Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
652/21.8T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA RESENDE
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
Data do Acordão: 10/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO SE CONHECE DO OBJECTO DO RECURSO.
Sumário :
I- Consubstanciando-se nos autos uma decisão interlocutória executiva, a revista para o Supremo Tribunal de Justiça é admissível nas situações legalmente previstas, isto é, nos casos do disposto nos artigos 854.º e 671, n.º 2, alínea a) e b), do CPC.
II- Constitui jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal de Justiça, confirmada pelo Tribunal Constitucional, o direito de acesso aos tribunais, não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direito.                           
Decisão Texto Integral:


Revista n.º  652/21.8T8PRT.P1.S1.

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


1. O MUNICÍPIO DO PORTO interpôs execução para entrega de coisa certa  contra AUTO GARANTIA-COMÉRCIO E REPARAÇÃO DE AUTOMÓVEIS LDA.
1.1. Alega para tanto que adquiriu o prédio em causa, livre de ónus e encargos, tendo o contrato de arrendamento celebrado com a Executada sido resolvido por sentença proferida em 29.04.2019, transitada em julgado, não tendo aquela entregue o imóvel, detendo a Exequente legitimidade para o requerer em juízo.
1.2. Foi autorizada a entrega com recurso à força pública e arrombamento, 17.12.2021.
1.3.  A Executada veio informar que fora declarada insolvente devendo ser suspensa a diligência de entrega do imóvel.
1.4. A Exequente, alegando que tivera conhecimento da declaração de insolvência da Executada, veio requerer o prosseguimento da execução, porquanto o imóvel não era património da Executada à data da declaração da insolvência, pelo que a execução não atingiu os bens integrantes da massa insolvente, não se consubstanciando uma situação enquadrável no art.º 88, n.º1, do CIRE.
1.5. Por despacho de 8.03.2022 foi indeferido o pedido de prosseguimento da execução.
2. Inconformado, veio o Município do Porto interpor recurso de apelação, reiterando a pretensão antes formulada, isto é, o prosseguimento dos autos da execução.
2.1.  Em 15.06.2022 foi proferido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que concedeu provimento ao recurso e revogando o despacho recorrido, determinou o prosseguimento dos autos de execução para entrega de coisa certa relativa ao imóvel (não contemplando os bens que se encontravam no imóvel, que constituindo bens integrantes da massa insolvente podiam ser apreendidos pelo Administrador da Insolvência para os fins tidos por convenientes).
3.  Inconformada a Executada, veio interpor recurso de revista, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões: (transcritas)
- O processo de insolvência traduz-se em processo de execução universal e concursal que tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores através da liquidação do património para afetação do respetivo produto na satisfação dos direitos dos credores.
- O processo de insolvência abrange todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.
- Da declaração da insolvência decorre o poder-dever funcional do Administrador da Insolvência por ela nomeado proceder de imediato à apreensão de todos os bens que integram a massa insolvente (incluindo o produto da venda desses bens), ainda que arrestados, penhorados, apreendidos ou por qualquer outra forma detidos.
- Depois de declarada a insolvência, teleológica e processualmente a insolvência liquidatária assume-se como uma ação executiva para pagamento de quantia certa, coletiva (em contraposição com a execução singular) e genérica ou total (porque abrange todos os bens do devedor), prosseguida através de um processo especial (o processo de insolvência).
- Diversamente do decidido no douto acórdão em crise, o que está em causa não é a apreensão e entrega do imóvel, propriamente, em si, mas o que está em causa, é um imóvel no qual está integrado um estabelecimento comercial apreendido para a massa.
- A realidade da insolvência, pela sua natureza, não permite o acolhimento perfilhado pelo Tribunal da Relação que  responsabilidade limitada o imóvel já não fazia parte dos bens da insolvente, pois ele era parte integrante do bem mais valioso da mesma: o seu estabelecimento comercial.
- É ao órgão da insolvência Administrador da Insolvência que, cumprindo princípios de eficácia, celeridade e máxima otimização, e critérios objetivos de oportunidade e de racionalidade, compete decidir o que no e para o cumprimento daquele fim entender por conveniente no que respeita à apreensão e liquidação dos bens apreendidos.
- O AI, entendeu por bem apreender o estabelecimento e, em consequência, ordenar/requerer a suspensão da execução para entrega de coisa certa, mau grado as vicissitudes da presente execução, e falta de oposição à mesma por parte da recorrente/ insolvente.
- O art.º 88º nº 1 do CIRE é claro e inequívoco no sentido de que a declaração de insolvência obsta à instauração e prosseguimento de execução contra o insolvente.
- Declarada a insolvência, é neste processo que todos os seus credores, mesmo aqueles que já têm pendentes ações com vista ao reconhecimento dos seus créditos, direitos, ou execuções os visem cobrar coercivamente.
- O estabelecimento comercial da insolvente, oficina automóvel da marca ..., instalado no prédio cuja execução para entrega certa o tribunal da relação ordenou o prosseguimento da execução, é o bem mais valioso da insolvente.
- O estabelecimento comercial constitui uma universalidade de direito ( universitas iuris ), um complexo ou unidade económica que integra vários elementos, corpóreos e incorpóreos – bens móveis e imóveis, direito ao arrendamento ou à utilização do espaço, direito de uso do nome do estabelecimento, marcas, patentes de invenção, etc. -organizados para a produção, e uma vez que, como se diz no art.º 202º, nº1º, C.Civ., " pode ser objeto de relações jurídicas", deve, na realidade, ser entendido como uma coisa.
- Enquanto universalidade, o estabelecimento comercial não pode ser decomposto, atomizado, nos seus elementos componentes, mas pode existir desde que haja um núcleo essencial organizativo apto a gerar lucros.
