Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
533/16.7PBSTR.E1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
INFANTICÍDIO
LAPSO MANIFESTO
IN DUBIO PRO REO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 04/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADO PARCIALMENTE O ACÓRDÃO RECORRIDO
Área Temática:
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL – JULGAMENTO / SENTENÇA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO.
Doutrina:
- Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª Edição, Lisboa: AAFDL, 2007, p. 46;
- Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, art. 136.º/ § 4, p. 169, art. 136.º/ § 5, p. 169-170, art. 136.º/§ 11, p. 171-3).
- Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, nm. 235 ; Crime Preterintencional, causalidade adequada e questão-de-facto, RDES, Ano XVII, 1970, p. 34;
- Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II — Os Homicídios, Lisboa: AAFDL, 2008, p. 175-6.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 131.º, 132.º, N.ºS 1 E 2, 136.º, 410.º, N.º 2, ALÍNEA A) E 426.º, N.º 2.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 374.º, N.º 3, ALÍNEA A) E 380.º, N.ºS 1, ALÍNEA B) E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 26-09-2009, PROCESSO N.º 08P3547;
- DE 22-01-2013, PROCESSO N.º 184/11.2GCMTJ.L1.S1;
- DE 06-02-2013, PROCESSO N.º 593/09.7TBBGC.P1.S1;
- DE 29-05-2013, PROCESSO N.º 344/11.6JALRA.E1.S1.
Sumário :
I - Inexiste violação do princípio “in dubio pro reo” se do texto da decisão não consta qualquer expressão evidenciadora de que, ainda que por momentos, o Tribunal tivesse admitido outra situação, ou um decurso dos factos diferente daquele que resultou como provado.
II - Quando o Tribunal condenou a arguida pelo crime de homicídio qualificado apenas se referindo ao n.º 2 do art. 132.º, do CP, sem qualquer referência ao disposto no n.º 1, não se pode considerar, como pretende a recorrente, que "não foi condenada com base no disposto no n.º 1 do art. 132.º, do Código Penal", entendendo-se estarmos perante um caso onde não foi integralmente observado o disposto no art. 374.º, n.º 3, al. a), do CPP, por deficiência na indicação das disposições aplicáveis, a permitir uma correção da sentença nos termos do art. 380.º, n.º 2, do CPP, e sem que isso importe modificação essencial da condenação [cf. art. 380.º, n.º 1, al, b), do CPP].
III - Para que se possa considerar estarmos perante um crime de infanticídio, previsto no art. 136.º, do CP, é necessário que a mulher tenha atuado sob a influência perturbadora do parto e tenha praticado o infanticídio durante ou logo após o parto. Quer se analise esta determinação da conduta como um elemento da tipicidade da conduta, ou como um elemento relevante em sede de culpa do agente, o certo é que o estado de perturbação pode ser condicionado tanto endogenamente (v.g., por força de uma tendência ou mesmo de uma crise depressiva da mulher), como exogenamente (pelo particular peso que para a mãe assume uma situação de necessidade que a atinge, seja esta situação moralmente, socialmente - v.g., a supra aludida "desonra" - ou economicamente fundada).
IV - A mãe terá que matar o filho durante ou logo após o parto (isto é, a conduta da agente tem que ocorrer num destes momentos, independentemente do momento de verificação do resultado). Pelo que a conduta tem por isso de ter lugar durante o período que temporalmente se segue ao parto e durante o qual é razoável supor, segundo os pontos de vista objectivos dos conhecimentos da medicina, que a influência perturbadora deste pode ainda subsistir.
V - É necessário provar, igualmente, que a mãe atuou ainda sob a influência perturbadora do parto, valendo o princípio “in dubio pro reo”, o que significa que verificado que a conduta teve lugar logo após o parto, se o juiz, depois de produzida toda a prova possível, ficar em dúvida insanável sobre se a mãe actuou sob a influência perturbadora daquele, ele deve considerar verificada a tipicidade do art. 136.º e não deve, em alternativa, punir pelos arts. 131.º ou 132.º.
VI - A simples prova de que a mãe escondeu a gravidez não permite por si só, e sem mais, concluir que não tenha atuado sob a influência perturbadora do parto. Para que se possa subsumir uma certa conduta ao crime de infanticídio é necessário não só provar que a morte do recém-nascido provocada pela mãe terá ocorrido durante ou logo após o parto, mas também a prova de que aquele comportamento foi determinado por uma influência perturbadora ligada ao parto.
VII - A inexistência de prova que permita concluir pela possibilidade de subsunção dos factos ao crime de infanticídio não poderá ter como consequência a imputação ao agente de um crime mais grave (homicídio qualificado), em clara violação do princípio in dubio pro reo; na verdade, se, por exemplo, não for possível obter prova de que a atuação da arguida, logo após o parto, esteve sob a influência perturbadora daquele, em atenção àquele princípio não poderemos considerar que aquela influência não existiu, pelo que na dúvida (quanto a ter atuado sob aquela influência ou não) teremos que concluir que atuou.
VIII - Dado que na matéria de facto provada, nada se refere quanto a este ponto e que também não existe matéria de facto não provada no sentido de, por exemplo, não se ter conseguido obter aquela informação, pese embora o tribunal tivesse tentado, ou no sentido de se não ter provado que tivesse atuado sob a influência perturbadora do parto; e também não há na fundamentação da matéria de facto qualquer descrição de um possível relatório pericial sobre o estado da arguida, entende-se que não existe matéria de facto provada suficiente para que possamos concluir pela ocorrência (ou não) de um crime de infanticídio.
IX - O simples facto de ocultar a gravidez ao longo de todo o tempo, de não ter procurado acompanhamento médico, o facto de negar a gravidez a quem sobre ela a questionava, o facto de ter realizado o parto sozinha, sem qualquer acompanhamento, não são suficientes para que se possa concluir que no momento logo após o parto tenha provocado a morte do recém-nascido livre de qualquer perturbação decorrente do parto, tanto mais que se encontrava só e sem qualquer apoio físico ou psicológico.
X - Dado que da matéria de facto provada nada resulta que o Tribunal tivesse investigado a possibilidade (ou não) de podermos estar em presença de uma situação a subsumir no tipo legal de crime de infanticídio, verifica-se uma omissão de investigação que determina uma insuficiência da matéria de facto para a decisão, o que constitui o vício do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, decidindo-se determinar o reenvio do processo para o Tribunal da relação de Évora, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 426.º, n.º 2, do CPP, a fim de se apurar se a arguida agiu sob influência perturbadora do parto, solicitando para isso avaliação psiquiátrica da arguida, e reexaminando depois a causa, em conformidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:


I

Relatório


1. No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém (Juízo Central Criminal, Juiz 2), a arguida AA foi condenada, em concurso real, pela prática:

- de um crime de homicídio qualificado, nos termos dos arts. 131.º e 132.º, n.º 2, alíneas a) e c), ambos do Código Penal (CP), na pena de 19 (dezanove) anos de prisão, e

- de um crime de profanação de cadáver, nos termos do art. 254.º, n.º 1, alínea a), do CP, na pena de 1 (um) ano de prisão,

- e, em cúmulo jurídico da penas parcelares aplicadas, na pena única de 19 (dezanove) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Foi ainda decidido: “Determinar, após trânsito em julgado, a recolha ao arguida AA do perfil de ADN (ácido desoxirribonucleico) para fins de investigação, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1.°, n.ºs 1 e 2, 8.°, n.° 2, e 18.°, n.° 3, da Lei n.° 5/2008, de 12 de Fevereiro)”.

2. Inconformada co a decisão recorrida, a arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 24.10.2017, decidiu “negar provimento ao recurso interposto pela arguida e, consequentemente, em confirmar na íntegra o acórdão recorrido” (cf. fls. 774 e ss, em particular, fls. 824).

