Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
298/22.3YUSTR.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
REQUISITOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
SUSPENSÃO
Data do Acordão: 01/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCUA (PENAL)
Decisão: VERIFICADA A OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Sumário :
I. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º e ss., do C.P.P., tem como finalidade específica evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores, assegurando, assim, a uniformização da jurisprudência e, reflexamente, os princípios da segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e da igualdade dos cidadãos perante a lei.

II. Os antecedentes históricos deste recurso parece, segundo a doutrina mais abalizada, encontrarem-se nas façanhas medievais e, mais modernamente, nos Assentos da Casa da Suplicação.

III. III. O Decreto n.º 12 353, de 22/09/1926, criou um recurso destinado à uniformização da jurisprudência, com um regime análogo ao recurso para o tribunal pleno, que viria a ser consagrado nos C.P.C. de 1939 e 1961.

IV. Integrados no mesmo Capítulo, encontram-se 3 espécies deste recurso, cada um com as suas especificidades: recurso de fixação de jurisprudência próprio sensu (arts. 437.º a 445.º), recurso de decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (art. 446.º) e recursos interpostos no interesse da unidade do direito (art. 447.º).

V. Focando-nos na primeira modalidade, que é a que agora interessa ao caso, são requisitos formais de admissibilidade deste tipo de recurso: a legitimidade e o interesse em agir do recorrente; a interposição do mesmo, no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar; a invocação, no recurso, do acórdão fundamento, com junção de cópia deste ou do lugar da sua publicação; o trânsito em julgado dos dois acórdãos; e justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência. Por seu turno, são requisitos substanciais de admissibilidade: existência de julgamentos da mesma questão de direito entre dois acórdãos do STJ, dois acórdãos da Relação ou entre um acórdão do STJ e outro da Relação – o acórdão recorrido e o acórdão fundamento; os acórdãos em causa assentem em soluções opostas, de forma expressa e a partir de situações de facto idênticas; e serem ambos proferidos no domínio da mesma legislação, ou seja, quando durante o intervalo da sua prolação não tiver ocorrido alteração legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão controvertida.

VI. Saliente-se ainda que a jurisprudência dominante do Supremo vai no sentido de que a expressão soluções opostas diz respeito às decisões e não aos fundamentos.

VII. Ora, na situação sub judice, encontram-se reunidos todos os pressupostos formais e substanciais, incluindo o requisito da oposição de julgados, uma vez que o que estava em causa quer no acórdão recorrido quer no acórdão fundamento era saber se tendo a arguida, pessoa coletiva, a sua sede no estrangeiro, o prazo de 20 dias estabelecido no artigo 59.º, n.º 3, do RGCO, para apresentação do recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que lhe aplica a coima só se inicia (ou não) depois de decorridos 15 dias após a notificação da decisão, nos termos do artigo 88.º, n.º 1, al. b), do novo CPA, de 2015, e do art. 73.º, n.º 1, al. b), do anterior CPA, de 1991.

VIII. A situação de facto em apreciação é, assim, idêntica em ambos os acórdãos. Com efeito, nos dois processos, as arguidas tinham a sua sede no estrangeiro, na Alemanha - no caso do acórdão recorrido - e na Irlanda - no caso do acórdão fundamento -, tendo as mesmas sido notificadas das decisões das autoridades administrativas que lhes aplicaram coimas, a ANAC, no caso do acórdão recorrido, e o INAC, no caso do acórdão fundamento, e ambas usaram da faculdade de impugnação judicial dessas decisões, nos termos do artigo 59.º do RGCO.

IX. Conhecendo dos recursos, os acórdãos concluíram, porém, em contradição um com o outro, com fundamentação de direito antagónica.

X. Acontece, porém, que no âmbito do Proc. n.º 204/22.5YUSTR.L1-A.S1, por acórdão de 08/11/2023, também desta Secção, foi já reconhecida a oposição de julgados em causa, tendo-se determinado o prosseguimento do processo, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do C.P.P., pelo que ter-se-á de ordenar a suspensão dos termos deste recurso até ao julgamento naqueles autos.

