e Nnn. N) Como se escreve no ponto 5 das alegações supra e que aqui, por economia processual, se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, não assiste razão aos rtes. quanto à eliminação da alínea mmm. O) Como se escreve no ponto 6 das alegações supra e que aqui, brevitatis causa, se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, não assiste razão aos rtes. quanto à eliminação da alínea ooo. P) Como se escreve no ponto 7 das alegações supra e que aqui, por economia processual, se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, entendeu, e bem, o Tribunal “a quo” dar como provado o seguinte facto: “Durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 3 de Novembro de 2010, a 2.ª Ré seccionou o ureter esquerdo da A.”. Q) Como se escreve no ponto 8 das alegações supra e que aqui, brevitatis causa, se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, não assiste razão aos rtes. quanto à anulação das faturas que a A., ora recorrente liquidou. R) Como se escreve no ponto 9 das alegações supra, existe prova bastante para se concluir com um alto grau de certeza que a 2.ª Ré, CC, seccionou o uréter da A., pelo que existe responsabilidade pelos tratamentos que decorreram desde a data da 1.ª intervenção cirúrgica e a data da morte da A.. S) Como se escreve no ponto 10 das alegações supra e que aqui, brevitatis causa, se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, as indemnizações arbitradas foram calculadas com parcimónia e atenderam aos efectivos danos e prejuízos sofridos pela malograda A.. T) O Acórdão do Tribunal “a quo” aplicou correctamente a lei substantiva e adjectiva e não padece dos vícios imputados. U) Falecem todas as razões invocadas pelos rtes., devendo manter-se o Acórdão nos seus exatos termos.(…)”
Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir. *
II – Fundamentação de Facto II – A Factos Provados (alinhados, logica e cronologicamente, e refletindo as modificações introduzidas pela 2.ª Instância): A) No dia 2 de Novembro de 2010, a A. foi internada no "Hospital ..." para ser submetida a uma cirurgia para remoção de um adenocarcinoma no Cólon/Recto. B) Depois de efetuados todos os procedimentos pré-operatórios habituais nestas circunstâncias - orientados pela Senhora Dra. CC, ora 2.ª R. - a doente foi submetida à mencionada intervenção cirúrgica - laparoscopia - dia 3 de Novembro 2010. C) A A. foi sujeita aos procedimentos pré-operatórios necessários e depois foi submetida a cirurgia para remoção de adenocarcinoma do reto e para colecistectomia por colecistite crónica litiásica, ou seja, para retirar a vesícula por inflamação crónica da mesma por cálculos. D) Essas duas operações referidas ocorreram durante o mesmo ato operatório. E) A A. tinha antecedentes pessoais de hipertensão arterial, doença ostearticular degenerativa, histerectomia total e síndroma de Sjogren. F) A A. fazia, como decorre do antecedente clínico e histórico, tratamento de corticoterapia, encontrando-se medicada em ambulatório há longa data com coaprovel, rosilan, gabapentina, paracetamol e bialzepan. G) Efetuada a intervenção cirúrgica, no final da mesma foi comunicado aos familiares da A., pela cirurgiã responsável pela cirurgia, Dra. CC, que tudo havia corrido bem. H) Informou ainda que o tecido removido iria ser enviado para análise para se poder avaliar a extensão da doença e, consequentemente, a taxa de sucesso na sua cura. I) É procedimento habitual proceder a análise do tecido retirado, a fim de se conhecerem as características do tumor, grau de envolvimento e eventuais metáteses locais. J) No dia 7 de Novembro de 2010, para além de se notar maior indisposição, prostração e queixas de mais dores da doente, notava-se também a presença de um mau cheiro no quarto. K) Os familiares da doente informaram de imediato a Dra. CC, ora 2.ª R., e o pessoal de enfermagem dessas circunstâncias, ao que estes justificaram com uma recuperação muita lenta e com uma eventual halitose. L) A evolução clínica da A. era, até essa data, compatível com as intervenções cirúrgicas realizadas e situação geral da A., atendendo às patologias em tratamento. M) No dia 8 de Novembro de 2010, o mau cheiro era mais notório, e quando os familiares da ora A. chegaram ao quarto na hora das visitas, a porta do quarto até estava aberta, pelo que mais uma vez insistiram na chamada da atenção para esse facto. N) Era notória a dificuldade da doente em movimentar o braço direito, verificando-se que a mão se apresentava inchada. O) No dia 9 de Novembro, verificou-se a existência de um edema no braço direito, resultante da colocação e presença de cateter venoso, o que provocou uma tromboflebite da veia jugular interna direita e hidronefrose à esquerda, o que foi diagnosticado por Angiotac; P) Até esse dia, sem prejuízo da situação resultante do edema, toda a restante situação clínica era compatível com as cirurgias efetuadas, denotando uma evolução lenta, tendo em conta os antecedentes pessoais da A e sua idade. Q) A partir desta data, a 2.ª R deixou de ser a única médica a interagir no internamento e no processo clínico da A, sendo-lhe estranhos diversos atos médicos que sobre ela foram praticados por terceiros, bem como decisões de alta e de baixa médica. R) Da informação contida nos diários clínicos resultava que a A. apresentava: a. Queixas de tonturas e fotofobia; b. dor a nível abdominal que não cedia totalmente aos analgésicos, c. náuseas e vómitos, d. baixo débito urinário - urina acastanhada e posteriormente alaranjada, e. abdómen timpanizado, volumoso e muito distendido, f. pensos inferiores do lado direito repassados de líquido seroso amarelado, g. a região supra-púbica com edema e rubor, h. cheiro fétido, i. palidez, j. fraqueza, k. astenia marcada, queixosa à mobilização, 1. peristaltismo, m. 37,5° de temperatura, n. abdómen pouco depressível e doloroso à palpação, o. dificuldade em deambular, mesmo com ajuda, p. dores, q. apreensão relativamente à sua situação de saúde, r. agitação e queixas - não tinha posição de conforto, mal-estar geral, s. prostrada. S) A dor abdominal é habitual e normal no pós-operatório de colecistectomia e ressecção anterior do reto e cedia aos analgésicos, razão porque foram administrados analgésicos adequados àquelas queixas. T) No pós-operatório, neste tipo de doenças, é normal a verificação deste tipo de náuseas ou vómitos. U) O baixo débito urinário verificado respondeu bem à terapêutica instituída pelo anestesista, conforme é frequente no pós-operatório de grande cirurgia abdominal. V) Neste tipo de tratamentos é também normal que o abdómen se apresente timpanizado, sendo certo que o da R nunca esteve excessivamente distendido. W) É também normal neste tipo de feridas recentes haver um ligeiro repasse seroso. X) É normal a verificação de uma reação inflamatória pós-operatória com os sinais de edema e rubor na região supra-púbica. Y) Verificava-se um sinal de palidez normal e adequada ao pós-operatório. Z) A fraqueza não era excessiva ou extraordinária no caso vertente. AA) Não havia astenia fora do esperado no pós-operatório, sendo que a doente se mostrava queixosa devido à doença osteoarticular degenerativa de que padecia e já vinha portadora. BB) As queixas à mobilização da A. poderiam decorrer da doença osteoarticular degenerativa de que já era portadora e idade da A CC) O peristaltismo é um sinal positivo de que o seu intestino estava a recuperar da operação efetuada. DD) A temperatura verificada de 37,5° é aceitável como normal no pós-operatório. EE) O estado pouco depressível e doloroso do abdómen é normal em pós-operatórios FF) A dificuldade em deambular era compatível com a situação pós-operatória e tinha características normais para a situação, considerando a doença ostioarticular presente e as intervenções a que acabava de ser submetida. GG) É também normal a referência a dores. HH) No dia 9 de Novembro de 2010, a doente piorou e nos diários clínicos consta que esta apresentava-se: a. asténica, b. prostrada, c. pálida, d. polipneica (respiração rápida e ofegante), e. com uma ferida cirúrgica na região supra-púbica com saída de grande quantidade de líquido esverdeado e com cheiro fétido, f. edemas generalizados. II) No dia 9 de Novembro, a A. tinha edema apenas no membro superior direito. JJ) Nesse mesmo dia, os familiares da A. foram informados de que, depois de submetida a um angiotac, fora identificada uma situação "anómala" com o funcionamento de um rim, e ainda a existência de uma tromboflebite da veia jugular onde tinha sido colocado o cateter central. KK) Durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 03/11/2010, a 2.ª R. seccionou o uréter esquerdo da A.. LL) A "anomalia" no funcionamento do rim exigiu a pronta intervenção de um urologista do Hospital ... - Senhor Dr. EE - que, através de uma cirurgia de urgência, realizou uma nefrostomia, ou seja, colocou um dreno para que a urina pudesse ser expelida para o exterior, para um "saquinho", evitando que ficasse depositada na cavidade abdominal. MM) A 2.ª R não teve qualquer intervenção nesse acto. NN) No relatório da TAC toraco-abdomino-pélvico, efectuada nesse dia, pode-se ler: «Rim esquerdo com atraso na excreção do contraste, com dilatação da árvore excretora e terço proximal do uretero, não se definindo o restante ureter». OO) Depois desta segunda intervenção, a doente foi transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos, e a médica responsável, Dra. CC, informou os familiares de que a condição da doente era muito grave, sendo o prognóstico reservado, «aconselhando-os a prepararem-se para o pior». PP) Nunca houve urina na cavidade abdominal ou retroperitonial. QQ) A operação do dia 11 de Novembro ocorreu em consequência da presença da isquémia focal do intestino delgado com peritonite fibrino-granulocitária. RR) A perfuração do intestino delgado fez extravasão do conteúdo intestinal. SS) O conteúdo fecalóide resultou da referida perfuração, verificada, detetada e tratada de imediato no dia 11/11/2010. TT) A doente foi para o bloco cerca das 20h00m onde foi submetida a uma laparotomia exploradora com ressecção do delgado por perfuração deste com peritonite fecal. UU) Foi a doente sujeita a laparotomia, após a qual regressou à Unidade de Cuidados Intensivos. VV) A laparotomia é o procedimento cirúrgico mais conforme com o estado da arte para o tratamento de perfurações do intestino, tendo a 2.