3. Inconformada, a arguida recorreu desta última decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto nos arts. 399.º, 400.º a contrario, 401.º, n.º 1, al. b), 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, al. a), 408.º, n.º 1, al. a), 410.º, n.º 2, als. a) e C), e 432.º, n.º 1, al. b), todos do Código de Processo Penal (CPP), tendo apresentado as seguintes conclusões:

«1.ª Entende-se que a Arguida não praticou os factos pelos quais vinha acusada, que não foi feita prova de que a arguida praticou os referidos factos, e como tal, pelo menos por aplicação do princípio “in dúbio pro reo” deverá a arguida ser absolvida do crime pelo qual foi condenada.

2.ª Ora, com o devido respeito nunca poderia o Tribunal condenar a arguida pelo crime de homicídio qualificado, nos termos das disposições dos artigos 131.º e 132.º, n.º 2 alínea a) e c), do Código Penal, pelo que ao ter condenado a arguida, o douto acórdão recorrido, violou estas disposições legais.

3.ª Todos os factos que são relatados e mesmo que fossem provados, levariam sempre a qualificação jurídica diversa, nomeadamente, um crime de infanticídio previsto e punido pelo art. 136.º do Código Penal,

4.ª ou caso assim, não se entenda o que apenas se admite por mero dever de patrocínio, para um crime de homicídio por negligência, nos termos do artigo 137.º do Código Penal,

5.ª ou caso assim não se entenda o que, sem conceder, se admite por mera hipótese académica, para um crime de homicídio simples p.p. pelo art. 131.º do Código Penal.

6.ª A terem ocorrido os factos, percebe-se perfeitamente que não existe dolo de homicídio, pois não se demonstra que a arguida alguma vez tivesse posto a hipótese de com a sua conduta preencher este tipo de crime e que se tenha conformado com aquela realização.

7.ª Pelo que, não pode o Tribunal deixar de ter em conta, com base nas regras da lógica e da experiência comum, como pode ser dolorosa física e psicologicamente a vivência de um parto, em especial de um bebé de termo, vivido sem ajuda ou apoio médico, como no caso em apreço – art. 410.º n.º 2 al. a) e c) do Código Processo Penal.

8.ª A arguida não conseguiu em sede de audiência de julgamento, verbalizar a experiência vivenciada no momento do parto, não se recordando, tão pouco, como procedeu ao corte do cordão umbilical – tal o estado psicológico da arguida durante e logo após o parto (completamente perturbada, que nem se recorda de momentos tão marcantes, como o corte do cordão umbilical do filho recém-nascido) - Cfr. Registo áudio das declarações prestadas pela arguida, com a identificação 20170314145153_2698233_2871702, Passagem 8:29 a 8:52 e passagem 13:55 a 14:55.

9.ª O que nos leva a afirmar que a arguida terá cometido um crime de infanticídio, previsto e punido pelo art. 136.º do Código Penal – ilícito cometido durante ou logo após o parto e estando a mãe ainda sob a sua influência perturbadora.

10.ª Pelo que o douto Tribunal, devia ter condenado a arguida de acordo com este tipo de ilícito - crime de infanticídio, previsto e punido pelo art. 136.º do Código Penal.

11.ª Por outro lado, sempre se dirá que, a arguida, não representou como possível a morte do recém-nascido, atendendo que para a arguida, o bebé nasceu sem vida, conforme as suas declarações, em que afirmou que o recém-nascido não tinha chorado após o parto, nem teve qualquer reacção - Cfr. Registo áudio das declarações prestadas pela arguida, com a identificação 20170314145153_2698233_2871702, Passagem 9:28 a 9:50.

12.ª Pelo que a arguida, estava em erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente (o bebé ter nascido sem vida), conforme o disposto no art. 16.º do Código Penal, já que para a arguida, o bebé nasceu sem vida, logo ao deixá-lo “num arvoredo” não implicava a sua morte – a arguida não agiu com dolo de homicídio.

13.ª Verifica-se que a arguida se encontrava em erro, se se aceitar que o bebé nasceu com vida, e que a arguida convencida que o mesmo estava morto o deixou num arvoredo, de todo, não existe dolo de homicídio, está-se, perante um facto praticado por negligência, sem consciência da prática de um crime, já que a arguida não chegou sequer a equacionar a possibilidade, de que com esta sua conduta, vir a causar a morte ao recém-nascido, seu filho.

14.ª Caso assim, não se entenda, o que apenas, sem conceder, se admite por hipótese académica e dever de patrocínio: se se entendesse que existira dolo de homicídio, o que se repudia veementemente, nunca deverá ser aplicado a sua vertente qualificativa, vejamos

15.ª A qualificação de homicídio no Código Penal é efectuada através da combinação de uma cláusula genérica de agravação, prevista no n.º 1 do art. 132.º - a especial censurabilidade ou perversidade do agente, ou seja, um especial tipo de culpa – com a técnica dos exemplos-padrão ou exemplos típicos, enunciados no n.º 2 do mesmo artigo.

16.ª Os exemplos-padrão indiciam e explicitam o sentido da cláusula geral pelo que a verificação de um exemplo-padrão não significa, necessariamente, a realização daquele especial tipo de culpa e consequente qualificação do homicídio.

17.ª A qualificação do homicídio baseia-se num especial tipo de culpa, espelhado na especial censurabilidade ou perversidade do agente e prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvalioso.

18.ª No n.º 2 do art. 132.º do Código Penal indicam-se circunstâncias susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, elementos indiciadores da ocorrência de culpa relevante, cuja verificação, atenta a sua natureza indiciária, não implica, obviamente, a qualificação automática do homicídio.

19.ª Com o devido respeito, que é muito, o circunstancialismo em que os factos ocorreram não permite concluir pela especial censurabilidade, prevista no art. 132.º, n.º 1 do Código Penal, sendo certo que a arguida não vem condenada pelo n.º 1 do art. 132.º do Código Penal.

20.ª Assim, nos presentes autos, não existe matéria factual que possa comprovar a existência dessa especial censurabilidade ou perversidade na conduta da arguida, para além da (caso se entenda existir dolo homicídio) ”normal” existente para a prática de homicídio.

21.ª Caso se entenda existir dolo de homicídio, falta aquele “plus” que revelará a especial censurabilidade ou perversidade do agente.

22.ª No caso em apreço, o douto Acórdão recorrido, condena a arguida com base única e exclusivamente, nas qualificativas, de acordo com o disposto nas alíneas a) e c) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal,

23.ª Sendo certo que, preenchidos os exemplos-padrão das al. a) e c) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal, ou seja, por ter vencido as contra motivações éticas que radicam dos laços de parentesco próximo (revelando uma maior energia criminosa),e face à conhecida impossibilidade de defesa em razão da idade, indiciam uma especial censurabilidade ou perversidade estas terão, em todo o caso, de se revelarem também através das qualidades desvaliosas da personalidade do agente, manifestadas no ato (cfr. Prof. Figueiredo Dias , ob. Cit., 30), o que não se verifica no caso  e não sendo tal qualificativa de verificação automática só pelo simples facto de ser seu filho recém-nascido, não andou bem o douto Tribunal da Relação, com o devido respeito que é muito, em qualificar o crime de homicídio, com base única e exclusivamente no preenchimento dos exemplos padrão do art. 132. n.º 2 do Código Penal, atendendo que nada na conduta e personalidade da arguida permite concluir pela especial censurabilidade ou perversidade no cometimento do crime e a mesma não foi condenada com base no disposto no n.º1 do art. 132.º do Código Penal.

24.º Além de que, e neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/03/2010, in www.dgsi.pt, que remete para o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 2009, também disponível em www.dgsi.pt e que se dispensa de transcrever por estar supra, na motivação, evitando-se a sua repetição, para o qual se remete, por se entender ter aplicação no caso sub judice (caso se entenda, sem conceder, que a arguida teve dolo de homicídio).

25.ª Pelo que mesmo que assim se entendesse, existir o dolo de homicídio, o que se repudia, deveria ser a arguida, aqui recorrente, condenada por homicídio, mas na sua forma simples, previsto e punido pelo art. 131.º do Código Penal, do qual vinha acusada.

26.ª Relativamente à fixação em concreto da medida da pena, a culpa e a prevenção geral e especial, são os dois factores a considerar.

