Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
30/16.0PEGMR.G1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO PEREIRA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PENA DE PRISÃO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
MEDIDA DA PENA
PENA SUSPENSA
REGIME DE PROVA
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO O RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / DISPOSIÇÃO PRELIMINAR / FINALIDADES DAS PENAS E DAS MEDIDA DE SEGURANÇA / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA.
Doutrina:
- Eduardo Maia Costa, O crime de tráfico de estupefacientes: o direito penal em todo o seu esplendor, Revista do Ministério Púbico, Abril/Junho 2003, n.º 94, p. 91 e ss.;
- Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, p. 248;
- Maria Fernanda Palma, Consumo e tráfico de estupefacientes e Constituição: absorção do Direito Penal de Justiça pelo Direito Penal Secundário?, Revista do Ministério Público, Out/Dez 2003, n.º 96, p. 21 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 40.º, N.º 1 E 71.º.
LEGISLAÇÃO DE COMBATE À DROGA, APROVADO PELO DL N.º 15/93, DE 22 DE JANEIRO: - ARTIGO 21.º, N.º 1.
Sumário :
I -     Na concretização da medida da pena de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, 22-01, deve atender-se a qualidade do estupefaciente, grau de pureza, quantidade de produto e montante de dinheiro apreendidos provenientes da venda de droga, integração familiar e social e existência de antecedentes criminais.

II -    Apesar da heroína se tratar de uma droga dura, ter efeitos muito nefastos na saúde pública e da venda pelo arguido se ter alongado durante um ano, sopesando que a) o grau de pureza – 9,2% - é menos agressivo do que a generalidade traficada em Portugal – entre 14,3% e e 19,5% -; b) o princípio da proporcionalidade (Portugal é atualmente um importante entreposto de trânsito de estupefacientes, existe uma maior oferta de opiáceos, nomeadamente pela oferta na darknet, devendo lograr-se uma diferenciação de penas que se ajuste à amplitude do tipo e gravidade de comportamentos subsumíveis no tráfico); c) a conduta do arguido é subsumível no denominado “tráfico de rua”; d) os compradores correspondiam a um universo circunscrito às redondezas do bar onde trabalhava o arguido; e) abasteceram-se um número pouco elevado de consumidores; f) não houve recurso a meios e procedimentos sofisticados; g) o arguido está integrado social, familiar e social e é primário; é excessiva a pena aplicada pelo Tribunal da Relação - 5 anos e 3 meses de prisão - , sendo proporcional e ajustada, ao invés, a condenação numa pena de 5 anos de prisão, ligeiramente superior à pena de prisão em que tinha sido condenado no tribunal de 1.ª instância - 4 anos e 9 meses de prisão.

III -   Deve suspender-se a execução da pena de prisão, tal como o tinha feito o tribunal da 1.ª instância, uma vez que a inexistência de antecedentes criminais do arguido, a sua idade - 57 anos de idade -. a boa integração laboral, social e familiar, e o facto de ter sofrido 10 meses de prisão preventiva, permite um juízo de prognose positivo no que se reporta a uma reintegração em liberdade. A suspensão deve corresponder à medida da pena aplicada – 5 anos – e sujeita a um regime de prova a definir pela DGRSP, incluindo, necessariamente, a proibição do arguido acompanhar e frequentar locais conotados com o consumo, compra e venda de estupefacientes.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório

1.1 - Por acórdão do Tribunal Coletivo do Juízo Central Criminal de ..., de 15 de maio de 2018, foi o arguido AA condenado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 4 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova.

Interposto recurso pelo Ministério Público viria esta pena a ser agravada pelo Tribunal da Relação de ... que, por acórdão de 28 de janeiro de 2019, elevou a pena imposta ao arguido para 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.


1.2 - Inconformado vem agora o arguido recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, pelas razões sintetizadas nas conclusões da sua motivação de recurso:

“(…)

1.   Afigura-se ao Recorrente AA que o douto Acórdão prolatado em 28.01.2019, o qual entendeu não confirmar a decisão de 1ª instância, a qual condenara o recorrido na pena de prisão de 4 anos e 9 meses, suspensa na sua execução por igual período,  condenando antes aquele em pena de prisão superior, no caso, em pena de prisão de 5 anos e  3 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21 n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro e Tabela Anexa I-A e I-B do mesmo diploma legal e art.º 14 n.º 1 do Código Penal, carece de fundamento de facto e de direito;

2.      Entendeu o Tribunal ad quem a aplicar ao arguido AA a pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21 n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, por esta pena, ao contrário da decisão originária recorrida, não afrontar os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas (art. 18º, n.º 2, da Constituição), nem as regras da experiência, antes se apresentando, a este Tribunal ad quem, como adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, sem ultrapassar, no respetivo entendimento, a medida da culpa;

3.      Salvo o devido respeito, que é muito, devido e merecido, andou mal o Venerando Tribunal da Relação de ... em agravar a pena de prisão de 4 anos e 9 meses aplicada ao aqui Recorrente em 1ª Instância, elevando-a para 5 anos e 3 meses de prisão, em circunstâncias e com fundamentos que em concreto são contrários aos fins das penas e às concretas necessidades de prevenção geral e especial. Acresce que, por falta de pressuposto formal, aquela agravação importou a impossibilidade da suspensão da execução da pena, questão que não foi, aliás, devidamente apreciada pelo Tribunal ad quem;

4.      A decisão da Relação de ..., é, nas concretas circunstâncias, conforme supra referido, contrária ao fim das penas e posterga aquilo que alega pretender alcançar;

5.      Entende o Tribunal ad quem que este crime dificulta a inserção social dos consumidores, possuí elevados efeitos criminógeneos, gera outro tipo de criminalidade, sendo que por via disso, postula elevadas necessidades de prevenção geral, muito por conta da frequência com que é cometido;

6.      Gera por isso alarme social, insegurança sendo considerado um flagelo e uma praga social;

7.       Ora, em relação a este argumento, e salvo o devido respeito todas estas circunstâncias e factores, supra descritos, devem refletir-se na medida da pena, mas não lhe deve ser atribuída a magnitude que lhe está a ser atribuída, uma vez que ao fazê-lo está aquele Tribunal ad quem, com o devido respeito, está a sobrevalorizar ou duplicar o peso que a aquelas têm e a ultrapassar o limite da concreta culpa;

8.       Quando o legislador fixou a moldura penal a aplicar ao crime de tráfico de estupefaciente p.p. pelo art. 21º do DL. 15/93 de 21 de janeiro, entre 4 a 12 anos de prisão, teve já, e salvo o devido respeito em conta, aquelas circunstâncias e as necessidades de prevenção geral descritas supra;

9.       Concretizando, se atentarmos às molduras previstas nos mais diversos crimes, no nosso Código Penal, verificamos que a moldura penal aplicada no presente caso, é já das mais elevadas, chegando a, comparativamente com crimes praticados contra a vida (v.g. Homicídio Privilegiado, punível com pena de prisão de 1 a 5 anos), ser superior a 3 anos no seu limite mínimo e a quase 10 no seu limite máximo;

10.     Em suma, é entendimento do Recorrente, que tal argumento não é susceptível de fundamentar um agravamento da pena aplicada, uma vez que conforme se refere supra, o mesmo já foi ponderado na tipificação do crime em apreço e para a determinação de uma das mais altas molduras penais contidas no Sistema Penal português;

11.     Aliás, tal argumento foi ponderado e utilizado pelo Tribunal de 1ª Instância, e não impediu – e bem – aquele de aplicar uma pena de 4 anos e 9 meses de prisão ao arguido;

