Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | CATARINA SERRA | ||
| Descritores: | NULIDADE DO CONTRATO ORDEM PÚBLICA OBJETO OFENSIVO DOS BONS COSTUMES EMPREGADOR CONTRATO DE TRABALHO ÉTICA ABUSO DO DIREITO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM PRESSUPOSTOS CONHECIMENTO OFICIOSO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ALTERAÇÃO DOS FACTOS PODERES DA RELAÇÃO LEI PROCESSUAL PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM SEDE DA MATÉRIA DE FACTO | ||
| Data do Acordão: | 06/17/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA | ||
| Sumário : | I. A celebração de um contrato em que uma das partes assume a obrigação de usar a sua posição profissional para exercer influência sobre a entidade empregadora no interesse – e com vista a favorecer os interesses – da outra parte não é uma situação que possa ser tolerada pelo sistema jurídico, sendo este contrato nulo, nos termos do artigo 280.º, n.º 2, do CC. II. Não existindo na factualidade provada elementos que permitam dizer que a conduta da ré apresenta as notas características do venire contra factum proprium em número e com força suficientes para se configurar esta modalidade do abuso do direito, não pode ela dar-se por verificada. III. Tendo a nulidade do contrato sido declarada pelo tribunal oficiosamente, não é possível dizer que a ré exerceu abusivamente o direito de invocar a nulidade do contrato porque, simplesmente, nem chegou a exercer tal direito. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO Recorrente: AA Recorrida: Aikon, Utilidades e Artigos de Higiene, Comércio, Representação, Importação, Exportação, Lda. 1. Na presente acção proposta por AA contra Aikon, Utilidades e Artigos de Higiene, Comércio, Representação, Importação, Exportação, Lda., foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Julgo a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, condeno a Ré a pagar ao Autor a quantia de €31.082,36 (trinta e um mil, e oitenta e dois euros, e trinta e seis cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento, absolvendo-a do mais peticionado”. 2. Tendo a ré interposto recurso de apelação, proferiu o Tribunal da Relação um Acórdão em que pode ler-se, a final: “Pelo exposto, na procedência da apelação, acorda-se em revogar a decisão recorrida, absolvendo-se a ré Aikon, Utilidades e Artigos de Higiene, Comércio, Representação, Importação, Exportação, L.da. do pedido”. 3. O autor vem, então, interpor o presente recurso de revista, pedindo a repristinação da decisão do Tribunal de 1.ª instância e concluindo as suas alegações nos seguintes termos: “1-O A. não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal da Relação. 2-Pretende o recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie a forma como o Tribunal da Relação alterou (e aditou) a matéria de facto provada e não provada e saber se, a vingar o entendimento da Relação, não existe comportamento abusivo por parte da R.. 3-No entender do recorrente a Relação não podia alterar a matéria de facto nos termos em que o fez. 4-A Relação não podia tirar as conclusões ou ilações que retirou da prova produzida, além do mais porque tal não estava alegado ou em causa nos presentes autos. 5- O Acórdão recorrido não podia dar como assente, porque tal não resultou de qualquer prova, o que se refere nos pontos: … 7 – …, visando o recebimento e pagamento de 5% referido no n.º 3. …, atuar no sentido da viabilização da aprovação de proposta; … 12 – … visando o recebimento e pagamento de 10% referido no n.º 10. …, atuar no sentido da viabilização da aprovação da proposta da ré junto do Centro popular ... ; … 14 – Na sequência dos acordos referidos em 3. e 7. e em 10. e 12., 15 – … a ré logrou obter a aprovação das propostas apresentadas, …, 6 - As conclusões ou ilações da Relação não resultam do que foi a prova produzida. 7 - O Tribunal da Relação foi muito além dos poderes que lhe são conferidos no artº 662 do C.P.C. Mais, 8 - O Tribunal da Relação entendeu existir uma situação de conflito de interesses o que levou a considerar que se estava perante uma situação de violação da ordem pública com o efeito previsto no n.º 2 do art. 280.º do Cód. Civil, isto é, nulidade. 9 - Não existe qualquer conflito de interesses. 10 - A questão das relações laborais do A. para com as suas entidades patronais não está em causa neste processo. 11 - De todas as formas, nada permite concluir que o A. alguma vez tivesse prejudicado as suas entidades patronais. 12 - O que resultou clara da prova produzida (e o Tribunal da Relação não considerou) é que o A. não tinha qualquer poder de decisão na aprovação das propostas dos fornecedores. 13 - O A. até podia fazer convites a fornecedores para apresentarem propostas e sugerir que fosse considerado o fornecedor A ou B, mas quem sempre decidia quem contratar e em que condições contratar eram as direções das entidades patronais e não o A.. 14 - Não existe qualquer conflito de interesses que levasse a Relação a considerar que os acordos celebrados entre A. e R. violariam os Princípios da Ordem Pública. 15 - O Tribunal da Relação - indo muito além do que as partes quiseram - comportou-se como um tribunal que se situa “acima” da lei, julgando o comportamento moral do A., mas já não o da R. 16 - Será que é o A. que merece ser moralmente censurado pelos acordos (propostos, escritos e assinados unicamente pela R.) ??? 17 - Na perspectiva do Tribunal da Relação, não seria o comportamento da R. o mais censurável (se tal violasse a lei) ??? 18 -A R. quis o acordo e firmou-o nos documentos que entregou ao A. (e nos pagamentos que fez) e assumiu-o durante o julgamento. 19 - A decisão recorrida parece proteger o comportamento da R. que, claramente e a vingar o entendimento sufragado pela Relação, é abusivo. 20 - O abuso de direito é de conhecimento oficioso, daí que este Supremo Tribunal dele deva conhecer e alterar a decisão recorrida. 