Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANTÓNIO LATAS | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM PRESSUPOSTOS ADMISSIBILIDADE VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO PODERES DE COGNIÇÃO COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA REJEIÇÃO DE RECURSO | ||
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Data do Acordão: | 05/25/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | DECLARAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. | ||
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Sumário : | I - São pressupostos cumulativos do recurso per saltum para o STJ: - A aplicação de pena superior a 5 anos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo; - Que o recurso vise exclusivamente o reexame da matéria de direito, ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º; II - Da história do preceito resulta com clareza que a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, visou alargar a recorribilidade para o STJ aos casos em que o recorrente fundamenta o recurso nos vícios e nulidades a que se referem os n.os 2 e 3 do art. 410.º do CPP, deixando de fora apenas os recursos que visem – exclusiva ou cumulativamente - a reapreciação da matéria de facto, o que se verifica paradigmaticamente quando o recorrente pretenda a impugnação da decisão sobre matéria de facto a que se reporta o art. 412.º, n.os 3, 4 e 6, do CPP. III - São, pois, admissíveis (e obrigatórios) recursos per saltum para o STJ quando, verificados os demais requisitos, não resulte das respetivas conclusões que o recorrente pretende impugnar a decisão proferida em matéria de facto. IV - Ou seja, em formulação negativa, o STJ não é funcionalmente competente quando o recurso visar a reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto, independentemente do cumprimento dos respetivos requisitos específicos. | ||
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Decisão Texto Integral: | Recurso Penal 424/21.0PLSNT Acordam os Juízes, em conferência, nas secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça 1. Por acórdão de 06.01.2023 do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ... foi o arguido e ora recorrente, AA, condenado pela autoria material, em concurso efetivo, de: - Um crime de “abuso sexual de criança”, p. e p. pelos arts. 171º, n.º 1, e 177º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 02 anos e 06 meses de prisão; - Dois crimes de “abuso sexual de criança”, p. e p. pelos arts. 171º, n.ºs 1 e 2, e 177º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de 05 anos de prisão, por cada um desses crimes; - Trinta e um crimes de “ abuso sexual de menor dependente ou em situação particularmente vulnerável”, p. e p. pelos arts. 172º, n.º 1, al. b), por referência ao art.º 171º, n.º 2, e 177º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de 03 anos e 06 meses de prisão, por cada um desses crimes. Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 09 anos de prisão. 2. Daquele acórdão, veio o arguido recorrer diretamente para o STJ, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem ipsis verbis:
« CONCLUSÕES
I – Não se pode considerar provado que o início dos abusos sexuais do recorrente se tenha iniciado antes de 1 de Maio de 217.
II - Tal facto dado como provado no ponto 4 da matéria de facto, não tem qualquer suporte, quer no depoimento da ofendida para memória futura , quer nos restantes depoimentos.
III – A menor, aquando da formalização da denúncia, em 19 de abril de 2021, junto PSP – Esquadra – ..., junto aos autos, refere que os abusos começaram “…. em julho de 2017, embora firme ter 13 anos.
IV – A contradição entre aquela data – julho de 2017 e o que foi dado como provado, jamais foi objecto de sindicância,
V - No depoimento em sede de 1º interrogatório de arguido detido, o ora recorrente, jamais admitiu que as atividades abusadoras, se iniciassem em data anterior a maio de 2017.
VI - Nas declarações prestadas para memória futura, pela ofendida e abusada, esta referiu o início dos abusos em ..., mas sem concretizar, com a especificidade com o que o fez na denúncia de 19 de abril de 2021 – cfr. registo áudio ...7 - , tendo referido que:
- 18 s – Tem 19 anos. - 1.50m – Começaram a viverem em ... tinha 12, 13 anos - 2.19 m – Estava no 6º ano. - 2.30m – Começou em .... - 4.27m - Que se lembra da 1º vez que é abordada pelo arguido. - 5.00 m – Pediu que o masturbasse. 10.10 m – Não sabe se falou sobre o assunto em outros momentos ou pessoas.