12.     No que se refere ao considerável grau de ilicitude do comportamento do Recorrente - que o Tribunal de 1ª Instancia considerou como mediano, e a nosso ver, bem - pelo facto de este ter praticado tais factos durante de um ano, bem como pelo facto de ter na sua posse, em casa, numa gaveta da mesinha de cabeceira do seu quarto 89,312g, e cerca de 5.360 euros, guardados numa outra gaveta do seu quarto, sempre se dirá que mais uma vez parece, ao aqui recorrente, que o Tribunal ad quem terá sobrevalorizado, para além do razoável, a factualidade dada como provada;

13.      Na verdade, o arguido não fazia do tráfico de droga um modo de vida, (aliás foi dado como provado que era chefe de cozinha, trabalhando regularmente) que tenha iniciado na sua juventude, e tenha perdurado até ao presente, ou seja, até à idade de 56 anos;

14.      Por outro lado, se atentarmos a todos os condicionalismos que rodeiam a prática deste crime, bem como aqueles que se verificaram no dia das buscas (ou seja posse de cerca de 90 g de heroína, e cerca de 5.000,00 € em dinheiro), constatamos que quando comparadas com os termos e as dimensões das apreensões às quais ocorrem em muitos outros processos, as mesmas - as deste processo - assumem muito pouca relevância, sem menosprezar esta última;

15.     Na verdade, diariamente são levadas a cabo operações policiais, que conhecemos - o aqui signatário - no exercício profissional ou que são  divulgadas pela comunicação social, em que ocorrem apreensões não de gramas, mas de quilos ou até toneladas de droga, de vários tipos, associadas à posse de armas, grandes quantias de dinheiro (e não 5.000,00€), e ainda veículos automóveis de grande cilindrada, muitas vezes suportadas por verdadeiras estruturas organizacionais, com hierarquias bem definidas, o que de todo não é o caso dos autos;

16.      Serão estes casos comparáveis com o dos presentes autos? Não estaremos, in casu, perante uma conduta criminosa muito próxima do chamado “tráfico de rua”? 

17.      Na verdade, resultou dos factos dados como provados pelo Tribunal de 1ª Instância que os meios utilizados pelos arguidos na sua actividade de traficantes que o modus operandi era simples e com recurso a meios sem qualquer sofisticação: encontro em local escolhido para entrega do produto, não tendo sido apreendidos quaisquer instrumentos usados no tráfico, para além do material para doseamento da droga;

18.     O Recorrente, juntamente com o co-arguido, actuavam sozinhos,  sem qualquer  estrutura organizativa;

19.      No que concerne ao argumento que versa sobre o facto do produto estupefaciente se tratar de heroína e por via disso, ser considerada uma droga dura  - apesar de inexistir qualquer destrinça por parte do legislador entre drogas duras e drogas leves – a verdade é que, e como tem vindo a ser entendido por este Venerando Tribunal de Recurso, esta distinção não pode constituir critério, muito menos decisivo ou exclusivo para determinação da medida da pena a aplicar, sendo sempre necessário fazer apelo ao principio da proporcionalidade;

20.     Ora, e tendo em conta aquilo que supra se alegou (v.g. actuação isolada, por curto período de tempo, sem qualquer estrutura organizativa e hierárquica) sobre todo circunstancialismo que rodeou a prática deste crime, a verdade é que, conjugando este critério com as demais, que muito atenuam a culpa do Recorrente, bem como o grau da ilicitude, constatamos que em muito aqueloutros se sobrepõem a este critério sobre a qualidade do produto, tornando-o muito menos decisivo para a determinação da pena, nos termos em que o Venerando Tribunal da Relação o fez;

21.      Por outro lado, é entendimento do Recorrente que, e salvo o devido respeito, não fez o Tribunal ad quem uma correcta ponderação sobre as circunstâncias atenuantes que militam a favor do Recorrente para aplicação da pena sem ultrapassar a medida da culpa;

22.      Mas mais, e salvo o devido respeito, o Tribunal Recorrido não só não fez uma correcta ponderação sobre as circunstâncias atenuantes, como nem sequer fez referencia à existência das mesmas, parecendo ignorá-las;

23.     O Tribunal a quo fundamentou a determinação da pena concreta quanto ao Recorrente, relevando como circunstâncias atenuantes: O grau de ilicitude mediano atento o período de tempo em que o Recorrente desenvolveu a sua conduta (cerca de 1 ano), a quantidade e a natureza do produto detido, as quantidades vendidas em cada transacção terem como contrapartida o pagamento de 5 €, as transações serem efetuados a consumidores e não a revendedores e a ausência de uma estrutura especialmente organizada; A sua inserção familiar e profissional; A ausência de antecedentes criminais; O seu passado de trabalho regular;

24.      Da análise de todas estas circunstâncias, e da apreciação feita pelo Tribunal ad quem, constatamos que em lado algum foi tida em conta a inserção familiar e profissional do recorrente, o seu passado de trabalho regular, o reduzido período de tempo em que desenvolveu a sua conduta, ou a ausência de uma estrutura organizativa, bem como a venda do produto não ser efectuada a revendedores, mas apenas diretamente a consumidores, em reduzidas quantidades, e com contrapartidas de baixo valor;

25.     Limitou-se o Tribunal  ad quem a reproduzir tais atenuantes aquando da transcrição do recurso interposto pelo Ministério publico, não tendo, contudo feito a sua apreciação;

26.      Mas mais, não só não fez a apreciação de tais atenuantes, como subvalorizou, e salvo o devido respeito em demasia, as atenuantes apreciadas.

27.      O Tribunal ad quem sobrevalorizou o facto de o Recorrente à data da prática do crime estar inserido familiar e profissionalmente e ainda assim ter cometido o mesmo. Não devia ignorar essa realidade, mas deveria antes ter tido em conta que essa circunstância, e o facto de, apesar de essa integração não ter impedido de ter praticado aquele, favorece contudo atualmente, e face à evolução da sua personalidade, a formação de um juízo de prognose favorável à reinserção do Recorrente, tendo em conta o carácter ressocializador das penas, o que por si só indicia que o legislador está mais preocupado com o futuro do recorrente do que com o seu passado, pretendendo que aquele esteja socialmente integrado que socialmente desinvestido recluído num estabelecimento prisional;

28.      Por outro lado, e quanto ao facto de não ter sido levado e conta o passado de trabalho regular do Recorrente, entende este que esta circunstância atenuante configura um importante elemento para avaliar das concretas necessidades de prevenção especial - sem prescindir ter cometido o crime quando já o fazia - que assim ficam especialmente reduzidas, uma vez que conjuntamente com a sua inserção familiar e profissional, e a evolução da sua personalidade, e o impacto que aquele já sentiu com a sua reclusão em prisão preventiva à ordem destes autos, sentindo na carne as consequência dos seus atos e do seu comportamento desconforme ao direito, nos permitem antever que o condenado não reincidirá neste tipo de comportamento criminoso, uma vez que o Recorrente não vivia nem viveu, e poderá acreditar-se que não viverá da venda de droga;

29.      O mesmo se poderá dizer da apreciação feita pelo Tribunal ad quem quanto à  inexistência de antecedentes criminais. É entendimento do Recorrente que no seu caso especifico, a ausência de antecedentes criminais assume particular relevância e não pode ser desvalorizado, como foi, pelo Tribunal recorrido;