XI. Nestes termos, acorda-se em julgar verificados todos os pressupostos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, incluindo o pressuposto substancial da oposição de julgados, suspendendo-se os termos do presente recurso até ao julgamento no mencionado Proc. n.º 204/22.5YUSTR.L1-A.S1 (art. 441.º n.º 2, do C.P.P.).

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Deutsche Lufthansa Aktiengesellschaft interpôs, em 03/03/2023, recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art 437.º n.º 2, do C.P.P., do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão), de 21/01/2023, e transitado e julgado em 13/02/2023, concluindo a sua Motivação nos seguintes temos (Transcrição):

a. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o Acórdão de que ora se recorre, julgando improcedente o recurso apresentado pela Recorrente e mantendo a decisão de não admissão da impugnação judicial, por intempestiva.

b. Apesar de o Acórdão Recorrido reconhecer que o prazo previsto no artigo 59.º RGCO é um prazo administrativo, concluiu pela não aplicação das dilações previstas no artigo 88.ºdo Código de Procedimento Administrativo – que, na perspetiva e interpretação da Recorrente, não corresponde a uma correta interpretação e aplicação da Lei e que, no caso em apreço, culminou na não aceitação da impugnação judicial.

c. A decisão em apreço não é passível de recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos previstos nos artigos 432.º e 400.º do Código de Processo Penal.

d. É, porém, admissível recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 437.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO, por o Acórdão Recorrido estar em contradição frontal e expressa com outro Acórdão, já transitado em julgado, do domínio da mesma legislação, mesmos factos e sobre a mesma questão fundamental de direito.

e. A este respeito, esclareça-se que não existe qualquer norma no RGCO (aplicável ex vi artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 29-B/2020 de 28 de junho) que proíba o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, nem resulta do RGCO a inadmissibilidade desse recurso, pelo que haverá de recorrer-se às normas do Código de Processo Penal, para onde o RGCO remete.

f. No que diz respeito a este recurso extraordinário, os factos em apreço quer no Acórdão Recorrido, quer no Acórdão Fundamento são em tudo semelhantes e comparáveis: uma companhia aérea foi notificada de uma decisão de aplicação de coima pelo INAC/ANAC na sua sede, em país Europeu; por ser residente e ter sido notificada no estrangeiro, a Recorrente entendeu que o prazo para apresentação do recurso dessa decisão administrativa seria de 35dias, em virtude da aplicação da dilação de 15 dias, prevista no artigo 88.º, n.º 1, alínea b) do Código de Procedimento Administrativo; a Recorrente apresentou a impugnação judicial após os 20dias previstos no artigo 59.º do RGCO, mas dentro do prazo total de 35 dias que considerou ser aplicável; a impugnação foi julgada intempestiva, por se considerar que a suprarreferida dilação não era aplicável.

g. O que diferencia os Acórdãos em apreço é o facto de, perante a questão jurídica acerca da aplicabilidade da dilação prevista no Código de Procedimento Administrativo ao prazo de impugnação judicial da decisão de aplicação de coima previsto no artigo 59.º do RGCO, o Acórdão Recorrido ter concluído pela não aplicação da figura da dilação no processo contraordenacional enquanto, no Acórdão Fundamento, se reconheceu que essa dilação é aplicável.

h. A Recorrente depara-se, assim, com a existência de duas decisões opostas perante factos em tudo idênticos, sendo que o resultado prático de uma e outra decisão também não podia ser mais díspar: enquanto no Acórdão Recorrido se conclui pela manutenção da decisão recorrida e não admissão da impugnação judicial, o Acórdão Fundamento determinou que a decisão fosse substituída por outra, que considere tempestivo o requerimento de impugnação judicial e aprecie o recurso.

