Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
16670/17.8T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ATIVIDADE SAZONAL
REMISSÃO ABDICATIVA
Data do Acordão: 11/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: DEFERIDA PARCIALMENTE A RECLAMAÇÃO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- A existência de uma declaração de voto de vencido em um Acórdão do Tribunal da Relação quanto à decisão impede que se possa falar em dupla conformidade e permite o recurso de revista que não está circunscrito à questão expressamente invocada nessa declaração de voto.

II- Um pedido de indemnização pela cessação ilícita de uma relação laboral com uma duração identificada no pedido abrange as consequências de vários despedimentos ilícitos respeitantes a esse período.

III- A atividade sazonal que permite a contratação a termo tem que ser uma necessidade temporária da empresa e só justifica a contratação a termo pelo período estritamente necessário à satisfação dessa necessidade temporária.

IV- A interpretação de uma remissão abdicativa, global e gratuita, de uma ex-trabalhadora que não se provou que soubesse que tinha sido alvo de vários despedimentos ilícitos não pode deixar de ter em conta o sentido que o destinatário da declaração razoavelmente podia confiar e qual o sentido menos gravoso para o declarante.

V- As compensações pela caducidade dos contratos a termo, quando, na realidade, e face ao motivo invocado que não era justificação bastante do termo, o que ocorreu foram despedimentos ilícitos não devem ser deduzidas no salário de tramitação a que a trabalhadora tem direito na sequência da declaração da ilicitude dos despedimentos.

Decisão Texto Integral:


Processo nº 16670/17.8T8PRT.P1.S1

Acordam em Conferência na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

Douroazul – Sociedade Marítimo-Turística, S.A., veio reclamar para a Conferência invocando várias nulidades do Acórdão proferido nestes autos ao abrigo do disposto nos artigos 615.º, 666.º. 685.º do CPC e do artigo 1.º do CPT.