27.ª O momento da aplicação da pena é aquele em que, no direito penal, se deve ter em vista a protecção subsidiária preventiva, quer geral quer individual, de bens jurídicos e de prestações estatais, ou seja, fim de prevenção geral, não no sentido de intimidação, mas com o objectivo de salvaguarda da ordem jurídica na consciência da comunidade.

28.ª Em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, segundo o disposto no art. 40.º n.º 2 do Código Penal.

29.ª A medida da pena será dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, temperada pela necessidade de reintegração social da arguida, e com o limite inultrapassável daquela.

30.ª O critério de escolha da pena é-nos dado pelo art. 70.º do Código Penal: quando ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência a esta última sempre que ela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

31.ª Serão as considerações de prevenção que deverão determinar a medida da pena, abaixo da medida da culpa, de acordo com o disposto no art. 71.º n.º 1 do Código Penal.

32.ª Por outro lado, decorre do n.º 2 da norma referida no parágrafo anterior, que na determinação da medida da pena, o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente.

33.ª Na nossa modesta opinião a arguida deverá ser absolvida do crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos art. 131.º e 132.º n.º 2 al. a) e c) do Código Penal, de que vinha acusada e pelo qual foi condenada.

34.ª Caso assim, não se entende, o que se admite por dever de patrocínio, e porque a terem ocorridos os factos os mesmos preenchem o tipo de crime previsto e punido pelo art. 136.º do Código Penal – crime de infanticídio – ou seja, com pena de prisão de um a cinco anos.

35.ª Sendo neste caso, e atentas as concretas circunstâncias em que os factos ocorreram e a inexistência de antecedentes criminais da arguida, entende-se que a opção por pena não privativa da liberdade assegura adequada e suficientemente as necessidades de prevenção e portante os fins da punição.

36.ª Ou, ainda, na hipótese de assim, não se entender, sem conceder e por dever de raciocínio sempre se dirá que a arguida agiu em erro (presumindo que o bebé nasceu sem vida), pelo que estamos perante um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo art. 137.º do Código Penal – ou seja, com pena de prisão até cinco anos.

37.ª Sendo neste caso, e atentas as concretas circunstâncias em que os factos ocorreram e a inexistência de antecedentes criminais da arguida, e ainda que a mesma não tenha revelado sinais de exteriorização da sua culpa, entende-se que a opção por pena não privativa da liberdade assegura adequada e suficientemente as necessidades de prevenção e portante os fins da punição.

38.ª Por fim, e caso o douto Tribunal não colha nenhuma das posições anteriores, sempre se dirá, sem conceder, e por mera hipótese académica que à arguida deve ser aplicado um crime de homicídio simples, previsto e punido pelo art. 131.º do Código Penal - ao qual cabe em abstrato uma pena de prisão de oito a dezasseis anos de prisão.

39.ª Tanto mais,

Não podia a arguida ser condenada a pena de dezanove anos de prisão, pois a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, dentro dos limites definidos na lei - conforme dispõe o art. 71.º n.º 1 do Código Penal

O art. 131.º do Código Penal prevê uma moldura penal de 8 a 16 anos de prisão e o art. 132.º n.º 1 do Código Penal prevê uma moldura de 12 a 25 anos de prisão – no entanto, a arguida não foi condenada pelo n.º 1 do art 132.º do Código Penal!

40.ª Logo a medida da pena aplicada á arguida não poderia ultrapassar o limite máximo fixado, de 16 anos, conforme a moldura penal estabelecida no art 131.º do Código Penal - pelo que a pena aplicada é nula por contrária à lei nulidade que expressamente se invoca e requerviolando o douto Acórdão recorrido o disposto nos art. 71.º e 131.º ambos do Código Penal e art 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.

41.ª   A pena deve ser fixada dentro da moldura penal de 8 a 16 anos de prisão.

42.ª As exigências de prevenção geral – que não são de descurar – não se fazem sentir com particular acuidade, pelo que não demandam que se eleve o limite mínimo resultante da moldura abstrata do tipo: 8 anos.

43.ª Em nosso entender, e salvo melhor opinião, na determinação da medida da pena dever-se-á tomar em devida conta como circunstâncias favoráveis à arguida:

- não ter antecedentes criminais;

- a circunstância de se encontrar inserida socialmente;

- o facto de ter confessado os factos, que embora o douto Acórdão recorrida apenas tenha considerado como confissão parcial, demonstra, em nosso entender, a capacidade de autocensura;

- o facto de ser bastante jovem;

- tem dois filhos menores ao seu encargo, com idades compreendidas de cinco e três anos, que precisam dos cuidados da mãe;

- e o facto de ser de prever que a arguida adopte uma conduta conforme o Direito – como sempre adoptou até ao factos.

44.ª É pois, entre os 8 e os 10 anos de prisão que as necessidades de prevenção geral e as circunstâncias que depõem a favor e contra a arguida permitirão fixar a pena concreta.

45.ª Assim, salvo melhor opinião, ponderadas as circunstâncias mencionadas, considera-se ser adequada e suficiente a condenação numa pena situada ainda abaixo da média entre os limites máximo e mínimo, de nove anos.

46.ª  Condenando a arguida a 19 anos de prisão, violou o douto Acórdão recorrido, o disposto nos art. 40.º, 70.º, 71.º, 131.º do Código Penal e os art. 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.

47.ª  Reformulando-se o cúmulo de modo a englobar a pena de um ano de prisão aplicada pelo douto Acórdão recorrido, pelo crime de profanação de cadáver, entende-se, com o devido respeito e salvo melhor opinião, que a pena única de nove anos e seis meses de prisão, respeita o disposto no art. 77.º do Código Penal.

48.ª  Considerando os fundamentos que supra se expõem deverá ser revogado o Douto Acórdão ora em crise, por terem sido violados, a nosso ver e com o devido respeito por opinião contrária:

1) Os artigos 131.º e 132.º n.º 2, alíneas a) e c) do Código Penal;

2) Os artigos 40.º, 70.º, 71.º do Código Penal

3) Os artigos 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que, dando-se provimento ao recurso,

Deve ser revogado o douto acórdão recorrido, sendo a arguida absolvida do crime de homicídio qualificado que lhe foi imputado.

sempre sem conceder e apenas por mero dever de patrocínio, deve ser o douto acórdão revogado, atendendo, com o devido respeito, errou ao aplicar o normativo referente à prática pela arguida de um homicídio qualificado p. e p. pelo artigo 131.º e 132.º n.º 2, alíneas a) e c), face aos factos dados como provados e à conduta da arguida, o douto acórdão recorrido deveria ter considerado que a conduta da arguida integrava a prática de um crime de infanticídio, p. e p pelo artigo 136.º do Código Penal

ou caso este não seja atendido, o que sempre se dirá por dever de patrocínio, deveria a qualificação jurídica ser alterada para homicídio simples, p.p. pelo art. 131.º do Código Penal, ademais a arguida não foi condenada pelo art. 132.º n.º 1 do Código penal, pelo que nunca a arguida podia ser condenada a 19 anos de prisão por violação do art. 71.º do Código Penal, e caso se entenda existir o dolo de homicídio a arguida só pode ser condenada dentro dos limites legais previstos para o crime de homicídio simples, ou seja, em nosso entender, em pena não superior a nove anos!

sempre sem conceder e apenas por hipótese académica sempre se dirá que a pena aplicada à arguida, ora recorrente foi excessiva e desproporcional às circunstâncias do caso concreto, devendo a mesma aproximar-se do seu mínimo legal.»

4. O Procurador Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Évora apresentou resposta ao recurso interposto, tendo concluído que:

«1. Nos termos do artigo 434º do CPP, o recurso para o STJ visa exclusivamente questões de direito, sem prejuízo do disposto no artigo 410° nºs 2 e 3 do mesmo diploma legal – deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergente da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal e/ou nulidade da decisão, nos termos do artigo 379° n°2 do CPP – cfr. Art° 410 n°3 do CPP.

2. A recorrente suscita neste recurso as questões que colocara ao desembargo do tribunal da relação, formulando acervo conclusivo com questões ora (re)suscitadas e que foram já bastamente dilucidadas no acórdão recorrido.

