Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S3046
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BRAVO SERRA
Descritores: DESPEDIMENTO SEM JUSTA CAUSA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
DEVER DE URBANIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ20081210003046
Data do Acordão: 12/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
I – Consubstancia um ilícito disciplinar inserível na alínea i) do n.º 3 do artigo 396.º do Código do Trabalho o comportamento da trabalhadora que, na sequência de discussões ocorridas nas instalações da ré entre si e o gerente da ré (seu ex-marido), que vinham causando constrangimento, tensão, melindre e nervosismo nas demais trabalhadoras da ré, se dirigiu por duas vezes a outras duas trabalhadoras dizendo-lhes que aquele gerente ía “ser preso” e ela ía “ficar com a empresa”, que estavam a “apostar no cavalo errado” eram “mal educadas” e seriam “despedidas se não lhe obedecessem”.
II – Imputações deste jaez relativamente ao gerente da ré, além de representarem a ofensa de um dever de urbanidade – como ocorre com as expressões dirigidas às colegas de trabalho -, poderiam até de um ponto de vista jurídico-criminal constituir um ilícito, pelo que o comportamento de um trabalhador que, em abstracto, procedesse deste modo, seria apto à formulação de um juízo objectivo de gravidade que poderia levar àqueloutro juízo de acentuada diminuição da fidúcia que o empregador deve prosseguir relativamente aos seus trabalhadores.
III – Mas no concreto dos autos - balanceando-se o comportamento da autora, o seu relacionamento no seio da empresa de que era sócio-gerente o seu ex-marido, cuja quota na sociedade (da qual a autora era comproprietária) era maioritária, o acentuado litígio que existia entre ambos no que respeitava à partilha dos bens subsequente ao divórcio, que a autora, na prática real da envolvência empresarial, era tida pelos seus trabalhadores como alguém que a detinha (e por isso era considerada “patroa”), desfrutando de um regime de labor mais permissivo do que as outras trabalhadoras, e, ainda, que as expressões em causa foram proferidas no seguimento de discussões havidas entre a autora e o seu ex-marido -, a adopção de uma sanção conservatória representaria um exercício do poder punitivo mais consonante com todo o circunstancialismo envolvente da actuação da autora
Decisão Texto Integral:
I


1. No Tribunal do Trabalho de Sintra instaurou AA contra C... – S... de E... E..., Ldª, acção de processo comum, peticionando que fosse declarada a nulidade do processo disciplinar, por via do qual a autora se encontrava suspensa preventivamente desde 14 de Outubro de 2004, decretando-se a sua imediata reintegração no seu posto de trabalho e condenando-se a ré no pagamento das retribuições que deixou de auferir, ou, a assim não se não entender, que fosse reconhecido que a autora fora despedida sem justa causa, devendo ela ser reintegrada imediatamente no seu posto de trabalho e a ré condenada a pagar-lhe uma indemnização, a título de danos patrimoniais, não inferir a € 300, uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, não inferior a € 15.000, e a proceder ao pagamento de todas as retribuições que ela, autora, deixou de auferir desde trinta dias antes da propositura da acção e até ao trânsito em julgado da decisão.

Para tanto, muito em síntese, aduziu que o processo disciplinar que lhe foi instaurado padecia de várias nulidades, nele nem sequer vindo a ser proferida decisão disciplinar, sendo que os factos constantes da nota de culpa não correspondiam à verdade, além de não poderem ser justificativos de um despedimento, nem terem sido dados como provados e estando, em parte, prescritas determinadas infracções disciplinares.

Após contestação da ré, em que impugnou o invocado pela autora e depois desta ter optado pela «indemnização por antiguidade», preterindo, assim, o seu pedido de reintegração no seu posto de trabalho, veio, em 23 de Outubro de 2007, a ser proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, declarou ilícito o despedimento da autora e condenou a ré a pagar-lhe os valores, oportunamente a liquidar em execução de sentença, correspondentes às retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, e a indemnização de trinta dias de retribuição base por cada ano completo ou fracção, atendendo a todo o tempo decorrido até àquele trânsito.