21 - O que resultou da prova produzida (e a Relação só levemente se pronuncia sobre o assunto) é que os acordos celebrados entre A. e R. foram propostos pela própria R. que pretendia ver as suas propostas aprovadas e beneficiar da “posição estratégica e influente” – na expressão da apelante utilizada nas alegações de recurso – do autor, na qualidade de funcionário, primeiro, do Grupo M..., e depois, do Centro popular ... , passível de ser usada, designadamente, para a obtenção da aprovação das propostas de prestação de serviços e fornecimento de bens apresentadas pela ré, respetivamente, ao Grupo M... e ao Centro popular ... .” 22 - A R. não pode ser beneficiada com uma posição que ela própria criou e eximir-se a uma responsabilidade que ela própria assumiu, por sua iniciativa e de livre vontade. 23 - A vingar o entendimento sufragado pelo Tribunal da Relação estaríamos a premiar o infractor !!! 24 - A R. criou no A. a confiança de que respeitaria o que anteriormente assumira, isto é, o pagamento das comissões durante o prazo previsto. 25 - A sufragar-se a tese da nulidade dos acordos celebrados entre A. e R. tal configuraria uma situação de manifesto abuso de direito e violadora do vertido no artº 334º do C.C., na modalidade de “venire contra factum proprium” !!! 26 - Foi a R. quem criou toda esta situação: propondo ao A. o pagamento de comissões e criando-lhe a expectativa e plena confiança de que receberia os montantes acordados. 27 - A R. não pode ser premiada pelo Tribunal por uma eventual nulidade por ela própria criada”. 4. Visando a manutenção do Acórdão recorrido, a ré apresenta contra-alegações, que terminam assim: “1.º O Tribunal da Relação do Porto, em sede de apelação, decidiu, em suma, julgar procedente o recurso de apelação da Ré, revogando-se a sentença de 1ª instância e, consequentemente, absolvendo a Ré, ora Recorrida, do pedido, por se ter considerado que o contrato subjacente ao litígio seria contrário à ordem pública e, como tal, nulo; 2.º Com o recurso de revista interposto, pretende o Autor / Recorrente que este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, por um lado, (i)aprecie a forma como o Tribunal a quo alterou e aditou a matéria de facto provada e não provada, e, por outro, (ii) aprecie se existirá abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, caso se entenda que o contrato padece, efetivamente, de nulidade por ser contrário à ordem pública, com vista à revogação da decisão recorrida e repristinação da sentença de 1ª instância; 3.º Por várias vezes, viria o Recorrente referir nas suas alegações de recurso, bem como nas conclusões, que o Tribunal a quo teria extravasado os seus poderes de alteração da matéria de facto, por referência ao artigo 662.º do CPC; 4.º Sucede que, conforme resulta do número 1 e 2 do artigo 662.º do CPC, não só a Relação pode alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, como DEVE fazê-lo, se considerar estarem reunidas as condições para o efeito; 5.º Para fundamentar a alteração da matéria de facto, o Tribunal a quo cumpriu escrupulosamente com os deveres que lhe incubem, ao abrigo do artigo 604º, n.º 7 ex vi 663.º, n.º 2 do CPC, nomeadamente expondo quais os factos que julgou provados e não provados, com uma análise crítica e rigorosa dos meios de prova, indicando, para o efeito, quais as ilações que retirou de cada um deles, proferindo, livremente, a sua decisão com base nestas; 6.º É sabido, e assim ensina a doutrina e jurisprudência, que o Tribunal da Relação goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, pelo que impõe-se concluir que o Tribunal a quo agiu nos termos previstos (e impostos, dado tratar-se de um poder-dever) pelo artigo 662.º, n.º 1 do CPC no que concerne à alteração da matéria de facto, não extravasando os seus poderes; 7.º Viria, também, o Recorrente alegar que “A Relação não podia tirar as conclusões ou ilações que retirou da prova produzido, alem do mais porque tal não estava alegado ou em causa nos presentes autos”, sendo certo, todavia, que as ilações do Tribunal são livres e autónomas, não estando limitadas nem sujeitas às alegações das Partes no que concerne à aplicação do direito, desde que versem sobre factos alegados e provados nos autos; 8.º Pelos motivos acima expostos, deverão improceder as conclusões de recurso vertidas nos pontos 2 a 7 e ponto 15, não merecendo a decisão recorrida qualquer reparo; 9.º Sem prejuízo, estando o Supremo Tribunal de Justiça limitado na análise e modificação da matéria de facto da decisão proferida (cfr. artigo 674.º, n.º 3 ex vi artigo 682.º, n.º 2 e n.º 3 do CPC), e não se vislumbrando nenhum desses cenários, nunca poderia haver lugar a alteração da matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, ainda que, indiretamente, o Recorrente a tenha contestado; 10.º De todo o modo, por mera cautela de patrocínio, sem conceder, desde logo se reitera que a alteração da matéria de facto imposta pelo Tribunal a quo não merece qualquer censura; 11.º Andou bem o Tribunal recorrido ao relevar, contrariamente ao Tribunal de 1ª instância, que o negócio em escrutínio nos presentes autos ocorreu, apenas e só, devido às funções do Recorrente nas empresas com quem a Recorrida já trabalhava (Grupo M...) e com quem pretendia trabalhar (Centro popular ... ), conforme decorre das declarações do Autor / Recorrente; 12.º Conforme resulta das declarações do Autor, o Recorrente, assim que iniciou funções no Centro popular ... , “[Chegou] lá [e mudou] tudo, os fornecedores todos”. Não será esta uma afirmação de quem sabe ter o poder de decisão da aprovação das propostas??? 13.º Parece-nos notório que sim, pelo que deverão improceder as conclusões vertidas nos pontos 12 e 13 das conclusões do recurso, tendo andado bem o Tribunal recorrido ao aditar os factos nos termos impostos; 14.º Erradamente (salvo melhor opinião), viria a decisão de 1ª instância considerar provado que o Autor prestava serviços de promoção de negócios, angariação de clientela e encomendas em contrapartida do pagamento das comissões por parte da Ré / Recorrida; 15.