3- No recurso interposto o que salta à vista é que a arguida motiva como se estivesse a impugnar a decisão proferida em 1ª instância, mas não já o douto acórdão publicado pelo Tribunal da Relação de Évora do qual recorre.

4. O Tribunal da Relação encerrou o ciclo do conhecimento da matéria de facto, por um lado, e a decisão proferida não ostenta qualquer vício, ao nível dessa mesma matéria, que a torne uma decisão incorrecta, ao ponto de vista da lógica jurídica, a impor qualquer conhecimento oficioso de vícios elencados no artigo 410°nº 2 do CP.

5- Por isso, entendemos que o recurso apresentado pela arguida não pode manifestamente, proceder, razão pela qual deve o mesmo ser improcedente.

6. Sempre se dirá que está devidamente concretizada a qualificação do crime de homicídio que resulta de uma análise séria sobre as circunstâncias que envolveram a formação da vontade de praticar o crime para se concluir legitimamente que a arguida agiu por puro egoísmo, com calma, reflexão e sangue frio na sua preparação para se concluir estarmos perante o cometimento, por aquela, de um crime de homicídio qualificado do art. 132º, nos 1 e 2 als. a) e c) do CP.

7. A medida da(s) pena(s) encontrada para o recorrente no acórdão objeto do recurso deverá ser mantida, já que os bens jurídicos postos em crise, o dolo direto com que atuou e as suas concretas condições de vida permitem concluir que essa pena é adequada e se enquadra nos critérios legais, não se descortinando que preceito legal tenha resultado por ele violado, em perfeita harmonia com o disposto nos artigos 71° e 72° do Código Penal.

8. O acórdão recorrido deve ser confirmado, visto não padecer de qualquer vício (omissão de pronúncia e falta de fundamentação), nem violar nenhum dos normativos invocados pelo recorrente, antes, comportando uma decisão que se nos afigura justa, equilibrada e proporcional, traduzindo a resposta que a comunidade tem por adequada aos factos cometidos, sua gravidade e consequências.»

5. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-Geral-Adjunto, usando a faculdade prevista no n.º 1 do art. 416.º do CPP, emitiu parecer no sentido de:

- acompanhando a resposta apresentada pelo Senhor Procurador Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Évora, e considerando que a matéria de facto está “definitivamente assente”, salientar que o recurso agora interposto deve restringir-se a uma análise da matéria de direito, e que “não se detecta na decisão qualquer dúvida manifestada pelo julgador n afixação dos factos, e, consequentemente, que tenha sido violado o princípio in dubio pro reo”;

- “não merece[r] qualquer censura a subsunção efectuada no crime de homicídio qualificado”;

-  quanto à pena fixada para o crime de homicídio qualificado, “aceitar uma ligeira diminuição da [pena], conferindo-se um maior valor atenuante ao percurso de vida da arguida, que terá, certamente, formatado a sua personalidade”, pelo que “uma pena na proximidade dos 15/16 anos, ainda assegura eficazmente as finalidade das penas, bem como, adequadamente, a validade contrafáctica da norma”.

6. Notificada deste parecer, de harmonia com o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, a recorrente respondeu remetendo para a motivação de recurso apresentado e respetivas alegações.

7. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.


