Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1584/13.9JAPRT.C1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DUPLA CONFORME
HOMICÍDIO AGRAVADO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
ILICITUDE
CULPA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 10/29/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Figueiredo Dias, Das Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 195 e ss., 228, 241; «Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime» Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, Fasc.1, Janeiro-Março de 1992, Aequitas, Editorial Notícias, p. 14; Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pp. 88 e ss., 105, 109.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, anotação 11 ao artigo 400.º, p. 1046.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º 1, ALS. C), E), F), 414.º, N.º 2, 420.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E B), 432.º, N.º 1, ALÍNEA B), 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, N.º1, 70.º, 71.º, N.º2, 72.º, N.ºS 1 E 2, 77.º, N.ºS 1 E 2, 131.º.
LEI N.º 5/2006, DE 23 DE FEVEREIRO: - ARTIGO 86.º, N.ºS 2 E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 12/05/2011 (PROCESSO N.º 7761/05.9TDPRT.P1.S1), DE 09/06/2011 (PROCESSO N.º 4095/07.8TDPRT.P1.S1) E DE 11/07/2013 (PROCESSO N.º 631/06.5TAEPS.G1.S1), E, AINDA, AS DECISÕES SUMÁRIAS DE 26/09/2013 (PROCESSO N.º1311/04.1PIPRT.P1.S1) E DE 24/10/2013 (PROCESSO N.º 789/10.9JACBR.C1.S1).

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 645/2009, DE 15/12/2009, N.º 649/2009, DE 15/12/2009, N.º 590/2012, DE 05/12/2012, N.º 186/2013, DE 04/04/2013, (PLENÁRIO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL), TODOS EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .

Sumário :

I  -   Havendo recurso para a relação e confirmação da decisão de 1.ª instância (a chamada dupla conforme), só é admissível recurso para o STJ quando a pena aplicada for superior a 8 anos de prisão, atento o disposto nos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. f), ambos do CPP.
II -   No caso de concurso de crimes e verificada a "dupla conforme", sendo aplicadas várias penas pelos crimes em concurso, penas que, seguidamente, por força do disposto no art. 77.º do CP, são unificadas numa pena conjunta, haverá que verificar quais as penas superiores a 8 anos e só quanto aos crimes punidos com tais penas e/ou quanto à pena única superior a 8 anos é admissível o recurso para o STJ.
III - Neste entendimento, o recurso não é admissível na parte em que o recorrente parece querer questionar a sua condenação pelo crime de detenção de arma proibida, porquanto, em relação a esta condenação verifica-se dupla conforme e a condenação do recorrente foi em pena de 2 anos de prisão, pelo que, também por força do último segmento da al. e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, o recurso, nessa parte, não é admissível.
IV - A agravação do homicídio pela circunstância de ter sido cometido com arma não é impeditiva da sua condenação pelo crime de detenção de arma porque não se verifica uma relação de concurso aparente entre o crime de homicídio, agravado pelo uso da arma, e o crime de detenção de arma proibida, em que aquele, aparecendo como ilícito principal, consumiria o crime de detenção de arma, impedindo o princípio “ne bis in idem” a valoração autónoma e integral do crime de detenção de arma proibida sob pena, justamente, de violação da proibição da dupla valoração.
V - Os factos dados por provados não consentem a solução do concurso aparente, na medida em que, no comportamento global do recorrente revela-se uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude os quais devem ser integralmente valorados para efeito de punição, verificando-se, pois, um concurso efectivo, puro ou próprio, heterogéneo, entre o crime de homicídio, agravado por ter sido cometido com arma, e o crime de detenção de arma proibida.
VI - Os bens jurídicos tutelados são diferentes; a agravação resultante do n.º 3 do art. 86.° da Lei 5/2006, tutela a especial ilicitude do crime, em função do meio usado para a sua prática, enquanto que pelo crime de detenção de arma proibida se protege a segurança da comunidade.
VII - A detenção da arma não se esgotou na prática do homicídio mas, pelo contrário, precedeu o momento do seu uso como instrumento do crime, pois atendendo-se aos factos provados, o recorrente já detinha a arma quando se dirigiu ao café, na companhia de C, antes, pois, de se encontrar com a vítima e começarem ambos a discutir. Assim, o crime de detenção de arma proibida já estava perfeitamente preenchido ainda antes de o recorrente ter efectuado qualquer disparo.
VIII - Não pode ser admitido, por falta de motivação, o recurso quanto à matéria de supostas nulidades da sentença e da violação do art. 70.º do CP, nos termos do n.º 2 do art. 414.º do CPP, sendo incompreensível face ao encadeamento lógico da formulação das conclusões, que o recorrente, depois de aceitar a sua condenação pelo homicídio simples, venha sustentar que os factos provados implicam e justificam uma outra solução de direito e invocar uma violação do art. 70.º do CP, quando, ainda que fosse bem sucedido na sua pretensão de atenuação especial da pena, nunca ao crime (de homicídio) seria aplicável, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade e se as nulidades que aponta à sentença (socorrendo-se, indevidamente, de normas do processo civil quando, na matéria, não há qualquer lacuna no processo penal que autorize esse procedimento) nunca poderiam levar a uma outra decisão de mérito mas, apenas, à imposição da sua sanação.
IX - Não é admissível face ao disposto na al. c) do n.º 1 do artigo 400.° do CPP, o recurso de acórdão da Relação na parte em que decidiu julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente nesse segmento, no entendimento de se mostrar acertada a decisão de indeferimento da realização de diligência de prova requerida pelo recorrente, pois, nesse âmbito, o acórdão da Relação conheceu de uma questão interlocutória, intermédia, e a natureza da questão não se altera pelo facto desta questão ter sido conhecida conjuntamente (na mesma peça processual) com as questões que respeitavam à decisão que conheceu, a final, do objecto do processo.
X  - As hipóteses de atenuação especial da pena são sempre extraordinárias e excepcionais, cobrindo os casos em que se verificam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto e, por via disso, a merecerem um tratamento diferenciado da generalidade e normalidade dos casos, em vista dos quais foi estabelecida a moldura penal «normal», o que não sucede no caso concreto, pois o circunstancialismo dado por provado, sendo adequado a reflectir-se na culpa do recorrente, atenuando-a, não tem, porém, a potencialidade para fornecer uma imagem global do facto de que resulte uma diminuição sensível da sua culpa e fundamente a atenuação especial da pena.
XI - Ponderando as exigências de prevenção geral positiva especialmente intensas (porque a violação do bem jurídico fundamental ou primeiro - a vida - é, em geral, fortemente repudiada pela comunidade) a culpa do recorrente (relevando considerar que o recorrente foi sujeito a repetidos e intensos insultos e ameaças de morte por parte da vítima, vivendo o recorrente com medo dela, pessoa conflituosa, agressiva e temida pela generalidade das pessoas da terra) que se mostra atenuada (em função de se poder inferir que actuou num estado que afectou as suas normais condições de determinação, originado pela discussão próxima mas, seguramente, alicerçado, ainda, no comportamento que a vítima tinha para consigo e no medo que dela tinha) e as reduzidas exigências de prevenção especial (não sendo conhecidas demonstrações de atitudes violentas e socialmente inadequadas, sendo ele, antes pelo contrário, um indivíduo primário, de comportamento pacífico e pacato, com boas relações interpessoais, tudo a sugerir, que a acção do recorrente de causar a morte de V se apresenta como um acto associado a uma muito concreta motivação, desencadeada por comportamentos da vítima, e sem correspondência nas normais manifestações da personalidade do recorrente), tem-se por mais ajustada à culpa do recorrente a pena de 11 anos de prisão pelo crime de homicídio agravado, p. e p. pelos arts. 131.º do CP, e 86.º, n.º 2, a Lei 5/2006, de 23-02.
XII - Em razão da redução da medida da pena pelo homicídio e, assim, por alteração da moldura abstracta do concurso, que passa, agora, a ser de 11 a 13 anos de prisão (n.º 2 do art. 77.° do Código Penal), impõe-se determinar a pena conjunta pelo concurso de crimes.
XIII - No nosso sistema, a pena conjunta pretende ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares - à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.
XIV - Os dois crimes estão estreitamente relacionados porque não será ousado inferir que à detenção da arma com que foi cometido o homicídio, justamente agravado por ter sido cometido com arma, não será alheio o medo que o recorrente tinha da vítima, justificado pelo comportamento agressivo desta, estando ela também na posse de uma arma, pelo menos a que subtraiu da casa do recorrente e companheira, pelo que, em função dessa estreita conexão entre os crimes e da personalidade do recorrente (pessoa normalmente sem manifestações de violência e que na prática dos factos sofreu a influência negativa de condições exteriores, que não conseguiu controlar de outro modo), temos por ajustada a pena conjunta de 11 anos e 5 meses de prisão.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I