º Em sentido contrário, o Tribunal a quo, confrontada a prova gravada, concretamente da testemunha BB, colega do Autor no Grupo M..., concluiu (bem) não se demonstrar provada qualquer obrigação para o Autor decorrente do negócio celebrado, muito menos, ainda, a prova de qualquer serviço prestado pelo Autor em benefício da Ré; 16.º O Autor não logrou fazer prova de qualquer efetiva prestação de serviços em benefício da Ré que justificasse o pagamento mensal de comissões, nem, por sinal, decorre qualquer obrigação para o Ré dos contratos celebrados entre as Partes, o que demonstra, também por esta via, que a Ré se via obrigada a pagar comissões ao Autor, sem qualquer contrapartida, apenas pelo facto deste dispor de uma posição influente nas empresas; 17.º Pelo que, ainda que ao Supremo Tribunal de Justiça esteja, em regra, vedada a alteração da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido, se, hipoteticamente, por mera cautela de patrocínio, o Tribunal Superior apreciasse a matéria de facto, diante a prova produzida e a alteração da matéria de facto, e face ao acima exposto, ainda assim seria forçoso concluir que o presente recurso deveria ser julgado improcedente, mantendo-se a absolvição da Ré / Recorrida; 18.º A fundamentação do Tribunal da Relação do Porto para absolver a Ré / Recorrida do pedido assenta na convicção de que o contrato celebrado entre as Partes seria contrário à ordem pública e, consequentemente, nulo, não produzindo, assim, quaisquer efeitos; 19.º Como alicerce da sua decisão, considerou o Tribunal a quo ter ficado demonstrado que o motivo subjacente à celebração dos contratos foi, apenas e só, o facto de o Autor / Recorrente, por dispor de uma posição influente junto das empresas onde trabalhava, alavancava-se da sua qualidade de funcionário para obter benefícios ilegítimos; 20.º A Ré / Recorrida, na qualidade de fornecedora do Grupo M..., viu-se arrastada para este enredo, como tantos outros fornecedores, quando o Autor iniciou funções. Apenas mais tarde, no decurso dos presentes autos, veio a Ré / Recorrida tomar conhecimento de que o Autor / Recorrente não estava autorizado, pelas suas entidades empregadoras, a desenvolver esta atividade; 21.º Apenas quando o Centro popular ... informou os autos de que o Autor / Recorrente, enquanto seu subordinado, “não tinha autorização e consequentemente não podia receber comissões dos fornecedores de mercadorias, porque lhe estava vedado fazer esse tipo de “negociatas” paralelas por forma a receber além do seu salário.” é que a Recorrida compreendeu o verdadeiro contexto e intuito da conduta do Autor. 22.º Pelo que, e ainda que o Recorrente tenha alegado em sede de recurso de revista (“De todas as formas, nada permite concluir que o A. prejudicou as suas entidades patronais.”), a verdade é que tal facto não é relevante para efeitos de nulidade do negócio, mas sim, o facto de a atuação do Recorrente ser incompatível com os cargos que ocupava, o que aliás, se conclui, com mediana facilidade, perante a informação transmitida aos autos pelo Centro popular ... – “O trabalhador tinha que desempenhar com zelo as suas funções, negociar e comprar as mercadorias ao melhor preço favorecendo a sua entidade empregadora, nada mais.” 23.º Atenta a informação transmitida pelo Centro popular ... , conclui-se que terão considerado que a conduta do Recorrente era incompatível com os deveres de zelo e lealdade a que este estava adstrito pelas suas funções, visto que o Recorrente, em vez de tentar obter e negociar as melhores propostas para o Centro popular ... , adjudicava as que melhor satisfaziam os seus próprios interesses, mesmo se não consubstanciassem a proposta mais competitiva para a sua entidade empregadora 24.º É flagrante a conduta desleal, desonesta e fraudulenta do Autor / Recorrente, sendo esta manifestamente reprovável e uma clara afronta à ordem pública, tendo como propósito único beneficiar-se a si próprio em prejuízo das suas entidades empregadoras, durante o exercício de funções e ao serviço daquelas, em manifesto conflito de interesses; 25.º Resulta evidente que o Autor / Recorrente, exercendo o poder de quem sabe ter “a faca e o queijo na mão”, celebrava negócios que visavam obter resultados proibidos – a aprovação e manutenção de propostas comerciais sem uma real análise ou ponderação destas em função da atividade das empresas adjudicantes e sem qualquer concorrência – sob forma de contrato, aparentemente, lícito – o contrato de comissões de vendas, angariação de clientes e promoção de serviços; 26.º Diante o exposto, o direito e a solução jurídica encontrada para enquadrar os presentes autos pelo Tribunal a quo não merece qualquer censura, devendo, assim, manter-se a decisão proferida, atenta a manifesta fraude à lei e ordem pública; 27.º Viria, também, o Recorrente alegar que “A questão das relações laborais do A. para com as suas entidades patronais não está em causa neste processo” e que, ao considerar os contratos contrários à ordem pública, em virtude do manifesto conflito de interesses, o Tribunal da Relação teria ido “muito além do que as partes quiseram”, tendo-se comportado “como um tribunal que se situa acima da lei”; 28.º Recorde-se que o Tribunal se encontra vinculado aos factos que se encontrem alegados, mas já não aos pedidos formulados pelas Partes quanto à matéria de direito. Ou seja, tendo por base a factualidade assente, o Tribunal poderá subsumir o litígio ao enquadramento jurídico que considerar melhor aplicável, conforme estipula o artigo 5.º, n.º 3 do CPC; 29.º Face ao acima exposto, é manifesto não assistir qualquer razão ao Recorrente, pelo que, nestes termos, deverão improceder as conclusões vertidas nos pontos número 8 a 15, não merecendo a decisão recorrida qualquer reparo; 30.º Por último, viria o Recorrente alegar no recurso de revista que, caso vingasse o entendimento do Tribunal recorrido de que os contratos celebrados seriam nulos por contrários à ordem pública, estaríamos perante abuso de direito; 31.