Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3197/21.2T8STS-H.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: CONTRATO DE PERMUTA
INCUMPRIMENTO
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
INEFICÁCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
CREDOR
RESTITUIÇÃO DE BENS
COISA FUTURA
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
Data do Acordão: 06/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :

I . A resolução do contrato pelo contraente cumpridor mediante declaração à outra parte não é legalmente admissível, depois da declaração de insolvência, por ser contrária aos princípios norteadores do processo de insolvência.


II - Depois de declarada a insolvência a parte não tem o direito de resolver o contrato de permuta por declaração enviada ao administrador de insolvência, sendo a declaração de resolução ineficaz relativamente à massa insolvente, em conformidade com o princípio par conditio creditorum e atento o disposto nos artigos 102º a 105º do CIRE.


III -Num contrato de permuta de imóveis em que um dos contraentes foi declarado insolvente a declaração de resolução desse contrato pela outra parte, posterior à declaração da insolvência, não tem os efeitos previstos nos artigos 433º e 434º do Código Civil.


IV - Não tendo o contrato de permuta sido resolvido pelo autor permutante antes da declaração de insolvência e não tendo este procedido à entrega dos imóveis permutados, existe um “negócio em curso” ao qual são aplicáveis as regras do CIRE.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 3197/21.2T8STS-H.P1.SI

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª secção)


I Relatório


AA intentou ação para separação e restituição de bens, por apenso aos autos de Insolvência de Desfile Protagonista, Lda., contra a Massa Insolvente, todos os Credores da Massa Insolvente e a Insolvente/Devedora, peticionando que os RR sejam condenados na separação e restituição dos bens imóveis identificados na petição inicial.


Alegou em síntese que, no dia 17 de março de 2021, celebrou escritura de permuta com a ora insolvente, no âmbito da qual ficou estipulado que o Autor permutava com a ora insolvente 4 lotes de terreno e em troca aquela comprometia-se a construir nos referidos lotes 4 moradias, sendo uma delas a entregar ao Autor no prazo de 1 ano a contar da data da escritura, tendo sido atribuído ao negócio o valor de €200.000,00.


A ora insolvente foi adiando o início da construção das moradias, não tendo até à data iniciado qualquer obra nos lotes de terreno, nem se prevê que o faça por estar numa situação de insolvência, pelo que, tendo passado o prazo de 1 ano o Autor perdeu o interesse na construção da moradia pois precisava de ir morar na mesma nesse prazo, tendo resolvido o contrato de permuta por comunicação enviada à Administradora de insolvência na qual solicitou a anulação dos seus efeitos constitutivos e registrais, bem como a separação desses 4 lotes da massa insolvente e sua restituição ao Autor, nunca tendo a insolvente entrado na posse dos referidos prédios, mantendo-se na posse do Autor.


Concluiu que deve ser reconhecida a resolução do contrato de permuta e o Autor reconhecido como único proprietário desses lotes, não devendo ser apreendidos a favor da massa insolvente pois não lhe pertencem, devendo antes ser separados da massa e restituídos ao Autor.


Falecido, entretanto, o Autor, foi proferida sentença de habilitação dos respetivos herdeiros, habilitando-se na sua posição BB e CC.


Não tendo sido deduzida contestação por qualquer um dos requeridos, foi proferido despacho em 29.09.2023 a considerar confessados os factos alegados na petição inicial, ao abrigo do artigo 567º nº 1 do CPC, tendo sido concedido às partes prazo para apresentação de alegações por escrito.


Em 23.10.2023, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:


“Ante todo o acima exposto, julgo a presente ação improcedente e, em consequência, absolvo os requeridos do pedido deduzido, mantendo-se a apreensão dos prédios identificados a favor da massa insolvente.”


Inconformados, os Herdeiros de AA interpuseram recurso de apelação, tendo por acórdão proferido em 19.03.2024, sido revogada a sentença recorrida e, em substituição “determinou-se a separação da massa insolvente dos 4 lotes de terreno sitos na Rua..., concelho de ..., descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob os nºs ...........05, nº ...........05, nº ...........05 e nº ..........21 e sua restituição aos Apelantes.”


A Massa Insolvente interpôs recurso de revista e terminou a sua alegação com as seguintes conclusões que se transcrevem:


«1º -Em Acórdão datado de 19.03.2024 determinou o Venerando Tribunal da Relação do Porto, determinar a revogação da sentença proferida em 1.ª instância e decretar a separação da massa insolvente dos 4 lotes de terreno sitos na Rua..., concelho de ..., descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob os nºs ...........05, nº ...........05, nº ...........05 e nº ..........21 e sua restituição aos ali Apelantes / habilitados;


2º - O Venerando Tribunal, na aplicação normativa do disposto no n.º 1, alíneas a) e b) do art.º 674.º do CP Civil e enquanto âncora fundadora da legitimidade do presente recurso, interpretou e aplicou erradamente a lei substantiva endógena à questão dirimida e, consequentemente, errou na aplicação da lei processual, concretamente, as disposições do CIRE contidas nos art.ºs 102.º e 103.º daquele diploma especial;


3º -A aqui recorrente detinha, à data da declaração da insolvência e em sede de contratação de permuta, quatro (4) lotes – terrenos para construção com os artigos matriciais ...75 / Lote 2,...76 / Lote 2A, ...77 / Lote 2B e ...78 / Lote 2C e descritos predial e respetivamente, sob os números ..58, ..59, ..60 e .10 –todos sitos na Rua..., concelho de ... e as aquisições via contratos de permuta tinham, enquanto contrapartida, a edificação de moradia em benefício do permutante, AA, entretanto falecido;


4º- Entendendo o Venerando Tribunal da Relação do Porto, ancorando-se na lei geral, que os habilitados mantiveram a capacidade de resolver o contrato de permuta no âmbito do procedimento falimentar por força do não cumprimento por parte da entidade comercial insolvente e da alegada não intenção de cumprimento, defende a aqui recorrente que ao processo de insolvência, enquanto processo especial que é, devem ser aplicadas, em primeiro lugar, as regras próprias e, em seguida, as disposições gerais e comuns;


5º Tal obrigaria à ponderação, em face de eventuais questões complexas ou lacunas, de qual foi a finalidade e filosofia do instituto da insolvência de pessoa coletiva, segundo as regras interpretativas contidas no art.º 9.º do CCivil, já que, ainda que a própria lei indique qual a regra ou regras aplicáveis, a natureza, características e finalidades do processo de insolvência impõem, inevitavelmente, uma cuidadosa averiguação no sentido de aquilatar se as regras devem ser aplicadas de forma automática ou adaptada;


6º - A este respeito deve ter-se em linha de conta o disposto no art.º 1.º, n.º 1 do CIRE, norma que entronca com o princípio da igualdade dos credores e, ainda, que, no caso concreto, os habilitados do permutante intervieram no âmbito do processo de insolvência, declarando a resolução contratual, sendo que tal atuação, sufragada pelo Tribunal recorrido, convoca estes habilitados enquanto partes privilegiadas do procedimento falimentar, em prejuízo dos demais credores e em clara violação do disposto no art.º 1.º, n.º 1 do CIRE;


7º-Encontram-se igualmente violadas, no Acórdão recorrido, as normas contidas nos art.ºs 102.º - especialmente - e 103.º do CIRE e tal sucede porquanto o princípio geral quanto aos negócios ainda não cumpridos à data da declaração de insolvência é o de que o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento nos termos do art.º 102.º n.º 1 do CIRE ;


