Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3ª SESSÃO | ||
Relator: | RAUL BORGES | ||
Descritores: | DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA TRIBUNAL DA RELAÇÃO INSTRUÇÃO ACUSAÇÃO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO OBJECTO DO PROCESSO PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO TEMÁTICA ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA CRIME DIVERSO ABUSO DE PODER ACESSO INDEVIDO A DADOS PESSOAIS FUNCIONÁRIO VÍCIOS DO ARTº 410 CPP | ||
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Data do Acordão: | 12/12/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL – FASES PRELIMINARES / INSTRUÇÃO / ENCERRAMENTO DA INSTRUÇÃO. | ||
Doutrina: | - António Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016, p. 15; - Cecília Santana, Dos limites do requerimento do arguido para abertura da instrução, Questões Avulsas de Processo Penal, A.A.F.D.L., 2000, p. 47; - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I Volume, Edição 1974, p. 144 e 145; - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, p. 130/131; - M. Marques Ferreira, Da alteração dos factos objecto do processo penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano I, 2. Abril-Junho 1991, p. 228; - M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal, Parte geral e especial, Almedina, 2014, p. 1255; - Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 5.ª Edição revista e actualizada, Almedina, 1992, p. 501; - Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, p. 774/5; - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, p. 741 ; 4.ª edição actualizada, 2011, p. 781. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 286.º E 307.º, N.º 1. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 16-01-1991, IN CJ 1991, TOMO I, P. 5; - DE 05-06-1991, IN CJ 1991, TOMO III, P. 29; - DE 28-03-1996, PROCESSO N.º 60/96, IN CJSTJ 1996, TOMO I, P. 239; - DE 15-03-2017, PROCESSO N.º 206/12.0JAGRD.C2.S1; - DE 12-07-2018, PROCESSO N.º 116/15.9JACBR.C1.S1. | ||
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Sumário : | I - Como decorre do art. 386.º do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. O requerimento de abertura de instrução procurará infirmar a acusação, substanciando uma contestação àquela, devendo contribuir para a determinação do objecto da instrução, delimitando e definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como, a final, da decisão instrutória de pronuncia ou de não pronuncia; o texto do requerimento constitui o horizonte e o limite da correcção possível. II - O MP deduziu acusação contra o arguido, Procurador Adjunto, pela prática do crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382.º do CP. Requerida a abertura de instrução pelo arguido, o Tribunal da Relação proferiu decisão de não pronúncia. Com base na factualidade dada como indiciariamente assente (e não assente), pretende o MP a revogação daquela decisão e a sua substituição por uma decisão de pronúncia pela prática de um crime de acesso indevido de dados, p. e p. pelo art. 30.º e 50.º, n.º 1 da Lei 34/2009, de 14-07, ou seja, a imposição de tipo de crime diverso. III - O objecto do processo é uma realidade fáctico-social constituída pela relação da vida que se discute, pela questão de facto com todas as possíveis questões de direito que se suscitam. É dentro dos limites traçados pela acusação ou despacho de pronúncia que a actividade cognitiva e decisória do tribunal se desenvolve, sendo esta limitação denominada por vinculação temática do tribunal. IV - Desde cedo foi controverso o entendimento acerca do que deve ter-se por alteração substancial dos factos, suscitando diversas intervenções do STJ e do TC, bem como se a simples modificação do enquadramento jurídico dos mesmos factos correspondia ou não a alteração substancial de factos descritos na acusação ou na pronúncia. Sendo que a solução legislativa introduzida pela Reforma de 1998 ao aditar o n.º 3 do art. 358.º do CPP dissipou as dúvidas. V - O tipo objectivo do crime de abuso de poder consiste no abuso dos poderes ou violação dos deveres inerentes às funções do funcionário. A qualidade de funcionário funda a ilicitude, sendo, por isso, um crime específico próprio. VI - Não há que convocar o erro notório na produção da prova previsto na al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP pois que se trata de um vício da decisão respeitante a matéria de facto dado por provada e/ou não provada na sequência de julgamento com oralidade, imediação e contraditório, não tendo cabimento no seio de meros indícios. A finalizar a fundamentação a decisão recorrida refere a invocação do princípio in dubio por reo, reportando-se a dação de elementos do processo. VII - Não foi dado por indiciado que o arguido tivesse prestado informações ao jornalista, nomeadamente, sobre o teor da acusação. Não é possível a convolação pretendida, atendendo a que se está face a crimes diversos, tutelando bens jurídicos diferentes, a que se alia a circunstância de na facticidade indiciada não se incluir o elemento subjectivo da nova incriminação. O arguido no requerimento para abertura de instrução, procurando contrariar a acusação, estava naturalmente limitado aos factos imputados e ao crime indicado, e não outro, não podendo ser surpreendido por uma outra qualificação, por um crime diverso, fora do quadro do momento temporal a que alude o art. 303.º do CPP. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Nos autos de inquérito com o NUIPC 72/17.9TRPRT, que correu termos na Secção de Processos da Procuradoria-Geral Distrital do Porto, Tribunal da Relação do Porto, em que é arguido AA, casado, nascido em ..-..-.., natural de ...., Procurador Adjunto em exercício de funções na Comarca de Braga, foi proferido, em 27 de Outubro de 2017, pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, despacho de acusação, de fls. 117 a 120, imputando a prática ao arguido de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382.º do Código Penal. *** Por requerimento de fls. 133 a 144, recebido nos Serviços da Secção de Processos da Procuradoria-Geral Distrital, Tribunal da Relação do Porto, em 29-11-2017, conforme carimbo que consta do mesmo, a fls. 133, veio o arguido requerer a abertura de instrução, insurgindo-se contra a acusação deduzida, com base, essencialmente, em dois fundamentos: (a) nulidade/irregularidade decorrente de o inquérito ter corrido termos na Procuradoria-Geral Distrital do Porto e não, como devia, segundo o seu entendimento, no Tribunal da Relação de Guimarães e (b) insuficiência de indícios para o submeter a julgamento. *** A fls. 226 foi determinada a remessa dos autos para o Tribunal da Relação de Guimarães para distribuição, onde em 18-12-2017, foi proferido o despacho de fls. 230, que admitiu o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, declarou aberta a instrução requerida e determinou a realização das diligências probatórias requeridas. *** Realizadas as diligências probatórias admitidas pelo despacho de fls. 230, teve lugar o debate instrutório, documentado na acta de fls. 354/355. *** Em 09-04-2018 foi proferida decisão instrutória, constante de fls. 356 a 370, que considerou ser improcedente a nulidade/irregularidade invocada e decidiu não pronunciar o arguido pela prática do crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382.