VII - Após continuação do depoimento registado em áudio ...7 ( 01 s – 35.28 m), a instância da Senhora Procuradora, ao 0,50 s, esta, em modo conclusivo, afirma que os primeiros factos se verificaram quando a BB tinha 13 anos, mas não resultando qualquer facto no depoimento que o demonstrasse. – Cfr. depoimento a 2.10 m a 20.37 m
VIII - Não restam dúvidas que a própria ofendida refere uma data não anterior a maio de 2017, para o início da actividade de abuso sexual por parte do arguido.
VIII – Quanto à periodicidade dos abusos, o arguido em atitude de total e cabal esclarecimento com a justiça, assumindo a sua atitude abusadora e auto responsabilizando-se, referiu , conforme áudio em registo ...83 ( 01s – 42 .06 m ), refere, sem qualquer margem para dúvida que os abusos aconteciam esporadicamente.
IX – O arguido admite no seu depoimento em audiência que em algumas ocasiões os abusos acontecessem de 15 em 15 dias, mas não seguidas. Às vezes passava-se um, dois meses sem acontecer nada, segundo afirma ao 17.35 m, em registo ...83.
X - A conclusão a que chega o Tribunal Coletivo, de que o início da actividade abusadora se iniciou em data não concretamente apurada, mas anterior a Maio de 2017, é logicamente especulativa, uma vez que não resultou, sem qualquer dúvida razoável, que tal tivesse ocorrido.
XI - Os factos dados como provados nos pontos 4, 7 ,8, 9, 12 e 22 da matéria de facto e nos exatos termos apontados, nesta sede têm que ser dados como não provados, impondo-se decisão diversa quanto a esta matéria, resultante dos depoimentos prestados pela ofendida em sede de memória futura e do depoimento do arguido.
XII – Não se percebe a razão pela qual, tendo em conta o depoimento confessório do arguido, se consideram 31 crimes do ilícito penal previsto e punido 172º, nº 1 e 2 do C.P. ( tendo como referência o período que vai de 15 de Maio de 2017 a 21 de Agosto de 2018, e a periodicidade mensal ), e não 10,15, 20 crimes de idêntica natureza ?
XIII - Face a motivação constante da douta sentença entendemos que esta é deficiente, o que constitui falta/insuficiência do exame crítico das provas, em violação do disposto no artº 374º, nº 2 do CPP “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”
IVX - A deficiente justificação, gera nulidade da sentença, nos termos do artº 379º, nº 1 alin. a) do CPP.
XV - A prova considerada, ora impugnada, sem que, contudo, resulte uma análise conjugada e crítica da mesma, dando-se total credibilidade ao depoimento genérico e hesitante da ofendida, sem a confrontar com o teor do auto de denuncia que referiu a data do inicio em junho de 2017 , para comprovação do exacto inicio dos abusos, é manifestamente acrítica e insuficiente _nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2 al. a) e c) do CPP
XVI – A sentença padece de nulidade prevista no artº 379º, nº 1 alínea a) do CPP, por referência ao nº 2 do artº 374º do mesmo diploma.
XVII – Deverá anular-se a douta sentença, que deverá ser substituída por outra que, se necessário com recurso a repetição de prova, colmate as lacunas apontadas, decidindo em conformidade.
XVIII – Ao dar como provado os abusos anteriores a Maio de 2017, e a periodicidade quinzenal, estamos perante erro notório da prova – cfr. artigo 410, nº 2,al. c) do CPP cfr registos áudio da ofendida ...7 ( 0,18 s a 10,10 m) e ...7 ( 01 s – 35.28 m).
XIX – Os factos dados como assentes no ponto 7, 8, 9 da matéria de facto provada, deve ser igualmente ser dada como não provada, uma vez que não ocorreu em ... mas sim em ..., após maio de 2017.
XX - Acontece que no caso dos autos, existe e não poderá deixar de existir, uma dúvida inamovível, uma vez que jamais saberemos, com segurança absoluta se os inícios dos contactos sexuais se iniciaram antes de maio de 2017.
XXI – A pena em concreto aplicada, nove anos de prisão, é manifestamente exagerada, tendo em atenção os factos que militam a favor do arguido e ainda a período em concreto da atividade abusadora, entre maio de 2017 e agosto de 2018 tendo nesta ultima data abandonado voluntariamente qualquer ato abusivo para com a BB.