II

Fundamentação


A. Matéria de facto provada:

1. Matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância:
«1) AA manteve um relacionamento amoroso com BB, CC e outros, com quem manteve igualmente relações sexuais de cópula completa.
2) Em data não concretamente apurada, mas situada entre os meses de fevereiro e março de 2016, AA descobriu que estava grávida.
3) AA não desejava tal gravidez, pelo que decidiu não contar a ninguém esse seu estado, passando a ocultá-lo e, bem assim, em momento que não se logrou apurar, mas, pelo menos, quando se iniciaram os sinais do parto, decidiu livrar-se do nascituro, matando-o logo após o nascimento.
4) Em consonância com tal resolução, AA nunca se dirigiu a um médico ginecologista ou obstetra, durante toda a gravidez, recusando frequentar consultas de grávida.
5) AA esforçou-se durante os meses de gravidez para que a mesma não fosse visível ou percetível a terceiros, nomeadamente, ao seu companheiro, DD, e demais familiares.
6) Com efeito, AA sempre negou que se encontrava grávida a todas as pessoas, amigas e/ou familiares que a questionavam sobre uma possível gravidez.
7) AA logrou, desse modo, dissimular a gravidez durante todo o respetivo tempo.
8) Em data não concretamente apurada, mas situada entre os dias 20 e 21 de junho de 2016, quando se encontrava no termo da sua gravidez, AA começou a sentir as contrações próprias do parto, pelo que saiu de casa sem dizer nada a ninguém, nomeadamente ao seu companheiro, e dirigiu-se a uma casa abandonada, sita na rua ..., onde começou em trabalho de parto e onde pariu, tendo nascido uma criança de sexo masculino, medindo 51cm.
9) Imediatamente após o nascimento, AA lacerou o cordão umbilical que a unia ao recém-nascido.
10) A criança que AA pariu encontrava-se em termo de gestação e nasceu com vida.
11) No entanto, de modo não concretamente apurado, AA pôs termo à vida do seu filho recém-nascido, o que fez, atuando com o propósito concretizado de atentar contra a vida do mesmo de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a mesma era proibida e criminalmente punível.
12) Após pôr termo à vida do seu filho recém-nascido, AA pegou no corpo da criança, embrulhou-o numa peça de vestuário de lã de cor cinzenta e transportou-o até à Estrada Nacional n.º ..., em ..., onde o escondeu.
13) Posteriormente, no dia 23 de junho de 2016, em hora não concretamente apurada, AA regressou ao local onde havia, inicialmente, escondido o corpo do seu filho recém-nascido, pegou nele e deslocou-se para a..., onde voltou a ocultar o corpo do seu filho, colocando-o sobre umas árvores rasteiras e cobrindo-o com ervas secas.
14) Ao esconder o cadáver do recém-nascido, embrulhado numa peça de vestuário e colocando-o numa zona de mato, por baixo de umas árvores rasteiras e cobrindo-o com ervas secas, AA teve em vista desfazer-se do corpo, fazendo-o desaparecer e não mais ser encontrado.
15) AA agiu, igualmente, de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que não estava autorizada a tal procedimento e que essa conduta era proibida e criminalmente punível.
16) AA não tem antecedentes criminais.
17) A socialização de AA foi condicionada negativamente pela conflitualidade entre os pais, pela fragilidade dos recursos socioeconómicos da família e pela morte precoce do progenitor, vítima de doença, situação que terá agudizado a precariedade das condições familiares.
18) AA é a mais nova de cinco irmãos, tendo o mais velho sido encaminhado para adoção, por falta de condições da família de origem.
19) Embora revelasse preocupação com a situação dos filhos, a mãe de AA revelou algumas dificuldades em definir regras e em efetuar uma supervisão parental adequada aos seus descendentes, sobretudo na adolescência.
20) Foi nessa altura que AA começou a revelar alguns problemas de comportamento, designadamente absentismo escolar e saídas à noite, não aceitando a orientação externa, situação que levou à intervenção da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de ....
21) AA foi então colocada numa instituição da infância e juventude, na zona de ..., onde permaneceu cerca de dois a três anos e onde concluiu o 7.º ano de escolaridade.
22) AA regressou depois a casa da progenitora, que entretanto reuniu melhores condições.
23) No plano afetivo, AA estabeleceu união de facto com um jovem proveniente da zona de ..., que na altura se encontrava colocado no Lar dos Rapazes da Santa Casa de Misericórdia de ....
24) AA manteve cerca de quatro anos esta união, tendo o casal se separado em junho de 2015, devido a desentendimentos entre ambos, registando-se a existência de agressões do então companheiro.
25) Os filhos dessa união, ..., de quatro anos, e ..., de dois anos, ficaram entregue aos cuidados exclusivos de AA, que, apesar dos laços afetivos, não assegurou devidamente a situação das crianças, pelo que estas foram sinalizadas por negligência à Polícia de Segurança Pública.
26) A partir de então, final do ano de 2015, os menores passaram a ser acompanhados e apoiados pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de ..., foram integradas em equipamentos de infância (creche) e AA revelou-se sempre colaborante com a intervenção daquele organismo.
27) A vida laboral de AA teve um início precoce, mas o seu desenvolvimento foi incipiente, sobretudo depois da primeira gravidez, cerca dos 19 (dezanove) anos.
28) Aproximadamente aos 16 (dezasseis) anos de idade, AA começou trabalhar como empregada de mesa, numa marisqueira, atividade que desenvolveu por cerca de um ano.
29) Posteriormente, AA foi realizando trabalhos indiferenciados na restauração e nas limpezas no Hotel de ..., de forma ocasional, ainda que por vezes de modo contratualizado.
30) AA assumiu um comportamento de abuso de bebidas alcoólicas até ao nascimento do primeiro filho.
31) A morte do progenitor de AA, quando tinha cerca dos onze/doze anos, foi sinalizada como tendo sido especialmente traumática.
32) A instabilidade psicológica e emocional de AA está associada à falta de harmonia da relação conjugal dos pais e às dificuldades de reinserção que sentiu quando saiu da instituição de acolhimento em plena adolescência, misturando então comprimidos com bebidas alcoólicas.
33) Neste contexto, AA e a mãe sinalizam diversas tentativas de suicídio perpetradas pela primeira, quer através de intoxicação voluntária de medicamentos, quer, mais tarde, por defenestração, com cerca dos dezassete anos.
34) AA compareceu a uma consulta de pedopsiquiatria no Departamento de Psiquiatria do Hospital Distrital de ... em fevereiro de 2010, com cerca de dezasseis anos, posteriormente foi-lhe marcada nova consulta para março de 2010, à qual não compareceu, sendo este o último registo naquela unidade psiquiátrica.
35) Depois da separação do pai dos seus filhos, em junho de 2015, AA chegou a manter uma relação afetiva com um indivíduo, que terminou ao fim de pouco tempo.
36) Mais recentemente, AA viveu, por cerca de dois meses, em comunhão de mesa, leito e habitação com DD, com quem se relaciona afetivamente desde janeiro de 2016 até ao presente.
37) AA e DD conheceram-se através de amigos comuns numa altura em que a mesma já se encontrava grávida, mas em que o namorado desconhecia o seu estado.
38) O casal mantinha um bom relacionamento, que era extensivo aos filhos de AA.
39) À data dos factos, AA residia numa casa arrendada, em ..., com o namorado DD, uma amiga e respetivo namorado, filhos da arguida e filha da amiga, sendo a renda da casa partilhada entre os casais.
40) AA estava desempregada e dependia do namorado, que trabalha numa empresa de embalamento e distribuição de carnes, em ....
41) Presa no Estabelecimento Prisional de ... desde o dia 29 de junho de 2016, AA foi internada na clínica psiquiátrica do Hospital Prisional em ... em 1 de julho de 2016, com ansiedade e ideação depressiva, onde permaneceu até 4 de agosto de 2016.
42) AA continua a ser acompanhada pelos serviços clínicos do estabelecimento prisional, ao nível da psicologia e da psiquiatria, mas desde há cerca de um mês deixou de fazer medicação psiquiátrica.
43) Na sequência da sua prisão, os filhos de AA foram entregues aos cuidados da avó materna, que lhes tem prestado os devidos cuidados.
44) Os filhos de AA estão integrados em equipamentos de infância adequados às suas idades e estão a ser acompanhados e apoiados pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de ....
45) Em virtude de um acidente doméstico quando contava cerca de um/dois anos, o filho mais velho de AA tem problemas de saúde oral, foi sujeito a intervenção cirúrgica à boca e é acompanhado no Hospital de D. Estefânia em Lisboa.
46) AA revela laços afetivos consistentes com os filhos e contacta-os diariamente por telefone.
47) O pai das crianças reside na zona de ..., tendo ficado acordado com a avó que os contactava quinze em quinze dias, mas ultimamente não os tem visitado.
48) AA continua a beneficiar do apoio do namorado, que a visita regularmente no Estabelecimento Prisional, e da mãe, que continua disponível para apoiar a filha e os netos.
49) O agregado familiar materno, composto pela mãe, de 52 (cinquenta e dois) anos -  desempregada, após ter trabalhado cerca de dois anos na messe da Guarda Nacional Republicana de ... e aquele serviço ter encerrado, em dezembro de 2016 - o padrasto, de 52 (cinquenta e dois) anos, pedreiro, e filhos da arguida.
50) Os rendimentos deste agregado provêm do subsídio de desemprego e pensão social de viuvez da mãe de AA, do vencimento do padrasto, da prestação familiar das crianças e ajuda assegurada pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens aos menores, no valor de €377,00 (trezentos e setenta e sete euros), €191,00 (cento e noventa e um euros), €530,00 (quinhentos e trinta euros), €120,00 (cento e vinte euros) e €306,00 (trezentos e seis euros), respetivamente.
51) No estabelecimento prisional, AA tem estado estável e adequada ao confinamento e à restrição de atividades a que está sujeita, sem evidenciar quaisquer incidências disciplinares.
52) AA recebe apoio financeiro na conta do Estabelecimento Prisional de ..., através de mesadas da mãe e do namorado, assim como das visitas regulares destes familiares, bem como dos filhos e da irmã ....
53) A manutenção deste apoio externo propicia a AA algum equilíbrio e segurança afetiva, quer no presente contexto, quer em relação ao futuro.
54) A factualidade em apreço, devido à sua natureza, teve um considerável impacto social na comunidade de residência, onde a imagem de AA está conotada negativamente, embora com sentimentos algo ambivalentes, entre a forte rejeição e desculpabilização.».

            Segundo o acórdão da 1.ª instância “Nenhuns outros factos se provaram com interesse para a boa decisão da causa” (cf. p.10 do acórdão).

            B. Matéria de direito

1. A partir das conclusões apresentadas aquando da interposição do recurso pela arguida AA, verificamos que são as seguintes as questões colocadas:

- violação do princípio in dubio pro reo, por considerar que “não foi feita prova de que a arguida praticou os (...) factos” provados;

- qualificação jurídica dos factos:

considera que os factos [subsumidos ao crime de homicídio qualificado, nos termos dos arts. 131.º e 132.º, n.º 2, als. a) e c), do CP] deveriam integrar um crime de infanticídio, nos termos do art. 136.º, do CP, ou, caso assim se não entenda, um crime de homicídio negligente decorrente da existência, segundo a arguida, de um “erro sobre o estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente”, nos termos do art. 16.º, do CP; caso assim se não entenda, e se mantenha a qualificação como crime de homicídio qualificado, considera que não há elementos que permitam concluir pela especial censurabilidade ou perversidade qualificante do crime de homicídio, pelo que os factos não deveriam ter sido subsumidos no crime de homicídio qualificado, mas no crime de homicídio simples; e conclui pela preenchimento do disposto no art. 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPP;

- refere ainda que na condenação apenas se refere o disposto no art. 132.º, n.º 2, als. a) e c), do CP, sem que se tivesse feito qualquer referência ao disposto no art. 132.º, n.º 1, do CP;

- quanto à pena aplicada:

entende que, sendo absolvida do crime de homicídio qualificado, e condenada pelo crime de infanticídio, “a opção por pena não privativa da liberdade assegura adequada e suficientemente as necessidades de prevenção e portanto os fins da punição”; sendo condenado pelo crime de homicídio simples a pena adequada seria de 9 anos de prisão, e a pena única de 9 anos e 6 meses.

