Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JSTJ00022347 | ||
| Relator: | SOUSA GUEDES | ||
| Descritores: | HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO DOLO EVENTUAL TENTATIVA | ||
| Nº do Documento: | SJ199403030461963 | ||
| Data do Acordão: | 03/03/1994 | ||
| Votação: | MAIORIA COM DEC VOT E VOT VENC | ||
| Referência de Publicação: | BMJ N435 ANO1994 PAG509 - CJSTJ 1994 ANOII TI PAG243 | ||
| Tribunal Recurso: | T J SEIXAL | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 552/88 | ||
| Data: | 02/10/1993 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REC PENAL. | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
| Área Temática: | DIR CRIM - TEORIA GERAL / CRIM C/PESSOAS / CRIM C/SOCIEDADE. | ||
| Legislação Nacional: | CP82 ARTIGO 14 N3 ARTIGO 22 N1 N2 B ARTIGO 23 N1 N2 ARTIGO 46 ARTIGO 48 ARTIGO 72 ARTIGO 74 N1 A ARTIGO 131 ARTIGO 144 ARTIGO 260. L 16/86 DE 1986/06/11. L 23/91 DE 1991/07/04. | ||
| Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO STJ DE 1994/11/21 IN BMJ N341 PAG260. ACÓRDÃO STJ DE 1985/03/06 IN BMJ N345 PAG222. ACÓRDÃO STJ DE 1986/11/12 IN BMJ N361 PAG244. ACÓRDÃO STJ DE 1991/07/03 IN CJ ANO16 T4 PAG9. | ||
| Sumário : | A figura da tentativa (no caso, de homicídio) é possivel, em todas as formas de dolo, inclusivé o evntual. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1 - O Tribunal Colectivo do Seixal condenou o réu A, com os sinais dos autos, mediante acusação do Ministério Público, como autor material de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22, 23, 74 e 131 do Código Penal (de que serão todos os artigos adiante designados sem menção do diploma a que pertencem), na pena de 4 anos de prisão, e, como autor material do seu crime previsto e punido pelo artigo 260, na pena de 150 dias de multa a 750 escudos por dia, na alternativa de 100 dias de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos de prisão e na multa de 112500 escudos, na alternativa de 100 dias de prisão. Foi ainda o réu condenado a pagar à ofendida B a indemnização de 500000 escudos, a título de danos morais. Declararam-se perdoados dois anos de prisão, metade da pena de multa e a prisão em alternativa à pena de multa. 2 - O réu não se conformou com esta decisão e recorreu para a Relação de Lisboa, mas esta negou provimento ao recurso por acórdão de folha 298, confirmando o decidido. É deste acórdão que o réu nos submete o presente recurso. Nas suas alegações concluiu, em síntese, o seguinte: I- O réu foi condenado erradamente pelo crime de homicídio, na forma tentada, pois não quis matar a ofendida, mas apenas marcá-la, por tudo quanto ela lhe fez; II- Assim, praticou apenas o crime do artigo 144, pelo que a pena deve ser substancialmente reduzida e, além disso, suspensa na sua execução; III- Foram violados os artigos 46, 48 e 144. Nas suas contra-alegações, o Ministério Público bateu-se pelo improvimento do recurso. Neste Tribunal, o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, pronunciou-se igualmente pela improcedência do recurso, embora não se lhe afigure líquido que a figura da tentativa seja conciliável com o dolo eventual, sobretudo após o acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Janeiro de 1993, publicado na C.J., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, I, I, 1993, página 172 e, designadamente, o respectivo voto de vencido. 3 - É a seguinte a matéria de facto que o Colectivo considerou provada: Durante cerca de três anos, o arguido viveu maritalmente com B, como se de marido e mulher se tratassem, tendo, em princípios de 1985, o arguido saído de casa devido a conflitos entre ambos. Em Abril de 1987, e após internamento no Hospital de Santa Maria por doença do foro cardíaco, o arguido voltaria a casa da B, recomeçando a viver maritalmente com a mesma. Tal situação terminaria cerca de 20 dias depois, devido a conflitos entre ambos, tendo o arguido voltado a sair de casa. O arguido muniu-se de faca de mato examinada a folha 19, com 15,2 centímetros de lâmina e o comprimento total de 25,5 centímetros, e ainda da pistola automática de