Inconformada, apelou a ré para o Tribunal da Relação de Lisboa, impugnando também a matéria de facto.

Sem sucesso o fez, já que aquele Tribunal de 2ª instância, por acórdão de 30 de Abril de 2008, após ter entendido não proceder a impugnação sobre a matéria de facto, negou provimento à apelação.


2. Mantendo-se irresignada, vem a ré pedir revista, rematando a alegação adrede produzida com o seguinte quadro conclusivo: –

1 – A Recorrente considera que a decisão recorrida não ajuizou correctamente segundo o Direito aplicável, e não procedeu de acordo com os ditames interpretativos dos conceitos de justa causa;
2 – A Recorrida violou de forma grave, reiterada[ ] e culposa, o dever de tratar o empregador e os seus companheiros de trabalho com urbanidade e de os respeitar;
3 – Fê-lo, ao proferir no local de trabalho, em vários dias, e dirigindo-se a trabalhadoras da Recorrente[,] que o gerente desta ‘ia ser preso’, que ela ‘ia ficar com a firma’, que elas ‘estavam a apostar no cavalo errado’, que ‘ia tomar conta da empresa’, que elas eram ‘mal educadas’ e que ‘iam ser despedidas se não lhe obedecessem’;
4 – Com tal comportamento, a Recorrida causou nas demais trabalhadoras da Recorrente constrangimento, tensão, melindre e nervosismo;
5 – O referido comportamento, culpa e gravidade, analisado pelo entendimento dum bom pai de família e em face do caso concreto, segundo critérios de objectividade e razoabilidade, constitui justa causa de despedimento;
6 – Na apreciação da justa causa, não se deve apreciar o comportamento de forma subjectiva e na perspectiva da trabalhadora, mas sim de forma objectiva;
7 – O facto de as expressões difamatórias, bem como as ameaças, terem sido proferidas no local de trabalho, de terem sido dirigidas a outras trabalhadoras, de se tratar de situações sem qualquer intervenção do gerente da Recorrente, não permite qualificar e contextualizar a situação como uma decorrência do fim do casamento da Recorrida com este;
8 – O facto de a Recorrida ter problemas pessoais com o gerente da entidade patronal, não desculpa comportamentos estritamente laborais, nem a exime do cumprimento dos seus deveres de trabalhadora para com as colegas de trabalho, e mesmo para com aquele enquanto seu superior hierárquico;
9 – Face à gravidade dos factos provados, não é exigível a um normal empregador a manutenção da relação laboral, acrescendo a tal circunstância o facto de a Recorrida já não obedecer, de forma dada por provada, à Recorrente, tornando inútil a aplicação de qualquer sanção alternativa à de despedimento;
10 – A manutenção da relação laboral, num contexto como aquele dado por provado nos autos, gerador dum ambiente de tensão na empresa, seria uma violência intolerável para a entidade patronal, e para os restantes trabalhadores, estando pois manifestamente em causa a subsistência da relação laboral;
11 – Inexistindo claramente condições para a manutenção da relação laboral, uma vez que[,] após proferidas regularmente as expressões difamatórias, e instalado o clima de tensão permanente nas restantes trabalhadoras da Recorrente, não mais esta poderia ter confiança na Recorrida, traduzindo-se eventual condescendência em perda do poder de respeito[,] o qual é indispensável a qualquer entidade patronal;
12 – O Acórdão recorrido violou, entre outros, o disposto no artº 396º do C.T.;
13 – A correcta aplicação das normas violadas conduzirá à revogação da decisão recorrida[ ] e[,] assim, à absolvição da ora Recorrente.

A autora não respondeu à alegação da ré.

A Ex.ma Magistrada do Ministério Público neste Supremo exarou «parecer» no qual sustentou a improcedência da revista.