- O direito ao arrendamento - ou, dum modo geral, à ocupação do local - é, em regra, um dos elementos da universalidade transmitida (em caso de venda), mas nem por isso, no entanto, pode afirmar-se que a inexistência de um contrato de arrendamento válido faz com que inexista estabelecimento comercial.
- O estabelecimento comercial não se confunde com os elementos que o constituem, constituindo uma realidade jurídica distinta da simples soma desses elementos, e daí que o seu valor não seja pura e simplesmente igual à soma dos valores do seu ativo considerados à margem da organização, antes implicando o simples facto dessa organização uma valorização especial para cada um desses bens, de tal modo que, enquanto elementos do estabelecimento, valem alguma coisa mais do que valeriam consideradas isoladamente, e também o valor do todo sendo superior ao da soma das suas partes.
- A norma do nº 1 do art.º 88º do CIRE impede, sem exceções, o prosseguimento da execução, estando-se por isso perante um caso de impossibilidade legal originária da lide, e o responsabilidade limitada estabelecimento cujo imóvel faz parte está sujeito à execução universal no processo de insolvência, aproveitando a todos os credores.
- Atentas as finalidades do art.º 88º do CIRE o que o legislador pretendeu foi salvaguardar os interesses e direitos dos credores, lançando-se mão a uma execução universal, proibindo-se assim que estes possam ser prejudicados através de atos executórios autónomos e sem controlo do processo falimentar.
- O ato executório – entrega de coisa certa – cujo prosseguimento foi agora determinado tem clara influência e é determinante na execução universal que se vai efetuar no processo de insolvência através do estabelecimento comercial.
- A suspensão do processo executivo justifica-se para acautelar quer, em primeiro lugar, a possibilidade dos próprios credores aprovarem um plano de recuperação da aqui recorrente, designadamente, no sentido de manutenção do estabelecimento comercial ainda que deslocado para um outro local, quer, por outro lado, a possibilidade de se proceder á venda do mesmo estabelecimento como um todo (com clientela, funcionários, marca etc..)
- O encerramento do estabelecimento da devedora (resultado prático da imediata entrega do imóvel cuja suspensão havia sido ordenada) e a passagem à liquidação do património apreendido dificilmente colocaria os credores em boa posição, pois o produto da alienação mal chegaria para pagar aos credores garantidos e privilegiados, que, consabidamente, são pagos à frente dos credores comuns.
- Ao  contrário, a venda do estabelecimento como um todo geraria enorme vantagem, sem prejuízo da devedora ter, no âmbito do processo falimentar, de entregar o imóvel à aqui recorrida.
- Não está em causa a apreensão do imóvel em si, mas sim a do estabelecimento comercial da recorrente que, por incluir a ocupação desse imóvel, e por lá estar instalada, a sua restituição deverá ser encarada à luz das regras do art.º 104 do CIRE, sob pena de inviabilizar a recuperação da própria empresa.
- A suspensão que se justifica nesta situação e que doutamente foi ordenada quer pelo Mm.º Juiz titular do processo de insolvência quer pelo Mm.º Juíz do tribunal de 1.ª instância é a mesma que se justifica e é imposta, por exemplo, ao locador, impedindo-o, no período de negociação do PER, de resolver o contrato.
- A norma do art.º 88 do CIRE tem de ser interpretada com esta máxima latitude, dando assim possibilidade aos credores de aprovarem um plano, independentemente, de, no âmbito da insolvência se entregar o referido imóvel à recorrida.
- A suspensão não impede, nem limita, a recorrida de exercer junto do referido processo de insolvência todos os seus direitos, designadamente, de ali requerer a entrega do imóvel enquanto componente do estabelecimento comercial.
- Ficando deste modo salvaguardada a possibilidade dos credores optarem – como já optaram – pela votação de um plano de recuperação que mantenha em funcionamento o estabelecimento comercial.
- Todas as questões que respeitem à massa insolvente e a interesses conexos, deverão ser resolvidas recorrendo ao quadro jurídico especialmente delineado para o efeito.
- Estando em causa a apreensão de um imóvel que integra um estabelecimento comercial (bem da massa insolvente), a eventual apreensão só pode ser exercida no âmbito daquele processo falimentar.
- Mas mesmo que assim não se considerasse, o que só por mera hipótese académica se admite, mas não se concede, perante a sentença condenatória já consolidada, sempre aquela entrega conteria com a declaração de insolvência da entidade (leia-se aqui recorrente) a quem aquela ordem se dirigia.
- A pretensão para concretização coerciva daquela entrega deveria ser direcionada contra a massa falida da ora recorrente e já não contra a própria insolvente ora recorrente, precisamente por um dos efeitos da insolvência de ordem patrimonial é a privação da mesma, quanto à administração de todos os bens ou interesses daquela natureza que digam respeito à insolvência, competindo ao respetivo  liquidatário representar a massa falida em juízo, ativa e passivamente.
- No apontado enquadramento jurídico e dada a materialidade assente - e desconhecendo-se, nomeadamente, as vicissitudes da aprovação do plano de recuperação mas não se podendo olvidar que a recorrida será um dos credores da recorrente, naturalmente, conhecedora e porventura interveniente naquele processo de insolvência-, afigura-se, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que outro deveria/deverá ser o procedimento a adotar, mantendo-se a suspensão da execução, sob pena de virem a ser postergadas as normas aplicáveis, atrás mencionadas.
- A recorrida poderá solicitar que o bem em causa seja separado da massa insolvente (separando-o do estabelecimento a que está acoplado) e que lhe seja restituído.
- A decisão recorrida violou e, ou, interpretou erradamente, o conjugadamente disposto nos artigos 1, n.º 1, 36, n.º 1 alínea g), 46, n.ºs 1 e 2, 55, 81, 88, 90, 104, 128, 146, 149 e 150 todos do CIRE e 202, n.º 1 do Código Civil.
Termos em que deve ser dado provimento a recurso e, em consequência, ser o douto acórdão em crise revogado e substituído por outro que mantenha o decidido em 1ª Instância.