2. Constituindo o princípio in dubio pro reo um princípio em matéria de prova, a análise da sua violação (ou não) constitui matéria de direito (assim, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, nm. 235), ou questão de direito enquanto juízo de valor ou ato de avaliação da violação (ou não) daquele princípio [Figueiredo Dias, Crime Preterintencional, causalidade adequada e questão-de-facto, RDES, ano XVII (1970), p. 34 da separata], portanto no âmbito de competência deste tribunal. E assim tem sido entendido por este tribunal:

- “O princípio in dubio pro reo, que nada tem a ver com as dúvidas suscitadas ao nível da interpretação das leis, é um princípio geral de direito processual penal, corolário do princípio da presunção da inocência do arguido, com tradução no n.º 2 do art. 32.º da CRP, constituindo a sua violação uma questão de direito, muito embora se assuma como princípio de prova, conformando um daqueles princípios passível de revista.” [ac. de 22-01-2013, Proc. n.º 184/11.2GCMTJ.L1.S1 - 3.ª Secção, Armindo Monteiro (relator)];

- “O princípio in dubio pro reo é princípio geral do processo penal decorrente do princípio da presunção da inocência do arguido. Como tal, assume a natureza de uma questão de direito de que o STJ deve conhecer quando da globalidade do próprio texto da decisão resultar que o tribunal, apesar da hesitação sobre a prova de determinado facto, decidiu em sentido desfavorável ao arguido.” [ac. de 06-02-2013, Proc. n.º 593/09.7TBBGC.P1.S1 - 3.ª Secção, Sousa Fonte (relator)];

- “O STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.” [ac. de 29-05-2013, Proc. n.º 344/11.6JALRA.E1.S1 - 3.ª Secção, Santos Cabral (relator)].

Assim sendo, a análise da violação deste princípio constitui matéria de direito no âmbito de cognição deste tribunal.

A arguida entende que existe violação do princípio in dubio pro reo considerando que não foi feita prova de que praticou os factos dados como provados, pelo que deverá ser absolvida do crime de homicídio qualificado por que vem condenada.

Do texto da decisão recorrida não se mostra qualquer dúvida quanto à autoria dos factos, nomeadamente, quanto à autoria da lesão (irreversível) da vida do recém-nascido, considerando-se relevante não só o resultado da autópsia que atestou que o “recém-nascido era do sexo masculino e de termo, o mesmo teve respiração completa” (cf. acórdão recorrido, fls. 800, p. 27 do acórdão, onde se transcreve, entre as fls. 797 e807, a fundamentação da matéria de facto constante do acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, de 28.03.2017), assim como o facto de a arguida ter ocultado a gravidez ao longo de todo o tempo, negando que estivesse grávida, não preparando a chegada do novo filho, não se tendo sujeitado ao acompanhamento médico devido. Tendo em conta estes factos concluiu que a arguida “teve intenção (...) de matar o nascituro e desfazer-se dele, sendo certo também que (...) não se encontra qualquer característica própria da arguida que obstasse a que assim não procedesse, se não o tivesse querido fazer” (cf. ac. citado a fls. 806).

Em parte alguma do texto da decisão recorrida ocorre qualquer descrição que demonstre de algum modo que houve alguma dúvida no Tribunal quanto aos factos praticados e quanto à autoria do crime.

Coisa diferente é a de saber, perante os factos provados e o circunstancialismo em que ocorreram, se aqueles devem (ou não) ser subsumidos ao crime de homicídio qualificado.

Os factos considerados determinantes pelo Tribunal a quo, para a subsunção da conduta àquele tipo legal de crime, foram, nomeadamente, o de o filho da arguida ter nascido com vida e esta o ter matado, e o entendimento de que a arguida o queria matar desde o início da gravidez — fundamentando-se na circunstância de a arguida ter ocultado e negado ostensivamente a possível gravidez a quem a interrogava; para aquele Tribunal as razões apresentadas   foram evidentes e claras, tanto que não teve quaisquer dúvidas. Pelo que, do texto da decisão recorrida não resulta qualquer violação do princípio in dubio pro reo, nem do texto da decisão consta qualquer expressão evidenciadora de que, ainda que por momentos, o Tribunal tivesse admitido outra situação, ou um decurso dos factos diferente.

Assim sendo, improcede nesta parte o recurso apresentado, considerando‑se que não houve violação do princípio in dubio pro reo.

3.1. A arguida vem condenada pelo crime de homicídio qualificado, nos termos do arts. 131.º e 132.º n.º 2, al. a e c), do CP.

Comecemos por referir que a qualificação do homicídio ocorre quando a morte seja produzida “em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade” (art. 132.º, n.º 1, do CP), sendo “susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente...”.

Ou seja, quando o Tribunal condenou a arguida pelo crime de homicídio qualificado apenas se referindo ao n.º 2 do art. 132.º, do CP, sem qualquer referência ao disposto no nº1, não se pode considerar, como pretende a recorrente, que “não foi condenada com base no disposto no n.º 1 do art. 132.º, do Código Penal”. 

Porém, tendo em conta o ordenado no art. 374.º, n.º 3, al. a), do CPP, deveria ter sido referido o disposto no art. 132.º, n.º 1, do CP, constituindo este o dispositivo que enuncia o tipo legal de crime qualificado e a sanção respetiva. Todavia, não se integrando esta omissão no âmbito do disposto no art. 380.º, n.º 1, a. al), do CP, entende-se estarmos perante um caso onde não foi integralmente observado o disposto no art. 374.º, n.º 3, al. a), do CPP, por deficiência na indicação das disposições aplicáveis, a permitir uma correção da sentença nos termos do art. 380.º, n.º 2, do CPP, e sem que isso importe modificação essencial da condenação [cf. art. 380.º, n.º 1, al. b), do CPP].

Assim determina-se que onde se lê:

«Condenar AA pela prática. em autoria material e concurso real, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131. ° e 132. °, n.° 2, alínea a) e c), do Código Penal, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão, e um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena única de 19 (dezanove) anos e 6 (seis) meses de prisão»

deve ler-se

«Condenar AA pela prática. em autoria material e concurso real, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131. ° e 132. °, n.°s 1 e  2, alíneas a) e c), do Código Penal, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão, e um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena única de 19 (dezanove) anos e 6 (seis) meses de prisão».

3.2. A recorrente vem condenada pelo crime de homicídio qualificado, considerando-se que revelou especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de a vítima ser descendente da arguida, e a circunstância de o ato ter sido praticado contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade.

A recorrente entende que se deveria ter subsumido a matéria factual ao tipo legal de crime de infanticídio, ou então ao crime de homicídio negligente, decorrente do erro sobre, no entendimento da arguida, o estado de coisas que a existir excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente; ou, caso se considere que os factos não podem ser subsumidos a nenhum destes tipos legais de crime, entende que deveria ser punida por um crime de homicídio simples, dado que a verificação de alguma (ou algumas das) circunstância(s) prevista(s) no art. 132.º, n.º 2, do CP, não é (são) de aplicação automática; em contraponto, entende que, no caso concreto, perante a constatação de que a situação se subsumia a algum dos exemplos-padrão previstos legalmente, tanto não bastaria para que se decidisse pela prática de um crime de homicídio qualificado, sendo ainda necessário concluir que, em concreto, estava verificada a especial censurabilidade ou perversidade do comportamento do agente, isto é, a ocorrência de uma culpa agravada.

Ora, tendo em conta que a recorrente começa por contestar a qualificação jurídica considerando que os factos deveriam ter sido subsumidos ao crime de infanticídio, comecemos por analisar este ponto. E para sabermos se os factos deveriam ter sido subsumidos (ou não) a este tipo legal de crime, urge verificar se da matéria de facto provada e da matéria de facto não provada se impõe uma conclusão pela exclusão deste tipo legal de crime.

Porém, para uma análise cuidada da matéria de facto provada é necessário indagar do tipo de ilícito subjacente ao crime de infanticídio.

Para que se possa considerar estarmos perante um crime de infanticídio, previsto no art. 136.º, do CP, é necessário que a mulher tenha atuado sob a influência perturbadora do parto e tenha praticado o infanticídio durante ou logo após o parto. Quer se analise esta determinação da conduta como um elemento da tipicidade da conduta, ou como um elemento relevante em sede de culpa do agente, o certo é que “o estado de perturbação pode ser condicionado tanto endogenamente (v.g., por força de uma tendência ou mesmo de uma crise depressiva da mulher), como exogenamente (pelo particular peso que para a mãe assume uma situação de necessidade que a atinge, seja esta situação moralmente, socialmente — v.g., a supra aludida “desonra” — ou economicamente fundada)” (Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, art. 136.º/ § 4, p. 169).