XXII – Entende o arguido, como relevante a sua confissão dos factos que entende como provados e verificados, pelo que a admitir-se como não censurável a sentença, a pena em concreto aplicável, em cúmulo jurídico, não deve ser superior a 6 anos, tendo em atenção os critérios referidos no nº 2 do artigo 71º do CP, nomeadamente militando a favor do arguido , estar inserido socialmente, ter hábitos de trabalho, ter uma nova companheira e não ter antecedentes criminais (Determinação da medida da pena).
XXIII – Ao dar como provados o início da actividade abusadora antes de maio de 2017 e tendo sido como assente e confessado pelo arguido a periodicidade quinzenal dos abusos referido no ponto 12 da matéria de facto, e condenando numa pena de 9 anos de prisão, foram violadas as seguintes disposições legais: artigo 32º, nº 5 da CRP, 374º, nº 2 , do CPP, artigo, artigo 171º, nº 1 e 2 do CP ( abuso sexual de crianças ), artigo 71º, nº 1 e 2 do CP.
Nestes e melhores de direito, sempre com o mui douto suprimento de V: Exas, deve ser concedido provimento ao presente recurso e consequentemente ser o presente Acórdão ser revogado.
Assim farão a devida a costumada JUSTIÇA!»
3. Admitido o recurso pelo tribunal a quo e cumprido o disposto no art. 411.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, o MP apresentou a sua resposta, em que conclui pela improcedência do recurso.
4. Foram os autos com vista ao MP junto do STJ que, em parecer detalhado, se pronunciou pela incompetência hierárquica e funcional do STJ para conhecer do presente recurso, uma vez que, como conclui:
« (…) Conforme se extrai da delimitação do objecto do recurso interposto, o recorrente pretende ver reapreciado, além do mais, o julgamento da matéria-de-facto. E, embora invoque também os vícios previstos na disposição do art. 410º/2 do Código de Processo Penal (revista alargada), o certo é que o recorrente, seja na motivação, seja nas conclusões do recurso, cumpre, no essencial, o ónus previsto nas disposições dos arts. 412º/3 e 4 do mesmo diploma legal. 3 Ou seja: Enumera os factos alegadamente julgados de forma incorrecta;
Elenca e reproduz as provas que, no seu entender, impõem decisão diversa, com transcrição das passagens da gravação relativas às declarações do arguido em audiência e ao depoimento para memória futura da ofendida.
Nesse pressuposto, conhecendo as relações de facto e de direito e visando, por regra, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o reexame da matéria-de-direito, é da competência hierárquica e funcional do Tribunal da Relação de Lisboa o julgamento do presente recurso (cfr, arts. 428º e 434º do Código de Processo Penal). (…) « 5. Cumprido o disposto no art. 417º nº2 CPP, o arguido nada veio dizer.
6. Designado dia para o julgamento do presente recurso em conferência e realizada esta, profere-se a seguinte decisão.
II. Fundamentação Suscitada a questão da incompetência do STJ para conhecer do presente recurso, impõe-se começar por decidir da mesma. Vejamos então.
1.1. Nos termos do art. 432º nº1 c) CPP, com a redação introduzida pela Lei 94/2021 de 21 de dezembrorecorre-se para o STJ de acórdãos finais proferido pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do art. 410º. São, assim, pressupostos cumulativos do recurso per saltum para o STJ: - A aplicação de pena superior a 5 anos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo; - Que o recurso vise exclusivamente o reexame da matéria de direito, ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º; Sendo pacífico na jurisprudência dos nossos tribunais superiores que o objeto do recurso é o que resulta das respetivas conclusões, é, pois, em face das conclusões de recurso que há de verificar-se: - Se o recurso tem exclusivamente por objeto o reexame da matéria de direito a que se reporta o art. 412º nº2 CPP, quer esta matéria respeite à Questão da culpabilidade (art. 368º CPP), quer à Questão da determinação da sanção (art. 369º CPP); - Se, independentemente do reexame da matéria de direito com aquele sentido e alcance, o recurso tem como fundamento os vícios resultantes da decisão recorrida previstos nas alíneas do nº 2 do art. 410º ou nulidade que não deva considerar-se sanada, nos termos do nº3 deste mesmo art. 410º. Da história do preceito resulta com clareza que a alteração legislativa visou alargar a recorribilidade para o STJ aos casos em que o