30.      Na verdade se tivermos em conta que a esperança média de vida para os Homens em Portugal está fixada em cerca de 80 anos de idade, temos que o arguido à data dos factos com 56 anos, passou quase 2/3 da sua vida sem cometer qualquer crime, o que tudo é bem diferente se tivesse 18, 20, ou 25 anos;

31.     Ou seja, a inexistência de antecedentes criminais, não pode, nem deve ser desvalorizada, mais a mais que durante cerca de 2/3 da sua vida o recorrente adoptou uma conduta conforme o direito, sendo certo que errou, mas que o fez pela primeira - e única - vez, circunstância essa que tem que ser uma atenuante e uma circunstância a considerar a favor do recorrente, e que não se pode desvalorizar ou ser subvalorizada como o foi pelo tribunal Recorrido;

32.      Por outro lado, valorizou o Tribunal recorrido, o facto do Recorrente não ter interiorizado o desvalor da conduta e consequentemente não ter demonstrado a capacidade de autorresponsabilização ou qualquer arrependimento;

33.      Alicerçou este argumento no facto do arguido ter negado os seus comportamentos em sede de 1ª interrogatório judicial, imputando a atividade de tráfico exclusivamente ao coarguido, bem como no facto de no julgamento ter optado pelo silêncio;

34.      Ora, salvo o devido respeito, não pode o Recorrente deixar de discordar de tal argumentação. Em primeiro lugar ao optar pelo silêncio em sede de julgamento tal facto não pode como, salvo devido respeito, estar a ser tomado em linha de conta para desfavorecer o Recorrente, sem prescindir poder ser considerado esse silêncio na medida da pena, na justa medida que não confessou o crime e não praticou naquela sede atos demonstrativos de arrependimento;

35.      Mas não pode essa falta de arrependimento desfavorecer o arguido, não podendo contudo ser levado em conta como atenuante, como não foi, para a escolha e determinação da medida da pena, ou pelo menos, apenas deveria ser sobrevalorizado para constituir uma atenuante;

36.     Em momento algum do acórdão proferido pela 1ª Instância, ficou dado como provado que o Recorrente tenha praticado atos demonstrado falta de arrependimento, tendo o Tribunal a quo  apenas retirado essa ilação do facto do Recorrente ter optado pelo silêncio em sede de audiência de julgamento;

37.      Já quanto ao facto de constituir uma agravante a não interiorização do desvalor da conduta, não pode o Recorrente deixar de dizer que desde a sua reclusão à ordem deste processo - esteve preso em prisão preventiva 10 meses -  e após a sua libertação, o recorrente teve uma evolução positiva da sua personalidade, o que inclusivamente permitiu ao Tribunal a quo fazer um juízo prognose positivo, tendo sido capaz de interiorizar os erros por si cometidos, as consequências dos seus actos – não só para si, mas também para terceiros, vítimas e familiares – e a necessidade e dever de conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer novos crimes, tendo retomado a sua vida profissional, social e familiar;

38.       No que se refere à circunstância agravante que consiste no facto do Tribunal Recorrido considerar que o arguido assumia uma postura de “dono do negócio”, sempre se dirá que a mesma parece estar em contradição com a matéria de facto dada como provada, dado que em lado algum do acórdão proferido em 1ª Instância é referido tal facto, bem como pelo contrário se faz referência e se dá como provado que os arguidos “repartiam os lucros”;

39.       Aliás, e salvo o devido respeito, também não será o facto de “permitir que o coarguido pernoitasse numa casa por si arrendada” que poderá prejudicar o arguido;

40.      Ou seja, não tendo sido dado como provado que o Recorrente fosse o “dono do negócio”, existisse uma hierarquia clara e definida, obedecendo um dos co-arguidos às ordens do outro, e que tivessem lucros ou benefícios distintos,  mas sim e apenas que cometeram o crime em co-autoria e tendo ficado provado que entre os coarguidos se estabeleceu sim uma relação de amizade, o facto do Recorrente permitir que o coarguido (dependente de heroína e de álcool) pernoitasse numa casa por si arrendada, não pode ser considerado um circunstância reveladora de qualquer ascendente, mas sim pode, como deve, ser tomado em conta como circunstância atenuante, porque demonstra que o recorrente nas circunstâncias em causa agia, sem prescindir a sua reprovável conduta, com humanidade para com aquele que era seu parceiro naquela atividade ilícita;

41.      Na verdade, se atentarmos à matéria de facto dada como provada na 1ª Instância, verificamos que o coarguido era uma pessoa fortemente dependente do álcool e drogas, não tendo qualquer apoio familiar (com a morte do Pai, Mãe, e irmão mais velho), não tendo uma casa com condições de habitabilidade. Estas foram as razões que levaram a que o Recorrente ajudasse e permitisse que este pernoitasse numa casa por si arrendada;

42.      Acresce que, salvo devido respeito, as razões e fundamentos que invocados pelo Tribunal ad quem para agravar a pena, não lograram pôr em crise a decisão do Tribunal a quo, e o juízo de prognose positivo que aquele logrou fazer, nem as concretas necessidades de prevenção geral e especial que se verificam no caso sub judice, e que resultam da factualidade assente, resultando essa agravação numa arbitrariedade que resultará na destruição de um projeto de vida e que se manteve conforme ao direito após a pratica do crime, sendo que aquele crime e aquela conduta desconforme ao direito, uma excepção num trajeto  positivo, trajeto esse que não deverá ser implodido, com uma reclusão que a ninguém beneficiará e que importará um desinvestimento social do condenado e a sua reclusão num estabelecimento prisional que fará conviver o condenado com um sistema que não zela pela reintegração social, antes promove de facto o convívio entre reclusos num ambiente pernicioso que genericamente origina fatores de risco, sendo conhecidas as elevadas taxas de reincidência;

43.  Por todo o exposto, entende o Recorrente como desajustada e desproporcional a agravação da pena determinada pelo Tribunal da Relação de ... e por ajustada e proporcional a pena aplicada pelo Tribunal de 1ª Instância, esta fixada em 4 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução, uma vez que manifestamente a ameaça da prisão, e a prisão preventiva entretanto sofrida, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição;

44.   Os fins das pena, nos termos definidos pelo nosso legislador, têm como pedra angular a integração social, que já acontece presentemente em liberdade quanto ao condenado/recorrente AA, e não a sua desestruturação social, o que acontecerá ser este tiver que regressar à prisão para cumprir a pena de prisão agravada e aqui objecto de recurso;

45.   Eram três as grandes questões a apreciar pelo Tribunal Recorrido: a primeira a de saber se a medida da pena de prisão aplicada ao arguido se mostrava fixada de harmonia com os critérios legais ou se devia ser agravada; a segunda a de saber se, caso fosse fixada em medida não superior a 5 anos, saber se essa pena devia ser suspensa na sua execução, ou se se impunha o seu cumprimento efectivo; a terceira, se em caso de suspensão da execução, saber se a mesma devia ser condicionada à imposição ao arguido às regras de conduta de não acompanhar pessoas nem frequentar locais conotados com o consumo, compra e venda de estupefacientes;

46.   Sucede que, tendo a pena aplicada ao Recorrente sido agravada, elevando-a para 5 anos e 3 meses de prisão, ficou prejudicada a apreciação das duas outras grandes questões pelo Tribunal a quo  por falta do pressuposto formal para a suspender na sua execução;

47.   Ora, entendendo o Recorrente que a pena a  aplicar deveria ser a que foi aplicada em 1ª Instância, ou seja, 4 anos e 9 meses de prisão, deve ser equacionada e deve ser aplicado inequivocamente o instituo da suspensão da execução da pena – como o  foi, e bem, pelo Tribunal de 1ª Instância;