Notificado esse «parecer» às partes, não vieram estas a pronunciar-se sobre o mesmo.

Corridos os «vistos», cumpre decidir.

II


1. Vem, pelo acórdão ora em sindicância, dada por assente a seguinte matéria de facto, a qual, por aqui se não colocar qualquer das situações referidas no nº 2 do artº 722º do Código de Processo Civil, deverá ser atendida por este Supremo: –

– a) a ré é uma sociedade por quotas com o capital de € 24.939,90;
– b) por escritura pública de 27 de Março de 2000, foram cedidas três quotas, no valor global de € 19.951,92, a BB, casado no regime de comunhão de adquiridos com AA, ora autora;
– c) a partir dessa data, a autora desempenhou na ré funções de designer de moda e de responsável pela produção, auferindo ultimamente a retribuição base de € 997,60, acrescida de subsídio de almoço no valor de € 4,50 por dia de efectivo trabalho;
– d) por deliberação de 14 de Março de 2000, foi nomeado como gerente da ré o referido BB;
– e) as demais trabalhadoras da ré consideravam a autora como «patroa»;
– f) entre outras funções, competia à autora deslocar-se a casa de costureiras que confeccionavam peças de vestuário para a ré, onde levava tecidos, escolhia modelos, dava instruções sobre o modo de efectuar o trabalho ou ia recolher as peças já confeccionadas;
– g) as demais trabalhadoras da ré estavam obrigadas a assinar o «livro de ponto», o que não sucedia com a autora;
– h) por decisão de 28 de Maio de 2003, do Conservador do Registo Civil da Covilhã, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento entre a autora, AA, e o gerente da ré, BB;
– i) em finais de Agosto de 2004, o gerente da ré comunicou à autora que era altura de procederem à partilha do património conjugal, e que a mesma teria que ser feita no prazo máximo de um mês;
– j) a autora fez saber ao gerente da ré que a questão não podia ser resolvida num mês, quer porque a autora nada sabia da gerência e contabilidade da ré, quer porque estava igualmente em causa a casa de morada da família onde a autora residia com os três filhos menores do casal;
– k) em 13 de Outubro de 2004, o gerente da ré fez saber à autora que não lhe facultava mais nenhum documento e queria a sua decisão definitiva;
– l) a retribuição da autora por conta da ré era a sua única fonte de rendimentos;
– m) a autora não sofrera qualquer sanção disciplinar ao serviço da ré;
– n) nalguns dias, ou em parte dos mesmos, a autora não comparecia para trabalhar nas instalações da ré;
– o) a autora compareceu nas instalações da ré na manhã do dia 2 de Abril de 2004;
– p) a autora esteve ausente no estrangeiro, em viagem de lazer, entre 14 e 20 de Maio de 2004;
– q) a autora esteve de férias entre 19 e 28 de Julho de 2004;