º Consideraria o Recorrente existir abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto teria sido a Recorrida a criar a presente situação, ao propor a celebração dos contratos nos termos efetuados, pelo que, ao declarar-se a nulidade dos contratos, estaria a Recorrida a beneficiar de uma situação por si criada; 32.º A modalidade de abuso de direito invocada pelo Recorrente – venire contra factum proprium – ocorre quando o exercício de um agente contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo mesmo; 33.º Em acréscimo aos requisitos para a verificação de uma situação de venire contra factum proprium, requer-se, também, a verificação dos pressupostos da tutela da confiança; 34.º Os pressupostos da tutela da confiança, nos termos expostos pelo Recorrente, não se encontram preenchidos; 35.º Em primeiro lugar, importa reiterar que não foi a Recorrida quem propôs a celebração destes contratos. Pelo contrário, foi o Autor / Recorrente quem impôs que, para as propostas comerciais da Recorrida se manterem em vigor e serem consideradas as novas, a Recorrida tinha de lhe pagar uma comissão; 36.º Apenas por receio das consequências que as perdas daqueles clientes essenciais implicariam na sua atividade e, consequentemente, de se tornar inexequível a manutenção da sua atividade, é que a Recorrida cedeu e celebrou os contratos com o Recorrente; 37.º Não houve qualquer vontade ou intenção de celebrar os contratos por parte da Recorrida, tanto que, em bom rigor, até à chegada do Autor, a Recorrida mantinha relações comerciais estáveis com o Grupo M... (tal como foi dado como provado pelo tribunal recorrido), sem necessidade de pagamento de quaisquer comissões para o efeito; 38.º Desde o envolvimento do Autor, a Recorrida viu-se obrigada a incorrer em custos desnecessários e sem qualquer contrapartida, como, aliás, resulta do próprio clausulado dos contratos, atenta a falta de estipulações de obrigações para o Autor / Recorrente; 39.º Não poderão, assim, proceder as alegações do Recorrente de que “AR. quis o acordo …”, que “o que resultou da prova produzida (…) é que os acordos celebrados entre a A. e R. foram propostos pela própria R.” e que “Foi a R. quem criou toda esta situação; 40.º Em segundo lugar, e tratando-se o abuso de direito de um instituto que tem por base tutelar a boa fé, é evidente que o primeiro pressuposto da tutela da confiança – existir uma situação de confiança, no sentido subjetivo ético – não se encontra preenchido; 41.º O Recorrente não é merecedor de tutela da confiança, pois sabia, sem poder desconhecer, que os contratos que celebrou não respeitavam os princípios basilares do nosso sistema jurídico, tendo por base os valores éticos da sociedade, porque lesavam (ou eram suscetíveis de lesar) direitos de outrem, nomeadamente o direito das suas entidades empregadoras aceitarem a melhor proposta para a sua atividade e interesses, e não a que melhor satisfazia “os bolsos” do Recorrente; 42.º Não foi a Recorrida que propôs a celebração dos contratos, antes foi forçada a fazê-lo, pelo que, também por esta via, não poderia existir um factum proprium da Recorrida, além de, conforme acima exposto, também não haver lugar a uma situação objetiva de confiança por parte do Recorrente; 43.º Não tendo sido a Ré / Recorrida a propor a celebração destes acordos, não lhe poderá ser imputada uma, alegada, conduta contraditória com este facto, como seja a arguição da nulidade dos acordos (note-se, de todo o modo, não ter sido a Recorrida a invocar esta nulidade); 44.º Adicionalmente, a pessoa atingida (o Recorrente) pelo alegado venire contra factum proprium não se encontrava de boa fé; 45.º Em virtude do conflito de interesses existente entre o Recorrente e as suas entidades empregadores, não cremos que a destruição da atividade desenvolvida pelo Recorrente em seu benefício próprio se traduza numa injustiça clara e evidente, mas antes restabelece o status quo 46.º Termos em que se impõe concluir não existir qualquer abuso de direito; 47.º Face o exposto, resulta notório que, através da decisão do Tribunal da Relação, a Recorrida não está a ser beneficiada com uma posição que ela própria criou, nem está a eximir-se de uma responsabilidade assumida por sua iniciativa e de livre vontade, como indicado pelo Recorrente no ponto 22, 26 e 27 das conclusões; 48.º Muito menos se está a premiar o infrator, como remata o Recorrente no ponto 23 das conclusões. Pelo contrário, apenas com a decisão recorrida se fez justiça, exonerando, oficialmente, a Recorrida de quaisquer obrigações, motivo pelo qual deverá manter-se a decisão inalterada; 49.º É, assim, forçoso concluir que ao Recorrente não assiste qualquer razão, devendo improceder as conclusões vertidas nos pontos 16 a 27, mantendo-se a decisão do Tribunal a quo; 50.º Como nota final, sempre se diga que o facto de o Recorrente, o notório infrator e agente de má fé nestes autos, vir alegar venire contra factum proprium poderia – aqui sim! – consubstanciar abuso de direito, na modalidade de tu quoque, nos termos da qual quem, contra a boa fé, criou uma situação contrária ao direito vem, mais tarde, tentar aproveitar-se dessa mesma situação em seu benefício, o que aqui sucede quando o Recorrente tenta alegar abuso de direito, de forma a reverter a decisão do Tribunal recorrido em seu benefício”. 5. Proferiu-se despacho no Tribunal da Relação com o seguinte teor: “Verificados que se mostram os pressupostos processuais inerentes, desde logo legitimidade, recorribilidade e tempestividade, admito o recurso de revista interposto pelo réu AA, com efeito devolutivo, e determino a imediata subida dos autos ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça (cfr. arts. 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 638.º, n.º 1, 1.ª parte, 641.º, n.º 1, 652.º, n.º 1, 671.º, n.º 1, 675.º, n.º 1, e 676.º, n.º 1, a contrario, todos do Cód. Proc. Civil)”. * Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber: 1.ª) se o Tribunal recorrido exerceu bem os poderes-deveres que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC; 2.