48.    Apreciando o caso concreto, a valoração do conjunto da matéria apurada, nomeadamente o grau de ilicitude mediano, a sua inserção familiar e profissional, atendendo à inexistência de antecedentes criminais, o seu passado de trabalho regular, e tendo, ainda, em consideração as exigências de prevenção geral em matéria do crime em causa, verifica-se que, tendo ainda em conta que o Recorrente cumpriu já 10 meses em prisão preventiva, a simples censura dos factos e a ameaça da pena de prisão, apresentam as sobreditas virtualidades, sendo  possível emitir quanto ao Recorrente um juízo de prognose favorável, o que desde já se refere;

49.  Ora, é entendimento do Recorrente que deverá, na sequência da procedência do presente Recurso no que concerne à manutenção da pena aplicada pelo Tribunal de 1ª Instância, ser a mesma suspensa na sua execução;

50.      Aliás, decidir pelo ingresso e regresso do Recorrente a um estabelecimento prisional será expô-lo, conforme supra referido, a um mundo de criminalidade e violência, e esquecer o fim ressocializador e de reintegração;

51.   Com o devido respeito que é muito, e no caso concreto devido e merecido, o Tribunal da Relação não viu, nos presentes autos o homem que o Tribunal de 1ª Instância viu, marcado por um passado difícil, (família de condição modesta com 11 irmãos, emigração para ... na adolescência, trabalhador da construção civil, desenvolvimento de uma pequena empresa de decoração de interiores, até ao exercício nos últimos anos da atividade de chefe de cozinha), com 3 filhos com quem mantém um relacionamento afectivo, sem quaisquer antecedente criminais, mas apenas o reflexo negativo deste, que resulta da pática por este deste único  - e reitera-se no único, sem qualquer desvalorização insíta - crime cometido pelo Recorrente;

52.      Face a este circunstancialismo e a toda a factualidade dada como provada e vertida no douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo (e à reclusão que o Recorrente vivenciou e que o fez refletir sobre o seu percurso de vida e sobre a necessidade de adoptar um comportamento conforme o direito) parece-nos de todo possível, se não mesmo imperativo, fazer um juízo de prognose favorável, e ainda, tendo em conta as concretas necessidades de prevenção geral e especial, as quais (estas últimas) se foram atenuando sendo atualmente diminutas, pelo que é nosso entendimento que a  deve ser determinada a suspensão da pena de prisão aplicada, uma vez que a sua não aplicação acarretará uma interrupção grave e irremediável das relações familiares, sociais e profissionais que o Recorrente tem, contrária aos fins das penas e desajustada às concretas necessidades de prevenção geral e especial;

53.      Pelo exposto, cremos que a simples censura da ameaça de prisão decorrentes do regime da suspensão, são suficientes para acautelar as concretas necessidades de prevenção especial do caso vertente;

54.   Termos em que, se deverá revogar o douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de ...,  reduzindo-se a pena de prisão aplicada para 4 anos e 9 meses, mantendo-se a suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido em 1ª Instância;

55.  Disposições violadas: As disposições referidas supra, nomeadamente os artigos 50º, 53º, 70º e 71º, do Código Penal e artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e 21º da Lei 15/93. 

Termos em que, se deverá revogar o douto Acórdão recorrido nos termos e pelas razões supra expendidas, mantendo-se a pena de prisão aplicada ao arguido em 1ª Instância, suspensa na sua execução.

(…)”.


1.3 - Respondeu a Ex.ma magistrada do M.º P.º que concluiu no sentido de que não merece censura o acórdão recorrido, devendo por isso ser negado provimento ao recurso.


1.4 - Subiram os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, tendo o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto acompanhado a posição do Ministério Público no Tribunal da Relação.


1.5 - Colhidos os vistos foram os autos à conferência, havendo que conhecer e decidir.


II – Fundamentação

2.1 - A condenação do arguido fundou-se nos seguintes factos dados como provados:

“(…)

DA ACUSAÇÃO:

1.1. Desde, pelo menos, meados do ano de 2016 e até ao dia 10/07/2017, os arguidos AA e BB, de comum acordo e em conjugação de esforços, dedicaram-se à venda de substâncias estupefacientes, mais concretamente heroína, a terceiros, obtendo em contrapartida montante pecuniário.

1.2. Na divisão de tarefas que entre ambos estabeleceram, o arguido AA armazenava o produto estupefaciente, heroína, na sua residência, sita Rua ..., e no estabelecimento comercial denominado Taberna ..., onde trabalhava, produto estupefaciente que naqueles locais era doseado, e aí era recolhido pelo coarguido BB, que procedia à venda direta a terceiros.

1.3. O arguido BB contactava diretamente com os consumidores ou era por estes contactado, entregando-lhes a heroína, mediante o pagamento de dinheiro, repartindo, depois, ambos os arguidos, os lucros assim obtidos.

1.4. A generalidade dos indivíduos a quem os arguidos nesta sua atividade conjunta vendiam substâncias estupefacientes (heroína) destinavam-nas, depois, ao seu próprio consumo.

1.5. Nos contactos que mantinham com terceiros, na atividade de venda de heroína, o arguido BB fazia uso de um telemóvel da marca Alcatel, com o IMEI ..., onde operava com um cartão SIM da operadora Vodafone.

1.6. No dia 16/11/2016, pelas 16:00 horas, na Rua ..., o arguido BB trazia consigo quatro pacotes de heroína, com o peso líquido de 0,204 gramas e vinte e quatro euros (24€) em notas e moedas do Banco Central Europeu.

1.7. No dia 05/02/2017, pelas 00:05 horas, na Rua ..., o arguido BB trazia consigo heroína com o peso líquido de 0,160 gramas.

1.8. No período temporal a que se alude em 1., os arguidos, através da entrega direta pelo arguido BB, venderam heroína, mediante o pagamento de um preço, para além de outros:

a) a ..., pelo menos, no dia 16/11/2016, 1 panfleto de heroína, com o peso de líquido de 0,028 gramas, pelo preço de € 5, o que aconteceu na rua...;

b) a CC, no ano de 2017, esporadicamente, em número não inferior a duas, sendo de cada vez, 1 panfleto de heroína, pelo preço unitário de € 5, o que acontecia em ... designadamente, na Rua ...;

c) a ..., no dia 10/07/2017, ..., em ..., um pacote de heroína, com o peso líquido de 0,037 gramas, mediante o pagamento de €5, e em 2 outras ocasiões anteriores, 1 pacote de heroína de cada vez, mediante o pagamento do correspondente preço unitário de €5, o que aconteceu no centro de...;

g) a DD, no dia 27.02.2017, um pacote de heroína, com o peso de 0,060 gramas;

h) a ..., entre os meses de Fevereiro e Julho de 2017, em diversas ocasiões, 1 pacote de heroína de cada vez, pelo preço de €5, o que acontecia, habitualmente, junto do Conservatória do Registo Civil l e junto do ..., em ...

i) a ..., entre Janeiro de 2017 e 10/07/2017, em 3 ocasiões, e 1 pacote de heroína de cada vez, pelo preço unitário de €5, o que aconteceu na zona circundante da Conservatória do Registo Civil de ...;

j) a ..., entre meados do ano de 2016 até Março de 2017, por diversas ocasiões, em regra, aos fins-de-semana, 1 ou 2 pacotes de heroína, de cada vez, mediante o pagamento do preço unitário de €5, o que acontecia, habitualmente, junto do ...;

l) a ..., entre Janeiro de 2017 e 10/07/2017, em 7 ou 8 ocasiões, 1 ou 2 pacotes de heroína de cada vez, mediante o pagamento do preço unitário de €5, o que acontecia, em regra, na zona histórica da cidade de ....