calibre 6,35 milímetros Browning da marca Paramount, examinada a folha 29 e 30. No dia 18 de Junho de 1987, cerca das 11 horas, foram apreendidas ao arguido as referidas armas, sendo certo que o mesmo não possuía qualquer documento relativo à pistola mencionada. Após tal apreensão, o arguido adquiriu uma pistola semi-automática Browning, inicialmente de calibre 8 milímetros e destinada a munições de gás lacrimogéneo ou de alarme e posteriormente adaptada a disparar projécteis de 6,35 milímetros, arma esta examinada a folha 77 a 78. Cerca das 10 horas e 30 minutos do dia 9 de Setembro de 1987, o arguido, junto à residência da B, sita na Rua Sociedade Filarmónica Operária Amorense, n. 19, encontrava-se num café aí existente e, nessa altura, detinha a última das armas referidas, a qual se encontrava previamente municiada de projécteis de calibre 6,35 milímetros. Nesse dia, hora e local, o arguido aproximou-se da B, tentando conversar com ela, mas esta recusou dialogar com ele. Nessa altura, e a uma distância da B não superior a dois metros, o arguido fez três disparos procurando atingir a visada, estando consciente de que nas zonas do corpo que procurava atingir se encontravam órgãos vitais. Em consequência dos disparos efectuados pelo arguido, a B sofreu as lesões descritas nos autos de exames médicos de folhas 117, 122 e 135, nomeadamente perfuração dos intestinos e ferimentos da coluna vertebral de que lhe advieram, directa e necessariamente, hipostenia do membro inferior direito e abolição do reflexo patelar, ficando, assim, diminuída quanto à utilização dos membros inferiores. A B foi internada e operada na Unidade de Urgência Cirúrgica do Hospital de São José, onde permaneceu internada, pelo menos, até 14 de Outubro de 1987. O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que, através dos disparos efectuados, poderia matar a visada, tendo-se conformado com a possibilidade da verificação de tal resultado, só não o tendo conseguido por razões inteiramente alheias à sua vontade. O arguido sabia que quer a detenção das armas nas condições descritas quer os disparos efectuados contra a B eram condutas proibidas por lei; confessou ele os factos e mostrou sincero arrependimento; é o mesmo de mediana condição social e económica, vivendo sozinho e auferindo, como reformado da P.S.P., cerca de 150000 escudos mensais; é bem conceituado no meio social onde está inserido; enquanto no activo da P.S.P., cumpriu várias comissões de serviço em África e na Índia, sendo pessoa considerada experimentada com armas de fogo; não possuía licença para deter e usar a dita pistola. No momento em que efectuou os disparos que atingiram a B encontrava-se o arguido extremamente exaltado. 4 - Respondendo à dúvida posta pelo Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, cumpre dizer o seguinte: Não é correcto afirmar-se que no domínio do actual Código Penal só há homicídio na forma tentada quando o agente actua com dolo directo. Demonstrou-se exuberantemente o contrário os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Novembro de 1986, Boletim do Ministério da Justiça n. 361, 244, de 21 de Novembro de 1984, Boletim do Ministério da Justiça n. 341, 260, de 6 de Março de 1985, Boletim do Ministério da Justiça n. 345, 222 e de 3 de Julho de 1991, C.J., XVI, IV, 9, podendo ver-se, no mesmo sentido, Clans Roxin, "Problemas Fundamentais do Direito Penal", 297 e 301; Cuello Calón, Derecho Penal, I, 585 e E. Mezger, Tratado, II, 233 (tradução espanhola). A conclusão a extrair dessa jurisprudência e doutrina é a de que, no sistema jurídico-penal vigente, a tentativa - que constitui uma forma de crime doloso tal como o crime consumado - é compaginável com qualquer das modalidades de dolo previstas no artigo 14. Como se acentua no acórdão deste tribunal de 27 de Janeiro de 1993, invocado pelo Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto, citando Mezger e Jimenez Assua, "o resultado da acção, pensado como possível, é dolosamente querido quando o sujeito consente nesse resultado, ou quando este, dependendo da sua vontade, o considera provável". Ora, no