1. No processo comum, com intervenção do tribunal do júri, n.º 1584/13.9JAPRT, da secção criminal, instância central, J 2, da Comarca de Viseu, por acórdão de 24/10/2014, foi decidido, no que respeita à acção penal, condenar o arguido AA, nascido a ...., ...., residente em ..., no mais devidamente identificado nos autos, actualmente preventivamente preso à ordem do processo, pela prática:

– de um crime de homicídio agravado, previsto e punido pelos artigos 131.º, do Código Penal, e 86.º, n.º 3, por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea x), 3.º, n.º 2, alínea l) e 3º, n.º 2, alínea q), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 15 anos de prisão;

– de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referência aos artigos 2º, n.º 1, alínea x), 3º, n.º 2, alínea l) e 3º, n.º 2, alínea q), do mesmo diploma legal, na pena de 2 anos de prisão.

E, em cúmulo jurídico dessas penas, na pena única de 15 anos e 6 meses de prisão.

2. Na sequência de recurso interposto para a relação, veio o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 15/04/2015, a conceder parcial provimento ao recurso e condenar o arguido:

– pela prática de um crime de homicídio agravado, previsto e punido pelos artigos 131.º, do Código Penal, e 86.º, n.º 3, por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea x), 3º, n.º 2, alínea l), e 3.º, n.º 2, alínea q), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 13 anos de prisão;

– e, operando o cúmulo jurídico dessa pena, com a pena de 2 anos de prisão, em que o arguido foi condenado, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referência aos artigos 2º, n.º 1, alínea x), 3.º, n.º 2, alínea l), e 3º, n.º 2, alínea q), do mesmo diploma legal, na pena única conjunta de 13 anos e 6 meses de prisão.

3. Ainda inconformado, o arguido AA interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«1.º

«Deve, nesta instância, reconhecer-se que não foram cumpridas as formalidades legais quer durante o inquérito e que na fase da instrução e, por isso, violados os arts. 61.º e 286 e ss do CPP;

«2.º

«Deve reconhecer-se que o arguido tem o direito de requerer diligências em todas as fases do processo e que, por lhe terem sido denegadas e não terem sido feitas se violou a letra e espírito dos arts. 20.º e 32.º da Constituição da Republica Portuguesa;

«3.º

«Deve o arguido ser absolvido do crime de homicídio agravado pelo qual foi condenado, pelo que se fez incorrecta leitura e interpretação dos artigos 131.º e 86.º, n.º 3, ambos do Código Penal;

«4.º

«Deve o autor ser condenado por homicídio simples p e p pelo artº.131.º e mesmo no seu nível mais baixo (oito anos) ser especialmente reduzido pelas circunstâncias atenuantes: álcool, ameaças de morte, crimes de ofensas corporais, furtos e insultos: corno, chulo, merda, sujo, porco e ameaças de morte com a barra de ferro, etc.