1.9. No dia 10/07/2017, pelas 12:15 horas, no já referido estabelecimento comercial denominado Taberna ..., o arguido AA trazia consigo 23 pacotes de heroína, com o peso líquido global de 1,007 gramas, 8 pacotes de heroína, com o peso líquido global de 0,357 gramas, e um telemóvel da marca Mobiwire, com o IMEI ..., onde operava um cartão SIM da operadora Vodafone.

1.10. Nas circunstâncias de tempo e lugar acima assinaladas, o arguido BB trazia consigo 11 pacotes de heroína com o peso líquido global de 0,472 gramas, €35 (trinta e cinco euros) em notas do Banco Central Europeu e um telemóvel da marca Alcatel, com o IMEI ..., onde operava um cartão SIM da operadora Vodafone.

1.11. O arguido BB tinha, ainda, no interior do seu casaco, que se encontrava guardado num armário existente no estabelecimento comercial, 2 pacotes de heroína, com o peso líquido global de 0,127 gramas.

1.12. No dia 10/07/2017, pelas 14:20 horas, o arguido AA tinha no interior da sua residência, sita na Rua ..., em ..., mais propriamente no seu quarto, os seguintes objetos:

a) Em cima da mesa-de-cabeceira, um papel com restos de heroína com o peso de 0,349 gramas, um cartão com os dizeres “Poupamais”, contendo resíduos de produto estupefaciente, um doseador artesanal, uma tesoura e um isqueiro;

b) Em cima da mesa-de-cabeceira, no interior de um recipiente metálico, vários recortes em plástico e várias pontas de embalagens de acondicionamento de produto estupefaciente;

c) Em cima da mesa-de-cabeceira, no interior de um tupperware, vários recortes de plástico e um isqueiro;

d) Na gaveta superior da mesa-de-cabeceira, 18 pacotes de heroína com o peso líquido global de 89,312 gramas, com grau de pureza de 9,2%, que dava para 82 doses, calculadas segundo a portaria 94/96, €423,89 (quatrocentos e vinte e três euros e oitenta e nove cêntimos) e um telemóvel da marca Alcatel, modelo One Touch 1052G, com o IMEI ..., onde operava um cartão SIM da operadora Yorn;

e) No interior da segunda gaveta da mesa-de-cabeceira, um saco plástico que continha no seu interior a quantia de € 5.360,00 (cinco mil e trezentos e sessenta euros);

f) No interior do guarda-fatos, um garrafão contendo no seu interior € 270,00 (duzentos e setenta euros) e uma carteira de cor castanha, contendo no seu interior € 460,00 (quatrocentos e sessenta euros).

1.13. No dia 10/07/2017, pelas 16:10 horas, no interior da residência sita na rua de Vila Verde, n.º 55, em ..., onde então pernoitava, BB tinha, no interior de uma caixa de medicamentos de marca “Triapida”, € 80,00 (oitenta euros) em notas do Banco Central Europeu.

1.14. O telemóvel e cartão apreendidos ao arguido BB eram por este utilizados para estabelecer contactos na atividade de tráfico que os arguidos desenvolviam.

1.15. As quantias monetárias apreendidas aos arguidos - com exceção da quantia de 270,00 €,contida num garrafão, e da quantia de € 460,00 contida numa carteira de cor castanha, ambos encontrados no interior do guarda - fatos do quarto do arguido AA, referidas em 1.12. f) supra, - foram obtidas pelos arguidos como contrapartida da venda a terceiros de substâncias estupefacientes.

1.16. Os restantes objetos apreendidos, designadamente, o doseador artesanal, a tesoura, os isqueiros, os recortes em plástico e as pontas de embalagens de acondicionamento de produto estupefaciente eram usados pelos arguidos no negócio de compra e venda de produto estupefaciente, concretamente na sua preparação, corte e acondicionamento.

1.17. Os arguidos destinavam o produto estupefaciente a ser distribuído a um número indeterminado de consumidores, obtendo uma contrapartida monetária.

1.18. Os arguidos dedicaram-se à venda e entrega de heroína a consumidores, recebendo contrapartida monetária, e desenvolveram esta atividade, não obstante conhecerem as características estupefacientes das substâncias que detinham e transacionavam, assim como as consequências nefastas e aditivas que as mesmas provocavam nas pessoas que as consumiam.

1.19. Apesar de estarem cientes da natureza estupefaciente dos produtos em causa, os arguidos, de comum acordo e em conjugação de esforços, definindo as concretas tarefas que a cada um deles cabiam, quiseram e efetivamente lograram possuí-los e entregá-los a troco de dinheiro aos indivíduos que os pretendessem adquirir.

1.20. Agiram, assim, de forma livre, deliberada, conjunta e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Da contestação apresentada pelo arguido AA:

1.21. A quantia monetária de 270 €, em moedas, contidas num garrafão, constituíam poupanças da companheira do arguido.

1.22. A quantia de € 460,00 contida numa carteira de cor castanha, (quatrocentos e sessenta euros), encontradas no interior do guarda-fato do quarto do arguido AA era proveniente do trabalho da companheira do arguido.

Mais se provou:

1.23. Não consta do certificado de registo criminal do arguido AA a prática de qualquer ilícito penal.

1.24. O arguido AA desenvolveu-se no seio de agregado familiar de origem, composto pelos pais e onze irmãos, tendo a família emigrado para ... na época da adolescência do arguido, onde o pai trabalhou como operário da Citroen e a mãe como empregada doméstica.

1.25. Em ..., o arguido concluiu um curso de formação no ramo imobiliário, após o que ingressou no mercado de trabalho, desenvolvendo atividade profissional no ramo imobiliário e na construção civil e depois desenvolvendo uma pequena empresa de decoração de interiores.

1.26. À data dos factos o arguido AA residia em casa arrendada, sita na Rua ..., em ..., constituindo agregado familiar com a sua companheira.

Exercia atividade profissional na Taberna ..., anteriormente sua propriedade e agora propriedade de seu filho, como chefe de cozinha, onde a sua companheira também trabalha.

1.27. Tem 3 filhos de anteriores relações que estabeleceu, mantendo com estes relacionamento afetivo.

1.28. Há cerca de quatro anos foi vítima de enfarte do miocárdio, tendo tido um período de convalescença durante cerca de um ano, em que sentiu dificuldade em gerir o seu estabelecimento de restauração, cuja exploração entregou a seu filho.

1.29. Não consta do certificado de registo criminal do arguido BB a prática de qualquer ilícito.

1.30. O arguido BB desenvolveu-se no seio de agregado familiar de origem, de modesta condição sócio-económica.

1.31. O pai faleceu em 1978 e a mãe em 2000.

1.32. Frequentou a escolaridade até ao 6º ano, após o que ingressou na vida profissional.

Foi proprietário de um talho em ... durante cinco anos, e posteriormente trabalhou na mesma área, por conta de outrem, durante mais 4 anos, na mesma localidade, sendo que em 2002 passou a beneficiar do rendimento social de inserção que cessou entretanto.

1.33. Iniciou o consumo de drogas com 16 anos, e de heroína com 18 anos, de que se tornou dependente.

A problemática aditiva teve repercussões negativas na sua vida profissional e pessoal, tendo integrado alguns tratamentos à toxicodependência através do Centro de Respostas Integradas (CRI) de ..., com resultados pouco satisfatórios e que se revelaram inconsequentes, pautados por recaídas.