Para uns, como Figueiredo Dias e Nuno Brandão (ob. cit., art. 136.º/ § 5, p. 169-170), o estado de perturbação constitui um elemento do ilícito típico, sendo determinante para conferir uma menor ilicitude ao facto, porque o seu entendimento como relevante ao “nível da culpa implicaria exigir um juízo autónomo de menor exigibilidade, que todavia, por não se encontrar legalmente previsto, violaria o princípio da legalidade” (idem); para outros constitui um fundamento de uma culpa menor por ocorrência de uma menor exigibilidade (idem, e bibliografia aí citada).

Porém, quer numa conceção, quer noutra sempre a mãe terá que matar o filho durante ou logo após o parto (isto é, a conduta da agente tem que ocorrer num destes momentos, independentemente do momento de verificação do resultado). Pelo que a “conduta tem por isso de ter lugar durante o período que temporalmente se segue ao parto e durante o qual é razoável supor, segundo os pontos de vista objectivos dos conhecimentos da medicina, que a influência perturbadora deste pode ainda subsistir” (Figueiredo Dias/ Nuno Brandão, ob. cit, art. 136.º/§ 11, p. 171-2). Todavia, é necessário provar, igualmente, que a mãe atuou ainda sob a influência perturbadora do parto, valendo o princípio in dubio pro reo, o que significa que “verificado que a conduta teve lugar logo após o parto, se o juiz, depois de produzida toda a prova possível, ficar em dúvida insanável sobre se a mãe actuou sob a influência perturbadora daquele, ele deve considerar verificada a tipicidade do art. 136.º e não deve, em alternativa, punir pelos arts. 131.º ou 132.º” (Figueiredo Dias/ Nuno Brandão, ob. cit, art. 136.º/§ 12, p. 172).

Ora, se a prova destes elementos é fundamental, é também de salientar que a simples prova de que a mãe escondeu a gravidez não permite por si só, e sem mais, concluir que não tenha atuado sob a influência perturbadora do parto. Tal como afirma Figueiredo Dias e Nuno Brandão “não [é] absolutamente incompatível concluir-se ter a morte ocorrido sob influência perturbadora do parto, apesar de simultaneamente se ter provado que a mãe actuou de modo consciente ou mesmo premeditado (...). Não será de excluir que a prévia reflexão ou preparação da morte possa constituir elemento indiciador de que a mãe não foi dominada por um transtorno relacionado com o parto. Mas não deve ignorar-se que frequentemente a morte é precedida por sentimentos de negação ou de rejeição da gravidez, por vezes acompanhados pela ocultação da gestação e mais tarde do parto, conduzindo a uma predisposição para uma futura acção homicida. Se essa repulsa for actualizada ou potenciada pelo parto, como também não raro sucede (...), levando a mãe a matar o recém-nascido, não parece então haver razão para negar a aplicação do preceito” (ob. cit. supra, art. 136.º / § 13, p. 172-3).

Deve ainda referir-se que mesmo aqueles que entendem estarmos perante um caso de menor culpa exigem a verificação do preenchimento (ou não) deste elemento.

Assim, Augusto Silva Dias, afirmando que “não há uma presunção inilidível de que esta influência perturbadora existe em todos os casos”, considera que “o tribunal deverá comprovar sempre se ela se deu ou não na situação concreta”, pese embora conclua ser “tarefa difícil em muitos casos, sobretudo naqueles em que o infanticídio é praticado em condições de abandono e de desamparo, surgindo aqui um vasto campo de aplicação do princípio in dubio pro reo” (Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª ed., Lisboa: AAFDL, 2007, p. 46).

E na mesma linha de pensamento Maria Margarida Silva Pereira considera que “a lei atende aqui a algo específico, atende à diminuída susceptibilidade de motivação pelo valor da vida do filho recém-nascido. Porque a lei entende que o relacionamento familiar não está construído no momento em que actua a infanticida, e não quer onerá-la injustamente”, conclui que se passou a “uma incontornável obrigação de comprovar que a culpa enfraquece” (Direito Penal II — Os Homicídios, Lisboa: AAFDL, 2008, p. 175-6).

Assim sendo, para que se possa subsumir uma certa conduta ao crime de infanticídio é necessário não só provar que a morte do recém-nascido provocada pela mãe terá ocorrido durante ou logo após o parto (tal como decorre do facto provado 3), mas também a prova de que aquele comportamento foi determinado por uma influência perturbadora ligada ao parto.

Tendo em conta o exposto, vejamos agora os contornos da situação sob recurso, de acordo com o texto da decisão recorrida.

No presente caso verificamos que foi dado como provado que a arguida não desejava a gravidez (facto provado 3), e consequentemente ocultou e negou a gravidez (factos provados 3, 5, 6 e 7), tendo decidido “livrar-se do nascituro, matando-o logo após o nascimento” (facto provado 3). Foi ainda dado como provado, e em consonância com o propósito de ocultar a gravidez, que a arguida não teve acompanhamento médico tendo-se recusado a frequentar consultas médicas (facto provado 4). O parto foi realizado pela arguida sem qualquer apoio externo (factos provados 8 e 9), tendo a criança nascido com vida (facto provado 10), e tendo a arguida matado a criança logo após o parto (facto provado 11); só após ter matado a criança a embrulhou e escondeu-a (facto provado 12).

Acresce que não foi indicada qualquer matéria de facto não provada que tivesse sido considerada relevante pelo tribunal a quo.

Desta matéria factual podemos concluir, sem margem para dúvidas, que houve a lesão do bem jurídico vida, do qual resultou a morte do recém-nascido. Sabe-se igualmente que a arguida pretendeu ocultar a gravidez ao longo de todo o seu decurso.

Da fundamentação da matéria de facto resulta, à exaustão, que a arguida não desejava a gravidez e sempre pretendeu ocultá-la ou mesmo negá-la quando sobre ela questionada. Salienta-se ainda que a “arguida nem sequer negou que provocou a morte do seu filho” (cf. fls. 798), pese embora se afirme que “ao ser instada [a arguida] a este propósito, a arguida limitou-se a chorar, a silenciar-se e a dizer que não se lembra exatamente do que aconteceu (tal como nem sequer se recorda do modo como foi lacerado o cordão umbilical), mas acabou por admitir que tinha perfeita consciência que, pelo menos, ao abandonar o bebé naquele local ermo sem qualquer assistência lhe provocaria a morte. No fundo, a arguida somente negou ter tirado a vida ao seu filho recém-nascido “pelas próprias mãos”” (cf. fls. 798-9).

Ora, não temos dúvidas que de tudo o exposto resulta que a arguida matou o filho.

Porém, isto não é suficiente para que se possa concluir estarmos perante um crime de homicídio, ou um crime de homicídio qualificado, ou um crime de infanticídio. A mera conduta de matar o filho poderá integrar-se em qualquer um destes tipos legais de crime, pelo que, para que se possa concluir pela não subsunção dos factos ao crime de infanticídio,  são ainda necessários outros factos provados, ou outros factos não provados; sendo certo, todavia, que a inexistência de prova que permita concluir pela possibilidade de subsunção dos factos ao crime de infanticídio não poderá ter como consequência a imputação ao agente de um crime mais grave, em clara violação do princípio in dubio pro reo; na verdade, se, por exemplo, não for possível obter prova de que a atuação da arguida, logo após o parto, esteve sob a influência perturbadora daquele, em atenção àquele princípio não poderemos considerar que aquela influência não existiu, pelo que na dúvida (quanto a ter atuado sob aquela influência ou não) teremos que concluir que atuou.

Todavia, na matéria de facto provada, nada se refere quanto a este ponto; também não existe matéria de facto não provada no sentido de, por exemplo, não se ter conseguido obter aquela informação, pese embora o tribunal tivesse tentado, ou no sentido de se não ter provado que tivesse atuado sob a influência perturbadora do parto; e também não há na fundamentação da matéria de facto qualquer descrição de um possível relatório pericial sobre o estado da arguida. Apenas se dá conta, na fundamentação da matéria de facto provada, que em reclusão recebeu acompanhamento psicológico e medicamentoso, tendo manifestado “síndrome depressivo com ideações suicidas (...), mas não regista qualquer comprometimento do seu funcionamento intelectual, nem qualquer indicador de deterioração mental” (cf. fls. 806); refere-se ainda que a arguida continua a ser acompanhada pelos serviços clínicos do estabelecimento prisional na vertente da psicologia e psiquiatria.