8º -Tal opção resolve-se num direito potestativo (e não numa simples atuação ad libitum) do administrador, orientado pelo vetor exclusivo do interesse da massa insolvente e, em consequência, do interesse dos credores e em obediência ao disposto no já bastamente citado art.º 1.º, n.º 1 do CIRE;


9º- Ter-se-á em linha de conta que no contexto especial da insolvência a lei, tratando-se de contrato não dotada de eficácia real, como que transmuda os deveres que normalmente - isto é, não fora a declaração de insolvência - decorreriam para o permutante, sem que a Administradora da Insolvência possa ser vista como estando vinculada ao contrato pré-existente, como se fora uma estrita sucessora da empresa devedora, já que, pelo contrário, a administradora Judicial funciona como uma representante da massa insolvente e, como tal, defensora dos interesses desta;


10º - Significa tal que, nos termos do citado art.º 102.º do CIRE -sem prejuízo do disposto nos subsequentes art.ºs 103.º a 111.º e 113.º a 118.º do CIRE -, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento;


11º - No caso concreto, aos habilitados do permutante encontrar-se-ia assacada a capacidade, não de resolução contratual, mas sim de fixação de um prazo razoável à Administradora da Insolvência para esta exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusaria o cumprimento;


12º - Ainda no combate às conclusões do douto Acórdão recorrido, sequer a ação proposta pelos habilitados pode ter o condão de valer como interpelação da Administradora da Insolvência para exercer a opção entre cumprir ou não cumprir o contrato celebrado entre as partes;


13º Se, por absurda hipótese que se não aceita, assim pudesse ser configurada a ação proposta, em que prazo deveria ser exercida a aludida opção nos termos do disposto no art.º 102.º do CIRE?


14º- É que, que nos termos do n.º 2 do artigo 102.º do CIRE, a parte não insolvente pode fixar um prazo razoável para a Administradora da Insolvência exercer a sua opção e, findo o prazo, considerar-se-á que recusa o cumprimento e não seria tal prazo o prazo da contestação, já que, se assim fosse, estaria a limitar-se o direito de defesa da insolvente, na medida em que, na prática, se lhe negava o direito a questionar o seu alegado incumprimento;


15º- A propositura da ação que veio desembocar na presente revista não possa valer como interpelação da Administradora da Insolvência para exercer a opção pelo cumprimento ou não cumprimento do contrato e desde logo porque se – outra vez por hipótese - pudesse esta ação configurar-se como uma interpelação, sempre ficaria por definir o prazo em que tal opção poderia ser exercida;


16º - O Acórdão recorrido viola, nos pressupostos da sua formulação, conclusões e decisão, o disposto nos art.ºs 1.º, n.º 1 e 102.º e seguintes do CIRE;


17º- Pugnando-se por que, da lavra dos Venerandos Juízes Conselheiros no Supremo Tribunal de Justiça ser prolatado Acórdão que, em sede de revista, declare que os herdeiros habilitados do permutante não podem beneficiar, por operante e oponível à massa insolvente, da comunicação de resolução do contrato efetuada, já após a declaração de insolvência da sociedade outorgante do contrato de permuta, designadamente face ao registo da apreensão dos ditos lotes de terreno a favor da Massa, em estrita obediência às regras do processo especial de insolvência, assim se declarando que sobre os referidos lotes de terreno não detém os seus herdeiros habilitados qualquer direito real de gozo, mantendo-se a apreensão dos prédios supra identificados a favor da massa insolvente.»


Os Recorridos contra-alegaram, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido, apresentando as seguintes conclusões:


« 2- Ao contrário do referido pela Recorrente, o Venerando Tribunal, aplicou bem o disposto no n.º 1, alíneas a) e b) do art.º 674.º do CPC e interpretou e aplicou correctamente a lei substantiva e, consequentemente, bem andou ao aplicar a lei processual e concretamente, todas as disposições incluindo as do CIRE contidas nos art.ºs 102.º e 103.º daquele diploma.


3- Ora como referido, foi celebrado um contrato de permuta mediante o qual o permutando deu àcontraparte 4 lotes de terreno dos quais era proprietário e esta se obrigou a entregar-lhe no prazo de 1 ano uma moradia que iria construir, não o tendo feito nesse prazo e tendo o permutante logrado provar ter deixado de ter interesse objectivo nessa contraprestação, tinha direito a resolver tal contrato.


4- Tal resolução do contrato de permuta comunicada à Administradora de insolvência por carta de 9.05.2022 não foi impugnada e operou-se de forma eficaz e mediante a invocação de motivo válido- nem sequer contestado nesta ação pela agora Recorrente - tendo a mesma efeito retroativo, no momento da apreensão de tais bens para a massa insolvente em 23.05.2022 já esses bens não pertenciam à massa, não era deles proprietária, nem sequer possuidora, tendo regressado à propriedade do permutante que sempre os manteve na sua posse.


5- A resolução tem efeito retroactivo (artigo 434.º do Código Civil) e equipara-se à nulidade quanto aos seus efeitos (Artigo 433.º do Código Civil).


6- Ora sendo o negócio alvo de resolução, e equiparando-se a resolução à nulidade, sendo a consequência jurídica da nulidade, invocável a todo o tempo e de conhecimento oficioso (artigo 286.º do Código Civil);


7- Sendo nulo o negócio, o mesmo tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, isto é, a entrega dos prédios ao Recorrente.


8- O que veio o Tribunal da Relação a decidir e bem sob pena de violação das normas insertas nos Artigos 432.º, 433.º, 434.º, 435.º, 436.º, 437.º, 439.º 286.º e 289.º do Código Civil.


9- Se à data da declaração da insolvência da contraparte nesse contrato de permuta, o permutante havia cumprido total e integralmente a sua prestação, estando apenas por cumprir a prestação por parte da agora insolvente, não é um negócio enquadrável nos negócios em curso cujo regime está consagrado nos arts. 102º ss do CIRE, exigindo este preceito legal para a sua aplicabilidade que não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte.


10- Mesmo nos negócios em curso aos quais seja aplicável o art. 102º do CIRE, que não é o caso dos autos, se a opção do administrador da insolvência for a de recusar cumprimento, tal acarretando, por princípio a impossibilidade de a contraparte ter direito à restituição do que prestou, ainda assim nesse preceito legal está prevista no nº 3 uma salvaguarda para as situações em que haja direito à separação da coisa indevidamente apreendida para a massa insolvente, relativamente às quais os direitos à separação e restituição podem continuar a ser exercidos nos termos dos arts. 141º a 146º do CIRE.


11- Em nenhum dos cenários estava vedado ao permutante, que havia cumprido totalmente a sua prestação, o direito de resolver o contrato de permuta verificado um dos fundamentos legais a que a lei atribui tal direito- como é o caso da falta de interesse objectivo no cumprimento tendo direito a pedir a separação da massa insolvente dos bens objecto do contrato por si resolvido por tais bens já não pertencerem à massa insolvente na data da apreensão, tendo voltado à propriedade do permutante por força do efeito retroactivo da resolução operada de forma válida e eficaz.


12- Por outro lado, o Tribunal da Relação resolveu e bem colocar justiça numa sentença proferida em 1.ª Instância de forma injusta, pois poderiam ver os outros credores a serem beneficiados com os prédios do contra alegante, que pagou também todas as despesas, taxas, licenças, etc, relacionadas com o momento anterior ao início das obras, esperou que lhe entregassem a construção de uma moradia pronta em virtude do contrato de permuta, e… a final pudesse não vir a receber nada!