Há cerca de cinco anos passou também a consumir bebidas alcoólicas em excesso, problemática que se agudizou com a morte do seu irmão, mais velho, também ele consumidor de estupefacientes.

1.34. À data dos factos dos autos, o arguido não desenvolvia atividade profissional de forma regular e enquadrada, era dependente do consumo de heroína e ingeria bebidas alcoólicas em excesso.

Vivia sozinho e habitava ora na casa onde viveu com os pais e irmãos, sem as necessárias condições de habitabilidade, pernoitando frequentemente numa casa arrendada pelo coarguido AA, sita na Rua ....

1.35. Na sequência da medida de coação de obrigação de permanência em comunidade terapêutica, com vigilância eletrónica, que lhe foi aplicada em 24.07.2017, no âmbito destes autos, o arguido BB passou a residir na Clinica ... onde lhe é disponibilizado alojamento e refeições.

Nessa comunidade, o arguido tem apresentado um comportamento normativo e uma adesão satisfatória, estando abstinente do consumo de estupefacientes e de álcool.

1.36. O arguido admitiu os factos de venda direta a terceiros de heroína, no período referido acusação, que a si são imputados, declarando-se arrependido e manifestando a vontade de continuar afastado do consumo de estupefacientes, com a submissão ao tratamento que for considerado necessário.

2. FACTOS NÃO PROVADOS

2.1. DA ACUSAÇÃO

Não se provaram quaisquer outros factos constantes da acusação com relevo para a decisão da causa para além dos supra referidos no item 1.1. a 1.20., designadamente não se provou que:

- o arguido AA fizesse uso, entre outros, do telemóvel da marca Alcatel, modelo One Touch 1052G, com o IMEI ..., onde operava um cartão SIM da operadora Yorn e um ...352441080122211, onde operava um cartão SIM da operadora Vodafone, na atividade de compra e venda de estupefacientes, designadamente para contactar fornecedores ou clientes.

- as vendas de heroína a CC tenham ocorrido entre Novembro de 2016 e meados de 2017, em número não inferior a oito, tendo-se provado apenas o que consta de 1.8. a) da factualidade provada.

- as vendas de heroína a DD, tivessem ocorrido entre Agosto de 2016 até, pelo menos, o dia 10/07/2017, com uma regularidade semanal, 2 a 3 pacotes de heroína, de cada vez, pelo preço unitário de €5, tendo-se apenas provado o que consta de 1.8. g)

- os arguidos tivessem vendido ou cedido heroína aos seguintes indivíduos e nas circunstâncias de tempo e lugar abaixo referidas;

- a ..., entre Outubro de 2016 até, pelo menos, 06/03/2017, com uma regularidade diária, de cada vez, 2 a 3 pacotes de heroína, mediante o pagamento do correspondente preço unitário de €5, o que acontecia, em regra, no Parque ...;

- a ..., entre Dezembro de 2016 e até, pelo menos, 22/03/2017, com uma regularidade diária, de cada vez, 2 a 3 pacotes de heroína, mediante o pagamento do preço unitário de €5, o que acontecia em vários locais do centro da cidade de..., designadamente na rua da...;

- a ..., no decurso do mês de Abril de 2017, em número não inferior a cinco, de cada vez, 1 pacote de heroína, mediante o pagamento do correspondente preço unitário de €3 ou €5, o que acontecia em vários locais da cidade de ..., designadamente na viela de ... e junto à Conservatória do Registo Civil;

- a ..., entre os meses de Maio e Julho de 2017, cerca de 7 vezes, de cada vez, 1 pacote de heroína, mediante o pagamento do preço unitário de €5, o que acontecia, em regra, junto da igreja de S. Francisco, sita no Largo de S. Francisco;

- a ..., entre Maio e Junho de 2017, em 5 ocasiões, de cada vez, 2 pacotes de heroína, mediante o pagamento do correspondente preço unitário de €5, o que acontecia, em regra, na ....

- as quantias monetárias de 270 € contidas num garrafão e a quantia de € 460,00 contida numa carteira de cor castanha, contendo no seu interior € 460,00 (quatrocentos e sessenta euros), encontradas no interior do guarda-fato do quarto do arguido AA tivessem sido obtidas pelos arguidos como contrapartida da venda a terceiros de substâncias estupefacientes.

2.2. Da contestação oferecida pelo arguido AA, não se provaram quaisquer outros factos para além dos referidos em 1.21. e 1.22., nomeadamente não se provou:

- os factos que contrariam ou infirmam a factualidade provada, designadamente não se provou que o arguido não se dedicasse à venda de produtos estupefacientes; em conjunto com o coarguido BB; os pacotes de heroína encontrados no seu bolso no dia 10.07.17 não fossem também propriedade do arguido e lhe tenham sido entregues momentos antes pelo arguido BB, desconhecendo o arguido do que se tratava; as substancias estupefacientes e o material encontrado na sua residência e objeto de apreensão no dia 10 de Julho de 2017 não fossem também propriedade do arguido, pertencendo apenas ao coarguido BB,

- a quantia de € 423,89 € encontrada na residência do arguido fosse proveniente do seu trabalho;

(…)”.

2.2 - O tribunal recorrido fundou a decisão de agravação da pena com base em jurisprudência deste tribunal e nos seguintes considerandos:

“(…)

Como decorre da matéria de facto provada, o arguido, durante cerca de um ano, desde meados de 2016 a 10 de julho de 2017, atuando em coautoria com o arguido BB, dedicou-se à venda de heroína a terceiros, com o intuito de obter proveitos económicos, cabendo-lhe a ele a armazenagem do produto estupefaciente, na sua residência e no estabelecimento de restauração onde trabalhava, locais onde a droga era doseada, sendo o referido coarguido quem contactava diretamente com os consumidores ou era contactado por estes, e lhes entregava as doses individuais, mediante o recebimento do respetivo preço, repartindo, depois, ambos os arguidos, o lucro obtido.

Mais do que o número efetivo de consumidores a quem se apurou que os arguidos venderam heroína (oito), bem como o número de ocasiões em que tal sucedeu em relação a cada um deles (entre uma e oito) e o número de doses vendidas em cada situação (uma ou duas), é sobretudo revelador de um considerável grau de ilicitude, quer a quantidade global de heroína aprendida em poder dos arguidos (91,988 g), com destaque para os 89,312 g que o arguido AA tinha numa gaveta da mesa-de-cabeceira do seu quarto no dia da detenção, quer a quantia monetária total que lhes foi aprendida, comprovadamente resultante da venda de heroína (cerca de € 5.900), com realce para a importância de € 5.360 que o mesmo arguido, nas mesmas circunstâncias, guardava noutra gaveta do seu quarto.

No que concerne à qualidade do produto estupefaciente (heroína), apesar de o legislador não ter instituído a distinção entre drogas duras e leves, ao nível da sociedade existe uma perceção dessa qualificação e classificação, sendo médica e cientificamente reconhecido que os efeitos das ditas drogas duras (a cocaína e, principalmente, a heroína) são bem mais perniciosos, nomeadamente pela habituação e dependência que provocam.