– r) a ré descontou à autora o subsídio de almoço respeitante aos dias compreendidos nos períodos mencionados em p) e q);
– s) a ré não descontou à autora qualquer outro valor relativo a retribuição base ou subsídio de almoço entre Março e Outubro de 2004;
– t) era prática habitual na ré que as faltas das trabalhadoras não eram descontadas na retribuição base, mas apenas nos subsídios de almoços;
– u) a autora, no dia 12 de Outubro de 2004, por cerca das 15 horas, nas instalações da ré, dirigindo-se às trabalhadoras CC e DD, disse que o gerente da ré ia ser preso e ela ia ficar com a firma e estavam a apostar no cavalo errado;
– v) estas expressões, idênticas a outras ditas nos últimos dias, eram proferidas na sequência de discussões ocorridas entre a autora e o gerente da ré, nas instalações desta, o que vinha causando constrangimento, tensão, melindre e nervosismo nas demais trabalhadoras da ré;
– w) nesse mesmo dia – 12 de Outubro de 2004 – o gerente da ré disse à autora que não lhe era permitido sair da empresa sem indicação sua, e que apenas o poderia fazer para efeitos de serviço;
– x) no dia 13 de Outubro de 2004, sem dar qualquer satisfação e sem que lhe tivesse sido dada qualquer incumbência, a autora saiu da empresa pelas 11 horas, para se deslocar ao contabilista da ré, a fim de solicitar a consulta de documentos relativos à sociedade;
– y) ainda no dia 13 de Outubro de 2004, a autora, dirigindo-se às trabalhadoras CC e DD, disse que o gerente da ré seria preso e que ela, juntamente com dois sócios que já havia arranjado, ia tomar conta da empresa, bem como, que aquelas eram mal educadas, estavam a apostar no cavalo errado e iam ser despedidas se não lhe obedecessem;
– z) em 14 de Outubro de 2004, a ré comunicou à autora a instauração de processo disciplinar com intenção de despedimento e imediata suspensão de funções, anexando nota de culpa e informando que o Dr. EE fora nomeado instrutor;
– aa) a autora apresentou resposta à nota de culpa;
– bb) seguiu-se a fase de instrução, documentada nos termos que constam de fls. 135 a 153, que se dão como reproduzidos;
– cc) em 22 de Novembro de 2004, o instrutor elaborou e enviou ao gerente da ré o relatório final, por e-mail às 17 horas e 47 minutos, tendo aquele respondido por meio idêntico pelas 18 horas e 49 minutos, comunicando a decisão de despedimento;
– dd) por carta registada com aviso de recepção, expedida em 23 e recebida em 25 de Novembro de 2004, o instrutor comunicou à autora que a gerência decidira aplicar-lhe a pena de despedimento, anexando o relatório final;
– ee) em data não apurada, antes da instauração do processo disciplinar, o gerente da ré comunicara à autora e demais trabalhadoras que aquela já não era patroa, que já não mandava e que tinha que cumprir o horário de trabalho.