«5.º

«A matéria factual ou factos dados como provados implicam e justificam uma outra decisão ou sentença, pelo que se violaram as als. b) e c) do n.º 1 do art.º 615.º do Código do Processo Civil, pelo que a sentença é nula e ainda o art.º 70.º do Código Penal.»

4. Foi proferido despacho a admitir o recurso.

4. O Ministério Público respondeu ao recurso, no sentido de o mesmo não merecer provimento.

5. Remetidos os autos a esta instância, na oportunidade conferida pelo artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP., o Exm.º Procurador-geral-adjunta foi de parecer de que o recurso deve ser rejeitado quanto às questões da omissão de diligências em inquérito e em instrução e da agravação do homicídio e que não merece provimento quanto à questão da medida da pena.

6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada chegou ao processo.

7. Não tendo sido requerida a realização da audiência (artigo 411.º, n.º 5, do CPP) e não sendo caso de julgar o recurso por decisão sumária, foi o julgamento do recurso remetido para a conferência (artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP).

Colhidos os vistos, com projecto de acórdão, realizou-se a conferência, da mesma procedendo o presente acórdão.


II


1. Os factos que se devem ter por definitivamente assentes

Pelo acórdão recorrido foi julgado improcedente o recurso do arguido, na vertente da impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, por erro de julgamento, em termos amplos, e em razão dos vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, dando-se como definitivamente assente a matéria de facto dada por provada na 1.ª instância, na qual não se detecta qualquer vício de que deva oficiosamente conhecer-se.

É a seguinte:

«1- O arguido AA e a vítima Vítor Alves Barreiros Pinto conheciam-se há cerca de dois anos e estavam à data dos factos desavindos em virtude de uma alegada dívida do arguido João para com o Vítor Pinto por trabalhos agrícolas por este realizados para o arguido e que não lhe foram pagos.

«2- Assim, no dia 4 de Agosto de 2013, cerca das 21H30M, o arguido dirigiu-­se na companhia de Camilo Cardoso ao café "Central", sito na Barragem de Vilar, Moimenta da Beira, sendo que naquele local também lá se encontrava Vítor Alves Barreiros Pinto.

«3- Já no interior do café, Vítor Pinto abordou o arguido pedindo-lhe que lhe pagasse o que devia iniciando-se assim uma discussão entre ambos, na qual foi também interveniente Camilo Cardoso.

«4- Depois de terem sido convidados a abandonar o local pelo proprietário, o Vítor Pinto deslocou-se para o exterior do estabelecimento e logo de seguida saíram também do café o arguido e o Camilo Cardoso, sendo estes encaminhados por Adão de Jesus Ferreira, dono do café, até ao veículo do arguido que se encontrava estacionado à porta.

«5- Nessa altura, sem que nada o fizesse prever e quando se encontrava a menos de dois metros de Vítor Pinto, o arguido tirou do interior de uma bolsa azul que transportava à cintura uma pistola transformada de calibre 6,35mm e efectuou, de forma voluntária, dois disparos em direcção ao peito de Vítor Pinto.

«6- Em consequência directa e necessária dos disparos acima mencionados, Vítor Alves Barreiros Pinto sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia médico-legal junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, designadamente:

«- " duas feridas perfurantes no Tórax: o primeiro orifício arredondado / ovalado com 8 por 5 cm e orla de contusão com 17 por 10 cm, localizada abaixo do terço distal da clavícula esquerda com 13 cm e a 24 cm do apêndice xifoide e sobre o 3.º espaço intercostal e a 132 cm dos pés e a 6 cm da axila; o segundo orifício a 128 cm dos pés, a 14 cm do terço distal da clavícula e a 4,5 cm do anterior a 19 cm do apêndice xifóide, sobre o 4.º espaço intercostal esquerda a 8 cm da axila, com 0,8 por 0,6 cm arredondada/ovalada e com orla de contusão de 20 por 14 mm, a intercetar o terço anterior da 4.ª costela.

«- duas feridas perfurantes do ventrículo esquerdo;

«- perfuração da aorta torácica ao nível da D9;

«- perfuração do lobo superior do pulmão esquerdo a dois níveis”.

«8 Observa-se a numeração que consta do acórdão recorrido.- De acordo com o relatório de autópsia o trajecto seguido pelos projécteis foi da frente para trás, da esquerda para a direita e de cima para baixo e foram encontrados sinais de disparo a curta distância.

«9- Após os disparos o arguido foi de imediato manietado e desarmado pelos populares que se encontravam no local, tendo sido entregue às autoridades.

«10- Nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido AA detinha na sua posse a referida arma de fogo transformada tendo por base uma arma de alarme da marca "Rech", 8 mm, posteriormente transformada em arma de fogo, capaz de disparar munições de calibre 6,35mm, com o respectivo carregador.

«11- O arguido tinha ainda na sua posse três munições de arma de fogo, de calibre 6,35 mm, que continham todos os componentes e estavam em condições de serem disparadas em arma de fogo de calibre compatível.

«12- Ao agir da forma descrita, o arguido José João Vieira de Azevedo actuou de forma livre, consciente e deliberada, movido pelo propósito e intenção, que realizou integralmente, de tirar a vida a Vítor Alves Barreiros Pinto.

«13- O arguido tinha perfeito conhecimento e consciência de que, ao efectuar dois disparos à distância de menos de um metro, em direcção ao peito da vítima, obteria a morte daquele, como pretendia.

«14- O arguido conhecia ainda as características da arma e das munições que detinha e bem assim que a sua detenção ou uso nessas condições eram proibidas e punidas por lei.