Aliás, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 15/93 assume-se expressamente o propósito de dar um passo no sentido de uma certa gradação de perigosidade das substâncias, reordenando-as em novas tabelas e daí extraindo efeitos no tocante às sanções. Mais se refere que a gradação das penas aplicáveis ao tráfico tendo em conta a real perigosidade das respetivas drogas afigura-se ser a posição mais compatível com a ideia de proporcionalidade, havendo, pois, que atender à inserção de cada droga nas tabelas anexas, o que constitui indicativo da respetiva gradação, pois a organização e colocação nas tabelas segue, como princípio, o critério da sua periculosidade intrínseca e social. O que, todavia, não implica necessária adesão à distinção entre drogas duras e leves.

O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado que a heroína é uma das drogas chamadas duras, às quais se acha associado grande efeito nocivo para a saúde dos consumidores e de grande danosidade social. E tem vindo a entender que embora o apelo à distinção entre drogas duras e leves não constitua critério, muito menos decisivo ou exclusivo, para a determinação da medida da pena a aplicar, tal apelo presta-se a aceitar ou ter presente uma certa gradação da sua perigosidade, daí extraindo efeitos no tocante às sanções penais, de acordo com o princípio da proporcionalidade[ ].

Por seu turno, nas declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório, já que em julgamento optou pelo silêncio, o arguido AA negou os seus comportamentos, procurando antes eximir-se à respetiva responsabilidade, imputando a atividade de tráfico exclusivamente ao coarguido BB, de uma forma perfeitamente inverosímil, a afrontar as mais elementares regras da experiência comum, conforme o Tribunal Coletivo dá conta na motivação da decisão de facto, donde se pode inferir que não interiorizou o mal do crime e, consequentemente, não demonstrou capacidade de autorresponsabilização nem qualquer arrependimento.

Acresce que o arguido AA se posicionava na retaguarda da atividade de tráfico desenvolvida em coautoria com o arguido BB, numa postura de autêntico “dono do negócio”, sem correr os riscos da venda direta aos consumidores, exclusivamente a cargo do coarguido, mas disponibilizando os vários instrumentos necessários ao doseamento da droga, que tinha lugar na sua residência, onde foram apreendidos e a mesma era armazenada.

A integração social, familiar e laboral do arguido AA, bem como o facto de não consumir drogas, contribuem para tornar mais censurável a sua conduta, na mira apenas da obtenção do lucro fácil, à custa do aproveitamento das fragilidades do arguido BB, um toxicodependente, a quem até permitia que pernoitasse numa casa por si arrendada, revelando uma personalidade absolutamente indiferente ao dever ser jurídico-penal.

Por outro lado, não deve ser sobrevalorizada a sua primariedade, porquanto, como o Supremo Tribunal de Justiça tem salientado, à ausência de antecedentes criminais deve ser atribuído um reduzido efeito atenuante, atendendo ao dever geral de todos agirem conforme ao direito.

Posto isto, tendo presente o supra exposto acerca dos fins das penas e da determinação da sua medida concreta, julgamos que a pena encontrada pela primeira instância, situada muito próximo do limite mínimo, do qual se afasta apenas por 9 meses, sem atingir sequer o primeiro oitavo da moldura abstrata, se apresenta como demasiado branda, não expressando uma correta e adequada valoração das circunstâncias atendíveis, uma vez que não representa uma suficiente censura do facto e não constitui, em simultâneo, uma garantia para a comunidade da validade e vigência das normas violadas, sem ultrapassar a medida da culpa.

(…)”.

2.3 - Como escreve a Prof.ª Fernanda Palma, “(…) no tráfico, o que existe de eticamente muito censurável não é tanto o facto de ele ser um elo de uma cadeia de riscos, tal como também a venda de álcool pode ser encarada – isso não seria bastante para tão grave censura -, mas antes o facto de revelar uma específica relação de exploração de outros seres humanos (a utilização da sua saúde física e psíquica para fins económicos). É essa ideia que torna a imagem do traficante diferente da do agente que meramente viola a ordenação social. Todavia, tal relação não é devidamente valorizada pelos modos concretos de proibição legal do tráfico na maioria das legislações”[1].

É porém que adotar as precauções necessárias para que desse juízo crítico se não parta, como adverte Maia Costa[2], para uma retórica celebratória, hiperbólica e apocalíptica, colada a uma perspectiva conservadora e autoritária. É que, enfatizando a questão ética em detrimento do significado do tráfico como elo da cadeia de riscos, corremos o risco de falhar naquilo que a pena tem de finalidade primária, que é a protecção dos bens jurídicos.

Os factores que neste caso levaram ao agravamento da pena assentam essencialmente nos vectores acima referidos, apontando o arguido recorrente como uma espécie de dono do negócio, escudado na atuação de um ator secundário, alcoólico e toxicodependente, poupando-se o arguido à exposição no exercício do comércio ilícito, somadas à natureza e quantidade de produtos traficados. Com efeito tratava-se da venda de heroína, um opiáceo de efeitos devastadores na saúde dos consumidores, indiciando os factos, pelas quantidades de droga apreendida e dinheiro proveniente da venda, que o comércio de tal produto já assumia dimensão de algum relevo.


2.3 - Todavia, algumas das considerações que a este propósito são feitas não têm, salvo o devido respeito, correspondência bastante na matéria de facto. Assim…

É temerário afirmar que o arguido ora recorrente se colocasse numa postura de “dono de negócio” furtando-se aos riscos da venda direta, se com isto se pretende significar que usou co-arguido, suportando este os riscos e ambos os proveitos. Com efeito, resulta cabalmente da matéria de facto que os arguidos “agiram de comum acordo e em conjugação de esforços (1.1 da M.F.) “na divisão de tarefas que ambos estabeleceram” (1.2 da M.F.), não surpreendendo que o co-arguido assumisse as tarefas de venda aos consumidores, dado que não tinha qualquer ocupação. A verdade porém é que o arguido ora recorrente era quem guardava a droga, na sua residência e no estabelecimento onde trabalhava, locais onde o co-arguido a ia recolher (1.2 M.F.), facto que qualquer traficante, ainda que pouco prudente, sabe que não deixaria de captar a atenção das autoridades, como efectivamente veio a acontecer, dado que a detenção de um traficante de rua é em regra precedida de uma actividade mais ou menos longa de vigilância policial.

Também não resulta da matéria de facto que o arguido disponibilizasse os vários instrumentos necessários  ao doseamento da droga. O que se provou foi que “os restantes objectos apreendidos (…) eram usados pelos arguidos no negócio de compra e venda de produto estupefaciente, concretamente na sua preparação, corte e acondicionamento” (1.16 M.F.). Em parte alguma se refere a quem pertenciam tais utensílios.

Por outro lado a matéria de facto não permite afirmar que o arguido tivesse agido “na mira apenas da obtenção do lucro fácil, à custa do aproveitamento das fragilidades do arguido BB, um toxicodependente, a quem até permitia que pernoitasse numa casa por si arrendada”. O que os de factos revelam é uma atuação conjunta e concertada, ignorando-se de quem terá partido a iniciativa, pelo que não legitimam a afirmação de que o arguido se aproveitou das fragilidades do co-arguido e ignorando-se em que condições o co-arguido frequentemente pernoitava  na casa arrendada pelo recorrente.


2.4 - É certo que a heroína é uma droga dura e, não obstante não haver uma diferenciação legal entre drogas leves e duras certo é também que, atento o bem jurídico protegido com a incriminação, a saúde pública, não pode deixar de se considerar mais lesiva uma droga com enorme potencial destrutivo, como é a heroína. Há todavia que ter em conta que o produto apreendido tinha 9,2% de pureza o que, em termos de lesividade o coloca num patamar substancialmente menos agressivo do que a generalidade do que é traficado, quer em Portugal, quer na Europa. Segundo o Relatório Europeu sobre Drogas 2019, produzido pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), o grau de pureza da heroína apreendida situa-se entre 15 e 31% (pag. 26) e no que especificamente se refere a Portugal essa proporção, nas apreensões feitas de 2015 a 2017, variou entre 14,3 e 19,5% (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências - SICAD, Relatório Anual 2017 Situação do País em Matéria de Droga e Toxicodependência, pag. 158).