ª) no caso afirmativo, se o acordo celebrado entre o autor e a ré é nulo por contrariedade à ordem pública; e 3.ª) no caso afirmativo, se não existe abuso do direito por parte da ré. * II. FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS Depois da extensa alteração, pelo Tribunal da Relação, da decisão sobre a matéria de facto, são os seguintes os factos que vêm provados, e tal como organizados, no Acórdão recorrido: 1. As partes 1 – O autor desde há vários anos que desempenha funções comerciais e gestão de compras, nomeadamente na indústria hoteleira. 2. – A ré é uma empresa que comercializa produtos de higienização. 2. Grupo M... 3 – A ré, através de documento escrito datado de 19 de setembro de 2017, acordou com o autor que lhe pagaria o montante correspondente a 5% do valor das avenças mensais que cobraria ao grupo de empresas denominado “Grupo M...”, enquanto o autor prestasse serviços para esse mesmo Grupo empresarial, ou no limite pelo prazo de 3 anos, se o autor se fosse embora. 4 – Por “Grupo M...” queriam autor e ré referir-se às seguintes cinco empresas (sociedades): “V...”, “C...”, O...club (“O...club”), “P...” e “O...Hotel” (“O...Hotel”). 5 – O acordo perdurou por três anos, isto é, até 19 de setembro de 2020. 6 – Das empresas que integram o Grupo M..., a sociedade P... e as sociedades O...club (O...club) e O...Hotel (O...Hotel) eram clientes da ré desde 2016, por terem assumido a posição contratual da anterior Sociedade de Gestão Financeira Central ..., Lda, em contratos celebrados com a ré em 2012, prestando-lhes a ré serviços de forma regular e em regime de avença. 7 – Em 2017 o autor passou a exercer funções de responsável de compras do referido grupo Muthu, visando o recebimento e pagamento de 5% referido no n.º 3. a colaboração do autor para, atentas as suas funções ao serviço do referido Grupo M..., atuar no sentido da viabilização da aprovação de proposta apresentada pela ré para prestação de serviços a todas as empresas do Grupo M..., o que permitiria à ré a manutenção das empresas que já eram suas clientes e o aumento da prestação de serviços às demais empresas do Grupo. 8 – Em dezembro de 2017 o autor deixou de trabalhar para o referido Grupo M.... 3. Centro popular ... 9 – Em inícios de 2018, o autor foi trabalhar para Centro popular ... , exercendo funções como responsável do departamento de compras. 10 – Por acordo escrito com data de 4 de Maio de 2018, autor e ré estabeleceram outro acordo, onde aquela se comprometeu a pagar ao autor o montante correspondente a 10% do valor das avenças mensais que cobraria ao “Centro popular ... ”, enquanto o autor prestasse serviços para o Grupo ou, no limite, pelo prazo de 4 anos, se o Autor se fosse embora. 11 – Este acordo manteve-se em vigor (pelo prazo de 4 anos) até 4 de maio de 2022. 12 – Quando o autor foi trabalhar para o Centro popular ... informou a ré desse facto e para esta apresentar uma proposta para prestação de serviços à referida entidade, visando o recebimento e pagamento de 10% referido no n.º 10. a colaboração do autor para, no âmbito das funções exercidas ao serviço dessa sua entidade patronal, atuar no sentido da viabilização da aprovação da proposta da ré junto do Centro popular ... . 13 – O autor deixou de exercer funções no Centro popular ... em janeiro de 2019. 4. Relações contratuais estabelecidas pela ré 14 – Na sequência dos acordos referidos em 3. e 7. e em 10. e 12., 15 – … a ré logrou obter a aprovação das propostas apresentadas, respetivamente, ao Grupo M... e ao Centro popular ... , passando a fornecer todas as empresas (hotéis) do Grupo M... e, bem assim, o Centro popular ... , fornecendo-lhe equipamentos, bens e produtos de higiene, 16. – … e cobrando-se das avenças mensais e produtos fornecidos. 5. Outros factos 17 – Porém, a ré não pagou ao autor as percentagens acordadas, após o recebimento. 18 – Apesar das interpelações para o cumprimento integral do acordado, a ré não se mostrou disponível para tanto. 19 – A ré não detinha conhecimentos comerciais com o “Centro popular ... ”. 6. Relacionamento comercial entre a ré e o Grupo M... 20 – De 19 de setembro de 2017 a 19 de setembro de 2020: a) foram faturadas pela ré ao Grupo M... avenças, sem IVA, num total de € 385 242,53; b) foram pagas pelo Grupo M... à ré avenças, sem IVA, num total de € 369 818,86; c) foram faturadas pela ré ao Grupo M... vendas de mercadorias extras num total de € 61 653,91; d) foram pagas pelo Grupo M... à ré vendas de mercadorias extra, sem IVA, num total de € 56 439,77. 21 – No período compreendido entre 19 de setembro de 2017 e final de dezembro de 2019, os valores acima referidos foram os seguintes: a) avenças, sem IVA, faturadas pela ré ao Grupo M...: € 341 747,38; b) avenças, sem IVA, pagas pelo Grupo M... à ré: € 337 518,70; c) extras, sem IVA, faturadas pela ré ao Grupo M...: € 56 201,26; d) extras, sem IVA, pagos pelo Grupo M... à ré: € 53 944,71. 7. Relacionamento comercial entre a ré e o Centro popular ... 22 – De 4 de maio de 2018 a 4 de maio de 2022: a) foram faturadas pela ré ao Centro popular ... avenças, sem IVA, no valor de € 148.106,78; b) foram pagas pelo Centro popular ... à ré avenças, sem IVA, num total de € 148.106,78; c) foram faturadas pela ré ao Centro popular ... vendas de mercadorias extras num total de € 4.321,28; d) foram pagas pelo Centro popular ... à ré vendas de mercadorias extra, sem IVA, num total de € 4.321,28. 23 – No período compreendido entre 4 de maio de 2018 e final de dezembro de 2019, os valores acima referidos foram os seguintes: a) avenças, sem IVA, faturadas pela ré ao Centro popular ... : € 69.674,39; b) avenças, sem IVA, pagas pelo Centro popular ... à ré: € 61.441,42; c) extras, sem IVA, faturadas pela ré ao Centro popular ... : € 3.717,18; d) extras, sem IVA, pagos pelo Centro popular ... à ré: € 3.717,18. 