ª R já efetuado muitas cirurgias desse tipo. WW) A A. esteve na UCIP (Unidade de Cuidados Intensivos) até dia 26.11.2010. XX) A utilização de stents só é preconizada pela comunidade científica nacional e internacional quando se presume no pré-operatório que os ureteres possam estar envolvidos, como sucede no caso de tumores avançados. YY) No caso concreto da A., o tumor detetado estava numa fase inicial pelo que não é preconizado o uso de "stents", prática não aceite pela comunidade científica, até porque existe risco de complicações com a sua utilização. ZZ) As análises que a doente fazia diariamente não apresentavam alterações que levassem a ponderar esse diagnóstico (complicações vasculares e isquémias). AAA) A R., logo que se pôs a hipótese de haver complicações pós-operatórias, no dia 9 de Novembro, promoveu a realização de atos de diagnóstico complementar, fazendo imediatamente AngioTac e sendo contactado o urologista, tendo a A. sido tratada sempre nesse período com a presença da R. BBB) A A. foi medicada e tratada logo que foi detetada a complicação e no próprio dia. CCC) A 2a R., CC, sempre esteve a par da situação clínica da A. por observação directa e frequente. DDD) Todos os dias a A. foi submetida aos necessários e adequados exames complementares de diagnóstico. EEE) O derrame pleural é uma complicação habitual em operações por colecistite e neoplasia do recto, independentemente da técnica utilizada. FFF) Os RR. não preveniram a A., nem os seus familiares da eventualidade de haver risco de secção do uréter esquerdo ou perfuração do intestino delgado em consequência deste tipo de intervenções cirúrgicas. GGG) No dia 11 de Novembro de 2010, a doente estava entubada e sob sedação pelo que não era possível informá-la diretamente e os seus familiares não estavam presentes, tendo sido necessário tratar a doente de modo urgente e inadiável, o que se efetuou, não sendo possível informar e obter o consentimento prévio de qualquer familiar. HHH) No dia 3 de Dezembro de 2010, verificando-se que o estado geral da doente estava a evoluir positivamente, e antecipando-se a alta da doente para breve, os familiares da doente falaram com a Dra. CC, para que lhes fossem explicadas as causas que poderiam estar na origem desta infeliz - e inesperada - série de eventos. III) No dia 7 de Dezembro, pela manhã, a 2a R. observou a doente que estava melhorada, tinha abdómen indolor à palpação, mantinha o trânsito intestinal e tolerava alimentação oral, tendo procedido à palpação e verificado que a mesma era indolor, pelo menos a doente não revelou queixas significativas. JJJ) O Dr. EE pediu a realização de uma ecografia abdominal à doente. KKK) Na sequência da ecografia, que revelou a necessidade de ajustar o dreno, o Dr. EE procedeu à recolocação do dreno na posição correta, situação que se tratou de simples acto clínico sem complicação de maior. LLL) No dia 8 de Dezembro, na hora das visitas, a doente informou os seus familiares de que a 2.ª R., a Senhora Dra. CC, teria estado no quarto de manhã, manifestando-lhe o propósito de lhe retirar a algália. MMM) A retirada da algália era o procedimento correto face à evolução do estado de saúde da A. NNN) Dadas as complicações ocorridas na sequência da nefrostomia, a 2a R., após se inteirar das mesmas, optou pela manutenção da algália, que estava programada. OOO) O genro da A. contactou o Director ..., Senhor Dr. FF, telefonicamente, solicitando-lhe que, nessa sua qualidade, substituísse o médico que estava a acompanhar esta doente, ou seja, a 2a R.; PPP) A partir do dia 9 de Dezembro a 2a R foi substituída por outro médico, nunca mais tendo tido contacto com a doente, aqui A.. QQQ) No dia 16 de Dezembro de 2010, a doente teve alta. RRR) A doente, enquanto em casa, contou com a assistência domiciliária do pessoal de enfermagem da extensão das ... do Centro de Saúde ... e o apoio diário de pessoal qualificado na sua higiene pessoal, bem como com a visita do seu médico assistente do SNS, o Senhor Dr. GG; SSS) No dia 4 de Janeiro de 2011, porque a A. apareceu com temperaturas elevadas, da ordem dos 39°, os seus familiares levaram-na ao serviço de urgência do Hospital ..., onde ficou, nessa noite, no Serviço de Observações, tendo, no dia seguinte, sido internada, no piso 6, com o diagnóstico de infecção urinária; TTT) A doente teve alta no dia 14 de Janeiro de 2011; UUU) No dia 31 de Março de 2011 a A. dirigiu-se ao Hospital ..., apresentando mal-estar geral e uma grande debilidade. VVV) Depois de realizados vários exames, entre eles uma ecografia e análises ao sangue, foi-lhe diagnosticada, mais uma vez, uma infecção urinária. WWW) Após ter sido medicada com antibiótico por via endovenosa, foi-lhe dada alta, tendo sido prescrito um outro antibiótico a tomar por via oral durante oito dias. XXX) No dia 4 de Abril de 2011, os familiares da doente contactaram telefonicamente o Sr. Dr. EE, para saber se a substituição do cateter da nefrostomia, agendada para dia 5 se mantinha, dadas as condições da doente, e também porque já eram conhecidos os resultados das análises de urina bacteriana realizadas no dia 31, em que se verificou a presença de mais de 4 bactérias. YYY) Dadas as circunstâncias, o Sr. Dr. EE achou por bem adiar esta intervenção por uma semana, para evitar a proliferação de bactérias. ZZZ) Durante a tarde do dia 4 de Abril até à manhã do dia 5, a nefrostomia deixou de drenar completamente, pelo que, dada a gravidade da situação, a A. dirigiu-se ao serviço de urgência do Hospital .... AAAA) Nessa ocasião foi atendida pelo Sr. Dr. HH, outro clínico do Hospital ..., que, perante os factos, respondeu que não era urologista, que não percebia de urologia e que nada podia fazer, aconselhando a doente a esperar que o urologista aparecesse ou então que se dirigisse ao hospital da sua residência, porque o Hospital ... não possuía urgências na especialidade de urologia. BBBB) O Dr. HH resolveu pedir exames e análises à doente, entre eles uma ecografia, onde se verificou que havia um pequeno desvio do cateter da nefrostomia. CCCC) Dirigiram-se ao piso de cirurgia, onde esperaram pela chegada do urologista, Sr. Dr. EE, que de imediato procedeu à intervenção de substituição do cateter e, passado algum tempo de recobro, a doente teve alta. DDDD) No dia 6 de Abril de 2011, estando a doente ainda num estado de grande debilidade física, foi verificado pelos seus familiares que o cateter não estava a drenar, entraram em contacto com o Sr. Dr. EE, que de imediato contactou o seu colega urologista Sr. Dr. II, que se encontrava a dar consultas no Hospital ..., para proceder a uma lavagem do cateter. EEEE) A A. dirigiu-se então ao Hospital ..., onde foi efetuado esse procedimento. FFFF) A A. tem de tem de ser submetida, de 2 em 2 meses, a uma reparação da nefrostomia através de um procedimento de curta duração e com aplicação de anestesia local. GGGG) Neste momento, a A. tem que continuar com a nefrostomia (a urina é drenada através de um cateter para um saco de contenção exterior que é colado nas costas da paciente), com a consequente perda de autonomia e de liberdade de movimentação para toda a vida. HHHH) A A. sofreu um desgaste psicológico, moral e físico com esta situação, que ainda não se deixou de fazer sentir e que perdurará, avaliando-se esse sofrimento num grau de 4 numa escala de sete. IIII) A nefrostomia a que a A. foi sujeita é definitiva, bem como as reparações cirúrgicas de 2 em 2 meses e a vulnerabilidade que adquiriu de contrair infeções urinárias. JJJJ) Após a cirurgia da nefrostomia, a A. sentiu-se diferente e só com o passar de tempo se foi adaptando. KKKK) A nefrostomia gera uma série de alterações de ordem física e estética, avaliadas num grau 4 numa escala de sete, que prejudica o convívio social e até familiar. LLLL) Essas condicionantes verificam-se ao nível da higiene em geral e da higiene da própria estomia e do material colector, e ao nível da alimentação, pois a A. tem de seguir uma rigorosa dieta alimentar própria. MMMM) Verificam-se também ao nível do vestuário, pois para poder usar o material colector a A. tem de usar roupas largas. NNNN) A A. está igualmente condicionada durante as suas viagens e está onerada com as despesas com o material colector, encontrando-se completamente dependente de terceiros para a substituição desse material. OOOO) A A., vivia a sua vida de uma forma independente e até ajudava a cuidar dos seus netos. PPPP) A A. tornou-se uma pessoa mais triste. QQQQ) A A. não enfermava de qualquer limitação física ou mental e era completamente independente. RRRR) A A. era uma pessoa alegre, afável, disponível, lutadora, e era muita amiga dos seus filhos e dos seus netos. SSSS) A A. teve as seguintes despesas até Maio de 2011: De farmácia - €243,59; Transporte de ambulância e táxis - €22,25; Tratamentos Médicos -€61.216,61; TTTT) Em consequência das lesões que sofreu, a A. ficou com sequelas que a incapacitam para as suas tarefas quotidianas, tendo ficado dependente da ajuda de uma terceira pessoa, principalmente para a higienização e mudança dos sacos colectores da urina, apresentando um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 15 pontos. * UUUU) A A., AA, é utente do SAMS n.° ..., em virtude de ser sogra de um associado desse sindicato (Dr. JJ) e consequentemente beneficiário daquele sistema de saúde. VVVV) O 1.º R.