2.5 - Não pode também deixar de se dar o devido relevo à quantidade de produto e aos montantes de dinheiro apreendidos, provenientes da venda de droga. Contudo o paradigma do tráfico de estupefacientes no nosso país alterou-se profundamente a partir de meados dos anos 90, com a disseminação do tráfico pelas rotas atlânticas, o surgimento de narcoestados na costa ocidental africana e depois com o envolvimento progressivo dos países da Europa de Leste e do Norte de África no comércio de opiáceos. Já mais recentemente associou-se a este incremento da oferta o comércio electrónico, principalmente através da chamada darknet, tendo primariamente por objecto opiáceos sintéticos, havendo ainda a acrescentar o impressionante volume de tráfego aéreo entre Portugal e muitos dos países exportadores de produtos estupefacientes. Sobre esta evolução são bem elucidativos os relatórios do OEDT e do SICAD bem como os relatórios anuais de segurança interna. No contexto desta evolução Portugal transformou-se nos últimos 20 anos num importante entreposto de trânsito, principalmente de cocaína e haxixe, tendo tornando-se também destino de uma maior oferta de opiáceos.

Significa isto que no novo contexto do comércio de estupefacientes é necessário considerar a alteração de paradigma, que em boa verdade a legislação existente não tem ainda na devida atenção, sob pena de se gerar uma satisfação anestesiante baseada na aparência de combate às verdadeiras redes de tráfico e de  ser quebrada a proporcionalidade em matéria de determinação da medida das penas, pela vastíssima amplitude do tipo e da gravidade dos comportamentos puníveis ao abrigo da lei da droga.  .


2.6 - Também se não afigura correto subestimar a integração social, familiar e laboral do arguido AA, bem como o facto de não consumir drogas, e, pior do que isso, concluir que tal contribui para tornar mais censurável a sua conduta. Os problemas de desintegração social ou de toxicodependência podem constituir fator de mitigação de culpa, dependendo das circunstâncias em que o agente tenha caído nessa situação. O que não pode é a culpa ser agravada simplesmente pelo facto de o agente beneficiar de boa integração social, familiar e laboral e não consumir drogas e muito menos a partir daí se concluir que revela uma personalidade indiferente ao dever ser jurídico-penal. Alerta o Prof. Figueiredo Dias para o cuidado “…com que têm de ser manipulados estes factores, dada a particularíssima ambivalência de que são dotados: só em concreto se pode determinar o papel, agravante ou atenuante, que desempenham circunstâncias como as da condição económica e social do agente, a sua idade e sexo, a sua educação, inteligência, situação familiar e profissional, etc., quando conexionadas com o círculo de deveres especiais que ao agente incumbiam[3] (sublinhado nosso). Os mencionados factores revelam que o arguido praticou o facto com intuito meramente lucrativo, algo que não é alheio à generalidade das condutas previstas no art.º 24.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro e que, no confrontado com uma acção sem o referido intuito tem uma carga de censura mais forte, mas que só ganha especial relevo nas condições previstas no art.º 24.º, alínea c) do mesmo diploma. O que não podem é os referidos factores, só por si, revelar uma personalidade contrária ao dever ser jurídico penal. A matéria de facto não legitima tal conclusão dado que a conduta do arguido não evidencia uma tendência criminosa,  não se verificam circunstâncias não contidas no tipo das quais resultasse especial dever para o arguido de não praticar o crime por que foi condenado nem os factos provados revelam especial falta de preparação para manter conduta lícita.

Finalmente, se é certo que a primariedade não pode ser sobrevalorizada, não é menos verdade que tal situação é sempre tida em conta na determinação da natureza e da medida da pena e a sua relevância é tanto maior quanto mais longo seja o percurso de vida sem registo da prática de crimes.


2.7 – Vistos os factos à luz destas considerações, considera-se que o tribunal de 1.ª instância efectuou uma correta avaliação dos factos e os conciliou de forma apropriada com as finalidades das penas, assinaladas no art.º 40.º,n.º 1 do Código Penal e os critérios de determinação da medida da pena, fixados no art.º 71.º, do mesmo diploma, sem prejuízo de a medida desta poder ser objecto de algum ajustamento.

A pena de 4 anos e 9 meses de prisão está ligeiramente acima do mínimo da moldura aplicável mas, não obstante a conduta do recorrente ser merecedora de acentuada censura, não assume gravidade que justifique a ultrapassagem do mínimo previsto para o crime agravado, nos termos do art.º 24.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, ou seja, 5 anos, pena que a nosso ver responde de forma adequada às exigências de prevenção geral que, não pode deixar de reconhecer-se, são elevadas, e que simultaneamente respeita os limites impostos pela medida da culpa. Com efeito, a conduta do arguido situa-se num patamar próximo do chamado tráfico de rua, ainda que desenvolvida por um período razoável (cerca de um ano) num universo circunscrito às redondezas do bar onde trabalhava, abastecendo número pouco elevado de consumidores, sem recurso a meios ou procedimentos sofisticados e não tendo o arguido antecedentes criminais. Em tais circunstâncias, reveladoras de uma ilicitude mediana, agindo o arguido com dolo direto, também a medida da culpa aponta para o limite sancionatório acima mencionado.

Fixa-se por isso a pena em 5 (cinco) anos de prisão.


2.8 - De acordo com o art.º 50.º, n.º 1 do Código Penal “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

O arguido não tem antecedentes criminais, tem agora 57 anos de idade, beneficia de boa integração laboral, social e familiar, sofreu já 10 meses de prisão preventiva pelo que se não afiguram elevadas as necessidades de prevenção especial. O descrito circunstancialismo permite formular um juízo positivo quanto ao comportamento futuro do arguido pelo que será de criar as condições para que o seu processo de ressocialização possa decorrer em liberdade.

Suspende-se por isso a execução da pena pelo período correspondente à medida da condenação, suspensão sujeita a regime de prova a definir pela DGRSP, que incluirá necessariamente a proibição de o arguido acompanhar pessoas e frequentar locais conotados com o consumo, compra e venda de estupefacientes.


III - Decisão

Pelo exposto acordam os juízes da 5.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça em, dando provimento parcial ao recurso, revogar o acórdão de 2.ª instância e condenar o arguido na pena de 5 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, pena cuja execução se declara suspensa pelo mesmo período, com sujeição a regime de prova a definir pela DGRSP, cujo plano incluirá necessariamente a proibição de o arguido acompanhar pessoas e frequentar locais conotados com o consumo, compra e venda de estupefacientes

Sem custas

Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Setembro de 2019

Júlio Pereira (Relator)

Clemente Lima

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[1] Maria Fernanda Palma, Consumo e tráfico de estupefacientes e Constituição: absorção do “Direito Penal de Justiça” pelo Direito Penal Secundário?  in Revista do Ministério Público, Out/Dez 2003, n.º 96, pag. 21 e ss.
[2] Eduardo Maia Costa, O crime de tráfico de estupefacientes: o direito penal em todo o seu esplendor, in Revista do Ministério Púbico, Abril/Junho 2003, n.º 94, pag. 91 e ss.
[3] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pag. 248.