8. Pagamentos efetuados pela ré ao autor 24 – O autor já recebeu da ré a quantia de € 8.303,32 por conta do valor das “comissões” a que é feita referência nos documentos referidos em 3. e 10. dos factos provados. O DIREITO Do exercício dos poderes de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto Como se disse atrás, o Tribunal recorrido alterou profusamente a decsão sobre a matéria de facto, seja na parte em que ela havia sido impugnada pelo apelante, seja ex officio e invocando o disposto no artigo 662.º do CPC. O autor / recorrente não se conforma e alega que: “3 - No entender do recorrente a Relação não podia alterar a matéria de facto nos termos em que o fez. 4 - A Relação não podia tirar as conclusões ou ilações que retirou da prova produzida, além do mais porque tal não estava alegado ou em causa nos presentes autos. 5 - O Acórdão recorrido não podia dar como assente, porque tal não resultou de qualquer prova, o que se refere nos pontos: … 7 – …, visando o recebimento e pagamento de 5% referido no n.º 3. …, atuar no sentido da viabilização da aprovação de proposta; … 12 – … visando o recebimento e pagamento de 10% referido no n.º 10. …, atuar no sentido da viabilização da aprovação da proposta da ré junto do Centro popular ... ; … 14 – Na sequência dos acordos referidos em 3. e 7. e em 10. e 12., 15 – … a ré logrou obter a aprovação das propostas apresentadas, …, 6-As conclusões ou ilações da Relação não resultam do que foi a prova produzida. 7-O Tribunal da Relação foi muito além dos poderes que lhe são conferidos no artº 662 do C.P.C.”. Dispõe-se no artigo 662.º do CPC: “1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. 2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados. (…) 4 - Das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”. Comentando, em especial, o preceituado no n.º 4, explica Abrantes Geraldes: “Determina o n.º 4 que as decisões da Relação proferidas ao abrigo dos n.º 1 e 2 são irrecorríveis para oi Supremo, o que se compreende num contexto em que é atribuída a este último tribunal competência privilegiada para apreciar questões de direito, deixando para as instâncias a circunscrição da matéria de facto. Todavia, esta delimitação não é totalmente rígida. Com efeito, é admissível recurso de revista quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjectivo conexas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, maxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento de deveres previstos no art. 674.º, n.º 3, e apreciar criticamente a suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada e não provada em conexão com a matéria de direito aplicável, nos termos do art. 682.º, n.º 3. Deste modo: a) Se forem desconsiderados factos que se mostrem necessários para constituir base suficientes para a decisão de direito, o Supremo pode determinar a baixa do processo para o efeito, nos termos do art. 682.º, n.º 3. b) O Supremo pode intervir quando, na circunscrição dos factos provados ou não provados, as instâncias tenham desatendido disposição expressa da lei que exija certo meio de prova (maxime, documento legalmente necessário para a prova de certo facto) ou tenham desconsiderado disposição igualmente expressa que defina a força de determinado meio de prova (art. 674.º, n.º 3), como ocorre com documentos autênticos, com a confissão ou com o acordo das partes estabelecido no processo e que seja relevante. c) O Supremo reiteradamente vem assumindo o entendimento de que, embora não possa censurar o uso feito pela Relação dos poderes conferidos pelo art. 662.º, n.ºs 1 e 2, já pode verificar se a Relação, ao usar tais poderes, agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer. Por isso, quando, no âmbito da revista em que tal questão seja suscitada, se constate o incumprimento dos deveres legais nessa área, o processo deve ser remetido à Relação, a fim de lhes ser dado cumprimento”1. Manifestamente, não estão em causa neste recurso as duas últimas situações referidas por este autor e previstas, respectivamente, nos artigos 682.º, n.º 3, e 674.º, n.º 3, do CPC . Em particular quanto à segunda (violação de normas do Direito probatório material), salta à vista que as alegações do recorrente são demasiado vagas e, sobretudo, que não indicam qualquer disposição expressa da lei que, exigindo certa espécie de prova para a existência do(s) facto(s) em causa ou fixando a força de determinado(s) meio(s) probatório(s), possa ter sido ofendida. Resta, então, a possibilidade de este Supremo Tribunal usar os poderes residuais de que dispõe quanto à decisão sobre a matéria de facto através da apreciação da conduta do Tribunal da Relação à luz do artigo 662.º do CPC, com vista, mais precisamente, a apurar se o Tribunal da Relação desrespeitou algum dos poderes-deveres que lhe vêm conferidos naquela norma. O recorrente põe em causa a conduta do Tribunal a quo, em especial, quanto aos factos provados 7, 12, 14 e 15. Diz ele que a redacção final destes factos (depois da alteração pelo Tribunal a quo) não reflecte a realidade tal como resulta da prova produzida. Olhando para a motivação da alteração à decisão sobre a matéria de facto constante do Acórdão recorrido, não é possível, no entanto, acompanhar o recorrente nesta posição. Em especial, relativamente aos segmentos constantes do facto provado 7 (“visando o recebimento e pagamento de 5% referido no n.º 3. …, atuar no sentido da viabilização da aprovação de proposta”), do facto provado 12 (“visando o recebimento e pagamento de 10% referido no n.º 10. …, atuar no sentido da viabilização da aprovação da proposta da ré junto do Centro popular ... ”), do facto provado 14 (“Na sequência dos acordos referidos em 3. e 7. e em 10. e 12.,”) e do facto provado 15 (“… a ré logrou obter a aprovação das propostas apresentadas, …,”), que são os que o recorrente impugna neste recurso de revista, entendeu o Tribunal recorrido, no essencial, que existia “erro no julgamento do tribunal recorrido” e que, “[e]xtraindo as necessárias consequências da análise da prova produzida” e “atento o disposto no n.