3.1 A Executada nas suas contra-alegações, pronunciou-se no sentido da manutenção do decidido.

3.2. O Desembargador relator ordenou a subida dos autos a este Tribunal, para apreciação do recurso de revista interposto.
4. A ora Relatora, considerando que se delineavam obstáculos à admissibilidade do presente recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, ordenou o cumprimento do disposto no art.º 655, n.º1, do CPC.
4.1. O Recorrido corroborando o entendimento vertido no despacho notificado, pronunciou-se no sentido de não ser conhecido o objeto do recurso.
4.2. Por sua vez, a Recorrente pronunciou-se, nos seguintes termos: (transcritos)
Salvo o devido e imenso respeito pelo entendimento expresso no despacho em referência, a Recorrente entende que o recurso deve ser admitido e conhecido o seu objeto.
Tal como decorre do seu âmbito fixado pelas conclusões formuladas, está em causa, entre o mais nelas vertido, a ofensa a caso julgado, que, nos termos do art. 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, constitui fundamento para que o recurso seja sempre admissível.
Em consonância, dispõe o art. 671.º, n.º 2, al. a), do CPC, que os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual podem ser objeto de revista nos casos em que o recurso é sempre admissível.
No que se refere especificamente ao processo de execução, também o 854.º do CPC ressalva a admissibilidade da revista nos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Na verdade, verifica-se que o decidido no âmbito do processo de insolvência com o n.º 1215/22...., que corre termos pelo Juiz ... do Juízo de Comércio ..., é desvirtuado e frontalmente contrariado pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto aqui posto em crise.
Em primeiro lugar, a sentença de declaração de insolvência proferida naqueles autos data de 17-02-2022 e há muito que se mostra transitada em julgado, prescrevendo, entre o mais, o seguinte:
Deverá o/a Sr/a. Administrador/a da Insolvência proceder, de imediato, à apreensão de todos os bens da insolvente, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva dos que hajam sido apreendidos por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social” – conforme decorre do regime previsto nos arts. 1.º, 36.º, 46.º e 149.º do CIRE.
Por outro lado, a 28-02-2022, foi proferido nesse processo de insolvência um despacho, expressamente comunicado aos presentes autos em 02-03-2022, nos seguintes termos:
•Ofício
“Assunto: Informação – MUITO URGENTE Por ordem do Mmº Juiz de Direito Dr(a). AA, informa-se Vª Exª de que na Insolvência pessoa coletiva (Apresentação), 1215/22.... foi proferida sentença de declaração de insolvência ainda não transitada em julgado, cuja cópia se anexa.
Mais se envia cópia do requerimento formulado pela devedora/insolvente e do despacho que sobre o mesmo recaiu, nos termos a para os efeitos do disposto no art.º 88º do CIRE.”
•  Despacho
 “A entrega do locado atinge diretamente o único estabelecimento comercial que a insolvente possui com manifesto prejuízo para todos os seus credores e trabalhadores.
[…]
Ora sendo, como é, efectivamente, automática a suspensão de uma execução, logo que declarada uma insolvência, a mesma concretiza-se logo que chegue ao conhecimento do tribunal onde corre a execução/providência a suspender, independentemente da vontade das partes ou do ónus de o requerer.
Assim, com cópia da sentença proferida nos presentes autos, informe a execução e notifique a AE identificadas no requerimento em epigrafe, nos termos e para efeitos do disposto no artº 88 do CIRE.
Mais notifique o A.I. do teor do requerimento da insolvente e deste despacho, para diligenciar pelo que entenda necessário.
Cumprimento URGENTE.”
Paralelamente ainda, o Senhor Administrador de Insolvência notificou a Senhora Agente de Execução destes autos para proceder à entrega do estabelecimento comercial da aqui Recorrente à insolvência, por ser fundamental para esta e para os respetivos credores.
Vale isto por dizer que quer o Senhor AI, quer a Mma. Juíza titular do processo de insolvência entenderam por bem apreender o estabelecimento e, em consequência, ordenar a suspensão da execução para entrega de coisa certa do imóvel, o que decorre de decisões há muito transitadas em julgado.