-SAMS é o dono do estabelecimento denominado "Hospital ...", sito na Rua..., ... - ..., ..., vocacionado para a prática de actos médicos e de assistência médica e medicamentosa, sendo esse sindicato quem designa o Conselho de Gerência e escolhe os seus membros, que por sua vez gerem a organização e superintendem em todos os serviços, escolhem e contratam o pessoal clínico e não clínico e assumem a obrigação de vigilância sobre todos os utentes dos serviços sob a directa responsabilidade do Io R.. WWWW) A 2.ª R. foi contratada pelo 1.ª R.-SAMS para exercer a profissão de médica no "Hospital ..." e integra o respetivo corpo clínico. XXXX) A A., necessitando de cuidados médicos, dirigiu-se ao Hospital ... e à médica que lá desenvolve a sua actividade profissional, e aceitou que lhe fossem prestados os cuidados médicos que foram propostos. YYYY) Por acordo escrito titulado pela apólice n.° ..., o 1.º R., S.M.A.S.-Serviços de Assistência Médico-Social, transferiu para a MACIF Portugal - Companhia de Seguros, S.A., mediante o pagamento de prémio, a sua responsabilidade civil relativa ao exercício da sua atividade hospitalar, até ao limite máximo de €500.000,00 por anuidade, €125.000,00 por sinistro em danos corporais e €7.500,00 por danos materiais, sendo prevista uma franquia de 10% do valor do sinistro, com o valor mínimo de €125,00. ZZZZ) No ano da ocorrência do sinistro dos autos, ocorreram outros sinistros, estando provisionado o montante de €302.500,00 conforme se discrimina: Proc. 80.823 (acidente ocorrido em 03.05.10): €125.000,00; Proc. 80.833 (acidente ocorrido em 18.10.10); €50.000,00; Proc. 80.877 (acidente ocorrido em 14.06.10): €125.000,00; e Proc. 80.932: €2.500,00. AAAAA) Por acordo escrito titulado pela apólice n.° ..., 2.ª R., CC, transferiu a sua responsabilidade civil, relativa ao exercício da sua atividade profissional médica, especialidade de cirurgia geral, para a Axa Portugal, Companhia de Seguros, S.A., mediante o pagamento de prémio, garantido o capital de indemnização até ao montante de €300.000,00, uma vez que o capital da anuidade fica limitado, em cada sinistro, ao valor indicado como "sub-limite do Capital Seguro", sendo aplicada a cada sinistro, relativamente a danos patrimoniais, uma franquia de 10% do valor reclamado, com um mínimo de €125,00. BBBBB) O 1.º R. emitiu e entregou à A. para pagamento as seguintes faturas relativas aos serviços médico-hospitalares nelas discriminados: 1) Fatura n.° ...24, no valor de € 50.889,86; (cfr. doc. de fls. 15 a 52 do apenso "A"); 2) Factura n.° ...64, no valor de €213,77 (cfr. doc. de fls. 241 a 242); 3) Factura n.° ...67, no valor de €3.984,63 (cfr. doc. de fls. 243 a 248); 4) Factura n.° ...04, no valor de €1.984,63 (cfr. docs de fls 48 a 49 e fls 251 a 252); 5) Factura n.° ...06, no valor de €565,10 (cfr. doc. de fls. 253 a 255); 6) Factura n.° ...65, no valor de €292,18 (cfr. doe. de fls 249 a 250); 7) Factura n.° ...06, no valor de €67,80 (cfr. doe. de fls 256 a 257); 8) Factura n.° ...16, no valor de €282,83 (cfr. doe. de fls 50 a 51); 9) Factura n.° ...93, no valor de €1.513,51 (cfr. doe. de fls 46 a 47); 10) Factura n.° ...19, no valor de €81,60 (cfr. doe. de fls 54 a 55); 11) Factura n.° ...69, no valor de €182,43 (cfr. doe. de fls 52 a 53); e 12) Factura n.° ...53, no valor de €1.174,78 (cfr. doe. de fls 44 a 45). CCCCC) A A. nasceu no dia .../.../1929 e faleceu no dia 21/07/2020. * II – B Factos não provados Não se provou que: i A A. foi devidamente informada do facto de a corticoterapia que fazia poder causar complicações pós-operatórias, designadamente problemas de cicatrização. ii. Posteriormente, foram os familiares informados, por um outro médico, de que a “anomalia” no funcionamento do rim ter-se-ia ficado a dever ao facto de o uréter correspondente haver sido seccionado durante a primeira intervenção cirúrgica – laparoscopia abdominal – no dia 3. iii. O corte do uréter e a perfuração do intestino delgado estavam na origem da condição gravíssima da doente, uma vez que a urina não estava a ser canalizada para a bexiga, mas sim para a cavidade retroperitoneal, o que fez com que a A. tivesse contraído uma sépsis, um derrame pleural bilateral e entrasse em coma. iv. Dois dias depois, a 11 de Novembro de 2010, verificou-se a necessidade de se proceder a uma nova intervenção cirúrgica para encontrar a causa de uma secreção que era expelida através de um dos cortes efetuados durante a primeira cirurgia, tendo-se detetado que se tratava de matéria fecal e que a doente também teria uma perfuração no intestino delgado. v. Esta perfuração do intestino resultou espontaneamente da necrose isquémica e não por ação de qualquer interferência cirúrgica, resultando exclusivamente da deficiente circulação ou mobilidade da doente, facto este comprovado pelo exame histológico. vi. A 2.ª R. solicitou a presença do colega urologista, Dr. EE, para estar presente nessa operação, mas este negou-se a estar presente e a cooperar com a sua especialidade, não efetuando a operação de urologia. vii. Da documentação clínica resulta que existia a confirmação da presença de conteúdo fecalóide, pelo que a Dra. CC, ora 2a R., iria levar a doente para o bloco operatório para uma "revisão abdominal". viii A A. quase perdeu a vida por lhe haverem seccionado o uréter durante a laparoscopia, na primeira intervenção. ix É aceite e recomendado pela comunidade científica nacional e internacional o uso de “stents” nas cirurgias que envolvam o manuseamento de ureteres, uma vez que já existiriam casos em que os ureteres são seccionados em cirurgias. x Os “stents” são um género de cateteres que são introduzidos nos ureteres, que endurecem os mesmos e que possibilitam mais facilmente o seu reconhecimento durante as cirurgias para evitar situações como esta. xii A 2.ª R. tinha de, no final da cirurgia, certificar-se da integridade dos mesmos, através de uma solução de contraste, o que não fez. xiii A secção dos ureteres quando é detetada no período intra-operatório pode ser corrigida no momento, sem que para o paciente advenha qualquer tipo de consequência, xiv. Não ocorreu qualquer seccionamento do uréter, nem perfuração do intestino por ação da R. CC. xv. Em consequência da isquémia ocorrida posteriormente houve perfuração espontânea do intestino delgado e do uréter, como o exame histológico feito ao intestino delgado revelou. xvi. Os sintomas que a A. apresentava evidenciavam esse possível diagnóstico, principalmente o baixo débito urinário, referenciado pelos enfermeiros nos seus diários. xvii. Com a sintomatologia da A., a R. deveria ter realizado exames complementares de diagnóstico para confirmar ou afastar a hipótese de lesão do uréter, mas não o fez. xviii. A R. desvalorizou as queixas da A. e escreveu nos diários clínicos informações que não correspondem à verdade. xix. A descoberta atempadamente de que havia seccionado o uréter esquerdo e perfurado o intestino delgado da A. permitiria à 2.ª R. a correção do corte do uréter esquerdo e a A. poderia ver retomada a função do seu sistema urinário. xx. Nestes casos as primeiras 48 a 72 horas são vitais. xxi. A partir desta altura, por cada 12 horas que passam o risco de uma septicémia e o risco de mortalidade do paciente aumentam exponencialmente. xxii. A 2.ª R. só se apercebeu do seu erro passados 6 dias e somente quando foi confrontada com as chamadas dos enfermeiros. xxiii. Só nessa altura, quando a A. estava a morrer, é que a R. solicitou os exames complementares de diagnóstico necessários. xxiv. Durante todo esse tempo, do dia 3 ao dia 9 de Novembro, a infeção proliferou no organismo da A.. xxv. Como o uréter estava seccionado e nada foi feito para corrigir esse corte, uma parte da urina drenava para a cavidade retroperitoneal (cavidade situada por detrás dos intestinos) e não para a bexiga e outra parte retornava ao rim (hidronefrose) devido ao processo inflamatório e infecioso que criara um obstáculo à normal fluência da urina. xxvi. A urina entretanto “depositada” irritou o diafragma e repassou para a parte pulmonar. xxvii. Tudo isto gerou uma sépsis e um derrame pleural bilateral – diagnosticado no dia 09 de Novembro de 2010, conforme relatório da TAC realizada nesse mesmo dia. xxviii. Passados 6 dias desde a seção do uréter, foi impossível efetuar a correção do mesmo, tendo sido a A. submetida a uma nefrostomia definitiva. xxix. A 2.ª R. perfurou o intestino delgado da A., daí o cheiro fétido que exalava. xxx. A 2.ª R. só no dia 11 de Novembro, depois de confrontada com os relatos dos enfermeiros que a alertavam para uma "ferida cirúrgica na região supra-púbica com saída de grande quantidade de líquido esverdeado com cheiro fétido", é que mandou retirar os "agrafos do terço médio/inferior da ferida cirúrgica supra-púbica e colocou um dreno". xxxi. Esse processo serviu para drenar um líquido amarelo-esverdeado com cheiro fecalóide (sugestivo de conteúdo entérico). xxxii. No dia 11 de Novembro, a A. foi finalmente observada pela R., após esta ter a confirmação laboratorial de que estava na presença de conteúdo fecalóide, pelo que levou a doente para o Bloco Operatório para uma revisão abdominal. xxxiii. Durante todo este período, a 2.ª R. nunca informou a A., nem os seus familiares, do que havia sucedido. xxxiv. Antes da intervenção cirúrgica de 3/11/2010, a A. não tinha qualquer problema de saúde relacionado com as lesões que sobrevieram a esta operação. xxxv. Aquando da visita dos seus familiares, perante este quadro, estes insistiram para que a médica assistente, Dr.ª CC, fosse contactada para poder avaliar a situação da doente. xxxvi. A resposta que lhes foi dada foi que a Sr.ª Dr.ª CC já teria visto a doente de manhã, na sua visita de rotina, e que não havia qualquer situação anormal. xxxvii. Foi-lhes, inclusivamente, referido que a Sr.ª Dr.ª CC teria escrito no seu relatório de visita desse dia, tal como nos anteriores «doente sem queixas à palpação». xxxviii. Tal não correspondia à verdade, pois a doente garantiu que a Sr.