«15- O arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo que todas as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei e o faziam incorrer em responsabilidade criminal.

«16- O falecido Vítor Pinto veio para Baldos para trabalhar nas propriedades de Lídia Sousa, da qual o arguido era procurador, designadamente com poderes para administrar os seus prédios.

«17- O falecido Vítor Pinto era temido pela generalidade das pessoas em Baldos, onde era conflituoso e agressivo.

«18- O falecido Vítor Pinto dirigia-se ao arguido como “cornudo”, porco”, “sujo”, “merda”, “chulo”, “palhaço de merda”, “cobarde”, “canalha”, “garoto”, “filho da puta”, “corno”, “ladrão”, “gatuno”, “doido”, “que devia estar num manicómio”, ameaçando-o de que “o havia de matar”, “que lhe partia os dentes e lhe arrancava os dentes e o enterrava ali ou que o punha numa cadeira de rodas”, “ou mata ou morre”, “tens que deixar a mulher porque tu és uma merda”, “eu mato-te”, “eu tiro-te os olhos”, “hei-de comer-te os fígados vivos” – o que repetia com frequência e por todo o lado.

«19- Em data não concretamente apurada, no café, o falecido Vítor deu um empurrão ao arguido.

«20- O falecido Vítor Pinto assaltou a casa da Dona Lídia de Sousa, onde o arguido vivia, furtando vários objectos, de entre os quais uma arma, tendo arrombado as portas; ainda danificou o carro da Dona Lídia de Sousa.

«21- O falecido Vítor tentou envenenar as relações entre o arguido e a Dona Lídia de Sousa, tentando ocupar o lugar daquele, designadamente enquanto procurador da mesma para gestão das suas propriedades e negócios em Portugal.

«22- O arguido vivia com medo do falecido, designadamente receio de que este ocupasse o seu lugar na sua relação pessoal e profissional com a Dona Lídia Sousa.

«23- Apercebendo-se da situação e do mal-estar entre o arguido e o Vítor Pinto, a Dona Lídia Sousa intercedeu, tendo-lhe dado € 200,00 para ele sair de Baldos, o que este recusou, dirigindo-se a ela nos seguintes termos: “eu vou arrancar-te os olhos e enterro-te aqui viva”.

«Das condições de vida e personalidade do arguido

«24- João Jerónimo é o mais novo de um grupo de quatro irmãos, nascidos em São Pedro, freguesia do concelho da Guarda. O pai foi jardineiro durante 10 anos em França, enquanto a progenitora estava incumbida da lida doméstica e da educação dos filhos. Apesar da distância do pai, por motivos profissionais, existia coesão familiar e convivência nos períodos de férias, tendo o ascendente regressado em definitivo quando João Jerónimo contava 12 anos de idade.

«25- O arguido está habilitado com a 4 ª classe que tirou na sua aldeia. Apesar de revelar algumas capacidades ao nível da aprendizagem, as condições económicas da família não eram as melhores e a motivação também era pouca, pelo que abandonou a escola com 11 anos, iniciando-se na actividade nas obras de construção civil, junto de um irmão.

«26- Decorridos seis anos, em vésperas de atingir a maioridade, o arguido emigrou para a França onde manteve uma ocupação de trolha durante 29 anos de idade. Conheceu então aquela com quem veio a casar com 27 anos. Era uma cidadã de nacionalidade francesa com quem teve três filhos e que ficaram depois a viver em França, consumado que foi o divórcio entre ambos, 13 anos após o matrimónio.

«27- Segundo João Jerónimo, foi a mulher a avançar com o pedido de divórcio, atenta a sua falta de empenho na dinâmica intrafamiliar, por obrigações profissionais e por privilegiar a convivência com o grupo de pares, descurando o matrimónio.

«28- Foi vítima de acidente de trabalho em 2007, com sequelas ao nível de uma mão. Esteve de baixa durante dois anos e mais seis meses pelo fundo de desemprego e como as dificuldades de colocação laboral se fizeram sentir posteriormente, optou por regressar em definitivo em 2010 a Portugal.

«29- Entretanto, conheceu em França uma mulher de Baldos, Moimenta da Beira, com quem se veio a juntar na casa dela, situação que mantinha à data da reclusão.

«30- João Jerónimo trata dos terrenos agrícolas da companheira, não tendo fontes de receita fixas, mas alega uma situação económica estável e uma relação de facto equilibrada com Lídia de Sousa, a sua companheira.

«31- Vivem numa habitação com boas condições de habitabilidade e equipada com as infra-estruturas básicas.

«32- Em meio prisional, regista um comportamento adequado às normas institucionalmente vigentes, estando ocupado com a tirela (sic). Tem visitas da companheira.

«33- Em Baldos, o arguido é considerado educado no tracto intrapessoal, honesto, pacífico, associado a hábitos de trabalho, não estando referenciado por consumos exagerados de álcool.

«34- O arguido não tem antecedentes criminais.

«Do pedido de indemnização civil

«35- O demandante Armando Barreiro Pinto é irmão do falecido Vítor Alves Barreiros Pinto.

«36- O falecido Vítor Alves Barreiros Pinto tinha, à data dos factos, 46 anos de idade.

«37- Vítor Alves Barreiros Pinto era uma pessoa saudável.

«38- O demandante e demais irmãos davam tecto ao falecido quando este os visitava na sua terra, Monção, designadamente nas épocas festivas.

«39- Vítor Alves Barreiros Pinto tinha amigos na sua terra, sendo bem recebido no café.»

2. O objecto do recurso

Sendo pelas conclusões formuladas que se define e delimita o objecto do recurso (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), tem de se reconhecer, no caso, um défice nas conclusões que prejudicava uma compreensão cabal do objecto do recurso.