Tal entendimento foi, aliás, aqui acolhido em 1.ª instância, na decisão agora revogada pelo Tribunal da Relação do Porto, nos seguintes termos:
“Independentemente da natureza da execução e da obrigação exequenda, o artº 88º, do CIRE é imperativo, não distinguindo, quanto à suspensão – legal e automática – a natureza da execução.
Assim, indefiro o requerido” [pedido de prosseguimento da presente execução para entrega de coisa certa].
Do que vai dito resulta, pois, que o acórdão que a Recorrente põe em causa traduz-se numa nova decisão que contraria frontalmente uma outra que já anteriormente havia julgado de forma definitiva a mesma questão, no processo próprio.
A decisão proferida e reiterada no processo de insolvência mostra-se há muito insuscetível de impugnação, em razão do seu pacífico trânsito em julgado, pelo que não se pode consentir que o Exequente venha deste modo contornar o que ali se decidiu, em prejuízo dos demais credores, sem se socorrer dos expedientes legais à sua disposição no âmbito daqueloutro processo.
 Na verdade, não está apenas em causa a entrega do imóvel que será pertença do Exequente, aqui Recorrido, mas a apreensão para a massa insolvente do estabelecimento comercial da Recorrente/Executada, de que aquele é apenas um dos seus elementos corpóreos.
Como é sabido, uma decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação – cf. art. 628.º do CPC.
O conceito de caso julgado tanto designa a qualidade de imutabilidade da decisão judicial que transitou em julgado, como o conjunto dos efeitos jurídicos que têm por condição o trânsito em julgado da decisão.
Decorre, desde logo, do art. 613.º, n.º 1, do CPC que, prolatada uma sentença ou um despacho, o tribunal não os pode revogar, por perda de poder jurisdicional, proibindo-se assim o livre arbítrio e a discricionariedade.
Depois disso, a ocorrência do trânsito em julgado visa a estabilização dos resultados do processo e o conteúdo da decisão passa a ser inalterável para as demais instâncias, vinculando o tribunal e as partes, dentro do processo (cf. art. 620.º do CPC) e mesmo fora dele, perante outros tribunais (cf. artigo 619.º do CPC).
Com efeito, a imutabilidade da decisão judicial no termo de um processo que cumpriu os requisitos do due process of law constitui uma garantia processual de fonte constitucional, enquanto expressão do princípio da segurança jurídica, decorrente do Estado de Direito (cf. artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa): é o que se entende por princípio da intangibilidade do caso julgado.
Nas palavras de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (“Estudos sobre o novo processo civil”, Lisboa, 1997, p. 568), “O caso julgado é uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois que, evita que a mesma ação seja instaurada várias vezes, obsta a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir. Ela é, por isso, expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica”.
Do mesmo modo, também o art. 20.º da CRP consagra o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, a todos assegurando a possibilidade de recurso aos tribunais para defesa dos seus interesses legalmente protegidos, em prazo razoável e mediante um processo equitativo.
Em face do que vai dito, importa reconhecer que o recurso de revista interposto pela Executada é admissível e merece obter provimento nos termos que dele melhor resultam.
Qualquer outra interpretação do citado quadro legal, resultante dos arts. 1.º., 46.º, 88.º, 90.º, 128.º, 146.º, 149.º e 150.º do CIRE, bem como dos arts. 619.º e 628.º do CPC, sempre seria inconstitucional por violação do princípio da intangibilidade do caso julgado, da segurança jurídica e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, decorrentes dos arts. 2.º e 20.º da CRP, o que se invoca para todos os efeitos legais. Termos em que deve o recurso interposto ser admitido, por legal e tempestivo, e, consequentemente, conhecido o seu objeto.
5. Importa, agora, apreciar.