2. Como bem resulta das «conclusões» da alegação da impugnante, está em causa, e tão-só, saber se o juízo alcançado pelo acórdão revidendo é, ou não, correcto, o que, como é claro, implica saber se foi, ou não, adequada a sanção de despedimento imposta à autora.

Naquele aresto, no que concerne a este particular problema, escreveu-se, em dados passos: –

“(…)
A recorrente insurge-se contra a valoração do comportamento da A. efectuada na sentença, que culminou no juízo sobre a ilicitude do despedimento da A..
Começa por insistir em que as faltas injustificadas dadas pela A. constituem justa causa de despedimento. Manifestamente não lhe assiste razão neste ponto.
(…)
Resta reapreciar a conduta da apelada que vem referenciada nos pontos 21, 22 e 25 [correspondem aos items u), v) e y) de supra II 1.]A A., no dia 12 de Outubro de 2004, cerca das 15 horas, nas instalações da R., dirigindo-se às trabalhadoras CC e DD, disse que o gerente da R. ‘ia ser preso ’e ela ‘ia ficar com a firma’ e ‘estavam a apostar no cavalo errado.’. Estas expressões, idênticas a outras ditas nos últimos dias, eram proferidas na sequência de discussões ocorridas entre a A. e o gerente da R. nas instalações desta, o que vinha causando constrangimento, tensão, melindre e nervosismo nas demais trabalhadoras da R.. No dia 13 de Outubro de 2004, a A., dirigindo-se às trabalhadoras CC e DD, disse que o gerente da R. ‘seria preso’ e que ela, juntamente com dois sócios que já havia arranjado, ‘ia tomar conta da empresa’, bem como, que aquelas eram ‘mal educadas’ e ‘estavam a apostar no cavalo errado’ e ‘iam ser despedidas se não lhe obedecessem’ –.
Através de tais condutas, a A., no âmbito da empresa, pelo menos por duas vezes, dirigindo-se a terceiros, imputou ao sócio-gerente da R. (seu ex-marido) um juízo ofensivo da respectiva honra e consideração (o de que cometera um crime, já que só nesse caso poderia ser preso, como afirmou), ou seja, difamou um membro dos corpos sociais – o que integra a previsão da al. i) do nº 3 do art. 396º do CT.
Porém, constituindo tal conduta sem dúvida um ilícito disciplinar – dado que, teve lugar no âmbito da empresa e viola o dever de respeitar os superiores hierárquicos (art. 120º nº 1 al. a) do CT) – não pode na respectiva valoração deixar de ser tido em conta o quadro de circunstâncias em que teve lugar: verificou-se na sequência de discussões entre a A. e o sócio-gerente da R., ex-marido da A., tendo o divórcio ocorrido no dia 28/5/2003, mas subsistindo entre ambos litígio relativamente à partilha dos bens comuns, entre os quais se conta precisamente a quota correspondente a 80% do capital social da R. e a casa de morada de família, sendo que tal litígio se encontrava então numa fase de grande tensão, depois de, em finais de Agosto, o ex-marido da A. ter pretendido fixar em um mês o prazo para o resolver, o que a A. não aceitou por não se encontrar habilitada, designadamente em termos de conhecimento da situação contabilística e de gestão da empresa, tendo o ex-marido e sócio gerente, no mesmo dia 13/10 (em que ocorreu o último incidente), comunicado à A. que não lhe facultava mais nenhum documento e que queria a sua decisão definitiva.
Na parte em que as expressões em causa se referiam directamente ao futuro das relações das referidas trabalhadoras com a R – dizendo-lhes que ia ficar com a firma, ia tomar conta da empresa e que elas estavam a apostar no cavalo errado, que eram mal educadas e que iam ser despedidas se não lhe obedecessem – é inequívoco (se bem que não esteja assente o que é que, no comportamento das referidas trabalhadoras – e algo terá havido, certamente – deu azo a que a A. se lhes dirigisse naqueles termos) é inequívoco, dizíamos, que tal conduta consubstancia, pelo menos, o exercício de chantagem sobre elas (ameaçando-as até com o despedimento) no sentido de obter o apoio das mesmas no conflito que a opõe ao ex-marido relativamente à partilha dos bens comuns, maxime da quota social na R., o que atenta, sem dúvida, contra a respectiva liberdade e dignidade e é apto a desestabilizar o ambiente de trabalho das mesmas e, por consequência, da empresa, constituindo pois infracção disciplinar, pelo menos ao dever de tratar com urbanidade os companheiros de trabalho (art. 121º nº 1 al. a) CT). Não cabia às trabalhadoras tomar partido no conflito que opunha a A. (por elas considerada como ‘patroa’) ao ex-marido e sócio-gerente.