Mas mais,

i. Independentemente da obtenção de justiça no caso em concreto, a fixação de jurisprudência que ora se procura é motivada não (apenas) pelo interesse pessoal da Recorrente, mas pela necessidade de oferecer segurança jurídica a uma questão absolutamente crucial para o exercício do direito de defesa em âmbito de processo contraordenacional: a determinação do prazo aplicável.

j. Considerando a matéria em apreço, está, também, preenchida a ratio deste recurso, uma vez que se pretende “…fixar critérios para a interpretação e aplicação uniformes do direito pelos tribunais com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei” (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 24 de março de 2021, no processo n.º 64/15.2IDFUN.L1-A.S1, Relator Nuno Gonçalves, disponível em dgsi.pt).

k. Por tudo quanto foi exposto, estão preenchidos todos os pressupostos legais para a admissibilidade do presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, i.e., estão em causa duas decisões opostas, proferidas sobre a mesma questão de direito e identidade de lei reguladora, com total identidade de factos contemplados nas duas decisões.

l. No que diz respeito à fundamentação apresentada em um e outro Acórdão, verifica-se que o Acórdão Recorrido se socorre de jurisprudência (alegadamente) relacionada para concluir que: (i) a impossibilidade de aplicação de uma dilação ao prazo previsto no artigo 59.º do RGCO não implica uma violação aos princípios constitucionais da tutela jurisdicional efetiva, da confiança, da boa fé ou da segurança jurídica; (ii) apesar de o prazo previsto no artigo 59.º do RGCO ser administrativo, daí “não resulta que deva aplicar-se o artigo 88.º do CPA, o que resulta é que o prazo de impugnação judicial aqui em causa não deve ser contínuo como os prazos judiciais (…)”; e (iii) na medida em que a disciplina autónoma do processo penal em matéria de prazos prescinde da figura da dilação, “(…) idênticos fundamentos valem para o prazo de impugnação judicial aqui em se encontra especificamente prevista nesses artigos, seja porque, como defende o digno magistrado do Ministério Público, tanto na primeira como na segunda instância, o regime subsidiário aplicável, incluindo na fase organicamente administrativa do processo de contraordenação, é o do CPP e não o do CPA (…)”.

m. Em sentido diametralmente oposto, o Acórdão Fundamento conclui que “(…) se o recurso de impugnação judicial integra a fase administrativa do processo contraordenacional e se o prazo aplicável regulado nos artigos 59.º e 60.º do RGCO tem natureza administrativa, não se vislumbram motivos atendíveis para recusar a aplicação da norma do artigo 73.º do CPA [atual artigo 88.º], que está inserida no regime geral dos prazos administrativos, à semelhança do que sucede com as regras previstas no artigo 72.º do mesmo diploma legal, e que só parcialmente foram transpostas para o artigo 60.º do RGCO”.

n. Neste sentido, continuou o Tribunal que “(…) quando se refere que o prazo é administrativo por contraposição ao prazo judicial pretende-se significar que se rege pelas regras atinentes aos prazos de natureza administrativa, onde se incluem as normas referentes aos prazos de defesa dos interessados relativamente às decisões administrativas, afastando-se concomitantemente as regras aplicáveis à prática de actos processuais em juízo”.

o. Assim, enquanto o Acórdão Recorrido, embora reconheça que o prazo em apreço tem natureza administrativa, exclui as regras de dilação previstas no Código de Procedimento Administrativo, o Acórdão Fundamento vem suportar a tese da Recorrente de que sendo o prazo administrativo, não se deve estabelecer qualquer restrição na aplicação do regime geral de contagem dos prazos administrativos.

p. Além de injusto e prejudicial à Recorrente – por limitar o seu direito de defesa e impossibilitando-a de sujeitar a apreciação uma decisão de aplicação de coima proferida por entidade administrativa –, o Acórdão Recorrido erra na interpretação do Direito.

q. Se é unânime que o processo contraordenacional (e prazo previsto no artigo 59.º do RGCO) tem natureza administrativa, então a contagem do prazo de interposição de recurso da decisão de aplicação de coima – decisão administrativa – deve ser efetuada nos termos do RGCO e do Código de Procedimento Administrativo.

r. Esta solução em nada constitui uma aplicação subsidiária do RGCO, ab-rogante do artigo 41º, n.º 1 do RGCO, sendo ao invés a única solução que é compatível com a reconhecida natureza administrativa do prazo de recurso previsto no artigo 59.º do RGCO – assim como é a única compatível com os princípios de justiça e segurança jurídica.