º 1 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil e o disposto na al. c) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil (interpretado a contrario)”, se impunha a sua alteração. Como é visível, o Tribunal recorrido limitou-se a exercer os poderes-deveres que lhe competiam (e que resultam expressis verbis do artigo 662.º do CPC), da forma que entendeu acertada ou correcta. Ao Supremo Tribunal está vedado sindicar o acerto ou a correcção das conclusões extraídas das provas sujeitas à livre apreciação do tribunal (isto é, o “mérito” da decisão sobre a matéria de facto), cabendo-lhe somente verificar se aquele Tribunal actuou dentro dos limites dos poderes que lhe são atribuídos– o que, como se disse, não suscita dúvidas neste caso. Em conclusão, no uso da competência que lhe cumpre, não vê este Supremo Tribunal qualquer motivo para considerar que o Tribunal da Relação exerceu mal – ou exerceu abusivamente – os poderes-deveres de modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto previsto no artigo 662.º do CPC. Da nulidade dos acordos entre o autor e a ré Pede o recorrente ainda que, caso se mantenha – como se mantém – a decisão sobre a matéria de facto, se aprecie se o acordo é, de facto, nulo por contrariedade à ordem pública. O recorrente alega, em especial, que: “8 - O Tribunal da Relação entendeu existir uma situação de conflito de interesses o que levou a considerar que se estava perante uma situação de violação da ordem pública com o efeito previsto no n.º 2 do art. 280.º do Cód. Civil, isto é, nulidade. 9 - Não existe qualquer conflito de interesses. 10 - A questão das relações laborais do A. para com as suas entidades patronais não está em causa neste processo. 11 - De todas as formas, nada permite concluir que o A. alguma vez tivesse prejudicado as suas entidades patronais. 12 - O que resultou clara da prova produzida (e o Tribunal da Relação não considerou) é que o A. não tinha qualquer poder de decisão na aprovação das propostas dos fornecedores. 13 - O A. até podia fazer convites a fornecedores para apresentarem propostas e sugerir que fosse considerado o fornecedor A ou B, mas quem sempre decidia quem contratar e em que condições contratar eram as direções das entidades patronais e não o A.. 14 - Não existe qualquer conflito de interesses que levasse a Relação a considerar que os acordos celebrados entre A. e R. violariam os Princípios da Ordem Pública. 15 - O Tribunal da Relação - indo muito além do que as partes quiseram - comportou-se como um tribunal que se situa “acima” da lei, julgando o comportamento moral do A., mas já não o da R. 16 - Será que é o A. que merece ser moralmente censurado pelos acordos (propostos, escritos e assinados unicamente pela R.) ??? 17 - Na perspectiva do Tribunal da Relação, não seria o comportamento da R. o mais censurável (se tal violasse a lei) ??? 18 - A R. quis o acordo e firmou-o nos documentos que entregou ao A. (e nos pagamentos que fez) e assumiu-o durante o julgamento”. A fundamentação do Tribunal a quo para a decisão de que o acordo era nulo por contrariedade à ordem pública foi a seguinte: “O que resulta dos factos provados é que os pagamentos ao autor, pela ré, referidos nos pontos 3. e 10. dos factos provados foram efetuados considerando a “posição estratégica e influente” – na expressão da apelante utilizada nas alegações de recurso – do autor, na qualidade de funcionário, primeiro, do Grupo M..., e depois, do Centro popular ... , passível de ser usada, designadamente, para a obtenção da aprovação das propostas de prestação de serviços e fornecimento de bens apresentadas pela ré, respetivamente, ao Grupo M... e ao Centro popular ... . Resulta dos factos provados que os referidos acordos de pagamento foram celebrados quando e porque o autor era funcionário de cada uma das entidades (Grupo M...; Centro popular ... – ver pontos 7. e 8., 9. e 12. dos factos provados) com quem a ré pretendia estabelecer determinadas relações contratuais de prestação de serviços e fornecimento de bens, considerando precisamente a possível influência do autor, como funcionário das referidas entidades, na aprovação das propostas apesentada pela ré. Os acordos efetuados implicam o recebimento pelo autor de uma vantagem patrimonial (as percentagens acordadas sobre as avenças cobradas pela ré), enquanto o mesmo está ao serviço e obrigado a zelar pelos interesses das suas entidades empregadoras, para usar essas suas funções no interesse ou em benefício da ré (no sentido da obtenção pela ré da sua contratação para a prestação de serviços e fornecimento de bens aos empregadores do autor). Tal acarreta um claro conflito de interesses inerente a esta dupla atuação do autor, sendo apta a integrar uma atuação desleal do autor perante as suas entidades empregadoras e a causar distorções concorrenciais (designadamente, na medida em que a pretendida atuação do autor – finalidade desejada com os pagamentos acordados – possa favorecer a aprovação pelas suas entidades empregadoras das propostas apresentadas pela ré, em detrimento de outras propostas de outros fornecedores). O art. 280.º do Cód. Civil dispõe sobre os requisitos do objeto negocial nos seguintes termos: 1. É nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável. 2. É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes. Concretiza este artigo o conteúdo de negócios jurídicos desaprovados pela ordem jurídica. «O objeto do negócio jurídico compreende os efeitos a que o negócio tende, bem como aquilo sobre que aqueles efeitos incidem.» – Cfr. Ewald Horster e Moreira da Silva, «A Parte Geral», p. 578. Deste n.º 2 do art. 280.