ª Dr.ª CC tinha efetivamente visitado o quarto, mas que minimizou a importância das queixas da doente, não tendo existido qualquer palpação, ao contrário do que constava do relatório. xxxix. A ecografia revelou que o dreno não estava devidamente colocado no uréter (a nefrostomia era provisória pois tinha sido efetuada de urgência), agendando para essa mesma noite, pelas 22 horas, a reparação da nefrostomia de modo a voltar a exercer a sua função e restabelecer a drenagem da urina, tendo desta forma a A, sido submetida a mais uma intervenção cirúrgica. xl. Foi dito aos familiares da A. que, caso esta situação não tivesse sido detetada e corrigida prontamente, poder-se-ia voltar à situação provocada pela primeira cirurgia. xli. Neste momento, a doente encontra-se em lenta recuperação, num estado de grande debilidade. xlii. Anualmente, a A. despenderá € 18.000,00 com encargos vitalícios resultantes de todas as intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos, consultas, exames clínicos, assistência médica e medicamentosa, prestadas nas suas unidades de saúde ou outros prestadores, decorrentes nomeadamente da reparação/substituição da nefrostomia feita à A.. xliii. O cheiro verificado era o normal para casos similares. xliv. Tanto na primeira, como na segunda intervenção cirúrgica, os médicos presentes, Dr. KK e Dr. DD, confirmaram que o uréter não foi seccionado. xlv. Se tivesse sido seccionado o uréter, teria de haver grande quantidade de urina no abdómen. xlvi. A integridade do uréter foi confirmada intra-operatoriamente. xlvii. Existia evidente tendência da A. para complicações vasculares e isquémias. xlviii. No pós-operatório foi verificada a integridade do ureter. xlix. O débito urinário é normal em doentes com a idade da A, no pós-operatório deste tipo de operações, respondendo facilmente aos diuréticos. *
III – Fundamentação de Direito Tratam os autos, como resulta do relato inicial, dum caso de responsabilidade médica: a A/recorrida vem pedir uma indemnização pelos danos decorrentes duma intervenção cirúrgica, a seu ver, mal executada (ou seja, em que houve erro médico). Estamos pois perante um caso de responsabilidade civil por danos causados no exercício da medicina, sendo que, para contestar a responsabilização/condenação que lhe foi imposta pelo acórdão recorrida, começa a 1.ª R./recorrente por colocar em crise as modificações que, no seguimento da impugnação da decisão de facto suscitada pela A. na sua apelação, foram introduzidas à decisão de facto pelo acórdão recorrido, após o que, no plano estritamente substantivo, contesta a verificação dos requisitos da responsabilidade civil que lhe é assacada – sendo estas as questões que constituem o objeto da revista. Começando pela questão das modificações introduzidas, pelo acórdão recorrido, na decisão de facto: Na sentença de 1.ª Instância, havia-se dado como provado que: Tanto na primeira, como na segunda intervenção cirúrgica, os médicos presentes, Dr. KK e Dr. DD, confirmaram que o uréter não foi seccionado (alínea XX). Se tivesse sido seccionado o uréter, teria de haver grande quantidade de urina no abdómen (alínea YY). A integridade do uréter foi confirmada intra-operatoriamente (alínea JJJ). Existia evidente tendência da A. para complicações vasculares e isquémias (alínea MMM). No pós-operatório foi verificada a integridade do uréter (alínea NNN). O débito urinário é normal em doentes com a idade da A., no pós-operatório deste tipo de operações, respondendo facilmente aos diuréticos (alínea OOO). Factos estes que, no seguimento da impugnação da decisão de facto suscitada pela A. na sua apelação, o acórdão recorrido, modificando a decisão de facto, considerou não provados. Após o que se entendeu, no acórdão recorrido, dar como provado (e “acrescentar”) que “durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 3 de novembro de 2010, a 2.ª R. seccionou o uréter esquerdo da A.”. Modificações e “acrescento” à decisão de facto que a 1.ª R./recorrente refuta, argumentando, em síntese, que: - a fundamentação, para tais modificações e “acrescento”, não ponderou toda a prova produzida, tendo desconsiderado a prova pericial produzida, as declarações de parte da R. CC e os testemunhos dos Dr.º EE, KK e DD; - se impunha que a prova produzida tivesse sido avaliada na sua globalidade, uma vez que se entende que só em situações de evidente e manifesto lapso da avaliação probatória se deve alterar a decisão fáctica levada a cabo por um tribunal que teve acesso a elementos produzidos em audiência aos quais a Relação, em rigor, não acede; - se impunha à Relação, o que não fez, fundamentar e “desconstruir” o iter de raciocínio inverso feito na 1ª Instância, fundamentando de forma consistente o raciocínio inverso; - estamos no domínio da livre apreciação da prova, mas não estamos no domínio do livre arbítrio, não podendo a Relação desconsiderar livremente o que entende e considerar meras subjetividades, sem fundamentar, como lhe seria especialmente exigível; - estamos perante matéria em que – pela sua complexidade técnico-científica e de que nem sequer os médicos apresentam uma via clara, inequívoca e segura de resposta à situação – não pode haver uma resposta de senso comum e a que possam ser aplicadas presunções judiciais, pois a decisão não se pode basear nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana, pelo que a Relação fez uma incorreta utilização do art. 351º do CC. e violou as normas legais aplicáveis ao emprego de presunções judiciais. - está o acórdão da Relação ferido de nulidade por não especificar os fundamentos de facto que justificam a decisão que passou a considerar como não provados os factos constantes das alíneas, XX), YY), JJJ), MMM), NNN) e OOO) da sentença recorrida, uma vez que é equivalente à falta de fundamentação a desconsideração de parte da prova produzida; - está o acórdão da Relação ferido da nulidade do art. 615.º/d)/2.ª parte do CPC quanto ao facto “acrescentado”, uma vez que tal facto havia sido dado como não provado na alínea xi) dos factos não provados da sentença da 1.ª Instância, alínea essa que não fazia parte da impugnação da decisão de facto deduzida pela A. na sua apelação. Argumentação sem razão, uma vez que as modificações e o “acrescento” à decisão de facto foram satisfatoriamente fundamentados no acórdão recorrido, não tendo sido cometida qualquer violação da lei do processo, desrespeitada a força probatória de qualquer meio de prova e cometida qualquer nulidade de sentença. Modificações e “acrescento” à decisão de facto que, embora incluam e digam respeito a várias alíneas, se referem (nalgumas alíneas, já se vê, em termos instrumentais) a um mesmo e essencial facto, ou seja, à questão de saber se, durante a 1.ª Intervenção cirúrgica, ocorrida em 03/11/2010, a 2.ª R seccionou ou não o uréter esquerdo da A.. E sobre este essencial facto o acórdão recorrido objetiva e exterioriza, de forma minimamente consistente, a convicção que formou, analisando criticamente as provas e especificando/explicitando as razões que levaram a decidir como decidiu. Efetivamente, consta o seguinte do acórdão recorrido: “(…) LL é neta da autora e médica de profissão. Visitou a avó nos cuidados intensivos do Hospital ... em 9 de novembro de 2010. Encontravam-se nesses cuidados dois médicos, um espanhol e outro português, e um deles (não se lembra qual) disse que o uréter da autora tinha sido seccionado. MM é genro da autora. Acompanhou frequentemente a mulher nas visitas à sogra. Sabe que em 9 de novembro de 2010 numa dessas visitas, alguém do hospital lhes disse que o uréter da autora tinha sido seccionado. Não se lembra quem lhes terá dito isso. A Dra. CC, depois de ter sido confrontada com este facto, admitiu ter seccionado o ureter, "mas que não tinha feito de propósito". NN é filha da autora. Normalmente, considerando os laços familiares que a ligam à recorrente e o seu interesse e envolvimento na causa, o seu depoimento deveria ser avaliado cum grano salis. Porém, neste caso, a testemunha mostrou uma serenidade e uma solidez que nos leva a concluir que falou com verdade. De resto, é a única pessoa que conhece em pormenor tudo o que aconteceu com a mãe durante o período de internamento e soube narrá-lo com apreciável objetividade (afora bem entendido as questões técnicas). Pois bem, esta testemunha relatou que o urologista EE lhe disse que tinha ocorrido um problema na 1.ª intervenção cirúrgica feita pela Dr. CC e que a técnica utilizada de se introduzir uma câmara no abdómen de um paciente para ampliar a zona a operar requeria muita perícia. No caso teria havido uma secção do uréter. O mesmo lhe foi dito por dois médicos nos cuidados intensivos (Drs. OO e PP). O Dr. DD, que só teve intervenção na segunda intervenção ao intestino da autora não sabe, como se viu, se o uréter estava ou não seccionado. Sabe sim que na l.ª cirurgia houve um obstáculo no uréter. "Na 2.a cirurgia nós temos todos uma compreensão de aperto no uréter na 1.