s. Qualquer solução contrária seria desprovida de sentido, sendo ilógico afirmar a natureza administrativa do prazo, com a consequência prática de o privar da extensão no tempo de que só os prazos judiciais gozam – artigos. 107.º, n.º 5 e 107.º-A do Código de Processo Penal –, sem ao mesmo tempo lhe reconhecer, também, o modo de contar o termo inicial em certas situações espaciais, termo a quo ante que lhe está implícito e que no caso da Recorrente, com sede na Alemanha, é fornecido pela norma do artigo 88º, n.º 1, b) do Código de Procedimento Administrativo, a qual deve ser aplicada a título principal.

t. O artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo é uma norma geral aplicável à contagem dos prazos administrativos, que encontra justificação na previsível maior dificuldade de acesso a elementos e preparação da defesa por parte dos interessados residentes no estrangeiro, resultante da distância a que se encontram do local onde decorre o procedimento.

u. Não atender a essa circunstância significaria legitimar uma atuação administrativa lesiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, aqui incluídas as empresas (artigo 4.º, 2ª parte do Código de Procedimento Administrativo), nacionais ou não, com o inerente risco de criação de situações de desigualdade ditadas, justamente, pelo lugar da sede da empresa; sendo certo que “A Administração Pública deve tratar de forma justa todos aqueles que com ela entrem em relação, e rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das normas jurídicas e das valorações próprias do exercício da função administrativa”, conforme exige o artigo 8.º do Código de Procedimento Administrativo, pelo que é este sentido de justiça que deve prevalecer na jurisdição e que se espera que as válvulas de segurança do sistema jurídico sejam capazes de garantir.

v. Face à natureza administrativa do prazo de recurso previsto no artigo 59.º do RGCO não restam quaisquer dúvidas que a aplicação do artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo se deverá fazer a título principal, como resulta, desde logo, da interpretação assente no uso das regras gerais de interpretação consagradas no artigo 9.º do Código Civil.

w. Pelo que o entendimento perfilhado pelo Acórdão Recorrido viola de forma intolerável os princípios da confiança, boa fé e da segurança jurídica, consagrados nos artigos 2.º e 226.º da CRP, impedindo a Recorrente de reagir judicialmente contra uma decisão sancionatória e, assim, violando o seu direito à tutela jurisdicional efetiva.

Nestes termos, e nos demais de Direito aplicáveis, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão recorrido e fixando-se jurisprudência no sentido de que são aplicáveis, à contagem do prazo previsto no artigo 59.º do RGCO, as dilações previstas no artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo.

2. O recurso em causa foi admitido, em 16/03/2023, com efeito devolutivo, por despacho da Senhora Desembargadora relatora.

3. A Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) respondeu, em 15/03/2023, ao recurso da arguida, defendendo a sua improcedência e manter-se o acórdão recorrido, devendo fixar-se jurisprudência no sentido de que o prazo de dilação previsto no artigo 88º, do Código de Procedimento Administrativo, não tem aplicação em processo de contraordenacional, porque não existe lacuna, e porque mesmo a existir, não seria aplicável o Código de Procedimento Administrativo, mas sim o Código de Processo Penal.

4. Por sua vez, o Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, respondeu, em 16/04/2023, ao recurso da arguida, no sentido de ser reconhecida a oposição de julgados e fixada jurisprudência.

5. Neste Supremo Tribunal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu, em 24/04/2023, douto parecer, concordando com a posição da sua Colega junto do tribunal recorrido e, em consequência, requerendo o prosseguimento dos termos do recurso.

Observado o contraditório, nada foi acrescentado.

6. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º e ss., do C.P.P., tem como finalidade específica evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores, assegurando, assim, a uniformização da jurisprudência e, reflexamente, os princípios da segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e da igualdade dos cidadãos perante a lei1.

Os antecedentes deste recurso parece, segundo Germano Marques da Silva2, citando os Professores Mário Júlio de Almeida Costa e Alberto dos Reis, encontrarem-se nas façanhas medievais e, mais modernamente, nos Assentos da Casa da Suplicação.

O Decreto n.º 12 353, de 22/09/1926, criou um recurso destinado à uniformização da jurisprudência, com um regime análogo ao recurso para o tribunal pleno, que viria a ser consagrado nos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1961.