caso presente, o arguido, ao disparar por três vezes sobre a B, a cerca de 2 metros, livre e conscientemente admitiu que lhe podia causar a morte, conformando-se com a possibilidade da verificação desse resultado, o qual só não se verificou por razões alheias à sua vontade, designadamente, por haver sido operada de urgência, no Hospital de São José. 5 - Assim, não pode duvidar-se de que a conduta do arguido preenche todos os elementos típicos do crime de homicídio, na forma tentada, prevista e punível pela conjugação dos artigos 14, n. 3, 22, n. 1 e 2-b), 23, n. 1 e 2, 74, n. 1-a) e 131. Improcede inteiramente, pois, a alegação do recurso de que procurou apenas "marcar" a vítima (bem estranha maneira esta, aliás, de "marcar" alguém...), para sustentar haver cometido tão-somente o crime do artigo 144. O crime praticado na pessoa da B é punível, em abstracto, com prisão de 2 anos a 10 anos e 8 meses de prisão. A pena concreta foi fixada em 4 anos de prisão. Mostra-se esta doseada com equilíbrio, sendo de manter, atendendo (artigo 72) à culpa do agente e às presentes exigências de prevenção em crimes desta natureza. O Tribunal recorrido ponderou, nomeadamente, o elevado grau de dolo, reflectido nos três disparos a curta distância; a gravidade das consequências do facto (a ofendida ficou diminuída quanto à utilização dos membros inferiores); e, quanto à prevenção especial, a circunstância de pouco tempo antes terem sido apreendidas ao réu uma faca de mato e uma outra pistola automática; por outro lado, e a seu favor, a grande exaltação de que estava possuído por a ofendida se recusar a dialogar com ele; a confissão e o arrependimento, sem esquecer as condições pessoais do agente como reformado da P.S.P. e o bom conceito de que goza no seu meio social. Tudo a justificar uma pena apenas superior em 2 anos ao seu limite mínimo e que não pode dizer-se que por excesso, num crime de tal gravidade. Isto dito, é evidente que não se mostram violados os artigos 46 (atinente à pena da multa), 48 (pois a pena superior a três anos de prisão não pode ser suspensa na sua execução) e, como se viu, artigo 144 do Código Penal. 6 - Sem esquecer que estamos no domínio do Código de Processo Penal de 1929 (no âmbito do qual sempre se entendeu que o recurso abrange toda a decisão), deve afirmar-se - embora estes aspectos não sejam impugnados pelo recorrente - que não merece censura o mais decidido no acórdão recorrido, nomeadamente quanto à punição pelo crime do artigo 260 e ao cúmulo jurídico das duas penas aplicadas e no que toca à indemnização arbitrada, que se mostra fixada em justo critério, atento os danos não patrimoniais causados. 7 - Um reparo deve ser feito ao acórdão recorrido. Os crimes em causa reportam-se a Setembro de 1987. Não lhes é aplicável, pois, a Lei n. 16/86, de 11/6, e respectivo perdão (que apenas incidir sobre os crimes anteriores a 9 de Março de 1986), que só por mero lapso - que agora se rectifica - foi decretado (folha 267). Assim, e nos termos da Lei n. 23/91, de 4/7, o réu apenas beneficia do perdão de um ano de prisão, de metade da pena de multa e da prisão em alternativa à pena da multa sobrante. 8 - Pelo exposto, e sem prejuízo da rectificação que acaba de ser feita, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido. Pagará o recorrente 20000 escudos de imposto de justiça e 5000 escudos de procuradoria. 3 de Março de 1994. Sousa Guedes. Cardoso Bastos. Sá Nogueira. (Com a declaração de que entendo não ser possível, no nosso direito, e com a redacção actual da lei, a configuração de uma conduta como tentativa de um crime a título de dolo eventual, embora essa mesma conduta não deixe de ser punível, mas ao abrigo das disposições que punem a comissão dos factos por omissão dos poderes genéricos de abstenção das ditas condutas destinadas a produzir um certo resultado típico. É, de resto, a posição que tenho assumido em diversos votos de vencido emitidos em processos semelhantes ao dos autos). Decisão impugnada: Acórdão de 93-02-10 do Tribunal Judicial do Seixal. Acórdão de 93-06-29 da Relação de Lisboa, 5 Secção. |