Mas importa salientar que, conforme consta do nº 22, não foi apenas aquela conduta da A. que vinha causando constrangimento, tensão, melindre e nervosismo nas demais trabalhadoras, mas as próprias discussões ocorridas entre a A. e o sócio-gerente, na sequência das quais a A. proferiu tais expressões. Ora os elementos fornecidos pelos autos não nos permitem de forma alguma imputar apenas à A. a responsabilidade por tais discussões, pelo que nunca a gravidade das consequências delas resultantes (mormente o constrangimento, tensão, melindre e nervosismo provocado nas trabalhadoras) poderia ser imputada apenas à conduta ilícita da A..
Neste contexto não nos parece que possamos qualificar como muito grave a ilicitude da conduta da A.
Tal conduta, quer na parte em que atinge a honra e consideração do sócio gerente, quer na parte em que atenta contra a dignidade das trabalhadoras a quem se dirige, em qualquer dos casos, podendo é certo repercutir-se negativamente na empresa, é, obviamente, passível de um juízo de censura, mas que, como bem ponderou a Srª Juíza recorrida, terá de ser necessariamente atenuado face ao quadro de circunstâncias em que se desenrolam os factos, designadamente por ‘pouco ou nada ter de profissional ou de laboral, quanto ao motivo e ao fim, antes se reportando às divergências emergentes das relações pessoais e patrimoniais fundadas no vínculo (ex) conjugal que paralelamente existia entre os intervenientes’. Com efeito, não cremos que possa oferecer dúvidas que o que está na origem da conduta da A. é fundamentalmente o conflito agudo que a opõe ao ex-marido relativamente à partilha do património conjugal, maxime da quota maioritária da R.. A cumulação na pessoa da A. das duas posições jurídicas, de trabalhadora e contitular da quota maioritária da sociedade, além de ex-cônjuge do outro titular da referida quota e gerente da sociedade[,] torna difícil a separação dos planos de intervenção, mas na medida em que a actuação em causa teve lugar no âmbito da empresa e foi dirigida a duas trabalhadoras da mesma, repercutindo-se no funcionamento da empresa (se bem que isso não esteja concretizado nos factos), não pode oferecer dúvidas que se tratou de ilícito disciplinar laboral, embora, como vimos, de gravidade moderada e com culpa também diminuída.
Embora não possamos deixar de reconhecer que os termos em que o gerente da R. e ex-marido da A. colocou a questão da partilha do património conjugal, a partir de finais de Agosto, dando-lhe um ‘ultimato’ é apta a criar grande pressão psicológica sobre a A., se esta porventura estava efectivamente à margem da situação contabilística e financeira da empresa, certo é que não sabemos os passos que haviam sido dados até então e qual o comportamento anterior de cada um dos ex-cônjuges sobre essa questão (…)
(…)
Entendemos, com efeito que, no quadro de gestão da empresa, atendendo ao carácter das relações entre as partes, em particular entre a A. e o gerente da R. (um dos ofendidos pelas expressões da A.) e não revestindo os factos, como vimos, a gravidade que a recorrente lhe pretende atribuir, dada a atenuação da ilicitude e da culpa derivada do contexto em que ocorreram, a sanção expulsiva se mostra excessiva e desproporcionada. O despedimento é a ultima ratio das sanções disciplinares, o que significa que só é aceitável quando uma sanção conservatória se mostre totalmente inadequada a re[]stabelecer o equilíbrio contratual e não cremos que seja essa a situação. A A. nunca sofrera qualquer sanção disciplinar ao serviço da R. pelo que nada indicia que uma sanção pecuniária, ou de perda de dias de férias ou mesmo de suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade não fosse bastante para lhe fazer sentir a necessidade de não repetir aquele tipo de comportamentos no âmbito da relação laboral.
Salvo o devido respeito não podemos, a partir dos factos referidos em 23 e 24 [corresponde aos items w) e x) de supra II 1.], generalizar para afirmar que a A. já não obedece (e por isso seria inútil a aplicação de uma sanção não extintiva), quando essa não obediência foi considerada justificada, por não haver fundamento para a modificação das condições de trabalho da A.. Não cremos pois, que a manutenção do vínculo laboral represente uma violência intolerável para a entidade patronal.
(…)”