Procurando alcançá-la, por via do conhecimento da própria motivação, confrontámo-nos, porém, com uma motivação intrincada e em que falta a clareza na exposição das razões de impugnação da decisão recorrida, não contribuindo, por isso, na dimensão desejável, para a inteligibilidade do objecto do recurso.

De todo o modo, e sem prejuízo do que adiante se referirá, uma leitura integrada das conclusões e da própria motivação permite individualizar como questões postas no recurso as seguintes:

i) a omissão de diligências que requereu no decurso do procedimento e foram indeferidas, nomeadamente, por despacho proferido na própria audiência [conclusões 1.ª e 2.ª];

ii) o erro de subsunção jurídica consistente na condenação por um crime de homicídio agravado por ter sido cometido com arma e, a manter-se essa qualificação, a indevida condenação por um crime de detenção de arma [conclusão 3.ª];

iii) dever a pena pelo homicídio simples ser especialmente atenuada [conclusão 4.ª];

iv) a nulidade da sentença [conclusão 5.ª].

3. A rejeição parcial do recurso

Por razões de precedência lógica há que começar por apreciar as questões relativamente às quais o recurso ou não é admissível ou se apresenta sem qualquer viabilidade.

3.1. Os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos da relação são admissíveis, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP, segundo o qual [recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça], “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações em recurso, nos termos do artigo 400.º”.

E, nos termos do artigo 434.º do CPP, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.

De acordo com o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, mantida inalterada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

São, assim, dois os pressupostos de irrecorribilidade estabelecidos na norma: o acórdão da relação confirmar a decisão de 1.ª instância e a pena aplicada na relação não ser superior a 8 anos de prisão.

A constitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na actual redacção, na medida em que limita a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão superior a 8 anos, já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, que decidiu não a julgar inconstitucional Cfr., v. g., acórdão de 15/12/2009 (processo n.º 846/09)..

Aliás, nesta matéria, o Tribunal Constitucional dispõe de uma jurisprudência firme segundo a qual o legislador ordinário goza da máxima liberdade de conformação concreta do direito ao recurso, desde que salvaguarde o direito a um grau de recurso.

Havendo recurso para a relação e confirmação da decisão de 1.ª instância (a chamada dupla conforme), só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça quando a pena aplicada for superior a 8 anos de prisão.

No caso de concurso de crimes e verificada a “dupla conforme”, sendo aplicadas várias penas pelos crimes em concurso, penas que, seguidamente, por força do disposto no artigo 77.º do CP, são unificadas numa pena conjunta, haverá que verificar quais as penas superiores a 8 anos e só quanto aos crimes punidos com tais penas e/ou quanto à pena única superior a 8 anos é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça Neste sentido, v. g. os acórdãos deste Tribunal, de 12/05/2011 (processo n.º 7761/05.9TDPRT.P1.S1), de 09/06/2011 (processo n.º 4095/07.8TDPRT.P1.S1) e de 11/07/2013 (processo n.º 631/06.5TAEPS.G1.S1), os últimos relatados pela, agora, relatora, e, ainda da relatora, as decisões sumárias de 26/09/2013 (processo n.º1311/04.1PIPRT.P1.S1) e de 24/10/2013 (processo n.º 789/10.9JACBR.C1.S1)..

Escreveu, a propósito, Paulo Pinto de Albuquerque Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, anotação 11 ao artigo 400.º, p. 1046.:

«Portanto, é inconstitucional, por violar o artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a interpretação do artigo 400.º, n.º 1, al.ª f) que vede o recurso para o STJ dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que apliquem a cada um dos crimes em concurso penas concretas inferiores a oito anos de prisão, mesmo que a pena conjunta seja superior a oito anos de prisão. Mas já é admissível a interpretação que restrinja a competência do STJ à questão do cúmulo jurídico e da fixação da respectiva pena.»

A interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º segundo o entendimento de que a circunstância de o recorrente ser condenado numa pena (parcelar ou única) superior a 8 anos de prisão não assegura a recorribilidade de toda a decisão, compreendendo-se, portanto, todas as condenações ainda que inferiores a 8 anos de prisão, que tem sido seguida por este Tribunal, também já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional No acórdão n.º 649/2009. que não julgou inconstitucional o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, interpretado no sentido de que «no caso de concurso de infracções tendo a Relação confirmado, em recurso, decisão da 1.ª instância que aplicou pena de prisão parcelar não superior a 8 anos, essa parte não é recorrível para o STJ (…), sem prejuízo de ser recorrível qualquer outra parte da decisão, relativa a pena parcelar ou mesmo só à operação de formação da pena única que tenha excedido aqueles limites».

Esse julgamento de não inconstitucionalidade fundou-se no entendimento de que não é constitucionalmente desconforme a inadmissibilidade de um terceiro grau de jurisdição quanto à aplicação de pena parcelar não superior a 8 anos de prisão.

Embora noutra perspectiva de análise, o Tribunal Constitucional, em acórdão Acórdão n.º 590/2012, de 05/12/2012., tirado por maioria, decidiu «julgar inconstitucional o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigo 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da CRP)».

Em nossa opinião, porém, a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão contém-se, ainda, no sentido possível das palavras da lei, sem comportar, por isso, analogia proibida, e observa uma das declaradas finalidades do regime de recursos em processo penal, vigente a partir da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, de restrição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Na linha deste entendimento, releva atender, neste ponto, ao acórdão n.º 186/2013, de 4 de Abril de 2013, pelo qual o Plenário do Tribunal Constitucional decidiu «não julgar inconstitucional a norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão».

Havendo recurso para a relação e confirmação da decisão de 1.ª instância (a chamada dupla conforme, ainda que in mellius), só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça quando a pena aplicada for superior a 8 anos de prisão.

3.2. Neste entendimento, o recurso não é admissível na parte em que o recorrente parece querer questionar a sua condenação pelo crime de detenção de arma proibida.