º, do Código Penal. *** Inconformado com a decisão de não pronúncia do arguido AA, o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães interpôs recurso para este Supremo Tribunal, por requerimento entrado em juízo em 23-04-2018, conforme carimbo no mesmo aposto, a fls. 372, apresentando a motivação que consta de fls. 372 a 375, que remata com as seguintes conclusões: “1 - Os factos constantes do libelo acusatório e dados como suficientemente indiciados, sob os pontos 9, 10 e 11 do elenco respectivo, ofendem as regras de consulta de dados pelos magistrados e funcionários de justiça, ínsitas no art° 30° da Lei 34/2009 de 14/7. 2 - Mesmo que se aceite a decisão de não dar como indiciado que o magistrado aqui arguido, ao aceder indevidamente ao processo, tivesse a intenção de obter para si ou para terceiro benefício ilegítimo - o que exclui a incriminação pelo abuso de poder - a decisão instrutória deveria ter pronunciado o mesmo magistrado como autor de um crime de acesso indevido, previsto e punido pelo n.º 1, do artigo 50.° daquele diploma legal. 3 - Nestes parâmetros, uma vez que o senhor magistrado arguido, que tem larga experiência profissional, não poderia deixar de conhecer aquela Lei, violou o julgador as regras da experiência comum, ao considerar como não indiciadas as factos indicados sob os números 6 e 8, actuando, assim, com erro notório na apreciação dos indícios que levaram à inclusão, na decisão instrutória, daqueles factos não indiciados. 4 - Havendo, pois, que, nos termos conjugados dos art°s 308°, n°s 1 e 2 e 282°, n° 3 do Código de Processo Penal ser proferida decisão instrutória, no sentido da pronúncia do arguido pela prática daquele ilícito. 5 - Foram violados tais normativos, bem como os art°s 30° e 50° da Lei n.° 34/2009, de 14/7.” Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que pronuncie o arguido pela prática de um ilícito, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 30.º e 50.º, n.º 1 da Lei 34/2009, de 14-07. *** Por despacho de fls. 377 foi admitido o recurso interposto pelo Ministério Público para este Supremo Tribunal de Justiça, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. *** O arguido apresentou a resposta ao recurso apresentado, constante de fls. 381 a 389, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida. Argumenta, em suma, que “o arguido não equacionou, nem poderia adivinhar, uma eventual qualificação jurídica distinta dos factos descritos na acusação, e muito menos que haveria outro potencial crime implícito, alegadamente consumido por aquele de que cuja prática foi acusado!”, (…) a decisão instrutória não pode extravasar a limitação temática estabelecida pelo requerimento de abertura de instrução - o que vale não só quando apresentado por um assistente e relativamente a um despacho de arquivamento, mas também quando o arguido reage contra um despacho de acusação. (…) Daí que o recurso interposto pelo Ministério Público do despacho de não pronúncia só possa ter como objecto o crime que por esta entidade tinha sido imputado ao arguido na acusação e não qualquer outro.”. Mais alega que “(…) o recorrente não invocou, nas conclusões da sua motivação, haver erro na determinação da norma aplicável, e muito menos que deveria aplicar-se aquele art. 303.º, do CPPen. (…), bem como que “(…) não constam do libelo acusatório todos os factos necessários para a pretendida incriminação. (…)”, pelo que “(…) estas omissões são expressivas de um deficiente exercício do “princípio do acusatório”, que não podem ser supridas através do mecanismo de uma “alteração não substancial dos factos”, sob pena de violação do “princípio da vinculação temática” do tribunal (…)”. *** O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu douto parecer, constante de fls. 396 a 398, ora transcrito de modo integral: “Nada obsta ao conhecimento do recurso, 1. Por decisão instrutória proferida em 09.04.2018, pelo Sr. Desembargador do Tribunal da Relação de Guimarães, vide págs.356-370, foi decidido “ não pronunciar e, subsequentemente, não submeter a julgamento, o arguido AA pela prática dos factos e do crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382° do CP de que foi acusado pelo MP” cf. págs. 369 (itálico nosso). 1.1. Inconformado, o MP junto do Tribunal da Relação de Guimarães, veio impugnar tal despacho de não pronúncia, concluindo nos termos de págs. 375-376,propugnando que pela procedência do recurso, seja revogada a impugnada decisão instrutória, ordenando-se a reformulação da mesma, por forma a que o arguido seja pronunciado, pela comissão em autoria material de um crime de acesso indevido a dados, p. e p. pelos arts. 30º e 50º, n ° 1, da Lei nº 34/2009, de 14 de Julho. 2. O recorrido veio responder nos termos de págs. 381-389, expressando a sua natural concordância com a decisão instrutória, pugnando, assim, pela improcedência do recurso. 3. O objecto do recurso é estabelecido pelas conclusões formuladas, sem prejuízo dos poderes de cognição ex officio da instância apelada. Retira-se do teor daquelas, que o MP recorrente, podendo ainda conformar-se com a não pronúncia do arguido pelo crime p. e p. pelo art. 382°, do CP, abuso do poder, com fundamento no juízo de insuficiência indiciária formulado, não deixa de ver razões para, com base nos factos que já constavam da acusação pública deduzida no inquérito 539 / 12.5TABRG da 1ª secção do DIAP de Braga, entender que se devia ter pronunciado o arguido pela prática de um crime de acesso indevido a dados, p. e p. pelos arts. 30º e 50°, n ° 1 da Lei nº 34/2009, de 14 de Julho (que consagra, justamente, o Regime Jurídico Aplicável ao Tratamento de Dados - Sistema Judicial). 3.1. Todos actos decisórios do juízes são obrigatoriamente fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. Tal dever, é imposto pelo art. 205°, nº 1 da CRP, e na ordem infraconstitucional, é reafirmado, como regra geral, no art. 97°, n ° s 1, alínea b) e 5 do CPP. A decisão judicial que conhece de meritis indiferentemente de revestir a natureza de acórdão ou sentença, implica especiais requisitos de fundamentação, devidamente previstos no CPP. Só em relação a tal tipo de decisão se poderá, se reunidos os pressupostos para tal, falar da existência do vícios previstos no art. 410°, n º 2, alíneas a), b) e c) do CPP (sob esta problemática em relação precisamente ao despacho de pronúncia, veja-se “Código de Processo Penal” Notas e Comentários, de Vinício Ribeiro, Coimbra Editora, Julho 2008, nota 4. a pags.909.O douto comentário, em referência, finaliza com o seguinte parágrafo: «Conforme escreve o Cons.