3. Na presente revista, a recorrente já não equaciona a questão atinente às eventuais não comparências da autora ao serviço, contrariamente ao que (também) impostou no recurso de apelação (cfr. «conclusão» 4 da alegação proferida naquela sorte de impugnação), pelo que se haverá de entender que, perante o «abandono» de tal questão, assumiu foros de caso julgado o que, no acórdão sindicado, fora decidido a esse respeito.

Fica-nos, assim, e tão-somente, o juízo crítico que a impugnante dirige ao aresto em crise, por, em sua visão, a factualidade apurada nos autos dever conduzir a que as expressões que a autora dirigiu ao sócio-gerente da recorrente e a outras suas trabalhadoras, constituindo ilícito disciplinar, assumiram uma gravidade tal que tornava impossível a manutenção da relação laboral.

Esse juízo crítico é retomado nesta revista em termos em tudo idênticos àqueles que, aquando da apelação, a recorrente utilizara [cfr. «conclusões» 2 a 7 e 9 a 12 da alegação produzida na revista, e as «conclusões» 5, 6 a 9, 13 a 15, 15-A e 15-B (por manifesto lapso a então apelante após a «conclusão» 15 antecedeu as duas sequente «conclusões» com os números 14 e 15) da alegação efectuada no recurso de apelação], postando-se umas e outras das agora indicadas «conclusões» com um teor praticamente igual.

Na específica vertente desta questão, os passos acima extractados do acórdão revidendo merecem, na sua essencialidade, a anuência deste Supremo.


3.1. Efectivamente, comanda o nº 1 do artº 396º do Código do Trabalho (e à normação deste compêndio se terá de atender, atenta a temporalidade dos factos apurados) que o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho constitui justa causa de despedimento, vindo o nº 3 do mesmo artigo exemplificar determinados comportamentos justificativos do despedimento, entre eles se encontrando [cfr. alínea i) desse número] a prática, no âmbito da empresa, de violências físicas, de injúrias ou outras ofensas punidas por lei sobre trabalhadores da empresa, elementos dos corpos sociais ou sobre o empregador individual não pertencente aos mesmos órgãos, seus delegados ou representantes.

De harmonia com a perspectiva da recorrente, a matéria fáctica apurada e que acima se encontra enunciada em u), v), w), x) e y) de II 1., aponta, aliás talqualmente foi considerada no acórdão impugnado, no sentido de que a actuação da autora consubstanciava a prática de um ilícito de natureza disciplinar, inserível na aludida alínea i) do nº 3 do citado artº 396º. Simplesmente – e é justamente aqui que reside o inconformismo da impugnante – de tal actuação resultava, desde logo, a impossibilidade de manutenção da relação de trabalho, já que, na sua óptica, face à gravidade daquela actuação e às circunstâncias de se tratar “de comportamentos recorrentes, quase diários” e de “uma questão do foro privado”, que não podia “desculpabilizar um comportamento que claramente é do âmbito laboral, que tem a ver com factos praticados no âmbito da empresa, e que envolve pessoas sem qualquer ligação pessoal”, a aplicação de uma qualquer outra sanção de natureza conservatória não se afigurava como suficiente, e isso tendo em conta (se bem entendemos o que é referido pela recorrente) que essas outras sanções não permitiriam um adequado juízo de censurabilidade, e a manutenção da autora no desempenho das suas funções traduzir-se-ia num “insustentável ambiente na empresa com os consequentes reflexos na capacidade produtiva”.

Não se nega, na esteira do que ficou consignado no acórdão em crise, que o demonstrado comportamento da autora cobra, subsuntivamente, a aplicação do que se normatiza na alínea i) do nº 3 do artº 396º do Código do Trabalho.

E adianta-se até que, desligado de toda a envolvência que os presentes autos nos trazem, o comportamento de um trabalhador que, abstractamente, imputasse aos titulares de órgãos sociais da empresa factos idênticos aos que a autora imputou ao gerente da ré, e que dirigisse aos seus colegas de trabalho expressões semelhantes às utilizadas pela autora em relação às duas trabalhadoras – CC e DD –, seria apto à formulação de um juízo objectivo de gravidade que, mormente em relação à sua primeira vertente, poderia levar àqueloutro juízo de acentuada diminuição da fidúcia que a entidade empregadora deve prosseguir relativamente aos seus trabalhadores.

É que, indubitavelmente, imputações do jaez das proferidas pela autora relativamente ao sócio-gerente da ré, para além de representarem a ofensa de um dever de urbanidade, até poderiam, de um ponto de vista jurídico-criminal, constituir um ilícito.

Contudo, e tal como deflui, expressamente, do nº 2 do aludido artº 396º, para apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter da relação entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.