Na verdade, depois de tentar impugnar a sua condenação pelo crime de homicídio agravado, e já na implícita aceitação da agravação do homicídio, alega [na motivação] «tendo o arguido sido condenado por um homicídio com arma de fogo, também não se entende que o crime de detenção de arma de fogo seja autonomizado para justificar uma outra condenação dado que já havia tal facto sido tomado em consideração no homicídio».

Ora, em relação à condenação pelo crime de detenção de arma proibida verifica-se dupla conforme e condenação do recorrente em pena de 2 anos de prisão pelo que, também por força do último segmento da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, o recurso, nessa parte, não é admissível.

3.3. Subjacente à sua incompreensão pelo facto de a detenção de arma ter servido à sua condenação por um crime de homicídio agravado, por ter sido cometido com arma, e à sua condenação por um crime de detenção de arma proibida parece estar, afinal, a incompreensão do recorrente com o que ele supõe constituir uma violação do princípio ne bis in idem.

Por isso, e sem prejuízo da irrecorribilidade da decisão, nesse ponto, sempre se dirá que a agravação do homicídio pela circunstância de ter sido cometido com arma não é impeditiva da sua condenação pelo crime de detenção de arma porque não se verifica uma relação de concurso aparente entre o crime de homicídio, agravado pelo uso da arma, e o crime de detenção de arma proibida, em que aquele, aparecendo como ilícito principal, consumiria o crime de detenção de arma, impedindo o princípio ne bis in idem a valoração autónoma e integral do crime de detenção de arma proibida sob pena, justamente, de violação da proibição da dupla valoração.

Com efeito, os factos dados por provados não consentem a solução do concurso aparente.

No comportamento global do recorrente revela-se uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude os quais devem ser integralmente valorados para efeito de punição. Verifica-se, pois, um concurso efectivo, puro ou próprio, heterogéneo, entre o crime de homicídio, agravado por ter sido cometido com arma, e o crime de detenção de arma proibida.

Os bens jurídicos tutelados são diferentes; a agravação resultante do n.º 3 do artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, tutela a especial ilicitude do crime, em função do meio usado para a sua prática; enquanto que pelo crime de detenção de arma proibida se protege a segurança da comunidade.

Por outro lado, no caso, a detenção da arma não se esgotou na prática do homicídio mas, pelo contrário, precedeu o momento do seu uso como instrumento do crime.

Atendo-nos aos factos provados, o recorrente já detinha a arma quando se dirigiu ao café, na companhia de C..., antes, pois, de se encontrar com a vítima e começarem ambos a discutir. Assim, o crime de detenção de arma proibida já estava perfeitamente preenchido ainda antes de o recorrente ter efectuado qualquer disparo…

3.4. A afirmação peremptória do recorrente de que «não deve ser condenado pelo crime de homicídio agravado» apresenta-se destituída de qualquer fundamento ou razoabilidade.

Ela apresenta-se na sequência de uma parte extensa da motivação na qual o recorrente se dedica a evidenciar o circunstancialismo que, na sua perspectiva, rodeou a prática do crime, não se limitando aos factos provados, antes prescindindo deles para invocar factos que não só não foram dados por provados como, até, são contrariados por eles.

Chega a censurar a inacção da GNR nos tempos que antecederam o crime, a apreciação da prova feita pelo tribunal, a testemunha Adão pelo depoimento que prestou …

Enfim, o recorrente não procede a uma impugnação da qualificação do homicídio com qualquer viabilidade porque não a faz decorrer dos factos dados por provados e, por outro lado, não questiona, na sua objectividade, ter causado a morte da vítima.

O que parece censurar às instâncias, afinal – se é que conseguimos compreender a confusa alegação do recorrente – é não terem considerado «que o álcool, o medo que o J... tinha pelo V..., homem sem princípios e sem moral, o estado de ansiedade e de excitação provocado pelas constantes ameaças, insultos, ameaças de morte, roubos, assaltos e ainda a barra de ferro estão na origem do crime».

Circunstancialismo que também lhe serve para impugnar a medida da pena.

Temos, assim, que considerar sem qualquer viabilidade, por absolutamente incongruente, uma pretensa censura da qualificação jurídica dos factos tanto mais quanto o recorrente não a alicerça nos factos provados e, além disso, reconhecendo a prática do facto ilícito típico alega um circunstancialismo que, mesmo na sua perspectiva, não terá qualquer efeito justificador da conduta – porque nunca o alega – mas será, apenas, adequado a diminuir a sua culpa pelos factos. Daí que também sirva a sua pretensão de redução da pena pelo crime de homicídio.

3.5. A conclusão 5.ª aparece desligada das conclusões anteriores e sem suporte na motivação.

Isto é, no encadeamento lógico da formulação das conclusões, é incompreensível que o recorrente, depois de “aceitar” a sua condenação pelo homicídio simples [conclusão 4.ª], venha sustentar que os factos provados “implicam e justificam” uma outra solução de direito (“uma outra decisão ou sentença”, conforme se expressa) e invocar uma violação do artigo 70.º do Código Penal, quando, ainda que fosse bem sucedido na sua pretensão de atenuação especial da pena, nunca ao crime (de homicídio) seria aplicável, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade.

Por outro lado, as nulidades que aponta à sentença (socorrendo-se, indevidamente, de normas do processo civil quando, na matéria, não há qualquer lacuna no processo penal que autorize esse procedimento) nunca poderiam levar a uma outra decisão de mérito mas, apenas, à imposição da sua sanação.

Finalmente, mas não menos importante, a motivação não fornece qualquer substrato à formulação dessa conclusão 5.ª, a significar que, nesse âmbito, falta a motivação.