° Pereira Madeira, no Ac. STJ de 20 de Junho de 2002, Proc. 01P4250, os vícios do artº 410°, n ° 2, do CPP, são vícios da sentença final e, só, da matéria de facto». No caso vertente, o recorrido formulou o seu RAI porquanto entendeu colocar sob a sindicância do Juiz de Instrução, a questão da existência de indícios suficientes da prática do imputado crime de abuso de poder, previsto pelo art. 382° do CP, sendo certo que o MP na acusação não imputou a prática do referido crime de acesso indevido a dados, em concurso aparente com o de abuso de poder, como, ao alegar em sede de síntese conclusiva, aquando do debate instrutório, não suscitou tal questão pelo que não houve lugar a qualquer comunicação á defesa da mesma. (vide, acusação pública e ficheiros áudio). Neste conspecto, a existência de um crime meio e de um crime fim, ganhando aquele autonomia conquanto os seus elementos típicos possam ter-se como suficientemente indiciados, poderia, em tese, perfilar-se. Sucede porém, como se assinala na motivação, a fundamentação do despacho de não pronúncia, mostra-se contraditória quanto aos factos tidos por suficientemente indiciados, por um lado e não indiciados, por outro. Cf. entre os primeiros os elencados sob o nºs 9; 10 e entre os segundos, os constantes dos nºs 6 a 8. Discutindo-se no recurso, desde logo por imposição do RAI, a suficiência indiciária, poder-se-ia, processualmente, a nosso ver, resolver, eventualmente, tal escolho. Todavia, parece-nos colocar-se aqui, uma questão nuclear: Num processo em que a acusação pública ainda que, como supra aduzimos tendo narrado os pertinentes factos, sem, contudo imputar ao arguido o crime de acesso indevido a dados e tendo o RAI como objecto, reiteramos, a questão da suficiência indiciária e não tendo sido suscitada a incriminação ora preconizada, durante o debate instrutório, notificando-se então, a defesa, não se nos afigura que, neste conspecto, pese embora os juízos indiciários que se mostram cirurgicamente delimitados no recurso, como vimos, o Sr. Juiz de Instrução, pudesse considerar o feito em apreço, á luz desta nova qualificação jurídico-penal. Temos assim, que salvo melhor entendimento, o recurso do MP, deve ser julgado improcedente.”. *** Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada tendo o arguido dito. *** Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir. ***
Questão proposta a reapreciação e decisão
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, onde o recorrente (Ministério Público) resume as razões de divergência com o decidido na decisão instrutória recorrida. Assim, a única questão a decidir traduz-se em saber se, não obstante a decisão de não pronúncia do arguido pela prática do crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382.º, do Código Penal, deveria o mesmo ter sido pronunciado pela prática do crime de acesso indevido a dados, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 30.º e 50.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2009, de 14 de Julho. ***
Apreciando.
O Ministério Público - Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação do Porto - deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de abuso de poder. O arguido requereu abertura de instrução. O Tribunal da Relação de Guimarães não pronunciou o arguido. Aceitando embora a não configuração do crime de abuso de poder, pretende agora o recorrente Ministério Público, que com base na factualidade firmada na decisão instrutória (leia-se factos dados como indiciariamente assentes e não assentes), seja revogada a decisão de não pronúncia, sendo a mesma substituída por um outro crime, previsto em lei extravagante.
Como decorre do disposto no artigo 286.º do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. No que respeita à direcção e natureza da instrução, o artigo 288.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, dispõe que o juiz de instrução – a quem compete a direcção da instrução –, investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior. Por outro lado, determina o artigo 307.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução; acrescenta o artigo 308.º, n.º 1, do mesmo diploma que se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. Da análise deste regime extrai-se que, visando a instrução, no caso de ter sido deduzida acusação, a comprovação judicial da acusação, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido deve conter as razões de facto e de direito que fundamentam a sua discordância relativamente à acusação deduzida. O requerimento de abertura de instrução procurará infirmar a acusação, substanciando uma contestação àquela, devendo contribuir para a determinação do objecto da instrução, delimitando e definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como, a final, da decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia; o texto do requerimento constitui o horizonte e o limite da correcção possível. A este propósito, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, a págs. 130/131, afirma: «formulada a acusação pelo MP (art. 283.º) ou pelo assistente quando o procedimento depender de acusação particular (art. 285.º), o arguido pode (…) requerer a abertura da fase da instrução, fundamentando o requerimento com as razões de facto e de direito que, na sua perspectiva, deverão conduzir à rejeição total ou parcial da acusação (…)». Acrescenta este Autor (loc. cit.) que «(…) a instrução pode ser requerida pelo arguido com o fim de ilidir ou enfraquecer a prova indiciária da acusação, mas também por razões puramente de direito material ou adjectivo, que a tornem inadmissível. Já não parece que possa ter lugar a requerimento do arguido quando apenas pretenda ilidir ou enfraquecer a prova indiciária ou preparar a defesa sem pretender, porém, a neutralização da acusação, pela sua rejeição na decisão instrutória». Conclui que a instrução a requerimento do arguido «visa o controlo negativo da acusação». Nas palavras de Cecília Santana, “Dos limites do requerimento do arguido para abertura da instrução”, in Questões Avulsas de Processo Penal, A.A.F.D.L., 2000, pág. 47, «numa primeira leitura conjugada dos artigos 286.º, n.º 1, e 287.º, n.º 1, alínea a), do CPP, pode apreender-se que, para o arguido, o requerimento para abertura de instrução funciona como uma impugnação da acusação do MP, nos crimes públicos e semi-públicos, onde ela é a acusação dominante (artigos 283.º e 284.º do CPP), ou da acusação particular, nos crimes dela dependentes, onde ela, existindo, se apresenta igualmente como a acusação dominante (artigo 285.º, n.º 3, do CPP)». Explica Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, pág. 741 (e pág. 781, na 4.ª edição actualizada, 2011), em anotação ao artigo 287.º do citado Código, que o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido é constituído pelas seguintes partes: a) a narração dos factos que fundamentam a não aplicação de uma pena ou uma medida de segurança; b) as razões de direito de discordância relativamente à acusação; c) a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo; d) e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.
Objecto do processo e vinculação temática
O despacho de acusação proferido nos autos partiu da narrativa (narração) / descrição de determinada factualidade, ocorrida nos Serviços do Ministério Público de Braga, suportada na suficiência, na óptica da acusação, de indícios probatórios carreados para o processo, contendo o lastro factual necessário e suficiente, para em termos de enquadramento subsuntivo, “encaixar” no (ou preencher o) molde normativo delimitado na norma do artigo 382.º do Código Penal.