Integrados no mesmo Capítulo, encontram-se três espécies deste recurso, cada uma com as suas especificidades: recurso de fixação de jurisprudência próprio sensu (arts. 437.º a 445.º), recurso de decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (art. 446.º) e recursos interpostos no interesse da unidade do direito (art. 447.º).

Iremos, por razões óbvias, apenas nos focar no primeiro.

Ora, de acordo com a doutrina3 e jurisprudência4 dominantes, constituem requisitos formais de admissibilidade deste recurso para o Supremo Tribunal de Justiça:

a. a legitimidade e interesse em agir do recorrente;

b. a interposição do mesmo no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

c. a invocação, no recurso, do acórdão fundamento, com junção de cópia deste ou do lugar da sua publicação;

d. o trânsito em julgado dos dois acórdãos; e

e. justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.

Por seu turno, são requisitos substanciais de admissibilidade:

a. existência de julgamentos da mesma questão de direito entre dois acórdãos do STJ, dois acórdãos da Relação ou entre um acórdão do STJ e outro da Relação – o acórdão recorrido e o acórdão fundamento;

b. os acórdãos em causa assentem em soluções opostas, de forma expressa e a partir de situações de facto idênticas; e

c. serem ambos proferidos no domínio da mesma legislação, ou seja, quando durante o intervalo da sua prolação não tiver ocorrido alteração legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão controvertida.

Saliente-se ainda que a jurisprudência do Supremo vai no sentido de que a expressão soluções opostas diz respeito às decisões e não aos fundamentos.

2. Ora, voltando, agora, ao caso sub judice, da análise dos elementos e peças processuais que constam dos autos, constata-se que o recorrente tem legitimidade e interesse para recorrer, o recurso em questão é tempestivo e foram observados os demais pressupostos formais.

No que concerne aos pressupostos materiais, verifica-se que o acórdão recorrido negou provimento ao recurso da arguida, mantendo a decisão judicial proferida pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, em 19/10/2022, que não admitiu o recurso de impugnação judicial da decisão sancionatória da ANAC interposto pela recorrente, por tê-lo julgado extemporâneo.

De acordo com a sua fundamentação, a ausência de dilação na regulamentação prevista nos artigos 59.º e 60.º do RGCO tem o sentido de regular a questão, não havendo lugar à aplicação do regime subsidiário previsto no C.P.P. Todavia, ainda que se entendesse ser de aplicar o regime subsidiário do C.P.P. este não prevê dilação e idênticas razões se verificam no processo de contraordenação, dada a analogia substancial entre os dois regimes no que diz respeito ao exercício do poder sancionatório do Estado, que leva a prescindir da dilação quando o arguido reside no estrangeiro. Mas, mesmo que se entendesse ser necessária a aplicação de outro regime subsidiário, o que não é o caso, não existe analogia substancial entre o regime previsto no CPA e o previsto no RGCO, na medida em que, o primeiro visa regular procedimentos administrativos que podem ser instaurados a pedido dos próprios interessados e no seu interesse, ao passo que o segundo visa regular o exercício do poder sancionatório do Estado em matéria de contraordenações.

Por seu turno, o acórdão fundamento5 que foi indicado, considerou que se a arguida tem a sua sede no estrangeiro, como era o caso, o prazo de 20 dias para apresentar o recurso apenas se inicia depois de finda a dilação de 15 dias, julgando, deste modo, procedente o recurso da arguida e, em consequência, determinou que o despacho recorrido fosse substituído por outro que considerasse tempestivo o requerimento de impugnação judicial e apreciasse o recurso.

Nestes termos, e em resumo, o que estava em causa quer no acórdão recorrido quer no acórdão fundamento era saber se tendo a arguida, pessoa coletiva, a sua sede no estrangeiro, o prazo de 20 dias estabelecido no artigo 59.º, n.º 3, do RGCO, para apresentação do recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que lhe aplica a coima só se inicia (ou não) depois de decorridos 15 dias após a notificação da decisão, nos termos do artigo 88.º, n.º 1, al. b), do novo CPA, de 2015, e do art. 73.º, n.º 1, al. b), do anterior CPA, de 1991.