recorrente fundamenta o recurso nos vícios e nulidades a que se referem os nºs 2 e 3 do art. 410º do CPP, deixando de fora apenas os recursos que visem – exclusiva ou cumulativamente - a reapreciação da matéria de facto, o que se verifica paradigmaticamente quando o recorrente pretenda a impugnação da decisão sobre matéria de facto a que se reporta o art. 412º nºs 3, 4 e 6, CPP. Ou seja, em formulação negativa, o STJ não é funcionalmente competente quando o recurso visar a reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto, independentemente do cumprimento dos respetivos requisitos específicos. Significa isto, sem outros desenvolvimentos que o caso concreto não convoca, que são admissíveis (e obrigatórios) recursos per saltum para o STJ quando das respetivas conclusões não resulte que o recorrente pretende impugnar a decisão proferida em matéria de facto. Na verdade, por opção clara do nº2 do art. 432º, conjugado com o nº 8 do art. 414º para que remete, se o recurso visar exclusivamente matéria de direito e/ou algum dos vícios previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º do CPP, é obrigatoriamente interposto para o STJ, não podendo o recorrente optar por recorrer para tribunal da relação, tal como, se forem interpostos vários recursos da mesma decisão, versando uns sobre matéria de facto e outros sobre matéria de direito, são todos julgados pelos tribunais da relação por serem os competentes para conhecer da matéria de facto. 1.2. Ora, para além do mais, pelo presente recurso o arguido pretende impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto (cf. art. 412º nºs 3 a 6 CPP), visto que, conforme diz, em síntese, na conclusão XI, « Os factos dados como provados nos pontos 4, 7 ,8, 9, 12 e 22 da matéria de facto e nos exatos termos apontados, nesta sede têm que ser dados como não provados, impondo-se decisão diversa quanto a esta matéria, resultante dos depoimentos prestados pela ofendida em sede de memória futura e do depoimento do arguido.», acrescentando na conclusão XVIII, que ao dar como provado os abusos anteriores a Maio de 2017, e a periodicidade quinzenal, estamos perante erro notório da prova – cfr. artigo 410, nº 2,al. c) do CPP cfr registos áudio da ofendida ...7( 0,18 s a 10,10 m) e ...7 ( 01 s – 35.28 m). Ou seja, a motivação do recorrente não deixa dúvidas quanto ao seu propósito de ver discutida em recurso a decisão proferida sobre a matéria de facto fora do quadro estrito dos vícios da sentença previstos no art. 410º nº2 do CPP, na medida em que assenta a sua motivação na reapreciação das provas que indica (e não apenas no or do acórdão), nomeadamente a resultante dos depoimentos prestados pela ofendida em sede de memória futura e do depoimento do arguido, bem como os registos áudio da ofendida, que discrimina. Assim, tendo presente que, como vem sendo repetidamente chamada a atenção nas decisões judiciais, o recurso com fundamento nos vícios previstos no art. 410º nº2 CPP apenas pode fundamentar o recurso e ser conhecido pelo tribunal ad quem quando o vício resulte do texto da decisão recorrida, tal significa que o recorrente pretende impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do art. 412º nº3 CPP. Assim sendo, mesmo considerando que o recorrente também pretende ver reapreciada a decisão sobre a medida da pena única de prião aplicada e ainda que o recorrente viesse invocar, também, algum dos vícios previstos no art. 410º nº2 – o que não é seguro -, sempre se impõe concluir pela incompetência do STJ para conhecer do presente recurso, por não visar, exclusivamente, o reexame da matéria de direito ou os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º – cfr art. 432º nº 1 c) CPP.
III Dispositivo
Por todo o exposto e tendo ainda presente o preceituado nos artigos 10º , 428º, 434º e 432º nº 1 c), do Código de Processo Penal), declara-se o STJ funcionalmente incompetente (vd Jorge de Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Sujeitos processuais penais, texto de apoio ao estudo da unidade curricular de Direito e Processo penal do mestrado Forense da F.D.U. oimbra, 2015/2016, p. 49), para conhecer do presente recurso, ordenando-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, por ser o competente. 18.05.23 António Latas (Juiz Conselheiro relator) José Eduardo Sapateiro (Juiz Conselheiro adjunto) Orlando Gonçalves (Juiz Conselheiro adjunto) |