Extrai-se do acórdão deste Supremo Tribunal de 28-03-1996, proferido no processo n.º 60/96, in CJSTJ 1996, tomo 1, pág. 239: “Um dos corolários do princípio acusatório é, justamente, o de que a acusação define e fixa, perante o tribunal, o objecto do processo e, consequentemente, o limite dos poderes de cognição do juiz. No desenvolvimento do princípio da investigação ou da verdade material, o juiz pode ir até onde o permitir a linha fronteiriça do objecto do processo, sem prejuízo do disposto nos arts. 358.º e 359.º do CPP. Se pensarmos, como Eduardo Correia, que o objecto do processo é afinal uma concreta e hipotética violação jurídico-criminal acusada, coincidindo a identidade do processo com a do direito substantivo, a questão estará sempre em saber se a base de facto (o juízo de valoração social subjacente ao caso trazido a tribunal) se mantém idêntica, não em termos naturalísticos, mas normativos”. Segundo Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I vol., edição 1974, pág. 144 “A acusação define e fixa, perante o Tribunal, o objecto do processo. Num processo de tipo inquisitório puro, a acusação mesmo quando existisse, condicionaria apenas o se da investigação judicial, não o seu como nem o seu quanto (…) segundo o princípio da acusação, pelo contrário – e é esta sem dúvida a sua implicação mais relevante – a actividade cognitória e decisória do tribunal está limitada pelo objecto da acusação”. O objecto do processo é, pois, uma realidade fáctico-social constituída pela relação da vida que se discute, pela questão de facto com todas as possíveis questões de direito que se suscitam. É dentro dos limites traçados pela acusação ou despacho de pronúncia que a actividade cognitiva e decisória do tribunal se desenvolve, sendo esta limitação denominada por vinculação temática do tribunal. Como refere Figueiredo Dias, loc. cit., págs. 145-6, “A vinculação temática do tribunal constitui a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido, sendo processualmente um ponto de partida acentuadamente formal, que é justificado por exigências de garantia dos cidadãos e da sua livre realização”. Convocando estes ensinamentos, disse o acórdão deste Supremo Tribunal de 10-10-1996, proferido no processo n.º 392/96, in CJSTJ 1996, tomo 3, pág. 156, versando caso de concurso aparente entre os crimes de extorsão e de abuso de poder: “Face à formulação do artigo 359.º do CPP, é nítido que a lei veda a alteração de factos. Este Supremo, no entanto, coerentemente, firmou jurisprudência no sentido de que já é permitido ao tribunal a «alteração da qualificação jurídica», mantendo-se intocados os factos. “Como refere Figueiredo Dias, “os valores e interesses subjacentes à vinculação temática do tribunal” facilmente se apreendem quando se pense que “constitui a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido”, que, assim, se vê protegido “contra arbitrários alargamentos” da actividade cognitiva e decisório do tribunal, assegurando os seus direitos de contraditoriedade e de audiência” (cfr. «Direito Processual Penal», I, pág. 145). [Negrito do texto]. Com a proibição de uma alteração substancial de factos, a lei pretende, essencialmente, proteger o arguido da situação de, sendo chamado a julgamento, acusado da prática de determinados factos, poder vir a ser surpreendido pela discussão e apuramento de outros, com evidente violação dos seus direitos de defesa. De todo o modo, convém realçar que o arguido tem é que se “defender dos factos que lhe são imputados e não das qualificações jurídicas” que deles se fazem. (No mesmo sentido, neste ponto, o acórdão n.º 606/96, de 24-10-1996, do mesmo Relator, publicado na mesma CJSTJ 1996, tomo 3, págs. 174/7 e o acórdão de 2 de Maio de 1996, recurso n.º 171/96, in CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 179, citado no antecedente). É que “não pode confundir-se vinculação temática com qualificação jurídica”. Quanto à qualificação jurídica, uma vez que esta não faz parte do objecto do processo, o tribunal mantém, ao menos em princípio, inteira liberdade, no pressuposto, claro, de que a base factual da acusação ou da pronúncia se mantenha inalterada”.
É dentro destes concretos parâmetros, definidos pelo concreto objecto do processo e vinculação temática, que há que olhar a pretensão substitutiva do recorrente, que sem nada pretender alterar a nível da facticidade dada por indiciariamente assente e não assente (o que no caso, não é despiciendo, como à frente, melhor se verá), pretende a imposição de tipo de crime diverso.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Março de 2007, proferido no processo n.º 4688/06, da 3.ª Secção, refere-se: “A estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para abertura de instrução. O requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais – artigo 287.º, n.º 2, do CPP – mas há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação. O objecto da instrução deve ser suficientemente delimitado, com a indicação («mesmo em súmula», diz a lei – artigo 287.º, n.º 2, do CPP) das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação ou arquivamento, bem como a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar. (…) O requerimento para abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental de definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução”. Lei n.º 34/2009, de 14 de Julho - REGIME JURÍDICO APLICÁVEL AO TRATAMENTO DE DADOS - SISTEMA JUDICIAL – alterada pela Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio. O diploma estabelece o regime jurídico aplicável ao tratamento de dados referentes ao sistema judicial e procede à segunda alteração à Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, que estabelece o estatuto do administrador da insolvência Estabelece o Artigo 1.º Objecto A presente lei estabelece o regime jurídico aplicável ao tratamento de dados referentes ao sistema judicial, incluindo os relativos aos meios de resolução alternativa de litígios, adoptando regras sobre: a) Recolha dos dados necessários ao exercício das competências dos magistrados e dos funcionários de justiça, bem como ao exercício dos direitos dos demais intervenientes nos processos jurisdicionais e da competência do Ministério Público; b) Recolha dos dados necessários ao exercício das competências dos juízes de paz e dos funcionários dos julgados de paz, bem como ao exercício dos direitos dos demais intervenientes nos respectivos processos; c) Recolha dos dados necessários ao exercício das competências dos mediadores dos sistemas públicos de mediação, bem como ao exercício dos direitos dos demais intervenientes nos processos nos sistemas públicos de mediação; d) Registo dos dados referidos nas alíneas a), b) e c) anteriores; e) As entidades responsáveis pelo tratamento dos dados referidos nas alíneas a), b) e c) e pelo desenvolvimento aplicacional; f) Protecção, consulta e acesso aos dados referidos nas alíneas a), b) e c); g) Intercâmbio dos dados referidos nas alíneas a), b) e c); h) Conservação, arquivamento e eliminação dos dados referidos nas alíneas a), b) e c); i) Condições de segurança dos dados referidos nas alíneas a), b) e c); j) Utilização de dados para efeitos de tratamento estatístico; e l) Sanções aplicáveis ao incumprimento das disposições da presente lei.