13- Assim, reparo nenhum deve ser feito ao Acórdão proferido.»


Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II. Fundamentação


A questão essencial a decidir consiste em saber quais os efeitos da resolução do contrato de permuta comunicada pelo autor à administradora de insolvência por carta de 9.05.2022, depois de declarada a insolvência.


Factos julgados provados pelas instâncias:


a) A ora devedora “Desfile Protagonista, Lda.”, foi declarada insolvente por sentença datada de 05.04.2022, na decorrência de parecer emitido pelo AJP nomeado em sede de processo especial de revitalização a que a dita empresa se apresentou – no sentido da empresa estar insolvente -, tendo esta negado a sua situação de insolvência, o que justificou prosseguimento dos autos, com realização de prova pericial, após o que se veio a declarar judicialmente tal situação insolvencial nos termos preditos;


b) No processo principal foi determinado o prosseguimento dos autos para liquidação do activo, e nomeada administradora da insolvência a Sr.ª Dr.ª DD na sentença declaratória da insolvência, a qual veio a apreender a favor da massa insolvente, em 23.05.2022, além de outros, os seguintes bens:


. prédio urbano composto por terreno destinado a construção, com área de 212,90 m2, denominado por lote 2ª, sito na Rua..., da união das freguesias de ..., concelho de ..., a confrontar a norte com Rua..., a sul com lote 3, a nascente com Lote 2ª, e a poente com Lote 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...........05 (freguesia ...), e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...75, pela Câmara Municipal de ...;


. prédio urbano composto por terreno destinado a construção, com área de 212,90 m2, denominado por Lote 2A, sito na Rua..., da união de freguesias de ..., concelho de ..., a confrontar a norte com Rua..., a sul com Lote 3, a nascente com Lote 2B, e a poente com Lote 2, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...........05 (freguesia ...), e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...76;


. prédio urbano composto por terreno destinado a construção, com área de 211,20 m2, denominado por lote 2B, sito na Rua..., da união de freguesias de ..., concelho de ..., a confrontar a norte com Rua..., a sul com Lote 3, a nascente com Lote 2C, e a poente com Lote 2A, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...........05 (freguesia ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...77;


. prédio urbano composto por terreno destinado a construção, com área de 244,20 m2, denominado por “Lote 2C”, sito na Rua..., da união de freguesias de ..., concelho de ..., a confrontar a norte com Rua..., a sul com Lote 3, a nascente com ..., e a poente com Lote 2B, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..........21 (freguesia ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...78;


c) Aos 17.03.2021, no Cartório sito na Praceta ..., concelho de ..., perante a Notária EE, compareceram como outorgantes AA, divorciado, e FF, na qualidade de gerente e em representação da sociedade comercial “Desfile Protagonista, Lda.”, com sede na Rua ..., freguesia de ..., ..., tendo aquele primeiro declarado ser dono e legítimo possuidor dos prédios urbanos descritos em b), e o segundo outorgante, na invocada qualidade, declarou-se propor construir nos aludidos prédios urbanos quatro moradias, na decorrência do que consignaram celebrar a seguinte permuta: aquele primeiro dá à representada do segundo outorgante os prédios descritos em b), em propriedade plena, e por sua vez, a representada do segundo dá ou cede ao primeiro outorgante, como bem futuro uma moradia unifamiliar de três frentes de tipologia T-3, composta por cave, rés do chão e andar, a ser construída no prédio urbano denominado Lote 2C, sito na Rua..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...78 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número .10 da freguesia de ..., em conformidade com o previsto nos projectos (de arquitectura e de especialidades aprovados sob o processo ........21) e no caderno de encargos arquivado a pedido das partes, a que atribuem o valor de cem mil euros, sendo que tal prédio – que constitui a contraprestação da representada do segundo declarante – será entregue livre de ónus ou encargos e acabado com a respectiva licença de utilização, no prazo de um ano a contar da data deste acordo, tendo ainda os outorgantes fixado como valor total desta permuta o de duzentos mil euros, dando assim esta troca por concluída nos termos exarados, tudo como flui do teor de fls. 319 a 322 dos autos principais, que aqui se dá por integralmente reproduzido, para os devidos e legais efeitos;


d) A administradora da insolvência nomeada – Dr.ª DD – no relatório que fez juntar aos autos principais nos termos do art.º 155.º do CIRE aos 23.05.2022 -, ali declarou haver já apreendido os quatro lotes mencionados em b), mais esclarecendo que estes haviam sido objecto de permuta realizada por escritura pública datada de 17.03.2021 e que o permutante AA lhe havia comunicado a resolução do contrato de permuta com base no incumprimento da insolvente, com efeitos de restituição dos lotes apreendidos a favor da massa, e ainda que a massa insolvente se encontrava incapaz de cumprir a sua parte da permuta, razão pela qual, sendo tal obrigação infungível, o ressarcimento do citado permutante teria que ser alcançada segundo as regras dos artigos 102.º e 103.º do CIRE, encontrando-se o seu crédito reconhecido na relação de créditos definitiva, tudo como flui do teor de fls. 309-316 dos autos principais, que aqui se dá por integralmente reproduzido;


e) Mais esclareceu, a Sr.ª administradora da insolvência que para reforço da tese da impossibilidade de cumprimento da obrigação de edificar acresce o facto de que sobre os identificados bens imóveis se encontrarem constituídas garantias hipotecárias a favor de credor da insolvente, assim tendo declarado expressamente a impossibilidade de cumprir a sua parte por referência ao contrato de permuta tido lugar;


f) O registo de aquisição de tais imóveis a favor da ora insolvente foi realizado aos 01.04.2021, através da Ap. ... .. ........01 na Conservatória do Registo Predial de ..., tendo o registo da apreensão a favor da massa tido lugar aos 06.12.2022, tudo como flui do teor das certidões juntas ao Apenso E (apreensão de bens), cujo processado aqui se dá por reproduzido;


g) O aqui autor AA, na data da escritura mencionada em c) assumiu o pagamento dos custos dos impostos no valor de € 6.500,00 e € 800,00 respectivamente, assumindo, ainda, o pagamento das taxas urbanísticas do pedido de comunicação prévia junto da Câmara Municipal de ... nos valores de € 551,49, € 475,48, € 472,44 e € 475,48, referentes aos quatro Lotes;


h) Após a celebração do acordo aludido em c), a insolvente, na pessoa do seu gerente, foi adiando o início da construção das moradias, não tendo até à data iniciado qualquer obra nos lotes de terreno;


i) Decorrido o prazo de um ano aludido na escritura referida em c), o autor AA perdeu o interesse na construção da moradia, pois necessitava de ir morar na mesma após tal prazo, tendo enviado comunicação à administradora da insolvência datada de 9 de maio de 2022 dando-lhe conhecimento que considerava resolvido o contrato de permuta realizado em 17 de março de 2021, solicitando que fosse reconhecida tal resolução com a consequente anulação dos seus efeitos constitutivos e registos/registrais, mais solicitando a restituição dos aludidos lotes a seu favor, caso viessem a ser apreendidos;


j) A insolvente nunca entrou na posse dos referidos prédios, nem pagou quaisquer taxas junto da Câmara Municipal de ..., sendo que não terraplanou, não limpou, não iniciou qualquer tipo de obras, mantendo-se tais prédios na posse do autor AA;


k) No âmbito do apenso de verificação e graduação de créditos, a administradora da insolvência fez constar da lista a que alude o art.º 129.º do CIRE (credor n.º 5) crédito reconhecido ao aqui autor AA, não tendo, ainda, ali sido proferida decisão, tudo como flui do processado junto ao apenso F, que aqui se dá por reproduzido.