5. 1. No despacho preliminar convidando as partes a pronunciarem-se nos termos do aludido art.º 655, n.º 1, do CPC, consignou-se
Para além dos pressupostos gerais de admissibilidade decorrentes do disposto no art.º 629, n.º1, do CPC, estando em causa a interposição de um recurso de revista, importa aferir dos respetivos requisitos para a sua admissão constantes do art.º 671, do mesmo diploma legal.
Estando em causa saber se deve ser mantida a decisão que determinou o prosseguimento da execução, tendo em conta a declaração de insolvência da Executada,  não se configurará a previsão do n.º 1, do art.º 671, do CPC, pelo que poderia divisar-se a hipótese prevista no n.º2 do mesmo normativo, enquanto decisão interlocutória.
Ora, no âmbito de tal disposição legal, a impugnação em termos de recurso de revista só poderá ser realizada na observância dos casos das alíneas a) e b), não se percecionando que terão sido apontadas quaisquer das situações ali previstas, nem se descortinará possibilidade de as poder inferir.
Não menos relevante, não deverá ser esquecido que estamos perante uns autos de execução, e desse modo, atender ao regime delineado para a ação executiva, isto é, ao recurso de revista são aplicáveis as disposições reguladoras do processo declarativo, bem como o especificamente consignado, art.º 852, do CPC, e desse modo, sem prejuízo dos casos em que será sempre admissível, apenas caberá recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução, art.º 854, ambos do CPC.
Reportando aos autos não resultará dos mesmos que o recurso venha interposto nas situações aludidas no referenciado art.º 854, nem se divisará, da leitura das alegações oferecidas, que se poderá configurar um caso em que o recurso será sempre admissível, como aponta o n.º 2, do art.º 629, também do CPC.”

5.3. Ora, afigura-se que são de atender as razões vertidas em tal despacho como fundamento da não admissibilidade do recurso deduzido pela Recorrente, e que a mesma não contraria, no que concerne, por um lado, ao preenchimento da previsão do n.º 1, do art.º 671, do CPC, configurando-se desse modo um caso previsto no n.º 2, do mesmo dispositivo legal, para além do regime próprio para a ação executiva igualmente não questionado.