Estabelece o Artigo 4.º Finalidades da recolha dos dados A recolha dos dados referidos no artigo anterior tem as seguintes finalidades: a) Organizar, uniformizar e manter actualizada toda a informação constante dos processos jurisdicionais e da competência do Ministério Público, dos processos nos julgados de paz e dos processos nos sistemas públicos de mediação; b) Preservar toda a informação constante dos processos jurisdicionais e da competência do Ministério Público, dos processos nos julgados de paz e dos processos nos sistemas públicos de mediação, designadamente, das informações relativas a todos os que neles intervenham; c) Permitir a tramitação electrónica dos processos jurisdicionais e da competência do Ministério Público, dos processos nos julgados de paz e dos processos nos sistemas públicos de mediação; d) Facultar, aos diversos intervenientes processuais, as informações às quais os mesmos possam aceder, nos termos da lei; e) Assegurar a realização da investigação e da acção penal, nos termos da Constituição e da lei, bem como o cumprimento das leis de política criminal; f) Assegurar o cumprimento pelas autoridades judiciárias das obrigações de cooperação judiciária internacional emergentes da lei e dos instrumentos de direito internacional e da União Europeia; g) Facultar aos órgãos de polícia criminal os dados necessários ao cumprimento das obrigações de intercâmbio de dados e informações para prevenção e combate à criminalidade emergentes da lei e dos instrumentos de direito internacional e da União Europeia; h) Garantir a execução das ordens de detenção nacionais, europeias e internacionais; i) Facultar, aos órgãos e agentes competentes, as informações necessárias ao exercício das competências de direcção, coordenação e fiscalização da actividade do Ministério Público, bem como ao exercício das demais competências de fiscalização a cargo do Ministério Público; j) Facultar, aos órgãos e agentes competentes, as informações necessárias à apreciação do mérito profissional dos magistrados, dos funcionários de justiça, dos juízes de paz, dos mediadores e funcionários dos julgados de paz, dos mediadores dos sistemas públicos de mediação e dos administradores da insolvência; l) Facultar, aos órgãos e agentes competentes, as informações necessárias à realização de inquéritos, inspecções e sindicâncias aos serviços judiciais, do Ministério Público, dos julgados de paz e dos sistemas públicos de mediação; m) Facultar, aos órgãos e agentes competentes, as informações necessárias à prossecução da acção disciplinar contra magistrados, funcionários de justiça, juízes de paz, mediadores e funcionários dos julgados de paz, mediadores dos sistemas públicos de mediação e administradores da insolvência; n) Facultar os dados necessários à elaboração das estatísticas oficiais da justiça, com salvaguarda do segredo estatístico; o) Facultar os dados previstos na alínea anterior aos órgãos com competência de gestão do sistema judicial, tendo em vista a monitorização do respectivo funcionamento; e p) Facultar dados não nominativos e indicadores de gestão aos órgãos e entidades responsáveis pelo planeamento, monitorização e administração dos recursos afectos ao sistema judicial, incluindo os meios de resolução alternativa de litígios.
Dispõe o Artigo 30.º Consulta pelos magistrados e funcionários de justiça 1 - Os magistrados e os funcionários de justiça que os coadjuvam podem consultar: a) Os dados dos processos nos tribunais judiciais e nos tribunais administrativos e fiscais que sejam da sua competência; b) Os dados da conexão processual no processo penal relativos aos processos penais cujo arguido seja o mesmo que em processos que sejam da sua competência, tendo em vista a verificação do preenchimento dos pressupostos da conexão processual; c) Os dados da suspensão provisória do processo penal e do arquivamento em caso de dispensa de pena relativos a quem seja arguido em processos que sejam da sua competência, tendo em vista a verificação do preenchimento dos pressupostos de aplicação daquelas medidas; d) Os dados das medidas de coacção privativas da liberdade e da detenção relativos a quem seja arguido em processos que sejam da sua competência; e) Os dados das ordens de detenção relativos a pessoas que intervenham em processos que sejam da sua competência; f) Os dados referidos na alínea e) do n.º 8 do artigo 22.º relativos a pessoas que intervenham em processos que sejam da sua competência e às quais possam ser aplicadas, nos termos da lei, as medidas aí mencionadas. 2 - Os magistrados do Ministério Público e os funcionários de justiça que os coadjuvam podem consultar os dados dos inquéritos em processo penal e dos demais processos da competência do Ministério Público, relativos a processos que sejam da sua competência. 3 - Os juízes de instrução e os funcionários de justiça que os coadjuvam podem consultar os dados dos inquéritos em processo penal, relativos a processos que sejam da sua competência, quando tais dados sejam necessários para o exercício das competências que lhes cabem, nos termos da lei, durante o inquérito. 4 - Os magistrados e funcionários de justiça não podem aceder aos processos: a) Que se refiram a crimes praticados por esse magistrado ou funcionário de justiça ou em que o mesmo seja ofendido, pessoa com faculdade para se constituir assistente ou parte civil; b) Nos quais esse magistrado ou um funcionário de justiça se tenha declarado ou tenha sido declarado impedido, recusado ou escusado.
Estabelece o Artigo 50.º Acesso indevido aos dados 1 - Quem, sem a devida autorização, por qualquer modo, aceder a qualquer dos dados pessoais previstos na presente lei, é punido com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias. 2 - A pena é agravada para o dobro dos seus limites quando o acesso: a) For conseguido através de violação de regras técnicas de segurança; b) Tiver possibilitado ao agente ou a terceiros o conhecimento de dados pessoais; ou c) Tiver proporcionado ao agente ou a terceiros benefício de vantagem patrimonial.