*


A presente ação de restituição e separação de bens no processo de insolvência regulada nos artigos 146º a 148º do CIRE, tem como causa de pedir o direito de propriedade sobre prédios – cuja restituição se requer, por terem sido alegadamente indevidamente apreendidos.


O autor AA, arrogava-se proprietário dos 4 lotes de terreno apreendidos no dia 23.05.2022 para a massa insolvente/Recorrente, por ter resolvido em 9.05.2023, por comunicação rececionada pela Administradora de Insolvência, o contrato de permuta celebrado em 17.02.2021 com a agora insolvente no qual tais prédios haviam sido dados em permuta.


Como decidiram as instâncias o contrato em causa, celebrado em 17.02.2021, entre o autor e a sociedade Desfile Protagonista Lda. é um contrato de permuta ( também denominado contrato de troca ou escambo) de bens presentes por bens futuros.


No documento que titula o contrato, o autor AA, declarou ser dono e legítimo possuidor dos prédios urbanos acima descritos em b) – quatro lotes de terreno destinados à construção – e, nessa qualidade, dar à sociedade “Desfile Protagonista, Lda.” tais prédios em propriedade plena, tendo a referida sociedade declarado, em troca, propor-se construir nos aludidos prédios urbanos quatro moradias, dando e cedendo àquele AA, como bem futuro uma moradia unifamiliar de três frentes de tipologia T-3, no prazo de um ano a contar da data da outorga do acordo.


O contrato de troca, de permuta ou escambo era um contrato legalmente típico no Código Civil de 1867, estando definido pelo artigo 1592º, que estipulava: “ Escambo ou troca é o contrato, por que se dá uma coisa por outra, ou uma espécie de moeda por outra espécie dela.”


O elemento caraterístico do contrato de permuta e que o distingue da compra e venda, consiste na ausência de qualquer objeto monetário que no contrato desempenhe a função de meio de pagamento.


O contrato de troca ou permuta não foi selecionado para o elenco dos contratos especialmente regulados no Código Civil, sendo-lhe aplicável, nos termos do artigo 939º deste diploma, as normas da compra e venda, na medida que sejam conformes com a sua natureza..


Sobre as caraterísticas do contrato de troca ou permuta, escreve, Menezes Leitão, em Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 170, o contrato da troca ( permuta ou escambo), “é um contrato atípico, uma vez que o seu regime não se encontra tipificado na lei, sendo construído por mera remissão para o regime da venda ( artigos 939º do C.C e 480 do C.Com). (…)


A troca é um contrato consensual, uma vez que não exige a tradição para que o contrato se constitua, antes pelo contrário ambas as partes ficam obrigadas à entrega das coisas trocadas (artigo 879º al. b), não se estando perante um contrato real quoad constitutionem.


A troca é, por um lado, obrigacional, porque faz surgir a obrigação de entrega para as duas partes (alínea b) do art.º 879.º do CC) e real quoad effectum, uma vez que a propriedade dos bens trocados se transmite por mero efeito do contrato (art.º 879.º, alínea a) e 408.º, n.º 1, do CC). (…)


A troca é ainda um contrato sinalagmático, uma vez que as obrigações das partes constituem-se, tendo a sua causa uma na outra (sinalagma genético) e permanecem ligadas por uma relação de reciprocidade interdependência durante a fase de execução do contrato (sinalagma funcional). São, assim, aplicáveis à troca os institutos que pressupõem o sinalagma contratual, como a exceção do não cumprimento ( arts 428º e ss), caducidade do contrato por impossibilidade de uma das prestações ( artigo 795º n.º 1 e a resolução por incumprimento. ( 801º n.º2).”


O autor baseia a sua pretensão por ter resolvido o contrato de permuta em causa, através de uma comunicação escrita endereçada à administradora da insolvência, datada de 09 de maio de 2022, a que a Administradora de Insolvência não respondeu e por efeitos dessa resolução, nos termos dos artigos 434º n.º 1 e 289º n.º 1 do Código Civil, estava-lhe vedado apreender os bens em 23.05.2022, como fez.


O acórdão recorrido decidiu que o autor tinha fundamento para resolver o contrato de permuta, nos termos dos artigos 801º nº 1 e 808º do Código Civil, por perda de interesse dele, em consequência do atraso no cumprimento, dado ter ficado expressamente provado que decorrido o prazo de um ano aludido na escritura de permuta o permutante AA perdeu o interesse na construção da moradia, pois necessitava de ir morar na mesma após tal prazo.


No entanto, saber se o autor tinha ou não fundamento para resolver o contrato de permuta não é determinante para a questão a decidir, atendendo que a declaração de resolução apenas ocorreu em 09.05.2022, após ter sido declarada a insolvência aos 05.04.2022.


Importa, pois, apreciar e decidir se é legalmente admissível a resolução do contrato de permuta pelo autor depois de ter sido declarada a insolvência da contraparte.


A sentença de 1ª instância decidiu que “não se pode julgar juridicamente operante e oponível à massa insolvente, a comunicação de resolução do contrato efetuada pelo autor, já após a declaração de insolvência da sociedade outorgante do predito contrato de permuta, designadamente face ao registo da apreensão dos ditos lotes de terreno a favor da Massa, em estrita obediência às regras insolvenciais.”


Adiantou a seguinte fundamentação (extratos relevantes):


(…) por efeito daquele contrato celebrado em 17.03.2021 (escritura pública), a sociedade “Desfile Protagonista, Lda.” adquiriu, validamente, o direito de propriedade dos referidos prédios, sendo que tal aquisição foi submetida a competente registo predial (a favor da ora insolvente) em 01.04.2021, através da Ap. ... .. ........01 na Conservatória do Registo Predial de ..., tendo o registo da apreensão a favor da massa insolvente tido lugar aos 06.12.2022 (v. facto f) acima elencado). Isto equivale a concluir que a administradora da insolvência “limitou-se” a cumprir com as suas funções neste domínio insolvencial, apreendendo os bens que pertenciam à sociedade insolvente, sem que qualquer limitação a tal direito de propriedade se descortine ou descortinasse. (….)


Assim, quando a Sr.ª administradora da insolvência apreendeu os ditos lotes de terreno a favor da massa insolvente actuou de modo conforme às suas funções e em obediência aos ditames legais aplicáveis, por aquela apreensão ter sido efectuada ao abrigo do disposto nos artigos 46.º e 149.º do CIRE, normas de que resulta deverem ser apreendidos e integrados na Massa todos os bens do insolvente susceptíveis de penhora.


Argumenta o aqui autor que terá resolvido o contrato de permuta em causa, através de uma comunicação escrita endereçada à administradora da insolvência (…)


Certo é que apenas veio a exteriorizar tal vontade em 9 de maio de 2022, após ter sido declarada a insolvência aos 5.4.2022, tendo a administradora da insolvência nomeada – Dr.ª DD – no relatório que fez juntar aos autos principais nos termos do art.º 155.º do CIRE aos 23.05.2022 -, declarado haver já apreendido os quatro lotes em causa, e que a massa insolvente se encontrava incapaz de cumprir a sua parte da permuta, razão pela qual, sendo tal obrigação infungível, o ressarcimento do citado permutante teria que ser alcançada segundo as regras dos artigos 102.º e 103.º do CIRE, encontrando-se o seu crédito reconhecido na relação de créditos definitiva a juntar ao competente apenso.