ªa cirurgia. Esse aperto percebe-se a posteriori. O rim fica dilatado, porque a drenagem no rim ficou apertada"; "um angulamento é o suficiente para criar o problema urológico". O médico utiliza nesta altura uma comparação que não resistimos a reproduzir por extremamente expressiva: suponhamos uma casa bem arrumada com uns móveis aqui e outros bem distantes ali; agora (…) numa operação à vesícula e ao intestino, é preciso desarrumar todos esses órgãos e depois voltar a arrumá-los, sem estragar nada. Pois bem tudo isto deve ser transposto com realismo para o caso concreto e acrescentado com a consideração de que por detrás desses órgãos estão dois ureteres com menos de 5 mm de diâmetro cada, quase invisíveis, como disse o urologista, e que a operação é feita com uma máquina introduzida no abdómen, tornando mais difícil a identificação daqueles dois órgãos. Claro que a tese do angulamento é possível; é também possível a hipótese de uma fibrose ocorrida após o ato operatório ou ainda a hipótese de uma alteração térmica. Tudo isto é possível. Também o urologista, Dr. EE, numa primeira audição, avançou com a tese de que não sabe explicar a causa do obstáculo que surgiu no uréter e conduziu à nefrostomia, mas que "é possível ter havido uma secção do uréter". Justamente por esse obstáculo poder ter várias causas não podia ter dito aos familiares da autora que a causa era a secção do uréter da autora. Numa segunda audição, porém, confrontado com as imagens de fls. 994 e 995, o Dr. EE afirmou ter havido sem dúvida uma interrupção no uréter, melhor dizendo uma obstrução, que poderia ter sido provocada por secção, laqueação, repuxamento, cotovelo no ureter, não sabe dizer. Mais ainda: as imagens também dizem que não houve fistula nem extravaso, mas que pode ter havido secção sem extravaso, desde que o corte tivesse ficado fechado. Tudo isto é algo estranho. Obstrução é, mesmo no léxico da medicina, o entupimento que se forma nos vasos ou canais do corpo humano. Um vaso ou canal entupido não tem, de acordo com um sentido comum, solução de continuidade. Se está entupido pode em princípio ser desentupido. No caso vertente, o mesmo Dr. EE disse que não era tecnicamente aconselhável, antes constituiria uma prática muito arriscada, com perigo de vida para doente, tentar desobstruir o uréter. Disse mais: afirmou que se fosse com a sua mãe aconselharia o procedimento que adotou com a autora. Tal risco tinha a ver com a distância a que se encontravam as pontas do uréter a ligar. É altura para perguntar: perante todos estes elementos, deve concluir-se que estamos perante um non liquet quanto às causas de obstrução do uréter ou antes que, em face da manifesta dificuldade de prova, se pode com alguma segurança concluir que a probabilidade preponderante é a de a causa de interrupção do funcionamento normal do uréter ter sido a sua secção? Parece-nos que se deve responder afirmativamente ao segundo termo da alternativa. Se levarmos ademais em conta que na participação do sinistro à seguradora constante de fls. 74, o Hospital ... descreve o sinistro da seguinte maneira: "lesão no uréter esquerdo, após cirurgia efetuada - colecistectomia e ressecção anterior baixa recto-sigmodeia via laparoscópica", e que, nestes casos é normal que sobressaia um certo corporativismo, existente de resto no seio de todas as profissões que criam um espírito de corpo, então não temos dúvidas em admitir que existe uma maior probabilidade de ter acontecido uma secção do uréter do que uma causa diversa ou, dito de outra forma, que é mais razoável que tenha sido esta a causa do que a hipótese simétrica inversa. (…)” Temos, pois, que as modificações e o “acrescento” à decisão de facto – máxime, em relação ao facto essencial que estava em discussão – foram suficientemente fundamentados, tanto mais que o que se acaba de transcrever (exteriorizado a propósito do facto “acrescentado”) também constitui fundamentação/motivação suficiente para os factos/alíneas que foram eliminados dos factos provados. E é apenas este tipo de controlo, formal, que, a respeito da reapreciação da matéria de facto pela Relação, cabe ao STJ efetuar, ou seja, ao Supremo cabe escrutinar/controlar se foram violadas as normas de direito adjetivo relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto (se foi violado o que está preceituado nos arts. 640.º e 662.º do CPC), assim como escrutinar/controlar se o acórdão da Relação, no âmbito de tal apreciação, exterioriza, em termos suficientes, a respetiva análise crítica das provas (cfr. art. 607.º/4, ex vi 663.º/2 do CPC). Dito doutra forma, no escrutínio pelo Supremo do uso dos poderes de reapreciação da matéria de facto em 2.ª instância não cabe ou entra – e é isto que a R./recorrente quer e pretende – uma reapreciação, em “substância”, da matéria de facto, ou seja, o Supremo não vai escrutinar se o que foi dado como provado pela Relação foi ou não bem dado como provado, se o que foi dado como provado corresponde à exata apreciação da prova produzida, principalmente quando, como é o caso, foram produzidos meios de prova “livremente” apreciados. O que significa que não cabem ou podem ser invocadas, ao abrigo do “e rrado uso dos poderes de reapreciação da matéria de facto em 2.ª instância”, divergências relativamente ao julgamento feito pela Relação, agindo esta ao abrigo do princípio da livre apreciação de meios de prova, seja esta a prova testemunhal, documental ou pericial, atuação essa da Relação que, nos termos do art. 662.º/4 do CPC, é insindicável através do recurso de revista. É que a competência do Supremo, como é sabido, é dirigida à aplicação do direito aos factos fixados pelas instâncias, razão pela qual o recurso de revista tem como fundamento a violação da lei, substantiva ou processual (cfr. art. 674.º/1/a) e b) CPC), sendo o julgamento da matéria de facto pela Relação, em princípio, definitivo, o que exprime, repete-se, que foge ao controlo do e pelo Supremo uma 2.ª reapreciação das provas sujeitas à livre apreciação do julgador, como é/foi o caso da prova em que as instâncias se basearam para, na 1.ª Instância, não dar como provada a secção do uréter esquerdo da A. e para, agora, na Relação, diferentemente, dar como provada a secção do uréter esquerdo da A., durante a 1.ª Intervenção cirúrgica ocorrida em 03/11/2010. Efetivamente, cumpre acentuar, nenhum dos meios de prova produzidos, tendo em vista a demonstração (ou não) de tal facto essencial, é dotado de força probatória tarifada por lei, estando todos eles sujeitos à livre apreciação do tribunal (cfr. art. 396.º e 389.º do C. Civil e 489.º e 466.º/3 do CPC) – na prova pericial produzida não foi feito nenhum juízo técnico-científico subtraído à livre apreciação do julgador – e nenhum obstáculo processual existindo a que o Tribunal da Relação, no seu percurso decisório (de facto), pudesse lançar mão de presunções judiciais (cfr. art. 351.º do C. Civil), sendo certo que não foram efetuadas quaisquer presunções que possam ser reputadas de manifestamente ilógicas (e só estas, sendo as ilações/presunções admissíveis, são suscetíveis de controlo pelo Supremo). Havendo ainda que referir – a propósito de se ter “acrescentado” aos factos provados que “durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 3 de novembro de 2010, 2.ª R. seccionou o uréter esquerdo da A.” – que tal “acrescento” não constitui qualquer nulidade, designadamente, a referida no art. 615.º/1/d)/2.ª parte do CPC. É certo que a recorrente tem razão quando diz que o acórdão recorrido não podia ter procedido, “oficiosamente” a tal “acrescento”, invocando para tal, como foi o caso, o art. 5.º/2/a) e b) do CPC: estamos perante um facto, fora de qualquer dúvida, essencial – aliás, profusamente alegado e debatido ao longo dos autos – e não era caso para poder/dever ser invocado e aplicado tal preceito processual; e a recorrente também tem razão quando diz que tal “acrescento” pretensamente “oficioso” não se mostrava indispensável para evitar uma qualquer contradição entre vários pontos da factualidade provada. A falta de razão da recorrente reside no seguinte: Embora, segundo o novo NCPC, só os factos essenciais devam ser declarados como provados e não provados[1], a verdade é que continua a dar-se como provado e não provado tudo (ou quase tudo) o que as partes alegam e, não raras vezes, em duplicado e até em triplicado, o que, na hora de interpretar e de impugnar os factos, pode gerar e gera confusões e equívocos. Vem isto a propósito da A., na sua apelação, ter pedido que a matéria das alíneas v) e xiv) dos factos não provados da sentença da 1.ª Instância fosse revertida “(…) com a correspondente formulação positiva, ou seja, a esses pontos, concatenados com as restantes alterações do quadro probatório que se propugna, deveria ser dada a seguinte redação: v. A perfuração do intestino resultou por ação de interferência cirúrgica e não de qualquer necrose isquémica espontânea ou da deficiente circulação ou mobilidade da doente. xiv. A lesão do uetére e a perfuração do intestino resultaram da ação da R. CC[2] Ou seja, a A. pediu, muito claramente, que fosse introduzida à matéria de facto a modificação que o “acrescento” – que “durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 3 de novembro de 2010, a 2.ª R. seccionou o uréter esquerdo da A.” – contém, equivocando-se, é verdade, sobre a identificação de todas as alíneas (dos não provados) que deviam ser alteradas, não incluindo também, na matéria a alterar, a alínea xi) dos factos não provados da sentença da 1.ª Instância – em que se dava como não provado que a 2.ª R. não tivesse “utilizado a técnica mais adequada e procedido com cuidado, seccionando o uréter esquerdo e perfurando o intestino delgado da A.”. Todavia, era muito claro que a A. pretendia e pediu que fosse dado como provado o que consta do “acrescento”, pelo que, em vez de apenas se dizer, como fez o acórdão recorrido, que a matéria constante das alíneas v. e xiv. são um “nada processual” – não podendo ser dado como provado o seu contrário, na medida em que dum “nada” não há “coisa contrária” – devia ter sido considerado que o que a A. muito claramente pretendia (com a nova redação proposta para tais alíneas v. e xiv.) era impugnar (ou também impugnar) o que se havia dado como não provado na alínea xi) dos factos não provados da sentença da 1.ª Instância. Ora, é ponto, não foi isto que se disse, porém, seguindo-se outro caminho (invocando-se o já referido art. 5.º/2/a) e b) do CPC), foi isto que, na prática, o acórdão recorrido acabou por fazer, pelo que, correspondendo o “acrescento” introduzido ao que muito clara e inequivocamente havia sido suscitado e pedido pela A. (na sua apelação), não configura o “acrescento” qualquer nulidade, designadamente, a referida no art. 615.