De outro lado, e quiçá como reflexo ou, até antes, como estabelecimento de um princípio iluminador daquele nº 2, rege o artº 367º do Código do Trabalho que a sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor.

Sabido que é que o conceito de justa causa é um conceito «objectivo-normativo», de tal sorte que não deve, na sua apreciação, ser tido em conta o posicionamento subjectivo da entidade patronal ou do próprio aplicador do direito – o juiz –, quando o despedimento for impugnado, pois que aquilo que releva é a apreciação objectiva dos factos, tendo por mira um empregador razoável (cfr., a título de exemplo, João Leal Amado in Questões Laborais, 2º, 113) e toda a corte circunstancial antecedente da conduta do sancionado, mister é que, no caso sub iudicio, se balanceie o comportamento da autora, o seu relacionamento no seio da empresa, de que era sócio-gerente o seu ex-marido, cuja quota na sociedade era maioritária, da qual a autora era comproprietária, que existia um acentuado litígio entre ambos no que respeitava à partilha dos bens subsequentes ao divórcio e que a autora, na prática real da envolvência empresarial, era tida pelos seus trabalhadores como alguém que a detinha – e por isso era considerada como «patroa» –, desfrutando de um regime de labor mais permissivo do que as demais trabalhadoras.

Ora, neste balanceamento, o qual, conquanto, por si, não possa apontar para a formulação de um juízo de incensurabilidade do comportamento da autora – quer ao jeito de causa excludente da ilicitude, quer ao jeito de causa excludente da culpa – seguramente que se não pode escamotear que o relacionamento pessoal da autora com o sócio-gerente da ré, quer antes, quer depois da cessação da relação conjugal que entre ambos existira, se não postava com os contornos de normalidade que se surpreendem nas relações entre um qualquer empregador e um, também qualquer, trabalhador.

Tornar-se-ia estulto estarem-se aqui a reeditar as considerações que, a este propósito, foram tecidas no aresto em crise e que, aliás, acima se encontram transcritas, as quais, como se referiu já, são subscritas, na sua essencialidade, por este Supremo.

Anotar-se-á, tão simplesmente, que a «densidade» da concretização da justa causa decorrente da prolação de injúrias ao empregador individual ou aos elementos dos corpos sociais da empresa empregadora, que alguns autores como Meneses Cordeiro (Manual do Direito do Trabalho, 836) – o que, tantas vezes, tem sido aceite pela nossa jurisprudência – sublinham, no concreto dos autos, fica acentuadamente diminuída, como o acórdão recorrido teve ensejo de discretear.

Outro tanto sucede concernentemente às expressões dirigidas às trabalhadoras CC e DD, as quais, comprovadamente [cfr. item v) de II 1.], eram proferidas no seguimento de discussões havidas entre a autora e o seu ex-marido.

Adite-se ainda, à guisa de refutação do arco argumentativo utilizado pela recorrente, que da matéria fáctica alcançada não é possível extrair-se, de todo em todo, que a actuação da autora, que, já o dissemos, se deverá subsumir ao cometimento de ilícito disciplinar, teve uma repercussão negativa efectiva no seio da empresa empregadora, em termos de afectar o seu rendimento e regular funcionamento.

Torna-se, desta arte, patente que a adopção de uma sanção conservatória não representaria, «aos olhos» dos demais trabalhadores da recorrente, uma postura, da parte desta, de desculpabilidade da actuação da autora. Antes essa adopção representaria, de outra banda, um exercício do poder punitivo mais consonante com todo o circunstancialismo envolvente daquela actuação, circunstancialismo esse no qual, minimamente, se não alheia o próprio comportamento do seu sócio-gerente.

Justamente por isso, não merece crítica o juízo decisório alcançado pelo acórdão em veredicto.

III


Em face do que se deixa dito, nega-se a revista.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 10 de Dezembro de 2008

Bravo Serra (Relator)
Mário Pereira
Sousa Peixoto