Para o efeito

a) Identifica omissões de pronúncia relativamente aos descontos nos salários de tramitação em caso de despedimento considerado ilícito.
Defende, com efeito, que pagou à Autora as quantias referidas no facto n.º 32 no montante global de € 2.313,21 a título de compensação pela cessação do contrato de trabalho e requereu que a referida quantia seja descontada nos salários de tramitação.
A este propósito invoca também o enriquecimento sem causa, por ter desaparecido a causa da prestação.
Defende, igualmente, que, “tendooalegadodespedimentodaAutoraquanto aoúltimocontrato detrabalho ocorrido em 23 de fevereiro de 2017, e a presente ação sido intentada em 31 de julho de 2017, então sempre deveriam ser descontados aos salários de tramitação que a ora Reclamante foi condenada a pagar, a retribuição desta última referente ao período entre 23 de fevereiro e 1 de julho de 2017”.
b) Invoca nulidade que resultaria em condenação em objeto ou quantidade superior ao pedido.
Com efeito, diz-se na Reclamação que consta da petição inicial o pedido da Autora para o caso de vir a optar pela indemnização em substituição da reintegração num cenário de despedimento ilícito: ou seja, que fosse aqui Reclamante “condenada a reintegrar a Autora no seu posto de trabalho no mesmo estabelecimento da empresa daquela, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, ou, caso a Autora opte até ao termo da discussão em audiência final de julgamento por uma indemnização calculada nos termos do artigo 391.º do CT, num montante de 10.080,00€, relativa ao período de 30/06/2009 até Fevereiro de 2017, correspondente a quarenta e cinco dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade da Autora ao serviço da Ré”.
A este propósito afirma-se na Reclamação:
“Fica assim latente que a Autora integrou o seu pedido e delimitou a sua causa de pedir no facto de ter considerado que, entre a Autora e a Reclamante, existiu um único contrato de trabalho sem termo celebrado em 2009 e que durou até ao ano de 2017, tendo em consequência peticionado o pagamento de uma indemnização que atendesse à antiguidade da trabalhadora, desde o ano de 2009 até fevereiro de 2017. No entanto, e contraditoriamente com o pedido formulado, entendeu este Tribunal condenar a Reclamante a pagar, a título de indemnização pelos alegados despedimentos ilícitos ocorridos, um total de 6 meses de retribuição-base e diuturnidades relativamente a dois contratos de trabalho, celebrados em 2015 e em 2016, sendo certo que falta ainda somar a estes montantes o valor indemnizatório relativo ao último contrato de trabalho celebrado no ano de 2017, cuja fixação compete ao Tribunal da Relação do Porto, mas que se incluirá no montante total a pagar pela Reclamante à Autora”. Percebe-se, assim, que só pela celebração de dois contratos de trabalho (nos anos de 2015 e 2016) a Reclamante é condenada a pagar o montante de 6 meses de retribuição-base, sem que, por referência a esse período, tal tenha alguma vez sido requerido ou peticionado pela Autora nestes autos”.
Haveria, assim, uma nulidade por condenação em objeto ou quantidade diferente do pedido (artigo 615.º, n.º 1 alínea e).
c) Defende que existe obscuridade ou ininteligibilidade da decisão. Com efeito, ao concluir pela existência de vários contratos a termo quando a propósito da inadmissibilidade da questão prévia suscitada pela aqui Reclamante, da existência de uma dupla conforme parcial, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça o seguinte: “no caso vertente as instâncias convergiram na decisão das exceções perentórias, de prescrição e remissão abdicativa, invocadas pela Ré recorrida na sua contestação, julgando-as improcedentes a 1ª instância e confirmando a decisão a Relação”, afirmando seguidamente que “tal decisão, no entanto, partiu do pressuposto da existência de diversos e sucessivos contratos de trabalho a termo certo celebrados entre aspartes,que as instâncias consideraram válidos, enquanto a A. sempre sustentou, como sustenta na presente revista, a invalidade do termo resolutivo aposto nesses contratos, por inexistência do motivo justificativo invocado” (negritos e sublinhados no original da Reclamação).
O Tribunal entraria, assim, em contradição: “a decisão aqui reclamada “concede a revista”, pelo que o intérprete da mesma seria levado, por força de raciocínio lógico e inevitável, a concluir ter o Tribunal assim entendido, ou seja, estar-se perante um único contrato de trabalho”, quando, a final, considera que existiram vários.
E haveria, igualmente, contradição entre os fundamentos e a decisão.
d) Excesso de pronúncia quanto à remissão abdicativa.
Tal excesso de pronúncia existiria face ao facto 30 e também porquanto “nãoconstituimatériaalegadapelaAutoranosseusarticuladosumeventual e hipotético desconhecimento seu quanto ao teor das declarações de renúncia e remissão abdicativas que foram poer si emitidas”. Acresce que não foram invocados e provados quaisquer vícios do consentimento.