Todo este quadro fáctico leva-nos, de acordo com as regras da experiência comum, a perceber que a falta de interesse no cumprimento do contrato por banda do aqui autor se terá ficado inarredavelmente - e apesar do alegado pelo mesmo (e dado como provado dada a ausência de oposição tempestiva) -, ligada ao facto de ter sobrevindo a declaração de insolvência (só após a mesma é que veio exteriorizar aquela vontade).


Ora, a apreensão dos ditos lotes a favor da massa insolvente encontra-se devidamente registada a favor da massa, prevendo o art.º 435.º, n.º 1, do Código Civil que “a resolução, ainda que expressamente convencionada, não prejudica os direitos adquiridos por terceiro”, o que equivale a dizer que tendo a massa insolvente (terceiro para aqueles efeitos) apreendido legitimamente tais bens, não poderá o aqui autor pretender opor aquela suposta resolução contratual, tanto mais que inexiste qualquer “acção de resolução e seu registo” a favor do autor, a ponderar, que seja anterior ao registo da apreensão levada a cabo a favor da massa insolvente (cfr. n.º 2 do aludido art.º 435.º do CC).-


A administradora da insolvência entendeu que o presente caso teria que obter resposta no quadro normativo previsto no CIRE, no domínio dos efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso, nos termos definidos nos art.ºs 102.º e 103.º do aludido diploma legal, e ao abrigo desta leitura declarou recusar cumprir o contrato de permuta “sub judice”, partindo do pressuposto que o mesmo se mantinha válido e operante. Com efeito, e até à data da declaração da insolvência (decorrido cerca de um ano após a outorga da aludida permuta), o autor não exerceu qualquer pretensão resolutiva nem disso deu quaisquer mostras, apesar de ter ficado demonstrado que a “Desfile Protagonista” nunca entrou na posse dos terrenos, nem ali levou a cabo qualquer trabalho ou obra.


Nestes termos, parece-nos que o verdadeiro incumprimento do contrato só vem a efectivar-se com a recusa operada pela administradora da insolvência (na declaração que fez juntar no relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE), declaração aquela realizada em nome da massa insolvente para todos os efeitos de carácter patrimonial (art.º 81.º, n.º 4, do CIRE). E apesar de surgirem alguns escolhos na opção pela aplicação do regime previsto nos referidos artigos 102.º e ss., designadamente quanto à densificação legal do conceito de “negócios em curso”, certo é que no caso dos autos, somos de entender, que terá sempre que se fazer apelo a tal conceito, dado que o contrato não havia sido resolvido antes da declaração da insolvência, encontrava-se válido e operante, e uma “parcela particularmente relevante encontrava-se em aberto”, é dizer, a contraprestação assumida pela ora insolvente de proceder à construção de uma moradia a favor do ora autor. Seguimos de perto os ensinamentos de Oliveira Ascensão in “Insolvência: Efeitos sobre os negócios em curso”, ROA, Ano 65, setembro de 2005, pág. 290 e ss., (…)»


O acórdão recorrido revogou a sentença recorrida e considerou válida e eficaz a resolução, com a seguinte fundamentação (extratos relevantes):


“Antes da apreensão dos referidos prédios ter sido concretizada pela Administradora da insolvência- a apreensão data de 23.05.2022 e o registo só ocorre em 6.12.2022- havia já ocorrido a extinção do contrato de permuta, por comunicação da resolução em 9.05.2022.


Isto porque a parte adimplente (ou não inadimplente) pode resolver imediatamente o contrato mediante declaração, escrita ou verbal, à outra parte (art. 436º nº 1) e, a resolução opera imediatamente, de pleno direito, no momento em que essa declaração chega ao poder ou esfera de acção da parte inadimplente ou é dela conhecida (art. 224º nº 1).


A resolução importa a extinção do contrato e a respectiva restituição de tudo o que as partes houverem recebido, já que tem efeito retroactivo (arts. 434º e 289º CC), colocando o lesado na situação em que estaria se não tivesse sido celebrado o negócio.


Deste modo, não tendo sido impugnada a resolução do contrato de permuta comunicada à Administradora de insolvência por carta de 9.05.2022, operada de forma eficaz e mediante a invocação de motivo válido- nem sequer questionado nesta ação pelos Apelados- tendo a mesma efeito retroativo, no momento da apreensão de tais bens para a massa insolvente já esse bens não lhe pertenciam, não era deles proprietária, nem sequer possuidora, tendo regressado à propriedade do permutante que sempre os manteve na sua posse.


Nem sequer impede tal efeito a invocação do disposto nos arts. 102º e 103º do CIRE, contrariamente ao declarado pela Administradora de insolvência no seu relatório apresentado nos termos do art. 155º do CIRE e utilizado como argumento na sentença recorrida, pura e simplesmente porque os mencionados preceitos legais não são aplicáveis ao caso dos presentes autos.


Senão vejamos.


Nos termos do art. 102º do CIRE, referente aos efeitos sobre os negócios em curso, contrariamente ao que a nomenclatura desse preceito legal possa induzir, não estamos perante um princípio geral quanto a todos os negócios ainda não cumpridos à data da declaração de insolvência nos quais a insolvente figure como parte.


Conforme esse preceito legal refere “em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.”


Não bastasse o teor literal do referido art. 102º nº 1 do CIRE apontar para a sua aplicação apenas aos contratos em que nenhuma das partes tivesse cumprido totalmente, também toda a doutrina de forma consistente defende que basta que esse cumprimento total se verifique por uma das partes para que o art. 102º não seja aplicável.


Assim escrevem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, de forma perfeitamente clara ao referir-se ao art. 102º do CIRE, que “para além de só se aplicar a contratos bilaterais, ser necessário que não haja cumprimento total dos mesmos, nem pelo insolvente, nem pela outra parte. Como assinala Luís M. T. Menezes Leitão (Código da Insolvência, ed. cit, págs 132 e 133), é rara a hipótese de não haver, de nenhuma das partes, cumprimento total do contrato.


E, na formulação da lei, basta que esse cumprimento se verifique por uma delas, para o art. 102º já não se aplicar.


Em suma, este preceito só se aplica se se mostrarem preenchidos três requisitos:


a) natureza bilateral do contrato;


b) não cumprimento total de ambas as partes;


c) inexistência de regime diferente para os negócios especialmente regulados nos artigos seguintes.”


No mesmo sentido Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (Direito da Insolvência, 3ª edição, pág. 181/182) que cita também Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, “O novo regime insolvencial da compra e venda”, em RFDUP 3 (2006), pp 521-559 (537) segundo o qual ficam excluídos desta disposição os negócios unilaterais, os contratos unilaterais, os contratos bilaterais imperfeitos, assim como aqueles contratos bilaterais sinalagmáticos em que uma das partes já tenha cumprido na íntegra.”


Assim também defendem Alexandre de Soveral Martins (Um Curso de Direito de Insolvência, 2015, pág. 143), Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, pág. 207/208), Ana Prata Jorge Morais Carvalho e Rui Simões (CIRE Anotado, 2013, pág. 292/293) e Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, pág. 225).


Mesmo o Prof. Oliveira Ascenção (que apesar de citado na sentença recorrida não terá sido devidamente atendido o entendimento perfilhado por esse Autor), segue precisamente igual ensinamento, apesar de lhe parecer incompreensível a opção legislativa, conforme escreveu na Revista Themis (Revista da FDUNL, 2005, pág. 112) e que citamos ipsis verbis para total compreensão (…)


A este propósito, sabemos que o permutante AA havia cumprido total e integralmente a sua prestação, havia dado em permuta os referidos bens imóveis, apenas estava totalmente por cumprir, à data da declaração da insolvência da contraparte nesse negócio, a prestação por parte da agora insolvente.