Assim, por falta de motivação, o recurso não pode ser admitido, quanto à matéria das supostas nulidades da sentença e da violação do artigo 70.º do Código Penal, nos termos do n.º 2 do artigo 414.º do CPP.

3.6. A conclusão 1.ª reporta-se à inconformação do recorrente com a falta de realização de diligências de prova durante o inquérito e instrução e com o facto de, durante a audiência de julgamento, ter sido indeferido requerimento que apresentou no sentido de serem levadas a cabo determinadas diligências de prova.

Esta matéria foi levada pelo recorrente ao conhecimento da relação, que dela conheceu, no âmbito do recurso da decisão final, vindo a julgar improcedente o recurso, nesse segmento, no entendimento de se mostrar acertada a decisão de indeferimento da realização de diligência de prova requerida pelo recorrente no decurso da audiência de julgamento.

Não há dúvida, pois, de que, nesse âmbito, o acórdão da relação conheceu de uma questão interlocutória, intermédia, e a natureza da questão não se altera pelo facto de a questão interlocutória ter sido conhecida conjuntamente (na mesma peça processual) com as questões que respeitavam à decisão que conheceu, a final, do objecto do processo.

Ora, a alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP estatui que [não é admissível recurso] de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo.

Por conseguinte, na parte em que conheceu dessa questão interlocutória, o acórdão da relação não admite recurso para este Tribunal.

3.7. Pelas razões expostas, em relação a todas as questões antes apreciadas, o recurso não é admissível devendo, por conseguinte, nesses pontos, ser rejeitado, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPP.

4. A medida da pena pelo homicídio

Subsiste, assim, como questão a apreciar, a da medida da pena pelo homicídio, no quadro da qualificação jurídica operada pelas instâncias – homicídio simples do artigo 131.º do Código Penal, agravado, nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, por ter sido praticado com arma – demonstrada que já foi a manifesta improcedência do recurso, na parte em que visava a alteração dessa qualificação (por razões de facto, que não de direito, e com base em matéria de facto não fixada pelas instâncias e sempre irrelevante para afastar a apontada agravação).

4.1. O recorrente enuncia uma pretensão de atenuação especial da pena.

A atenuação especial da pena, nos termos do artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal, tem como pressuposto a existência de circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime ou contemporâneas dele que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena, constando do n.º 2 do mesmo artigo a enumeração, meramente exemplificativa, de circunstâncias com o efeito requerido de diminuir, numa medida ou com uma intensidade atenuantes particularmente elevadas, a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena.

As hipóteses de atenuação especial da pena são sempre extraordinárias e excepcionais, cobrindo os casos em que se verificam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto e, por via disso, a merecerem um tratamento diferenciado da generalidade e normalidade dos casos, em vista dos quais foi estabelecida a moldura penal «normal».

«A diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.» Figueiredo Dias, Das Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 195 e ss..

O que não é o caso.

As circunstâncias anteriores ao crime são adequadas a reflectir-se na culpa do recorrente e poder-se-á, até, inferir que, no momento da prática do crime, o recorrente estava afectado por sentimentos que influenciaram a sua determinação para a prática do crime, afastando-o do normal comportamento de “homem fiel ao direito”. Ou seja, os factos provados conformam um contexto capaz de enfraquecer a culpa do recorrente pelo crime – como, adiante, melhor veremos –, mas a ponderar para efeitos da determinação da medida da pena no quadro da moldura penal normal.

Com o que se quer significar que o circunstancialismo dado por provado, sendo adequado a reflectir-se na culpa do recorrente, atenuando-a, não tem, porém, a potencialidade para fornecer uma imagem global do facto de que resulte uma diminuição sensível da sua culpa e fundamente a atenuação especial da pena.

4.2. Assim, a questão da medida da pena pelo homicídio deverá ser apreciada no quadro da qualificação jurídica operada e que se deve manter, ou seja, com referência à moldura abstracta de prisão de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses.

4.2.1. Como, repetidamente, temos escrito, quando chamados a tratar a questão da “medida da pena”, as finalidades da punição, quer dizer, as finalidades das penas são, como paradigmaticamente declara o artigo 40.º, n.º 1, do CP, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Com este texto, introduzido na revisão de 95 do CP Inexistente na versão primitiva do CP, foi introduzido com a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março., o legislador instituiu no ordenamento jurídico-penal português a natureza exclusivamente preventiva das finalidades das penas Sobre a evolução, em Portugal, do problema dos fins das penas e a doutrina do Estado, cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 88 e ss..

Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial. «Umas e outras devem coexistir e combinar-se da melhor forma e até ao limite possíveis, porque umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros.» Ibidem, p. 105.

Com a finalidade da prevenção geral positiva ou de integração do que se trata é de alcançar a tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto. No sentido da tutela da confiança das expectativas de todos os cidadãos na validade das normas jurídicas e no restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.

A medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos é um «acto de valoração in concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo aplicador à luz das circunstâncias do caso. Factores, por isso, da mais diversa natureza e procedência – e, na verdade, não só factores do “ambiente”, mas também factores directamente atinentes ao facto e ao agente concreto – podem fazer variar a medida da tutela dos bens jurídicos» Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime., Aequitas, Editorial Notícias, p. 228.. Do que se trata – e uma tal tarefa só pode competir ao juiz – «é de determinar as referidas exigências que ressaltam do caso sub iudice, no complexo da sua forma concreta de execução, da sua específica motivação, das consequências que dele resultaram, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois do facto, etc.» Ibidem, p. 241..

Se são factores atinentes ao facto que relevarão as mais das vezes para a determinação da medida necessária para satisfazer as exigências de prevenção geral, nas condutas subsumíveis a um mesmo tipo legal podem encontrar-se muitas variáveis, sem se sair do âmbito do desvalor típico, capazes de influir, para mais ou para menos, na medida necessária à tutela do bem jurídico.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva, devem actuar as exigências de prevenção especial. A medida da necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo do ponto de vista da prevenção especial.