e) Contradição e/ou obscuridade por o Acórdão mencionar que não deve ser considerada sazonal uma atividade que se prolonga por cerca de dez meses por ano quando da matéria de facto dada como provada resultaria que a atividade de cruzeiros fluviais da Reclamante ocorre apenas entre 7 a 9 meses por ano e “a diferença entre 3 e 1 mês pode efetivamente fazer toda a diferença”.
f) Falta de fundamentação da matéria de facto por não terem sido transcritos no Acórdão todos os factos, mas apenas os considerados essenciais, dando o Reclamante especial relevo aos factos 70, 71, 73, 74, 75, 76, 82, 83, 91, 92, 96 e 100.
Cumpre apreciar.
Não seguiremos, no entanto, a ordem das questões suscitas pela presente Reclamação.
Começaremos, com efeito, pelas duas nulidades invocadas e referidas em e) e f). De alguns dos factos que não foram transcritos, mas que foram considerados no Acórdão resulta, precisamente, e ao contrário do que afirma a Reclamante que a atividade de cruzeiros tinha lugar, pelo menos em alguns anos, durante dez meses por ano. Dos factos 82 e 83 decorre que a Reclamante teve passageiros nos anos de 2015 e de 2016 de março (inclusive) a dezembro (inclusive), só não tendo tido passageiros em janeiro e fevereiro (o mesmo, aliás, em 2009, facto 77, não referido na Reclamação e em 2011, facto 78). Do facto 93, aliás, não especificamente referido na reclamação, até consta que também há cruzeiros em dezembro (“A Ré realiza, fora da “época de cruzeiros” no mês de dezembro, cruzeiros voltados para a temática do Natal e/ou passagem de ano, com duração de cerca de dois dias, com uma noite de pernoita a bordo”). Em suma, decorre da matéria de facto que embora exista uma “época de cruzeiros” e “os cruzeiros turísticos realizam-se essencialmente nos meses de abril a outubro de cada ano” (facto 100), já há cruzeiros, por exemplo, no final do mês de março (facto 91) e há preparação da época de cruzeiros, preparação para a qual a Autora foi admitida em 2015, 2016 e 2017 (facto 105).
Sublinhe-se, em todo o caso, que o Acórdão recorrido decidiu que não se podia considerar atividade sazonal como exemplo de uma necessidade temporária da empresa uma atividade levada a cabo pela empresa durante mais de meio ano como decorre da citação doutrinal feita de JOANA NUNES VICENTE sendo no limite igual a solução se em vez de dez meses de navegação esta tivesse lugar oito ou nove meses por ano. 
Relativamente à alegada obscuridade, ininteligibilidade ou contradição referida em c) importa não descontextualizar as asserções do Tribunal. O Recorrente e ora Reclamante pretendia, nas suas contra-alegações, que apesar da existência de um voto de vencido no Acórdão do Tribunal da Relação permitir o recurso de revista, por força do disposto no artigo 671.º, este recurso estaria circunscrito à questão da existência ou não de uma atividade sazonal que permitisse a contratação a termo, existindo, em seu entender, uma dupla conforme parcial, na parte restante. Se tal entendimento fosse correto o recurso de revista, ainda que permitido por lei, poderia, mesmo que procedesse ser completamente inútil. Com efeito, mesmo que o Supremo Tribunal de Justiça viesse a decidir, como decidiu, que não existia uma atividade sazonal já estaria definitivamente assente, por exemplo, a prescrição dos direitos da Autora e a existência de vários contratos (e não de uma única relação contratual). O que se afirmou foi que tal entendimento não era correto e que a circunstância de o voto de vencido pôr em causa o motivo da contratação a termo tinha que permitir o recurso relativamente a questões interligadas, como, designadamente, a existência de um ou vários contratos. Em suma, o Tribunal não aderiu à tese de que só havia um contrato como defendia a trabalhadora, para depois dizer o oposto – limitou-se, outrossim, a dizer que a questão cabia no objeto do recurso, não estando abrangida por uma pretensa “dupla conforme parcial”. E quando conheceu a questão chegou à conclusão, sem qualquer contradição, de que teriam existido várias relações contratuais.
Relativamente à alegada nulidade por decisão para além do pedido, mencionada em b), importa ter presente que o pedido da Autora se reportava expressamente ao montante de € 10.080,00 como indemnização substitutiva da reintegração “relativa ao período de 30/06/2009 até fevereiro de 2017. Também o pedido deve ser interpretado. Ora, a Autora acreditava que só tinha sido alvo de um despedimento, por defender que só havia um contrato, mas pedia as consequências indemnizatórias da cessação ilícita da relação laboral em um período temporal que abrange os despedimentos de que foi vítima e pelos quais o empregador foi condenado, por não existir, relativamente a esses prescrição.