Concluímos, pois, não ser um negócio enquadrável nos negócios em curso cujo regime está consagrado nos arts. 102º ss do CIRE.


Não olvidamos que a qualificação do contrato de permuta como um negócio em curso, com a consequente suspensão do cumprimento do contrato e concessão de opção pela administradora da insolvência pela recusa de cumprimento, como sustentou, não seria despicienda no caso sub judice (se aplicável tal preceito), porquanto recusado o cumprimento pela administradora, como esta declarou, sem prejuízo do direito à separação da coisa, nenhuma das partes tem direito à restituição do que prestou ( art. 102º nº 3 al. a) do CIRE).


Sem prejuízo, mesmo nessa hipótese, tal como escreveu no citado artigo o Prof. Oliveira Ascenção, a propósito dos efeitos sobre os contratos não duradouros e as implicações dos direitos reais e da posse que “o art. 102/3 CIRE ressalva o “direito à separação da coisa”, na linha do art. 5 do Regulamento, que estabelece que a insolvência não afeta os direitos reais de credores ou terceiros ( nº 1), nomeadamente o direito de reivindicar a coisa ( nº 2).”


Isto é, mesmo nos negócios em curso aos quais seja aplicável o art. 102º do CIRE, que não é o caso dos autos, se a opção do administrador da insolvência fosse a de recusar o cumprimento, tal acarretando, por princípio a impossibilidade de a contraparte ter direito à restituição do que prestou, ainda assim nesse preceito legal está prevista uma salvaguarda para as situações em que haja direito à separação da coisa, defendendo Ana Prata que “ esta coisa será bem que pertença à outra parte e cujo direito de propriedade ( ou outro direito real), nos termos do artigo 5º, nº 1, do Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho, de 29 de maio, não pode ser afetado pela insolvência. Aliás, os artigos 141º a 146º ocupam-se da “restituição e separação de bens” indevidamente apreendidos para a massa insolvente, relativamente aos quais os direitos à separação e restituição podem continuar a ser exercidos.”


Citando Catarina Serra, cujo entendimento acompanha, entende que “ a alínea a) do nº 3 deste preceito “carece de uma interpretação restritiva para que só se aplique à restituição em espécie, prevista, por exemplo, nos casos de resolução pelo art. 289º do CC por remissão do art. 433º também do CC” , situação que sempre se verificaria no caso sub judice caso se considerasse um negócio em curso à data da declaração de insolvência, o que como vimos não concedemos.


Estes ensinamentos reforçam a ideia de que em nenhum dos cenários estava vedado ao permutante, que havia cumprido totalmente a sua prestação, o direito de resolver o contrato de permuta verificado um dos fundamentos legais a que a lei atribui tal direito- como é o caso da falta de interesse objectivo no cumprimento- tendo inclusivamente direito a pedir a separação da massa insolvente dos bens objecto do contrato por si resolvido por tais bens já não pertencerem à massa insolvente na data da apreensão, tendo voltado à propriedade do permutante por força do efeito retroactivo da resolução operada de forma válida e eficaz.


Por conseguinte, na procedência deste argumento recursivo, têm os Apelantes direito a que os bens imóveis identificados nos autos, indevidamente apreendidos para a massa insolvente, sejam separados desta e lhes sejam restituídos, livres de ónus e encargos, tal qual existiam à data da celebração do contrato de permuta entretanto resolvido.


*


A Recorrente sustenta que o acórdão recorrido violou o princípio da igualdade de tratamento dos credores e o disposto nos artigos 1º e 102º e 103 º do CIRE.


O artigo 1º n.º 1 do CIRE, estipula:


“1 - O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.”


Deste normativo decorre que a insolvência é uma execução coletiva, que não se destina à satisfação do direito individual de cada credor, mas antes visa o tratamento igualitário de todos os credores do devedor ( par conditio creditorum), dado que a situação económica do devedor torna previsível que nem todos os credores verão satisfeitos o seu crédito.


Neste sentido Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2ª edição, pág.167, escreve: “a razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade (par conditio creditorum), não tendo nenhum credor quaisquer outros privilégios ou garantias, que não aqueles que sejam reconhecidos pelo Direito da Insolvência e nos precisos termos em que este os reconhece.”


Nuno Oliveira, no artigo Efeitos da Declaração de Insolvência sobre os Negócios em Curso, publicado na revista “ I Congresso de Direito da Insolvência”, 2013, pág. 201, interpretando o artigo 1º do CIRE, refere que este normativo está a dizer duas coisas:


“- que a declaração de insolvência tem como efeito a substituição do direito a uma prestação pelo direito ao valor de uma prestação;


- que a declaração de insolvência tem como efeito a substituição do direito ao valor de uma prestação pelo direito ao valor de parte da prestação.”


De seguida, invoca o artigo 47º do CIRE (Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre a insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência) sobre a do CIRE e escreve que o seu texto “confirma que a extinção do direito natural do credor ao cumprimento específico do contrato é tão só um afloramento da limitação generalizada dos direitos naturais dos credores.”


Como refere Catarina Serra, em “ O Regime Português da Insolvência”, pág. 56 e ss, os efeitos da declaração de insolvência destinam-se a tornar mais fácil a satisfação paritária dos interesses dos credores ou, pela negativa, impedir que, após a declaração de insolvência algum credor obtenha uma satisfação mais eficaz do que e ( em prejuízo de) os restantes credores.


Os efeitos da declaração da insolvência têm subjacente o princípio da igualdade dos credores ( par conditio creditorum) e é este que deve orientar a aplicação das normas que os consagram.


A par conditio creditorum corresponde a uma exigência de “justiça distributiva” – de distribuição de sacrifício, de comunhão no risco ou de comunhão de perdas.


A declaração de insolvência não faz mais que reconhecer uma situação de facto- a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações – e desencadear a aplicação das providências adequadas ( cf. Catarina Serra, em Lições de Direito de Insolvência ( 2018), pág. 138)


O referido princípio acarreta uma limitação generalizada dos direitos dos credores, com a declaração de insolvência.


Desde logo o artigo 88º n.º 1 do CIRE estipula que a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência.


Uma manifestação dessa limitação dos direitos dos credores são as normas que regulam os efeitos sobre os “ negócios em curso” – artigos 102º a 119º do CIRE.


Em relação aos negócios em curso, o n.º 1 do artigo 102 do CIRE fixa o princípio da suspensão do cumprimento declarada a insolência até que o administrador de insolvência declare optar pela execução do contrato ou a recusa do seu cumprimento.


O acórdão recorrido decidiu que o contrato de permuta em causa, não integra a previsão do artigo 102º do CIRE e a Recorrente sustenta o contrário.


O citado artigo estipula:


“1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.


2 - A outra parte pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento.


3 - Recusado o cumprimento pelo administrador da insolvência, e sem prejuízo do direito à separação da coisa, se for o caso:


a) Nenhuma das partes tem direito à restituição do que prestou;


b) A massa insolvente tem o direito de exigir o valor da contraprestação correspondente à prestação já efectuada pelo devedor, na medida em que não tenha sido ainda realizada pela outra parte;


c) A outra parte tem direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada;


d) O direito à indemnização dos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento:


i) Apenas existe até ao valor da obrigação eventualmente imposta nos termos da alínea b);


ii) É abatido do quantitativo a que a outra parte tenha direito, por aplicação da alínea c);


iii) Constitui crédito sobre a insolvência;


e) Qualquer das partes pode declarar a compensação das obrigações referidas nas alíneas c) e d) com a aludida na alínea b), até à concorrência dos respectivos montantes.