Finalmente dispõe o Artigo 58.º Direito subsidiário É subsidiariamente aplicável, às matérias relativas à protecção de dados pessoais previstas na presente lei, o disposto na Lei da Protecção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro. Passando à análise da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro - LEI DA PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS - com as alterações introduzidas pela Declaração de Rectificação n.º 22/98, de 28 de Novembro e pela Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto Esta Lei transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Directiva n.º 95/46/CE, do PE e do Conselho, 24/10/95, relativa à protecção das pessoas singulares, no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados. Estabelece o Artigo 3.º Definições Para efeitos da presente lei, entende-se por:
a) 'Dados pessoais': qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável ('titular dos dados'); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social; b) 'Tratamento de dados pessoais' ('tratamento'): qualquer operação ou conjunto de operações sobre dados pessoais, efectuadas com ou sem meios automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a comunicação por transmissão, por difusão ou por qualquer outra forma de colocação à disposição, com comparação ou interconexão, bem como o bloqueio, apagamento ou destruição; c) 'Ficheiro de dados pessoais' ('ficheiro'): qualquer conjunto estruturado de dados pessoais, acessível segundo critérios determinados, quer seja centralizado, descentralizado ou repartido de modo funcional ou geográfico; d) 'Responsável pelo tratamento': a pessoa singular ou colectiva, a autoridade pública, o serviço ou qualquer outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outrem, determine as finalidades e os meios de tratamento dos dados pessoais; sempre que as finalidades e os meios do tratamento sejam determinados por disposições legislativas ou regulamentares, o responsável pelo tratamento deve ser indicado na lei de organização e funcionamento ou no estatuto da entidade legal ou estatutariamente competente para tratar os dados pessoais em causa; e) 'Subcontratante': a pessoa singular ou colectiva, a autoridade pública, o serviço ou qualquer outro organismo que trate os dados pessoais por conta do responsável pelo tratamento; f) 'Terceiro': a pessoa singular ou colectiva, a autoridade pública, o serviço ou qualquer outro organismo que, não sendo o titular dos dados, o responsável pelo tratamento, o subcontratante ou outra pessoa sob autoridade directa do responsável pelo tratamento ou do subcontratante, esteja habilitado a tratar os dados; g) 'Destinatário': a pessoa singular ou colectiva, a autoridade pública, o serviço ou qualquer outro organismo a quem sejam comunicados dados pessoais, independentemente de se tratar ou não de um terceiro, sem prejuízo de não serem consideradas destinatários as autoridades a quem sejam comunicados dados no âmbito de uma disposição legal; h) 'Consentimento do titular dos dados': qualquer manifestação de vontade, livre, específica e informada, nos termos da qual o titular aceita que os seus dados pessoais sejam objecto de tratamento; i) 'Interconexão de dados': forma de tratamento que consiste na possibilidade de relacionamento dos dados de um ficheiro com os dados de um ficheiro ou ficheiros mantidos por outro ou outros responsáveis, ou mantidos pelo mesmo responsável com outra finalidade. Estabelece o
Artigo 4.º Âmbito de aplicação 1 - A presente lei aplica-se ao tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não automatizados de dados pessoais contidos em ficheiros manuais ou a estes destinados. 2 - A presente lei não se aplica ao tratamento de dados pessoais efectuado por pessoa singular no exercício de actividades exclusivamente pessoais ou domésticas. 3 - A presente lei aplica-se ao tratamento de dados pessoais efectuado: a) No âmbito das actividades de estabelecimento do responsável do tratamento situado em território português; b) Fora do território nacional, em local onde a legislação portuguesa seja aplicável por força do direito internacional; c) Por responsável que, não estando estabelecido no território da União Europeia, recorra, para tratamento de dados pessoais, a meios, automatizados ou não, situados no território português, salvo se esses meios só forem utilizados para trânsito através do território da União Europeia. 4 - A presente lei aplica-se à videovigilância e outras formas de captação, tratamento e difusão de sons e imagens que permitam identificar pessoas sempre que o responsável pelo tratamento esteja domiciliado ou sediado em Portugal ou utilize um fornecedor de acesso a redes informáticas e telemáticas estabelecido em território português. 5 - No caso referido na alínea c) do n.º 3, o responsável pelo tratamento deve designar, mediante comunicação à Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), um representante estabelecido em Portugal, que se lhe substitua em todos os seus direitos e obrigações, sem prejuízo da sua própria responsabilidade. 6 - O disposto no número anterior aplica-se no caso de o responsável pelo tratamento estar abrangido por estatuto de extraterritorialidade, de imunidade ou por qualquer outro que impeça o procedimento criminal. 7 - A presente lei aplica-se ao tratamento de dados pessoais que tenham por objectivo a segurança pública, a defesa nacional e a segurança do Estado, sem prejuízo do disposto em normas especiais constantes de instrumentos de direito internacional a que Portugal se vincule e de legislação específica atinente aos respectivos sectores.
Estabelece o Artigo 44.º Acesso indevido 1 - Quem, sem a devida autorização, por qualquer modo, aceder a dados pessoais cujo acesso lhe está vedado é punido com prisão até um ano ou multa até 120 dias. 2 - A pena é agravada para o dobro dos seus limites quando o acesso: a) For conseguido através de violação de regras técnicas de segurança; b) Tiver possibilitado ao agente ou a terceiros o conhecimento de dados pessoais; c) Tiver proporcionado ao agente ou a terceiros benefício ou vantagem patrimonial. 3 - No caso do n.º 1 o procedimento criminal depende de queixa.
Pelo artigo 51.º foram revogadas a Lei n.º 10/91, de 29-04 e 28/94, de 29/08.
A Lei n.º 10/91, de 29 de Abril, aprovou a Lei da protecção de dados pessoais face à informática. O artigo 1.º estabelecia o princípio geral de que o uso da informática deve processar-se de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada e familiar e pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais do cidadão. O artigo 2.º continha definições no artigo 2.º e, no que ora interessa, prescrevia que para os fins da presente lei entende-se por:
Pelo artigo 4.º foi criada a Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados (CNPDPI)
No Capítulo VIII – Infracções e sanções –, estabelecia o Artigo 38.º (Acesso indevido) 1 – Quem, sem a devida autorização, por qualquer modo, aceder a um sistema informático de dados pessoais cujo acesso lhe está vedado é punido com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias. 2 – A pena é agravada para o dobro nos seus limites quando o acesso: 3 – No caso do n.º 1, o procedimento criminal depende de queixa.
No lugar paralelo da Lei n.º 109/91, de 17 de Agosto – Lei da criminalidade informática, o artigo 2.º não contém definição de dados pessoais e no Capítulo III – Dos crimes ligados à informática – estabelecia o Artigo 7.º (Acesso ilegítimo) 1 – Quem, não estando para tanto autorizado e com a intenção de alcançar, para si ou para outrem, um benefício ou vantagem ilegítimos, de qualquer modo aceder a um sistema ou rede informáticos, será punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 – A pena será a de prisão até três anos ou multa se o acesso for conseguido através de violação de regras de segurança. 3 – A pena será a de prisão de um a cinco anos quando: 5 – Nos casos previstos nos n.ºs 1, 2 e 4 o procedimento penal depende de queixa.