O Acórdão sublinhou que estamos no caso dos autos confrontados com uma remissão abdicativa sui generis. Em primeiro lugar, por se tratar de uma remissão abdicativa de uma trabalhadora, ou melhor, ex-trabalhadora. Depois por ser uma remissão global a todos os direitos sem precisar quais. E depois por ser uma remissão gratuita, não se tendo provado qualquer contrapartida.

Embora o Direito do Trabalho não exista apenas para proteger o trabalhador enquanto parte mais débil da relação contratual este é historicamente e continua a ser um dos seus escopos. A especial vulnerabilidade do trabalhador não é criada pelo contrato, mas preexiste ao mesmo. Não se trata só da circunstância de a oferta de postos de trabalho poder ser escassa para a procura existente, ou de o trabalho ser para muitos a principal quando não a única fonte de rendimentos essenciais à subsistência, mas de uma especial caraterística do mercado de trabalho em que à redução dos salários não se pode responder com uma redução de oferta da força de trabalho, precisamente porque o trabalhador necessita, frequentemente, do salário para sobreviver. Essa vulnerabilidade não desaparece necessariamente com a cessação do contrato de trabalho. A doutrina aduz como exemplo a celebração de sucessivos contratos a termo correspondente a uma intermitência fáctica. Nesses casos bem pode suceder que a remissão abdicativa traduza uma tentativa de voltar a encontrar um posto de trabalho junto do mesmo empregador. Sublinhe-se que o Acórdão não diz que tal tenha sido o que sucedeu no caso dos autos, mas apenas que tal pode ter sucedido. Há, pois, que interpretar com cuidado remissões abdicativas de trabalhadores. Em segundo lugar esta é uma remissão genérica ou global em que se declara nada mais ter a reclamar seja a que título for. Ora, tal renúncia para abranger as consequências indemnizatórias de despedimentos ilícitos deve supor a consciência, o conhecimento de que se foi alvo de um despedimento ilícito ou, pelo menos, de que a renúncia abrange tal hipótese. Aliás o artigo 236.º n.º 1 do Código Civil estabelece que “a declaração negocial vale com um sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”. Temos aqui um declarante que não sabia nem tinha obrigação de saber que fora alvo de um despedimento ilícito e um declaratário que fora o autor do facto ilícito e conhecia a existência de um despedimento ilícito. À luz da boa fé podia o declaratário confiar que a declaração do trabalhador abrangia os direitos resultantes de um despedimento ilícito, quando o próprio declaratário criou ilicitamente a aparência de uma outra causa de cessação? E na dúvida face à interpretação de tal remissão deve ter-se presente que a remissão foi gratuita (não está provada no processo a existência de qualquer contrapartida) pelo que há que interpretá-la no sentido que imponha um menor sacrifício, que seja menos gravoso, ao disponente (artigo 237.º do Código Civil). Trata-se da interpretação da cláusula e não da afirmação de vícios da vontade que não foram provados, não existindo, pois, qualquer excesso de pronúncia.
Quanto às importâncias que se devem deduzir aos salários de tramitação, existem efetivamente omissões de pronúncia.
O empregador pretende que se deveriam deduzir € 2.313,21 correspondentes ao somatório dos valores indicados a título de pagamento da compensação por cessação dos vários contratos a termo (facto 32). Sublinhe-se, desde logo, que se pretende, assim deduzir nos salários de tramitação importâncias pagas a título de compensação pela caducidade de contratos de trabalho em relação aos quais não se fixou qualquer indemnização ao trabalhador pelo facto de os direitos de este terem prescrito. Não há qualquer fundamento legal para fazer deduções no salário de tramitação decorrente do despedimento ilícito em um contrato por força do pagamento de importâncias relativas a outros contratos. Analisando o pedido relativamente às compensações pagas nos contratos em que há lugar a salários de tramitação – referimo-nos aos € 632,33 respeitantes às alíneas a) e b) do facto 32 – a lei manda deduzir as importâncias que o trabalhador aufira com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento (artigo 390.º, n.º 2, alínea a). Ora, e como refere PEDRO ROMANO MARTINEZ, “a dedução só se verifica na eventualidade de se concluir que o montante a deduzir não teria sido recebido pelo trabalhador se tivesse continuado a cumprir o contrato de trabalho”[1]. A compensação pela caducidade não é uma importância que o trabalhador só recebeu por ter sido despedido. A Reclamante invoca, no entanto, o enriquecimento sem causa para pedir a restituição dessas quantias. Afirma que desde o momento em que se concluiu que o que houve foi um despedimento e não uma caducidade cessou a causa da prestação e a mesma deveria ser restituída, por força das regras sobre o enriquecimento sem causa.
Antes de mais, importa não levar demasiado longe a retroatividade das ficções legais. Sendo o termo ilícito, o contrato de trabalho é um contrato sem termo. Mas foi vivido e executado como sendo, no plano dos factos, um contrato a termo com toda a precariedade que a compensação visa, perdoe-se a tautologia, “compensar”. O empregador recorreu ilicitamente ao contrato a termo e criou toda uma aparência ilícita na qual se integrou o pagamento da compensação pela caducidade, quando, na realidade, procedeu a um despedimento ilícito. O artigo 476.º do Código Civil não exige expressamente o erro do solvens, mas é exata a doutrina enunciada no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10/03/2016, proferido no processo n.º 288/13.7TBFAR.E1 (ELISABETE VALENTE): “quem paga indevidamente sabendo que o está a fazer nesses termos não tem direito á restituição do que houver prestado”.
Finalmente existe, com efeito, uma omissão de pronúncia quanto à dedução prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 390.º
Assim, tendo o despedimento ocorrido em 23 de fevereiro de 2017, e a presente ação sido intentada em 31 de julho de 2017, devem ser descontados nos salários de tramitação que a Reclamante foi condenada a pagar, a retribuição da Autora referente ao período entre 23 de fevereiro e 1 de julho de 2017.
Decisão: Deferida parcialmente a reclamação, devendo ser descontados nos salários de tramitação que a Reclamante foi condenada a pagar, a retribuição da Autora referente ao período entre 23 de fevereiro a 1 de julho de 2017.
Custas pelo Reclamante na proporção do decaimento, que se fixam em 80%.

Lisboa, 2 de novembro de 2022


Júlio Gomes (Relator)

Ramalho Pinto

Mário Belo Morgado

_______________________________________________          


[1] Pedro Romano Martinez e Outros, Código do Trabalho Anotado, 13.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, p. 908.