º/1/d)/2.ª parte do CPC. Improcede, pois, “in totum” o que a 1.ª R/recorrente invocou para colocar em crise as modificações e “acrescento” que, no seguimento da impugnação da decisão de facto suscitada pela A. na sua apelação, foram introduzidas à decisão de facto pelo acórdão recorrido, modificações e “acrescento” esses que, à luz do escrutínio que cabe ao Supremo – no qual não cabe o controlo da “substância” da reapreciação, efetuada pela Relação, das provas sujeitas a livre apreciação – não merecem qualquer censura. Passando à questão substantiva da verificação dos requisitos da responsabilidade civil: É hoje comum o entendimento de que entre o médico e o doente se celebra, em regra, um negócio jurídico bilateral (ou seja, um contrato), em que o primeiro se obriga a prestar, ao segundo, assistência médica, mediante retribuição. Subsistem, porém, áreas de exclusiva tutela aquiliana, designadamente, aquelas situações em que o médico se apresenta como um auxiliar do devedor da assistência médica, como é o caso de o doente celebrar um contrato com a clínica onde o profissional exerce a sua atividade, hipótese em que o médico apenas responderá delitualmente (o que também acontece quando o autor do facto ilícito for um dos membros de uma equipa mais vasta, atuando ao abrigo de um contrato celebrado com o médico que constitui o chefe da equipa). É exatamente esta a situação dos autos: como resulta dos factos (alíneas UUUU) a WWWW) dos factos provados deste acórdão) o contrato de prestação de serviços médicos foi celebrado com o 1.º R. (na qualidade de dono do denominado estabelecimento “Hospital ...”), sendo a 2.ª R., médica cirurgiã, a pessoa/médico que o 1.º R. “utilizou” para o cumprimento da prestação de serviços médicos a que se obrigou pelo contrato celebrado com a A.. Temos, pois, que, em relação ao 1.º R., a responsabilidade será contratual e, em relação à 2.ª R., será extracontratual, distinção sem grande relevo (no caso, sem qualquer relevo) atenta a proximidade, no campo da responsabilidade médica, entre a responsabilidade contratual e extracontratual. Efetivamente, quer se esteja perante responsabilidade contratual, quer se esteja perante responsabilidade extracontratual, o conteúdo da prestação do médico é bastante idêntico, obrigando-se sempre o médico a empregar os seus conhecimentos, técnicas e instrumentos disponíveis para a cura, tratamento, melhoria do estado de saúde, diminuição do sofrimento ou prolongamento da vida do doente. Existindo ao lado de tal obrigação principal múltiplos deveres – designados como secundários de conduta ou deveres acessórios de conduta, na responsabilidade contratual; e como deveres de prevenção do perigo, na responsabilidade extracontratual – que também concorrem, quer positiva quer negativamente, para a obtenção da finalidade da prestação do médico, nomeadamente para evitar danos na pessoa ou no património do doente, no decurso da realização da prestação do médico. Ou seja, ao lado da obrigação principal – de curar, de tratar, de minorar o sofrimento, de aumentar a expetativa de vida – existe, na prestação de serviços médicos, a obrigação de não causar danos noutros bens pessoais ou patrimoniais do doente, diferentes daquele que constitui o objeto da obrigação principal: o médico assume uma obrigação principal de implementar todos os mecanismos que a ciência médica disponibiliza, para aproveitar as possibilidades/chances que o doente apresenta de alcançar a finalidade pretendida e, ao mesmo tempo, uma obrigação de proteção de se abster de qualquer ato (positivo ou negativo) que diminua ou elimine essas possibilidades. E se é certo que, a responsabilidade contratual, no contrato de prestação de serviços médicos, decorre do incumprimento de alguma das obrigações que emergem do contrato que foi celebrado com o doente, sendo que a relação contratual, como relação obrigacional complexa, compreende/gera não só deveres principais, mas também múltiplos deveres laterais ou acessórios de conduta, com fundamento nas cláusulas contratuais, em normas legais ou no princípio da boa fé, o certo é também que, na responsabilidade extracontratual – que se traduz-se na violação dum direito absoluto ou na violação de uma norma destinada a proteger interesses do doente – o programa prestacional do médico não é diferente, uma vez que em ambas o médico se compromete a empregar os seus esforços, a utilizar o seu saber e as técnicas que a ciência coloca à sua disposição, respeitando as leges artis, em ordem a alcançar a recuperação da saúde do doente. Daí que, tradicionalmente, a sua obrigação seja chamada/qualificada como uma “obrigação de meios”: diz-se que, ainda que o médico empregue o cuidado e competência exigíveis na realização da sua prestação, o resultado tem sempre alguma incerteza – pela intervenção de vários fatores (singularidade de cada paciente, particularidade das circunstâncias em que a doença evoluiu) e de alguma carga de aleatoriedade – pelo que a obrigação assumida deverá ser qualificada como uma obrigação geral de diligência, cuidado, prudência (que, tradicionalmente, se designa como “obrigação de meios”[3]), o que leva a que hoje também se contraponha[4] que, se o médico não é “devedor” da cura do doente, deve adotar um comportamento diligente, técnica e cientificamente correto, orientado para a satisfação daquele interesse final, transmutando-se nesta medida a sua obrigação numa obrigação de resultado e do que se designa como o resultado imediato (diferente do resultado/interesse final de cura): o médico é responsável, em termos de resultado imediato, pelo aproveitamento das reais possibilidades que o doente apresenta de alcançar o resultado mediato/final e tal aproveitamento verifica-se mediante a adoção dum comportamento atento, cuidado e conforme às leges artis. É, pois, enorme a proximidade entre a ilicitude contratual e a ilicitude extracontratual nos casos de responsabilidade médica – o mesmo acontecendo, aliás, também com o juízo de culpa – na medida em que não é fácil distinguir o interesse contratual do doente/credor do interesse geral de não sofrer danos, na sua pessoa ou património, decorrentes de atos culposos de terceiros. Efetivamente – como sucede no caso dos autos – o que com frequência acontece (nos casos em que se discute a responsabilidade médica) é que o médico realiza a prestação assumida, mas fá-lo de forma deficiente, já que, em virtude de empregar um menor grau de cuidado ou de não implementar todo o quadro de conhecimentos disponíveis, provoca danos na pessoa do doente e indiretamente no seu património. Dado que a atividade médica se debruça sobre o corpo humano, os direitos subjetivos absolutos, em particular o direito à vida, à integridade física e psíquica estão especialmente expostos à lesão, por parte do profissional de saúde, pelo que o comportamento lesivo de um médico funda, em princípio e simultaneamente, uma responsabilidade de natureza contratual e extracontratual, existindo uma unidade da ilicitude na atividade médica (o padrão de comportamento exigível incorpora-se do mesmo modo no vínculo contratual e no âmbito aquiliano). Tudo isto para poder dizer, analisando toda a factualidade dada como provada e não provada, que a ilicitude suscetível de gerar responsabilidade médica se circunscreve e decorre, no caso, “tão só” do corte do uréter esquerdo da A. durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 3 de novembro de 2010. A prestação assumida – a intervenção cirúrgica (laparoscopia) para remoção de adenocarcinoma do reto e para colecistectomia por colecistite crónica litiásica, ou seja, para retirar a vesícula por inflamação crónica da mesma por cálculos – foi realizada e nada há nos factos dados como provados que permita relacionar/associar as complicações (aqui se incluindo a perfuração do intestino delgado) ocorridas no pós-operatório à violação de qualquer cuidado, atenção ou prudência da 2.ª R. durante a intervenção cirúrgica ocorrida em 3 de novembro de 2010. Está aliás dado como provado em várias alíneas (L), P), S), T) e V) a GG) dos factos provados deste acórdão) que a situação clínica da A. era compatível com as cirurgias efetuadas, embora a evolução, atenta a sua idade (81 anos) e antecedentes pessoais, fosse lenta. O “problema” está/esteve no corte do uréter esquerdo, que, como foi dado como provado no acórdão recorrido, ocorreu durante a intervenção cirúrgica inicial, levada a cabo pela 2.ª R.. Os RR. nunca contestaram que, em 09/11/2010 (6 dias após a cirurgia inicial), submetida a A. a um angiotac, foi identificada uma situação anómala com o funcionamento dum rim, o que exigiu uma cirurgia de urgência e a realização duma nefrostomia (colocação dum dreno, para que a urina fosse expelida para o exterior, por um saquinho), nefrostomia que entretanto se veio a tornar definitiva para a A., nefrostomia que teve que ser corrigida (alíneas KKK) e DDDD) dos factos provados deste acórdão), que precisa de “reparações” de 2 e em 2 meses e que propicia (e propiciou, como também consta dos factos) a contração de infeções urinárias. Como é sabido e já se referiu, a prática da medicina está impregnada de laivos de incerteza e de aleatoriedade, havendo uma multiplicidade e complexidade de fatores a atuar ao lado do erro médico e que também podem assumir a qualidade de causa do dano verificado. Daí as dificuldades que o requisito do nexo causal normalmente coloca em sede de efetivação da responsabilidade médica, dificuldade agravada por se estar normalmente perante atos omissivos (do médico), em que confluem e intervêm outras causas no processo causal, que acabam por “penalizar” o ónus da prova do requisito do nexo causal (a invocação de uma multiplicidade de fatores distintos do ato imputável, passíveis de gerar o dano cuja indemnização é reclamada, leva, não raras vezes, a que se considere não demonstrado o nexo causal). Observação que se faz apenas para salientar que não é este o caso dos autos, uma vez que se provou o ato – corte do uréter esquerdo – que veio a causar o dano (nefrostomia definitiva), ato esse que (como aliás resulta da circunstância dos RR. nunca haverem aceite o seccionamento de tal uréter) constituiu um defeito (e um “dano concomitante”) da prestação médica contratada com a 1.