Assim sendo, entende-se que não existe matéria de facto provada suficiente para que possamos concluir pela ocorrência (ou não) de um crime de infanticídio. O simples facto de ocultar a gravidez ao longo de todo o tempo, de não ter procurado acompanhamento médico, o facto de negar a gravidez a quem sobre ela a questionava, o facto de ter realizado o parto sozinha, sem qualquer acompanhamento, não são suficientes para que se possa concluir que no momento logo após o parto tenha provocado a morte do recém-nascido livre de qualquer perturbação decorrente do parto, tanto mais que se encontrava só e sem qualquer apoio físico ou psicológico. É certo que esta solidão foi procurada pela arguida. É certo que o comportamento ao longo de toda a gravidez indicia alguma tentativa de afastamento psicológico da gravidez e uma tentativa de afastamento do estado de grávida, pese embora, inevitavelmente, o sentisse em si. Mas, se com isto podemos concluir que não pretendia assumir a gravidez, também nada nos impede de poder considerar que este afastamento auto-imposto não mais revela do que um sofrimento que atinge o seu ponto de exasperação logo após o parto quando se vê perante o recém-nascido.

Além disto, entendeu o tribunal a quo que “o relato da arguida (...) mereceu credibilidade na medida em que se mostrou absolutamente congruente com os demais elementos probatórios”, “excepto no que respeita à invocada intenção de matar” (cf. fls. 799), pois a recorrente afirmou “que não tinha intenção de matar” embora tivesse assumido “não desejar aquela gravidez”, e referindo que “não se apercebeu se o filho estava vivo ou morto”, e que “não se lembra[va] exactamente do que aconteceu (tal como nem sequer se recorda do modo como foi lacerado o cordão umbilical)” (cf. fls. 798).

Ora, todos estes elementos permitem concluir sem margem para dúvidas que a morte do recém-nascido decorreu do comportamento da arguida, a quem deve ser imputada a morte, tendo em conta esta matéria de facto provada.

Todavia, saber se a morte deve ser imputada a título de homicídio ou de infanticídio é uma questão que ainda subsiste, sem que a simples determinação prévia ao parto em ocultar/negar a gravidez (comportamento consentâneo com uma gravidez não desejada) permita concluir, sem mais, que estamos perante um crime de homicídio. Quantas gravidezes indesejadas ocorrerão sem que tenham culminado na morte dos recém-nascidos? E quantas gravidezes encobertas ocorrerão sem que exista qualquer decisão de matar o/a filho/a após o nascimento, mas pretendendo-se apenas evitar alguns contratempos sociais ou familiares que se adivinham, sem que mais tarde a vida faleça perante aqueles? Ou seja, não basta a prova de uma gravidez indesejada, negada e encoberta para que se possa concluir, sem mais, que existe um propósito ab initio e até ao limite de matar o recém-nascido. E por isso o Tribunal acabou por consagrar de forma expressa, na matéria de facto provada, que “pelo menos, quando se iniciaram os sinais do parto, decidiu livrar-se do nascituro” (facto provado 3).  Assim sendo, resta ainda proceder à averiguação sobre se os factos realizados o foram sob a “influência perturbadora” do parto. E apenas caso se prove que não houve qualquer influenciadora decorrente do parto a determinar o infanticídio é que podemos afastar a subsunção dos factos ao disposto no art. 136.º, do CP; pelo contrário, em caso de dúvida deverá funcionar o princípio in dubio pro reo, tal como afirmámos supra.

Na verdade, da matéria de facto provada nada resulta que o Tribunal tivesse investigado a possibilidade (ou não) de podermos estar em presença de uma situação a subsumir no tipo legal de crime de infanticídio.

Ora, tal omissão de investigação determina uma insuficiência da matéria de facto para a decisão, o que constitui o vício do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP. Nas palavras de um anterior acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça “trata‑se, pois, de um vício que resulta do incumprimento por parte do tribunal do dever que sobre si impende de produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa — art. 340.º, n.º 1, do CPP. Não cabendo ao Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista conhecer da matéria de facto, especialmente quando já teve lugar recurso para aa Relação, o Supremo, conforme lhe permite o art. 434.º, pode conhecer oficiosamente dos vícios do art. 410.º quando entender que a matéria de facto não é suficiente e adequada para a aplicação do direito. Ora, não pode deixar de ser tido em consideração que, a morte da recém-nascida ocorrera de imediato após o parto, pelo menos com a colaboração passiva da mãe, sabendo-se também, desde o início da investigação policial, que a arguida negara a sua evidente gravidez até ao último momento. Assim sendo, não parece razoável que nunca tenha sido feito uma avaliação psiquiátrica à arguida, de forma a determinar se o seu comportamento resultou da influência perturbadora do parto
Urge, em consequência, determinar o reenvio do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos e para os efeitos do disposto no no 2 do art. 426o do Código de Processo Penal. Sem embargo de se reconhecer que o tempo entretanto decorrido pode causar dificuldades insuperáveis numa avaliação pericial destinada a determinar se a arguida agiu, ou não agiu, num estado de perturbação pós-parto. De todo o modo, se o tribunal não conseguir obter certezas susceptíveis de considerar verificada, ou de afastar com segurança, àquela influência perturbadora, restar-lhe-á fazer uso do princípio in dubio pro reo nos termos indicados por Figueiredo Dias (ibidem, p. 103): «o que no caso significa que, verificado que a conduta teve lugar logo após o parto, se o juiz, depois de produzida toda a prova possível, ficar em dúvida insanável sobre se a mãe actuou sob a influência perturbadora daquele, ele deve considerar verificada a tipicidade do art. 136° e não deve, em alternativa, punir pelos arts. 131° ou 132°.” (acórdão de 26.09.2009, proc. n.º 08P3547, Relator: Cons. Arménio Sottomayor).

Também nos presentes autos se soube desde o início que a arguida encobriu a gravidez, e a negou até ao último momento, pelo que deveria ter sido investigada a possibilidade de o comportamento da arguida ter resultado de influência perturbadora do parto.

Assim sendo, decide-se determinar o reenvio do processo para o Tribunal da Relação de Évora, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 426.º, n.º 2, do CPP. E também aqui se deverá considerar que se o Tribunal não conseguir ter certezas sobre a ocorrência daquela influência perturbadora, ou se não conseguir ter certezas que permitam afastar com segurança aquela influência sobre o comportamento da arguida, apenas lhe restará fazer uso do princípio in dubio pro reo.
4. Com isto fica prejudicado o conhecimento das outras questões apresentadas pela recorrente.


III

Conclusão

                                                                                                                                      


            Nos termos acima expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça,

    a) Determinar, nos termos do art. 380., n.º 2, do CPP, a correção do acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém (Juízo Central Criminal, Juiz 2), de 28.03.2017, nos seguintes termos:

            - onde se lê:

«Condenar AA pela prática. em autoria material e concurso real, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131. ° e 132. °, n.° 2, alínea a) e c), do Código Penal, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão, e um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena única de 19 (dezanove) anos e 6 (seis) meses de prisão»,

- deve ler-se

«Condenar AA pela prática. em autoria material e concurso real, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131. ° e 132. °, n.°s 1 e  2, alíneas a) e c), do Código Penal, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão, e um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena única de 19 (dezanove) anos e 6 (seis) meses de prisão.»

b) determinar o reenvio dos autos ao Tribunal da Relação de Évora a fim de se apurar apenas se a arguida AA agiu sob influência perturbadora do parto, solicitando para isso avaliação psiquiátrica da arguida, e reexaminando depois a causa, em conformidade.

            Não são devidas custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 19 de abril de 2018

Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (Relatora)

Nuno Gomes da Silva