A situação de facto em apreciação é, assim, idêntica em ambos os acórdãos.

Na verdade, nos dois processos, as arguidas tinham a sua sede no estrangeiro, na Alemanha - no caso do acórdão recorrido - e na Irlanda - no caso do acórdão fundamento -, tendo as mesmas sido notificadas das decisões das autoridades administrativas que lhes aplicaram coimas, a ANAC, no caso do acórdão recorrido, e o INAC, no caso do acórdão fundamento, e ambas usaram da faculdade de impugnação judicial dessas decisões, nos termos do artigo 59.º do RGCO.

Conhecendo dos recursos, os acórdãos concluíram, porém, em contradição um com o outro, com fundamentação de direito antagónica.

No caso dos presentes autos, o acórdão recorrido concluiu que não é aplicável a dilação de 15 dias prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 88.º do (novo) CPA (que, como se viu, corresponde à al. b) do n.º 1 do artigo 73.º do anterior CPA), considerando que o despacho recorrido que rejeitou, por intempestivo, o recurso de impugnação em primeira instância não merecia censura, julgando, em consequência, improcedente o recurso.

Por outro lado, no caso do processo em que foi proferido o acórdão fundamento, este entendeu que era aplicável a dilação da al. b) do n.º 1 do artigo 73.º do (anterior) CPA então vigente, pelo que revogou o despacho que não admitiu o recurso e ordenou que fosse substituído por outro que o considerasse tempestivo e o apreciasse.

Assim sendo, ter-se-á de concluir que se verifica, in casu, uma clara e inequívoca oposição de julgados, devendo o recurso prosseguir, em conformidade com o disposto no artigo 441.º. n.º 1, do C.P.P.

Acontece, todavia, que, no âmbito do Proc. n.º 204/22.5YUSTR.L1-A.S1, por acórdão de 08/11/2023, também desta Secção, foi já reconhecida a oposição de julgados em causa, tendo-se determinado o prosseguimento do processo, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do C.P.P., pelo que ter-se-á de ordenar a suspensão dos termos deste recurso até ao julgamento naqueles autos.

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em julgar verificados todos os pressupostos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, incluindo o pressuposto substancial da oposição de julgados, suspendendo-se os termos do presente recurso até ao julgamento no mencionado Proc. n.º 204/22.5YUSTR.L1-A.S1 (art. 441.º n.º 2, do C.P.P.).

Sem tributação.


*


Comunique, com cópia, ao Proc. n.º 204/22.5YUSTR.L1-A.S1.

Lisboa, 31 de janeiro de 2024

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Teresa de Almeida (Adjunta)

Ernesto Vaz Pereira (Adjunto)

_____


1. Vide Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Verbo, 1994, pg. 353., e ac.do STJ de 16/3/2022, relator o Senhor Conselheiro Nuno Gonçalves, in www.dgsi.pt.

2. Curso de Processo Penal cit., pg. 355.

3. Por todos, José Damião da Cunha e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Vol. II, 5.ª edição atualizada, Universidade Católica Portuguesa, anotação aos arts. 437.º e 438.º, e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, Rei dos Livros, pg. 169 e ss.

4. Cfr., entre outos, os acórdãos do STJ de 8/11/2023, Proc. n.º 204/22.5YUSTR.L1-A.S1, 28/9/2023, Proc n.º 919/20.2PWPRT-A.P1-A.S1, 16/3/2022, Proc. n.º 5784/18.7T9LSB.L1-A-A.S1, 10/3/2022, Proc. n.º 218/20.0GCACB-A.C1.S1, 2/12/2021, Proc. n.º 344/19.8JABRG-C.S1, e 2/12/2021, Proc. n.º 17648/08.8TDPRT-J.P1-A.S1, cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Lopes da Mota, Orlando Gonçalves, Nuno Gonçalves, M. Carmo Silva Dias, Adelaide Magalhães Sequeira e Ana Barata Brito, todos disponíveis no indicado sítio.

5. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 6/11/2023, Proc. n.º 826/13.5TBMAI.P1, cuja relatora foi a Senhora Desembargadora Maria dos Prazeres Silva e disponível no sítio referenciado.