ª R. e realizada pela 2.ª R.. Ato este que não pode deixar de ser subjetivamente imputado à 2.ª R. (respondendo a 1.ª R., nos termos do art. 800.º/1 do C. Civil). Os comportamentos médicos geradores de responsabilidade médica são, em regra, imputáveis a título de mera culpa ou negligência e não a título de dolo, aparecendo assim a culpa como a omissão da diligência e competência exigíveis, segundo as circunstâncias do tráfico. Há assim culpa quando o médico, na sua atuação, se desvia do modelo de comportamento – em termos de prudência, competência e atenção – que ele podia e devia ter adotado, desvio que pode manifestar-se por 3 formas: - negligência, entendida como uma omissão dos cuidados devidos; - imprudência, que se carateriza pela adoção imponderada de condutas arriscadas e inadequadas; - imperícia, que se carateriza pela ausência dos saberes teóricos, da capacidade técnica e da destreza prática adequada ao ofício que profissionalmente exerce. Modelo/padrão a empregar para reconhecer o caráter desvalioso do comportamento adotado – seguindo o critério do art. 487.º/2 do C. Civil, segundo o qual a culpa é avaliada pela “diligência do bom pai de família, em face das circunstâncias do caso” – que é o do bom profissional da mesma categoria (no caso, um médico-cirurgião), a atuar perante uma facti-species com os contornos daquele em que o concreto médico atuou (a maior ou menor urgência da intervenção, o grau de risco da intervenção, a quantidade e qualidade dos utensílios e maquinismos disponíveis, a possibilidade de cooperação de outros profissionais). Pelo que, analisando os factos – de que ressalta que as leges artis não impunham sequer quaisquer técnicas/comportamentos que fizessem sobressair os uréteres durante a cirurgia/laparoscopia (cfr. alíneas XX) e YY) dos factos provados) – só por imperícia será explicável o sucedido, sendo nesta medida a 2.ª R. merecedora de um juízo de reprovação. Ato – corte/secção do uréter esquerdo da A. – que veio a causar nefrostomia definitiva à A., ou seja, que foi causa adequada dos vários danos peticionados pela A.. Efetivamente, uma vez que a responsabilidade (contratual ou extracontratual) do médico é uma responsabilidade por factos ilícitos, vale a formulação negativa da causalidade adequada, segundo a qual “o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto”[5]. Ou seja, estando provado que o corte/secção do uréter esquerdo foi condição da nefrotomia definitiva (dano), cabia aos RR. a prova de que tal condição é inidónea para a determinar – e que a mesmo foi uma consequência extraordinária de tal condição – o que não fizeram. Temos, pois, que a 2.ª R., através de uma ação (em que se desviou do padrão de comportamento diligente e competente, a que, como profissional da área, deve obedecer), provocou uma lesão num direito subjetivo absoluto da A., o que faz nascer na esfera jurídica das 1.ª e 2.ª RR. a obrigação de indemnizar (arts. 798.º e 483.º do C. Civil, respetivamente), o mesmo é dizer, a obrigação de eliminar as consequências negativas derivadas de tal comportamento, reconstruindo a situação que hipoteticamente, na falta do referido comportamento, existiria (cfr. 562.º do C. Civil). O que nos faz voltar ao nexo causal que, para além de ser um dos requisitos da responsabilidade civil, é também o instrumento de medida do quantum reparatório devido: serve para imputar os danos verificados ao ato praticado e para mensurar os danos a ressarcir. Efetivamente, como se dispõe no art. 563.º do C. Civil, a “obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”, obrigação de indemnizar que, nos temos do art. 564.º do C. Civil, compreende quer os prejuízos causados, quer os danos futuros, desde que sejam previsíveis. Assim, desde que conexionados com a referida ação da 2.ª R. que lesionou o direito absoluto da A. e lhe causou a nefrostomia, constituem, no caso (e tendo presente o que a A. pediu e o que lhe foi concedido no acórdão recorrido), danos indemnizáveis: - os danos emergentes traduzidos nas despesas relativas aos tratamentos (e medicamentos), passados e futuros, a que a A. teve e terá que se submeter; - os danos morais puros – dores físicas e sofrimentos morais: amarguras, tristeza, perturbação, desgosto, ansiedade derivados da lesão – na medida em que revistam uma gravidade que os torne merecedores da tutela jurídica (art. 496.º do C. Civil); - as lesões causadas à integridade física e psíquica da A. (ao direito ao corpo e à saúde da A.) que, não sendo acompanhadas de repercussões patrimoniais de qualquer natureza, também dão lugar a danos não patrimoniais e a indemnizações a tal título. Dito isto, Começando pelos danos emergentes traduzidos nas despesas relativas aos tratamentos, medicamentos (e transportes), passados e futuros, a que a A. teve e terá que se submeter: Todos os gastos da A. com tratamentos e medicamentos (e transportes) decorrentes da ação ilícita da 2.ª R. constituem danos indemnizáveis, na medida em que, como é evidente, não os teria tido se não tivesse ocorrido tal ação ilícita da 2.ª R.. Só que, como também é evidente, para estarmos perante danos que, neste contexto, sejam indemnizáveis, terá que resultar dos factos dados como provados que os concretos gastos invocados foram causados e são objetivamente imputáveis à ação ilícita. O que, claramente, não resulta. A propósito das faturas mandadas anular, o acórdão recorrido considerou que “dado o não cumprimento do contrato de prestação de serviços médicos do Hospital ... as mesmas não são devidas”, acrescentado que “não é possível, nem a nosso ver justificável, tentar distinguir os serviços que se relacionam com o chamado "erro médico" e os restantes.”. Com todo o respeito, não pode ser.
Sendo apenas com relação ao corte do uréter esquerdo da A. durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 3 de novembro de 2010, que toda e qualquer retribuição/faturação não será devida, pelo que será apenas em relação a tal faturação – que, a partir do que sucintamente foi feito constar dos factos provados (alínea BBBBB)), não é possível destrinçar– que a concedida anulação de faturação se poderá manter. E idêntico raciocínio tem que ser feito em relação aos € 61.482,45 pedidos e integralmente concedidos, no acórdão recorrido, a título de danos patrimoniais pretéritos. Também aqui os factos dados como provados (alínea SSSS) dos factos provados deste acórdão) não elucidam minimamente sobre e a que dizem respeito tais despesas e, principalmente, que tenham sido despesas decorrentes e causadas pela ação ilícita da 2.ª R.. Extrai-se da consulta dos autos que tal montante ficou provado por acordo das partes no início da audiência, mas, não estando sequer juntas aos autos as faturas que dizem respeito ao montante de € 61.216,61 de tratamentos médicos (montante que é a maior parcela do que consta da referida alínea SSSS)), até se poderá colocar a hipótese de tal montante dizer respeito às mesmas faturas que, antes, se pediu que fossem dadas sem efeito[6]. Trata-se de hipótese – seja verdadeira ou não – que não é aqui e agora relevante[7], uma vez que o que releva é que apenas as despesas relacionadas (e decorrentes) com o corte do uréter esquerdo da A. durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 3 de novembro de 2010, constituem danos indemnizáveis, pelo que, sendo inquestionável que houve despesas/danos, ignorando-se o seu valor exato, terá tal valor que ser liquidado em incidente de liquidação, nos termos e ao abrigo dos art. 609.º/2 e 358.º e ss do CPC. Subsistirá pois intocada, em termos de indemnização por danos patrimoniais, apenas a condenação em incidente de liquidação constante do ponto ii) do acórdão recorrido e respeitante aos gastos com tratamentos futuros (que, neste momento, tendo a A. entretanto falecido, já nem serão futuros). Passando aos danos não patrimoniais: O Acórdão recorrido atribuiu à A/recorrida, a título de compensação pelos danos não patrimoniais, o montante indemnizatório de € 52.500,00 (€ 30.000,00 de danos morais puros; € 10.000,00 pelo chamado dano estético; e € 12.500,00 pelo dano biológico na sua vertente não patrimonial). A R/recorrente entende que, a haver responsabilidade civil (o que concede como hipótese de raciocínio), os danos não patrimoniais em causa não devem ser compensados com mais do que € 17.500,00. Como é sabido e resulta do art. 496.º/1 do C. Civil, são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito; sendo o montante da indemnização “fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º” (cfr. art. 496.º/4 do C. Civil), ou seja, o montante de indemnização é fixado equitativamente, atendendo ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias que o caso justifique (art. 494º do C. Civil). Assim, serão a tal título indemnizáveis as dores físicas e sofrimentos morais (amarguras, tristeza, perturbação, desgosto, ansiedade derivados da lesão), os complexos de ordem estética, as lesões causadas à integridade física e psíquica da A. (dano biológico) que, sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde e o bem-estar) que não integram o património do lesado, apenas podem ser ressarcidos com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização, razão pela qual não estamos aqui perante uma verdadeira indemnização, mas sim perante uma compensação, que terá como finalidade primacial a satisfação da A. pelo sofrimento causado pelo “erro médico” sofrido (ou seja, a indemnização por danos não patrimoniais não visa reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento, o que é impossível, visando sim atenuar, minorar ou compensar de alguma forma a A. pelo dano sofrido, atribuindo-se-lhe utilidades que lhe irão/iriam permitir obter alguma compensação pelas dores físicas ou morais sofridas, para além de também se reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta das RR.). Temos pois que as consequências da “negligência médica” referida – de que a nefrostomia definitiva, foi o desfecho final – revestem a gravidade que justifica o seu ressarcimento, a título de danos não patrimoniais. A questão está apenas no quantum indemnizatório / compensatório a atribuir-lhe. E, respondendo-lhe, afirmamos, antecipando a conclusão, que se nos afigura ajustado e equilibrado (cfr. art. 496.