4 - A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável.”


Este artigo 102.º do CIRE, como é entendimento pacifico na doutrina e jurisprudência, não contém um princípio tão geral como a sua epígrafe sugere e a solução que consagra tem que ser integrada e completada pelos artigos seguintes. Certo é que o regime aí estabelecido é fundamentalmente um regime para contratos em curso ou em fase de execução, em que não há ainda cumprimento total do contrato por qualquer uma das partes.


E daí que a doutrina tenha sublinhado que o regime dos artigos 102.º e seguintes do CIRE não se aplica a contratos que já foram resolvidos anteriormente à data da declaração de insolvência, encontrando-se agora em uma fase de liquidação ( cf. neste sentido Ac. do STJ de 29.07.2016, proc. 193/13.0TBBRG-H.G1.S1, relator Júlio Gomes).


O douto acórdão recorrido considerou corretamente, com apoio unânime dos autores que cita, que o artigo 102º do CIRE, só se aplica a contratos bilaterais e ser necessário que não haja cumprimento total dos mesmos, nem pelo insolvente, nem pela outra parte.


De seguida, decidiu que o autor/ permutante tinha cumprido total e integralmente a sua prestação, tendo dado em permuta os referidos bens imóveis, apenas estava totalmente por cumprir, à data da declaração da insolvência da contraparte nesse negócio, a prestação por parte da agora insolvente.


Daí concluiu que tem o autor cumprido integralmente a sua prestação, não se estava perante um “negócio em curso” a que fosse aplicável o regime consagrado nos arts. 102º ss do CIRE.


No entanto, o acórdão recorrido não considerou que está provado que a insolvente nunca entrou na posse dos prédios objeto da permuta mantendo-se os mesmos na posse do autor AA.


Ora, uma das obrigações principais do autor enquanto permutante era entregar à contraparte os prédios em causa, como resulta do disposto na alínea b) do art.º 879.º do Código Civil, aplicável por foça do artigo 939º do mesmo diploma.


Assim sendo e considerando ter sido a resolução efetuada posteriormente à declaração de insolvência, estamos perante um negócio em curso, a que é aplicável, o disposto no artigo 102º do CIRE.


A Recorrente sustenta que deve ser também aplicável o disposto no artigo 103º do CIRE, que apesar da epigrafe- prestações indivisíveis-, regula as prestações de natureza infungível e as prestações divisíveis.


Este artigo dispõe:


“1 - Se o contrato impuser à outra parte o cumprimento de prestação que tenha natureza infungível, ou que seja fracionável na entrega de várias coisas, não facilmente substituíveis, entre as quais interceda uma conexão funcional, e o administrador da insolvência recusar o cumprimento:


a) O direito referido na alínea b) do n.º 3 do artigo anterior é substituído pelo direito de exigir à outra parte a restituição do que lhe tiver sido prestado, na medida do seu enriquecimento à data da declaração de insolvência;


b) O direito previsto na alínea c) do n.º 3 do artigo anterior tem por objeto a diferença, se favorável à outra parte, entre os valores da totalidade das prestações contratuais;


c) A outra parte tem direito, como credor da insolvência, ao reembolso do custo ou à restituição do valor da parte da prestação realizada anteriormente à declaração de insolvência, consoante tal prestação seja ou não infungível.


2 - A outra parte tem direito, porém, a completar a sua prestação e a exigir, como crédito sobre a insolvência, a parte da contraprestação em dívida, caso em que cessa o disposto no n.º 1 e no artigo anterior.


3 - Se o administrador da insolvência não recusar o cumprimento, o direito da outra parte à contraprestação só constitui crédito sobre a massa no que exceda o valor do que seria apurado por aplicação do disposto na alínea c) do n.º 1, caso o administrador da insolvência tivesse optado pela recusa do cumprimento.


4 - Sendo o cumprimento de uma prestação do tipo das referidas no n.º 1 imposto pelo contrato ao insolvente, e recusando o administrador esse cumprimento:


a) O direito referido na alínea b) do n.º 3 do artigo anterior cessa ou é substituído pelo direito à restituição do valor da parte da prestação já efeituada anteriormente à declaração de insolvência, consoante essa prestação tenha ou não natureza infungível;


b) Aplica-se o disposto na alínea b) do n.º 1, tendo a outra parte, adicionalmente, direito ao reembolso do que já tiver prestado, também como crédito sobre a insolvência.


5 - Sendo o cumprimento de uma prestação do tipo das referidas no n.º 1 imposto por contrato ao insolvente e não recusando o administrador esse cumprimento, o direito da outra parte à contraprestação em dívida constitui, na sua integralidade, crédito sobre a massa.


6 - Se a prestação de natureza infungível se desdobrar em parcelas autónomas e alguma ou algumas destas já tiverem sido efetuadas, o disposto nos números anteriores apenas se aplica às demais, repartindo-se a contraprestação por todas elas, pela forma apropriada.”


Segundo Maria Rosário Epifânio, em Manual do Direito de Insolvência, 8ª edição, pp. 218 e 219, o regime jurídico - insolvencial desses contratos é regulado com referência ao princípio geral estabelecido no artigo 102º.


Na hipótese, que agora importa, de o contraente insolvente ser o devedor e recusar o administrador da insolvência o cumprimento, escreve a pág. 219 “o direito referido na alínea b) do n.º 3 do artigo 102º cessa ou é substituído pelo direito à restituição do valor da prestação já efetuada anteriormente à declaração de insolvência, consoante essa prestação tenha ou não natureza infungível; aplica-se o disposto na alínea b) do n.º1 do artigo 103º, tendo a outra parte, ainda, direito ao que tiver prestado como crédito sobre a insolvência.”


No entanto, no caso, estando perante um contrato de troca ou permuta, como as partes aceitam, entendemos antes ser aplicável o regime específico previsto no artigo 105º do CIRE, que regula a venda sem entrega.


Este artigo dispõe:


1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 107.º, se a obrigação de entrega por parte do vendedor ainda não tiver sido cumprida, mas a propriedade já tiver sido transmitida:


a) O administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato, no caso de insolvência do vendedor;


b) A recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência, no caso de insolvência do comprador, tem os efeitos previstos no n.º 5 do artigo anterior, aplicável com as necessárias adaptações.


2 - O disposto no número anterior é igualmente aplicável, com as devidas adaptações, aos contratos translativos de outros direitos reais de gozo.


Ora, a situação em apreço, contrato de permuta, validamente celebrado, com a consequente transferência da propriedade dos prédios ( artigo 879º al. a) do CC) , mas sem entrega dos mesmos pelo permutante, atento o disposto o n.º 2 do citado artigo 105º e artigo 939º do Código Civil, está expressamente regulada no seu n.º 1 do artigo 105º do CIRE. ( cf. no sentido da aplicabilidade deste artigo ao contrato de permuta, atento o disposto no artigo 939º do CC, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2ª edição, pág. 495, em anotação ao citado artigo 105 e José Oliveira Ascensão, no artigo “Insolvência: Efeitos Sobre os Negócios em Curso”, publicado na Separata da Revista da Faculdade de Direito da UNL, pág. 123, nota de rodapé 22, em sentido contrário Menezes Leitão, CIRE anotado, 5ª edição, pág. 145).