Este diploma veio a ser revogado pelo artigo 31.º da Lei n.º 109/09, de 15 de Setembro, Diário da República, 1.ª série, de 15-09, que aprovou a Lei do Cibercrime, não constando das definições do artigo 2.º referência a dados pessoais, prevendo no Capítulo II – Disposições penais materiais –, no artigo 6.º, o acesso ilegítimo a sistema informático.
*** Não foi dado por indiciado que o arguido tivesse prestado informações ao jornalista, nomeadamente, sobre o teor da acusação. É possível a mutação de crime de abuso de poder para acesso indevido a dados pessoais, estando em causa crime diverso, sobretudo quando no que a este respeita, sempre faleceria a conformação de elemento subjectivo?
Integrado no Título V - Dos crimes contra o Estado - Capítulo IV -Dos crimes cometidos no exercício de funções públicas - Secção III - Do abuso de autoridade Estabelece o Artigo 382.º Abuso de poder O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte especial, Tomo III - Artigos 308.º a 386.º -, Coimbra Editora, 2001, págs. 774/5, refere que estamos perante o abuso “innominato di ufficio” do direito italiano e versando sobre o bem jurídico protegido no artigo 382.º, afirma: “Está em causa a autoridade e credibilidade da administração do Estado, ao ser afectada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços. Corresponde esta exigência, de resto, a um princípio fundamental da organização do Estado consagrado constitucionalmente nos arts. 266.º. 268.º e 269.º - 1 da CRP. Em particular o n.º 2 do art. 266.º refere que “os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade”. Esta definição do bem jurídico tutelado na norma é seguido e citada por Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, no Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, pág. 931. M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal, Parte geral e especial, Almedina, 2014, pág. 1255, seguem posição de Paulo Pinto de Albuquerque expressa no Comentário, edição de 2010, pág. 1013. Para Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição actualizada, Novembro de 2015, pág. 1215 (e de igual modo na edição de 2008, pág. 904 e na 2.ª edição actualizada de Outubro de 2010, pág. 1013) “O bem jurídico protegido pela incriminação é a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outra pessoa”. O tipo objectivo consiste no abuso dos poderes ou violação dos deveres inerentes às funções do funcionário. A qualidade de funcionário funda a ilicitude, sendo, por isso, um crime específico próprio. Sobre o conceito de funcionário e antes de empregado público e respectiva evolução desde o Código Penal de 1852/1886, e depois Código Penal de 1982, e alterações introduzidas em 1995, 2001, 2007 e 2010, veja-se a decisão instrutória de pronúncia, por nós proferida, relativa a crime de peculato, no processo n.º 1/13.9YGLSB.S1, págs. 213 e 221 a 233.
Na conclusão 3.ª o recorrente refere erro notório na apreciação de indícios, mas no caso não há como convocar o erro notório na produção da prova previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, pois que se trata de um vício da decisão respeitante a matéria de facto dada por provada e/ou não provada na sequência de julgamento com oralidade, imediação e contraditório, não tendo cabimento no seio de meros indícios . Como referimos, i. a., nos acórdãos de 15-3-2017, processo n.º 206/12.0JAGRD.C2.S1 e de 12-07-2018, processo n.º 116/15.9JACBR.C1.S1: «Os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Outubro de 1997, proferido no processo n.º 612/97-3.ª Secção (Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 14, pág. 155) e de 5 de Novembro de 1997, proferido no processo n.º 549/97-3.ª Secção (Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.ºs 15 e 16, págs. 150/1 e CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 222), afirmaram de forma clara: “Os vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP, são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto - implicam erro de facto - que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Enquanto subsistirem, a causa não pode ser decidida, determinando o reenvio do processo para novo julgamento (art. 426 do CPP)”. Adianta a Autora, a págs. 121/2/3: “Nesta disposição legal, estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, concretamente à exigência da «fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal»”. (Texto presente nos acórdãos de 13-10-2010, processo n.º 200/06.0JAAVR.C1.S1-3.ª, e do mesmo relator, o de 09-02-2012, processo n.º 233/08.1PBGDM.P3.S1). Afirma ainda: “O artigo 374.º, n.º 2, impõe a fundamentação das decisões de facto e de direito, sob pena de nulidade da sentença (…), enquanto o artigo 410.º, n.º 2, concede ao tribunal «ad quem» os poderes de cognição em matéria de facto permitidos pelo texto da decisão recorrida, com o objectivo de assim ser controlado o conteúdo da própria fundamentação. O artigo 410.º, n.º 2, não serve, pois, para verificar a existência ou não da fundamentação da sentença, nos termos previstos no artigo 374.º, n.º 2 – isso é feito através do mecanismo da arguição da nulidade –, mas para controlar se a matéria de facto provada é suficiente para a decisão de direito tomada, se não há contradição insanável da fundamentação e se não há erro notório na apreciação da prova, podendo assim dizer-se que estes são requisitos da fundamentação e consequentemente da própria decisão”. Como, numa feliz síntese, disse o direito, o acórdão de 8 de Novembro de 2006, proferido no processo n.º 3102/06, desta 3.ª Secção: “Os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, pertinem à matéria de facto; são anomalias decisórias ao nível da confecção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito”. (Realces nossos). No acórdão de 3 de Março de 2010, proferido no processo n.º 242/08.0GHSTC.S1-3.ª Secção, relatado pelo Exmo. Relator do anterior, no caso abordando concretamente os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável entre factos, pode ler-se: “São vícios graves de confecção técnica da sentença, impeditivos de bem se decidir no plano objectivo e subjectivo, viciando as premissas decisórias, inclusive a conclusão de direito, comprometendo a eficácia das decisões ante os seus destinatários directos e até os mais remotos, sendo por isso de conhecimento oficioso”. (Realces nossos).