º/1 e 4 e 494.º, ambos do CC) compensar com € 40.000,00 a globalidade dos danos não patrimoniais sofridos pela A., ou seja, todas as dores, receios e angústias (passados e futuros), cirurgia, hospitalizações, internamentos e tratamentos (todo o quantum doloris considerado de grau 4/7), toda a espécie de limitações e sequelas (todo o dano estético considerado de grau 4/7), todo o dano biológico, na vertente não patrimonial, que o A., com 81 anos à data do evento, sofreu; e que os factos deste acórdão detalham e de que, aqui, se respiga e salienta em termos de “gravidade” merecedora da tutela do direito (cfr. 496.º/1) o seguinte: - No dia 09/11/2010, os familiares da A. foram informados de que, depois de submetida a um angiotac, fora identificada uma situação "anómala" com o funcionamento de um rim; - Durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 03/11/2010, a 2.ª R. havia seccionado o uréter esquerdo da A.; - A "anomalia" no funcionamento do rim exigiu a pronta intervenção de um urologista do Hospital ... - Senhor Dr. EE - que, através de uma cirurgia de urgência, realizou uma nefrostomia, ou seja, colocou um dreno para que a urina pudesse ser expelida para o exterior, para um "saquinho", evitando que ficasse depositada na cavidade abdominal; - Depois desta segunda intervenção, a doente foi transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos, e a médica responsável, Dra. CC, informou os familiares de que a condição da doente era muito grave, sendo o prognóstico reservado, «aconselhando-os a prepararem-se para o pior»; - A A. esteve na UCIP (Unidade de Cuidados Intensivos) até dia 26.11.2010; - Todos os dias a A. foi submetida aos necessários e adequados exames complementares de diagnóstico; - O Dr. EE pediu a realização de uma ecografia abdominal à doente. - Na sequência da ecografia, que revelou a necessidade de ajustar o dreno, o Dr. EE procedeu à recolocação do dreno na posição correta, situação que se tratou de simples acto clínico sem complicação de maior. - No dia 16 de Dezembro de 2010, a doente teve alta; - A doente, enquanto em casa, contou com a assistência domiciliária do pessoal de enfermagem da extensão das ... do Centro de Saúde ... e o apoio diário de pessoal qualificado na sua higiene pessoal, bem como com a visita do seu médico assistente do SNS, o Senhor Dr. GG; - No dia 4 de Janeiro de 2011, porque a A. apareceu com temperaturas elevadas, da ordem dos 39°, os seus familiares levaram-na ao serviço de urgência do Hospital ..., onde ficou, nessa noite, no Serviço de Observações, tendo, no dia seguinte, sido internada, no piso 6, com o diagnóstico de infecção urinária; - A doente teve alta no dia 14 de Janeiro de 2011; - No dia 31 de Março de 2011 a A. dirigiu-se ao Hospital ..., apresentando mal-estar geral e uma grande debilidade. - Depois de realizados vários exames, entre eles uma ecografia e análises ao sangue, foi-lhe diagnosticada, mais uma vez, uma infeção urinária; - Após ter sido medicada com antibiótico por via endovenosa, foi-lhe dada alta, tendo sido prescrito um outro antibiótico a tomar por via oral durante oito dias; - No dia 4 de Abril de 2011, os familiares da doente contactaram telefonicamente o Sr. Dr. EE, para saber se a substituição do cateter da nefrostomia, agendada para dia 5 se mantinha, dadas as condições da doente, e também porque já eram conhecidos os resultados das análises de urina bacteriana realizadas no dia 31, em que se verificou a presença de mais de 4 bactérias; - Dadas as circunstâncias, o Sr. Dr. EE achou por bem adiar esta intervenção por uma semana, para evitar a proliferação de bactérias; - Durante a tarde do dia 4 de Abril até à manhã do dia 5, a nefrostomia deixou de drenar completamente, pelo que, dada a gravidade da situação, a A. dirigiu-se ao serviço de urgência do Hospital ...; - O Dr. HH resolveu pedir exames e análises à doente, entre eles uma ecografia, onde se verificou que havia um pequeno desvio do cateter da nefrostomia. - Dirigiram-se ao piso de cirurgia, onde esperaram pela chegada do urologista, Sr. Dr. EE, que de imediato procedeu à intervenção de substituição do cateter e, passado algum tempo de recobro, a doente teve alta; - No dia 6 de Abril de 2011, estando a doente ainda num estado de grande debilidade física, foi verificado pelos seus familiares que o cateter não estava a drenar, entraram em contacto com o Sr. Dr. EE, que de imediato contactou o seu colega urologista Sr. Dr. II, que se encontrava a dar consultas no Hospital ..., para proceder a uma lavagem do cateter; - A A. dirigiu-se então ao Hospital ..., onde foi efetuado esse procedimento; - A A. tem de tem de ser submetida, de 2 em 2 meses, a uma reparação da nefrostomia através de um procedimento de curta duração e com aplicação de anestesia local; - Neste momento, a A. tem que continuar com a nefrostomia (a urina é drenada através de um cateter para um saco de contenção exterior que é colado nas costas da paciente), com a consequente perda de autonomia e de liberdade de movimentação para toda a vida; - A A. sofreu um desgaste psicológico, moral e físico com esta situação, que ainda não se deixou de fazer sentir e que perdurará, avaliando-se esse sofrimento num grau de 4 numa escala de sete; - A nefrostomia a que a A. foi sujeita é definitiva, bem como as reparações cirúrgicas de 2 em 2 meses e a vulnerabilidade que adquiriu de contrair infeções urinárias; - Após a cirurgia da nefrostomia, a A. sentiu-se diferente e só com o passar de tempo se foi adaptando; - A nefrostomia gera uma série de alterações de ordem física e estética, avaliadas num grau 4 numa escala de sete, que prejudica o convívio social e até familiar. - Essas condicionantes verificam-se ao nível da higiene em geral e da higiene da própria estomia e do material colector, e ao nível da alimentação, pois a A. tem de seguir uma rigorosa dieta alimentar própria. - Verificam-se também ao nível do vestuário, pois para poder usar o material colector a A. tem de usar roupas largas. - A A. está igualmente condicionada durante as suas viagens e está onerada com as despesas com o material colector, encontrando-se completamente dependente de terceiros para a substituição desse material. - A A., vivia a sua vida de uma forma independente e até ajudava a cuidar dos seus netos; - A A. tornou-se uma pessoa mais triste; - A A. não enfermava de qualquer limitação física ou mental e era completamente independente; - A A. era uma pessoa alegre, afável, disponível, lutadora, e era muita amiga dos seus filhos e dos seus netos; - Em consequência das lesões que sofreu, a A. ficou com sequelas que a incapacitam para as suas tarefas quotidianas, tendo ficado dependente da ajuda de uma terceira pessoa, principalmente para a higienização e mudança dos sacos colectores da urina, apresentando um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 15 pontos; - A A. nasceu no dia .../.../1929 e faleceu no dia 21/07/2020. Procedem assim em parte as conclusões 48.º e ss. da revista (respeitantes à verificação dos requisitos da responsabilidade civil e ao cálculo da indemnização). *
IV - Decisão Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a revista e, consequentemente, Mantém-se a condenação e absolvição constantes das alíneas ii) e iv) do segmento decisório do acórdão recorrido; Revoga-se o acórdão recorrido quanto ao que consta dos segmentos decisórios constante das alíneas i) e iii), que se substituem pela: “i) Condenação do 1.º R. a anular, por não devidas, as faturas elencadas em BBBBB), na parte em que as mesmas digam respeito a serviços por si prestados relacionados e decorrentes do corte do uréter esquerdo da A. durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 3 de novembro de 2010; iii) Condenação das RR. a pagar, em solidariedade, à A. a quantia de € 40.000,00 (por danos não patrimoniais), respondendo as seguradoras dentro das forças das apólices, conforme alínea anterior; e condenação das RR. a pagar, solidariamente, à A. as quantias por esta gastas com despesas de farmácia, transportes e tratamentos médicos, relacionadas e decorrentes do corte do uréter esquerdo da A. durante a 1.ª intervenção cirúrgica, ocorrida em 3 de novembro de 2010, condenação esta no montante que se vier a apurar em incidente de liquidação, respondendo as seguradoras dentro das forças das apólices, conforme alínea anterior.” * Custas, na 1.ª e 2.ª Instância, a cargo de A. e RR., na proporção de 4/5 e 1/5; e aqui, da revista, em partes iguais por A. e RR. * Lisboa, 12/01/2022
António Barateiro Martins (Relator) Luís Espírito Santo Ana Paula Boularot
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
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[3] Sem prejuízo de se reconhecer que há um crescente número de áreas com uma menor influência de fatores não controlados pelo profissional, em que a obrigação do médico é considerada uma obrigação de resultado, ou seja, sempre que as regras a observar e os procedimentos a seguir, sejam dotados do elevado grau de certeza que carateriza o saber das ciências exatas, estar-se-á perante uma obrigação de resultado. |