Aplicando-se o regime previsto no artigo 105º do CIRE, por força do disposto no n.º 1 al. b) do citado artigo, sendo, no caso o insolvente equiparado ao comprador (que não efetuou a prestação acordada como contrapartida à transferência da propriedade dos terrenos efetuada pelo autor), devia aplicar-se o disposto no artigo 104º n.º 5 do CIRE que, por sua vez remete para o artigo 102º n.º 3 do CIRE, com a especialidade de o cálculo se fazer, nos termos do artigo 104º n.º 5.


Sobre o regime previsto no artigo 103ª, Catarina Serra, em Lições de Direito de Insolvência, (2018), pág. 231, escreve:“ O preceito tem uma função complementar do n.º 3 do artigo 102º. ( …) Atendendo à função que a norma desempenha no regime em que se insere – apelando ao sistema jurídico – verifica-se que o artigo 103º se relaciona sobretudo com o princípio de que “ nenhuma das partes tem direito à restituição ( em espécie) do que prestou,” contido no art. 102º, n.º 3, al. a).”


Por outro lado, no regime do artigo 105º, o administrador de insolvência pode optar pela execução do contrato ou pela recusa, nos termos gerais do artigo 102º, com a restrição de a recusa do cumprimento ter os efeitos previsto no n.º 5 do artigo 104º ( que também não prevê a restituição em espécie) , aplicável com as necessárias adaptações ( artigo 105º, n.º 1 al. b)) –( cf. neste sentido Maria do Rosário Epifânio, obra citada, pág. 221).


No entanto, para o caso em apreço, o enquadramento da situação no artigo 103º ou antes no artigo 105º não é relevante, pois em nenhum dos regimes o autor teria direito à restituição dos imóveis permutados e o montante do crédito a que os herdeiros/habilitados do autor têm direito na sequência do referido contrato de permuta, foi, inclusive, já objeto da sentença proferida no apenso de reclamação e verificação.


Em resumo, não tendo o contrato de permuta sido resolvido pelo autor permutante antes da declaração de insolvência e não tendo este procedido à entrega dos imóveis permutados, existe um “negócio em curso” ao qual são aplicáveis as regras do CIRE.


Os citados artigos 102º, 103º e 105 º do CIRE atribuem ao Administrador de Insolvência o poder de conformar ou de reconformar as relações contratuais existentes, executando o cumprimento do contrato, caso a massa insolvente esteja em condições de o fazer ou recusando o cumprimento, com as consequências indemnizatórias daí advenientes.


O n.º 2 do citado artigo 102º do CIRE confere apenas ao credor o direito de fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento.


O credor com a declaração de insolvência fica privado de emitir a declaração de resolução dos contratos em curso em que o insolvente seja parte.


A não existir essa limitação e podendo a resolução fazer-se por mera declaração à parte contrária, sendo eficaz logo que chega à sua esfera de disponibilidade material, nos termos dos artigos 436º n.º 1 e 224º n.º 1 e 2 do Código Civil e tendo efeito retroativo, nos termos do artigo 434º n.º 1 do CC, tornar-se-ia o meio do credor obter um tratamento mais favorável, em prejuízo dos demais credores, em violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores.


Como é sabido a resolução funciona como um instituto vocacionado para proteger os interesses do credor em face do incumprimento (culposo ou não culposo) da outra parte ( cf. neste sentido Brandão Proença, A Resolução do Contrato de Direito Civil pág. 128).


Ora, como supra se referiu, o processo de insolvência deve perseguir, não uma satisfação individual ou seletiva, mas sim uma satisfação coletiva e paritária – a satisfação mais completa possível do maior número de credores ( cf. Catarina Serra, Lições de Direito de Insolvência, (2018) pág. 227) .


Entendemos, assim, que a resolução do contrato pelo contraente cumpridor mediante declaração à outra parte não é legalmente admissível, depois da declaração de insolvência, por ser contrária aos princípios norteadores do processo de insolvência.


Por isso, depois de declarada a insolvência o autor/permutante não tinha o direito de resolver o contrato de permuta, por declaração enviada ao administrador de insolvência, sendo a declaração de resolução ineficaz relativamente à massa insolvente, em conformidade com o princípio par conditio creditorum e atento o disposto nos citados artigos 102º a 105º do CIRE.


O acórdão recorrido sustenta ainda, que mesmo considerando que o contrato em causa como um negócio em curso, se a opção do administrador da insolvência fosse a de recusar o cumprimento, tal acarretando, por princípio a impossibilidade de a contraparte ter direito à restituição do que prestou, o autor teria direito à resolução do contrato de permuta. nos termos do artigo 5º, nº 1, do Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho, de 29 de maio e por interpretação restritiva da alínea a) do nº 3 do artigo 102º do CIRE.


No entanto, esta argumentação adiantada a título subsidiário, não tem apoio nas normas citadas, pois, o artigo 8º n.º 1 do Regulamento ( UE) n.º 2015/848, que substituiu o Regulamento (EU) n.º 1346/2000, sem significativas alterações, limita-se a estipular que a abertura do processo de insolvência não afeta os direitos reais de credores ou de terceiros sobre bens corpóreos ou incorpóreos, tendo o direito de reivindicar o bem ( n.º 2 al. c).


Ora, nos termos do artigo 46º n.º 1 do CIRE a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da insolvência e no caso a propriedade dos imóveis objeto do contrato de permuta, nos termos dos artigos 879.º, alínea a) e 408.º, n.º 1, do Código Civil, transmitiu-se para a contraparte, depois declarada insolvente, por mero efeito do contrato.


No caso, o autor exerceu o direito conferido pelo CIRE de pedir a restituição dos imóveis, arrogando-se ser proprietário do mesmo, no pressuposto de ter validamente resolvido o contrato de permuta celebrado com a insolvente.


No entanto, como supra se decidiu, tendo a declaração de resolução sido posterior à declaração de insolvência, não tem os efeitos previstos nos artigos 433º e 434º n.º 1 do Código Civil e consequentemente o autor não provou ser proprietário dos imoveis cuja restituição pede.


Relativamente à interpretação restritiva da al. a) do n.º 3 do artigo 102º do CIRE, baseada no ensinamento de Catarina Serra, se bem interpretamos a sua posição, em Lições de Direito de Insolvência, edição de 2018, pág. 228, o que defende é que a aplicação da citada norma se restrinja à restituição em espécie e não à restituição em valor, que é admitida depois na al. c), através da atribuição do direito à diferença de valor entre as prestações que não tinham sido cumpridas.


Por isso, entendemos ser indefensável com base na citada norma ( al. a) do n.º 3 do artigo 102º do CIRE), ainda com a referida interpretação restritiva, que o autor tivesse direito à restituição dos imóveis.


Assim sendo, entendemos não ter fundamento legal, o pressuposto - validade e eficácia da declaração de resolução do contrato de permuta, mesmo efetuada após a declaração de insolvência- com o consequente efeito retroativo, retomando o autor a titularidade do direito de proprietário dos imóveis objeto desse contrato - em que se baseou o acórdão recorrido para julgar procedente a ação de restituição e separação de bens e, por isso, a revista tem de proceder.


III .Decisão


Pelo exposto, julga-se procedente o recurso de revista, revoga-se o acórdão recorrido e repristina-se a sentença de 1ª instância.


Custas pelos Recorridos.


Lisboa, 25.06.2024


Leonel Serôdio (Relator)


Ricardo Costa (1º adjunto)


Maria Amélia Ribeiro (2ª adjunta)