Se a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do CP), a culpa tem a função de estabelecer «uma proibição de excesso» Figueiredo Dias, Temas, cit., p. 109., constituindo o limite inultrapassável de todas as considerações preventivas.

A aplicação da pena não pode ter lugar numa medida superior à suposta pela culpa, fundada num juízo autónomo de censura ético-jurídica. E o que se censura em direito penal é a circunstância de o agente ter documentado no facto – no facto que é expressão da personalidade – uma atitude de contrariedade ou de indiferença (no tipo-de-culpa doloso) ou de descuido ou leviandade (no tipo-de-culpa negligente) perante a violação do bem jurídico protegido. O agente responde, na base desta atitude interior, pelas qualidades jurídico-penalmente desvaliosas da sua personalidade que se exprimem no facto e o fundamentam Figueiredo Dias, «Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime» Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, Fasc.1, Janeiro-Março de 1992, Aequitas, Editorial Notícias,p. 14..

Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do CP, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.

4.2.2. Nos crimes de homicídio, as exigências de prevenção geral positiva são sempre especialmente intensas porque a violação do bem jurídico fundamental ou primeiro – a vida – é, em geral, fortemente repudiada pela comunidade. E, por isso, a estabilização contra-fáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito.

No plano da culpa pelo crime releva considerar que o recorrente foi sujeito a repetidos e intensos insultos e ameaças de morte por parte da vítima [factos provados sob o n.º 18], vivendo o recorrente com medo dela [facto provado no n.º 22], pessoa conflituosa, agressiva e temida pela generalidade das pessoas da terra [factos provados sob o n.º 17].

Embora não tenha sido dado por provado que o recorrente, nos momentos que imediatamente antecederam a prática do crime, tivesse sido ameaçado e injuriado pela vítima e tivesse agido sob a influência negativa de um estado de enervamento causado por acção dela, não é temerário presumir que as condições de determinação do recorrente para o acto tivessem sofrido a influência negativa dum estado de irritação, decorrente da discussão mantida com a vítima no interior do café. Discussão certamente violenta uma vez que o recorrente e a vítima foram convidados pelo dono do café a abandoná-lo e, já no exterior, o dono do café encaminhou o recorrente para o seu veículo [factos provados sob o n.º 4].

Neste circunstancialismo, a culpa do recorrente pelo crime mostra-se atenuada em função de se poder inferir que actuou num estado que afectou as suas normais condições de determinação, originado pela discussão próxima mas, seguramente, alicerçado, ainda, no comportamento que a vítima tinha para consigo e no medo que dela tinha.

Tanto mais quanto ao recorrente não são conhecidas demonstrações de atitudes violentas e socialmente inadequadas, sendo ele, antes pelo contrário, um indivíduo primário, de comportamento pacífico e pacato, com boas relações interpessoais [factos provados sob os n.os 33 e 34].

Tudo a sugerir, pois, que a acção do recorrente de causar a morte de V... se apresenta como um acto associado a uma muito concreta motivação, desencadeada por comportamentos da vítima, e sem correspondência nas normais manifestações da personalidade do recorrente.

O recorrente é primário e não evidencia quaisquer especiais dificuldades de inserção social, a apontar no sentido da redução das exigências de prevenção especial. De qualquer modo, as exigências de prevenção especial de socialização não constituem, por regra, nos casos de homicídio, um factor com relevo significativo na medida da pena porque, quando é posto em causa o bem jurídico vida, sobreleva, decisivamente, a necessidade e a medida da sua tutela.

Nesta ponderação de todas as circunstâncias do caso, temos por mais ajustada à culpa do recorrente a pena de 11 anos de prisão a qual se mostra, ainda, adequada à satisfação das exigências de prevenção geral.

5. A pena conjunta

Em razão da redução da medida da pena pelo homicídio e, assim, por alteração da moldura abstracta do concurso, que passa, agora, a ser de 11 a 13 anos de prisão (n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal), impõe-se determinar a pena conjunta pelo concurso de crimes.

A medida concreta da pena do concurso determinar-se-á, no quadro da moldura abstracta, segundo o critério do artigo 77.º, n.º 1, segundo parte – na determinação da pena do concurso são considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente.

No nosso sistema, a pena conjunta pretende ajustar a sanção – dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.

Os dois crimes estão estreitamente relacionados porque não será ousado inferir que à detenção da arma com que foi cometido o homicídio, justamente agravado por ter sido cometido com arma, não será alheio o medo que o recorrente tinha da vítima, justificado pelo comportamento agressivo desta, estando ela também na posse de uma arma, pelo menos a que subtraiu da casa do recorrente e companheira [facto provado sob o n.º 20].

Em função da estreita conexão entre os crimes e da personalidade do recorrente – pessoa normalmente sem manifestações de violência e que na prática dos factos sofreu a influência negativa de condições exteriores, que não conseguiu “controlar” de outro modo –, temos por ajustada a pena conjunta de 11 anos e 5 meses de prisão.


III


Por tudo o exposto, acordamos em:

i) No parcial provimento do recurso, condenar o recorrente AA, pela prática de um homicídio agravado, previsto e punido pelos artigos 131.º, do Código Penal, e 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 11 (onze) anos de prisão;

ii) Em cúmulo jurídico dessa pena e da pena de 2 (dois) anos de prisão em que foi condenado pelo crime de detenção de arma proibida, condená-lo na pena conjunta de 11 (onze) anos e 5 (cinco) meses de prisão;

iii) Em tudo o mais, rejeitar o recurso, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 420.º do CPP.

Por o recurso ter obtido parcial provimento, não são devidas custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Outubro de 2015

Isabel Pais Martins (relatora)

Manuel Braz