A decisão recorrida elencou a seguinte facticidade: A) Com relevância para a decisão do objeto do processo, julgo suficientemente indiciados como provados os seguintes factos: 1. No dia 30 de dezembro de 2016, o M.P deduziu acusação no processo n.º 539/12.5TABRG, a correr termos pela Ia Secção do Dl AP de Braga, processo de contornos mediáticos, por crimes de corrupção passiva para ato ilícito; de corrupção ativa e de administração danosa, envolvendo pessoas públicas, designadamente administradores dos Transportes Públicos de Braga. 2. Nessa mesma acusação, o M.P. fez um pedido de liquidação do património incongruente de três arguidos e o pedido de confisco dos respectivos valores, que atingiam, respectivamente, € 226.043,55; € 34.808,96; e € 111.694,81. 3. Para garantia do pagamento daqueles valores devidos ao Estado e ainda dos valores decorrentes das vantagens resultantes da prática dos crimes, o M.°P.° logo requereu o arresto preventivo de vários bens pertencentes aos patrimónios daqueles arguidos. 4. E teve o cuidado de ordenar, no despacho em causa, que as notificações da acusação aos arguidos deveriam ter lugar apenas depois de terem sido executados os arrestos requeridos. 5. No dia 6 de Janeiro de 2017, sexta-feira, o jornal "Correio da Manhã" publicou uma pequena notícia, informando publicamente que tinha sido deduzida acusação nos processos dosTUB. 6. A constatação desta “fuga de informação” causou natural alarme nos serviços do Ministério Público do DIAP de Braga e, em especial, na titular do inquérito, a senhora Procuradora adjunta, Licenciada BB, já que os arrestos acima referidos não tinham sido ainda executados. 7. Esta senhora magistrada tem o seu gabinete contíguo ao do Dr. AA, aqui arguido, conseguindo-se ouvir de cada um desses gabinetes, o que se diz no gabinete ao lado. 8. Pelas 17 horas desse dia 6/1/17, a Dra. BB apercebeu-se que o seu colega, aqui arguido, se encontrava a falar ao telefone com alguém que, segundo julgou, seria jornalista e que, a dado passo, ele, magistrado, proferiu a seguinte frase:" Já sei isso. Já toda a gente sabe. Dá-me aí o número que eu logo vejo isso". 9. Posteriormente veio a constatar-se que o magistrado, aqui arguido, Dr. AA, sabendo que o não poderia fazer, pois era processo de que não era titular e não dispunha de qualquer motivo objetivo para tal, acedeu, pelas 17:31 horas, informaticamente, ao aludido processo, através do seu número de utilizador CITIUS MP00667, tendo tomado conhecimento da acusação pública deduzida nesse processo pela mencionada colega, Dra. BB. 10. Ao aceder informaticamente ao processo da sua colega, o senhor magistrado, aqui arguido, sabia ou tinha o dever de saber que tal lhe era interdito já que não era titular do referido processo e não tinha nenhum motivo que justificasse esse acesso. 11. Ao aceder ao mesmo, o magistrado, aqui arguido, violou conscientemente, por isso, o seu dever geral de zelo. 12. Como bem sabe o magistrado, aqui arguido, o dever geral de zelo consiste em conhecer e aplicar as normas legais e regulamentares e as ordens e instruções dos superiores hierárquicos, bem como exercer as funções de acordo com os objetivos que tenham sido fixados e utilizando as competências que tenham sido consideradas adequadas. 13. A Drª BB que tinha ficado admirada com a conversa que o colega mantinha ao telefone, e que sabia que este era muito amigo de um jornalista do Jornal de Notícias, chamado CC, deslocou-se ao gabinete do colega e perguntou-lhe se, sendo ela colega dele, estaria na disposição de fornecer a jornalistas informações sobre processos dela. 14. O colega ficou muito atrapalhado e negou que o tenha feito e, momentos depois, dirigiu-se ao gabinete da Dra. BB, dizendo-lhe que apenas tinha recebido uma mensagem telefónica do jornalista CC, pretendendo saber o que se passava com o processo em questão, mas que nem sequer tinha respondido a tal mensagem. 15. No dia seguinte, 7/1/17, sábado, no Jornal de Notícias, foi publicada uma notícia com o título: “Ex-autarcas acusados de corrupção nos TUB" da autoria do senhor jornalista CC, na qual, a dado passo, se afirmava: "A acusação, que tem 220 páginas, e foi deduzida a 30 de dezembro de 2016, envolve, ainda, DD, antigo director dos T.... (... )”. 16. Mais adiante, acrescenta-se: "Ao que o JN soube, o teor da acusação ainda não é conhecido pelos arguidos, dado que a necessária notificação ainda não lhes foi enviada." B) Com relevância para a decisão do objeto do processo, julgo não suficientemente indiciados como provados os seguintes factos: 1. Os pormenores da notícia referida em 15 e 16 supra demonstram que o jornalista CC teve contacto direto com a peça acusatória ou foi informado detalhadamente sobre ela. 2. O senhor magistrado, aqui arguido, tenha prestado informações ao Jornalista CC sobre o processo de inquérito n.º 539/12.5TABRG, designadamente sobre o teor da respetiva acusação. 3. O senhor magistrado aqui arguido, quando aceitou prestar informações a um jornalista, seu amigo, sobre processo de que não era titular, sabia que, por esta forma, estava a infringir os seus deveres gerais de isenção e de lealdade. 4. O dever geral de isenção porque, ao prestar informações ao jornalista, estava a retirar para ele, das funções por si exercidas e em homenagem à amizade existente entre ambos, vantagens que sabia indevidas. 5. O dever de lealdade porque, ao prestar informações sobre processo de que não era titular, sabia que estava a contrariar objectivos estabelecidos pelos serviços do DIAP de Braga, que tal não permitiam. 6. Ao aceder informaticamente ao processo da sua colega, o senhor magistrado aqui arguido sabia ou tinha o dever de saber que tal lhe era interdito pela regulamentação do acesso aos processos pelo sistema HABILUS/CITIUS. 7. O senhor magistrado, aqui arguido, teve a intenção de obter para terceiro, o jornalista já mencionado, o benefício que sabia ilegítimo de aceder a um processo de inquérito, cujo acesso estava vedado a ambos. 8. Agiu sempre voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei. VIII. Apreciação dos indícios Os factos acima enunciados, indicados como suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados, foram como tal considerados com base nas provas infra indicadas e apreciadas”.
Existe contradição entre os pontos 9 e 10 dos factos dados por indiciados e os pontos 6 e 8 dos não indiciados, mas o certo é que a finalizar a fundamentação, a decisão recorrida refere a invocação do princípio in dubio pro reo, reportando-se a dação de elementos do processo. Concluindo: não é possível a convolação pretendida, atendendo a que estamos face a crimes diversos, tutelando bens jurídicos diferentes, a que se alia a circunstância de na facticidade indiciada não se incluir o elemento subjectivo da nova incriminação. O arguido no requerimento para abertura de instrução, procurando contrariar a acusação, estava naturalmente limitado aos factos imputados e ao crime indicado, e não outro, não podendo ser surpreendido por uma outra qualificação, por um crime diverso, fora do quadro do momento temporal a que alude o artigo 303.º do CPP. É de improceder o recurso.
Decisão
Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça, em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se a decisão recorrida. Sem custas. Lisboa, Escadinhas de São Crispim, 12 de Dezembro de 2018.
Raul Borges (Relator) Manuel Augusto de Matos
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