No entanto, no âmbito da possibilidade de, querendo, exercer o contraditório, no âmbito da apreciação preliminar pela relatora do recurso apresentado, cujo objeto foi aquando da respetiva interposição definido, a Recorrente veio acrescer a aludida existência de violação de caso julgado, nos termos do n.º 2, a) do art.º 629, do CPC, que desse modo sempre permitia, em qualquer dos enquadramentos realizados, que o recurso fosse sempre admitido.

Em conformidade, para além da tempestividade do agora invocado[1], tendo em conta o conhecimento ex officio da existência da violação do caso julgado, verifica-se que a Recorrente/Executada passou assim do errado entendimento do vertido no art.º 88, n.º1, do CIRE, pelo Tribunal da Relação nos presentes autos, face à posterior declaração de insolvência da ali executada, para a violação, por parte daquele Tribunal do determinado em sede do processo de insolvência, quanto aos efeitos dessa declaração noutros processos, caso da presente execução.

Configurando-se serem despiciendos excursos sobre a caracterização e valor do caso julgado, quanto ao material, pois inexistem dúvidas que estamos perante dois processos distintos, e assim no que concerne à relação material controvertida, com força obrigatória dentro e fora do processo[2], isto é, a declaração de insolvência da Recorrente,  como determinado neste último processo, no despacho referenciado pela Recorrida, foi a mesma comunicada a esta execução – Tribunal e Agente de Execução, visando a aplicação do disposto no art.º 88 do CIRE, e que se verificou neste processo, embora não nos termos pretendidos pela Recorrente, sem que haja qualquer violação do antes decidido nos autos de insolvência, maxime, enquanto fundamento para a admissibilidade do recurso interposto.

Por último, no que respeita à violação do acesso ao direito e à tutela jurisdicional, conforme os artigos 20.º e 2.º da Constituição da Republica, que importaria qualquer outra interpretação, que não a invocada pela Recorrente, apenas se dirá, como se vem afirmando reiteradamente na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça que o “ (…)  o direito ao recurso não é um direito absoluto ou irrestrito, sendo objeto de diversas restrições justificadas. É o próprio Tribunal Constitucional que o afirma, esclarecendo que a Constituição, maxime, o direito de acesso aos tribunais, não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos”[3], antes deixando-lhe uma ampla margem de liberdade de conformação dos requisitos de admissibilidade dos recursos, e em conformidade, muito menos obriga a um duplo grau de recurso, ou seja, um triplo grau de jurisdição, não apontado art.º 20, da CRP, numa imposição constitucional dirigida ao legislador, no sentido de se considerarem recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça todas as decisões, designadamente as proferidas em sede onde a regra vigente é precisamente a contrária[4].

6.  Pelo exposto, não se conhece do objeto do recurso, que assim se considera findo, nos termos do art.º 652, n.º1, b), por força do constante no art.º 679, ambos do CPC.

Custas pela Recorrente, com três UCs de taxa de justiça

Lisboa, 26 de outubro 2022

Ana Resende (Relatora)
Ana Paula Boularot
Graça Amaral
     

                                                          

Sumário, (art.º 663, n.º 7, do CPC).

      

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[1] Cf. Acórdão do STJ de 27.04.2022, processo n.º 12472/20.2TLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[2] Obstando que o mesmo ou outro tribunal possa definir de modo diverso o direito concreto aplicável à relação material em litígio, art.º 619 n.º 1, do CPC, o designado efeito negativo, exercido através da exceção dilatória do caso julgado, cuja finalidade é evitar a repetição das causas, art.º 580, do CPC, com a vinculação do mesmo tribunal e eventualmente outros à decisão proferida, e o chamado efeito positivo, a autoridade de caso julgado, no sentido que a decisão de determinada questão não pode voltar a ser discutida.
[3] Ac. do STJ de 24.5.2022, processo n.º 20464/95.1TVLSB.L1-A.S1, apud  Acórdão do STJ, de 13.7.2022, processo n.º14281/21.2T8LSB.P1-A.S1, in www.dgsi.pt.

[4] A mero título de exemplo, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º541/2021, de 13 de julho de 2021, in www.tribunalconstitucional.pt.