º do Cód. Civil resulta a exigência da conformidade do objeto do negócio jurídico à ordem pública. Está-se aqui perante um conceito jurídico indeterminado, entendido aqui como “o conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas.” – Cfr. Mota Pinto, «Teoria Geral», p. 551. A ordem pública impõe-se como “realidade distinta das normas legais imperativas” – cfr. Manuel Carneiro da Frada, «A Ordem Pública no Direito dos Contratos», in Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2019, p. 93. Ou seja, “o apelo à ordem pública não requer a medição de uma norma jurídica que regule especificadamente determinada situação, assim como a contrariedade à lei pode não envolver qualquer ofensa a um princípio de ordem pública” – cfr. Carneiro da Frada, «A Ordem», cit., p. 95. Pode esta realidade ser reconduzida aos “valores e princípios injuntivos do ordenamento, base da coexistência social geral e garantes de um bem público”, sendo aqueles absolutamente indisponíveis – cfr. Carneiro da Frada, «A Ordem», cit., p. 93. Esta dimensão da ordem pública, assim definida, é ofendida pela validação pelo direito de um acordo com os contornos dos aqui em causa, em que a contrapartida da vantagem patrimonial que a ré se obrigou a pagar ao autor é a utilização pelo autor da sua posição de funcionário da entidade com quem a ré pretende contratar para favorecer a celebração de contratos entre a ré e as referidas entidades empregadoras (sem que tais entidades empregadoras tenham qualquer conhecimento desses acordos/pagamentos). Ora, considerando que «a compreensão da noção de ordem pública variará com o tempo.» e que «Um subsídio importante para o preenchimento das suas exigências encontra-se (…) na ordem pública internacional» – cfr. Carneiro da Frada, «A Ordem», cit., p. 95 –, encontramos na criminalização da corrupção no sector privado operada pela Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, dando cumprimento à Decisão Quadro n.º 2003/568/JAI, do Conselho, de 22 de Julho, e alterada pela Lei n.º 30/2015, de 22 de abril, dando cumprimento à Decisão Quadro n.º 2003/568/JAI, do Conselho, de 22 de julho, um argumento densificador deste juízo quanto à violação da ordem pública. A tutela da autonomia privada conhece como limite a proibição de desfiguração do seu próprio sentido – cfr. Carneiro da Frada, «A Ordem», cit., p. 103 –, ou seja, a autonomia privada é tutelada para que seja exercida no amplo espaço de liberdade individual, e não para ser utilizada na construção de mecanismos contratuais de invasão das áreas reservadas à tutela de valores e princípios garantes da coexistência social e do bem público, como aqui sucede. Nem se argumente que se trata de uma situação ‘normal’ no âmbito das relações comerciais, não sendo, por conseguinte, contrária à ordem pública. É que, nestes casos, “a lei deve reter o poder de lutar contra as conceções dominantes do comércio jurídico (ética ou moral positiva), não aceitando pautar-se ou reger-se por ela” − cf. João de Castro Mendes, «Teoria Geral do Direito Civil», vol. II, Lisboa, AAFDL, 1985, p. 112. Concluímos, deste modo, que os contratos invocados pelo autor como fundamento do pedido de condenação da ré são contrários à ordem púbica – o que é de conhecimento oficioso. A violação da ordem pública tem o efeito previsto no n.º 2 do art. 280.º do Cód. Civil: “é nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”. Ou seja, os contratos que servem de causa de pedir à ação são totalmente desprovidos dos efeitos visados (art. 289.º do Cód. Civil), pelo que é de julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida”. Veja-se, então se o contrato é contrário à ordem pública e, portanto, nulo. Como explica Nuno Manuel Pinto Oliveira, “a concretização do conceito de ordem pública no direito civil português terá tido três grandes etapas – a primeira terá começado com o Código Civil de 1867, a segunda com o Código Civil de 1966 e a terceira com a Constituição da República Portuguesa”2. Quer dizer: não obstante ser uma referência na doutrina portuguesa, a ordem pública estava ausente do CC de 1867 e apareceu no CC de 1966 – mas apareceu em conjunto com os bons costumes, suscitando, desde logo, a controvertida questão da distinção e da coordenação dos dois parâmetros. Na visão de Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, “a referência aos ‘bons costumes’ contida no artigo 280.º do Código Civil deve ser entendida como uma referência à Moral, dado que só uma predicação de natureza ética permite distinguir de entre os costumes os que são bons e os que são maus”3 e “[a] ordem pública é o complexo dos princípios e dos valores que informam a organização política, económica e social da Sociedade e que são, por isso e como tal, tidos como imanentes ao respetivo ordenamento jurídico (…). A Ordem Pública faz de certo modo a ponte entre a Lei e a Moral, como critério do juízo de mérito”4. Noutra perspectiva, generalizou-se a ideia é o de que “[e]nquanto a cláusula geral dos bons costumes deveria concretizar-se a partir de argumentos extrajurídicos, a partir de argumentos morais e éticos, a cláusula geral de ordem pública deveria concretizar-se a partir de argumentos jurídicos”5 e de que “os bons costumes teriam uma conotação mais individualista, ou, em todo o caso, não teriam uma conotação (individualista ou colectivista) definida; a ordem pública, essa, teria uma conotação definida mais colectivista (mais comunitária ou comunitarista)”6. Entre os exemplos clássicos de actos contrários à ordem pública destacam-se os actos de autolimitação dos direitos de personalidade conflituante com o princípio da dignidade da pessoa humana, as vinculações perpétuas ou por tempo indeterminado, as vinculações desproporcionadas ou excessivas e as cláusulas de exclusão ou limitação da responsabilidade por dolo ou culpa grave7. Por seu turno, a aplicação dos bons costumes varia consoante se adopte uma concepção mais restrita ou mais ampla. Na concepção mais restrita, a cláusula geral molda-se aos valores que estejam em causa – são, em princípio, ofensivos dos bons costumes os contratos que obriguem à realização de prestações que envolvam relações familiares, condutas sexuais, violação da deontologia profissional, etc. Na concepção mais ampla (a mais acolhida pela jurisprudência) os bons costumes tem um alcance à medida de todos os aspectos da vida social – estão em causa, fundamentalmente, situações de incentivo ao aproveitamento de um delito, como a celebração de um contrato para prejudicar um terceiro8. Ponderando isto, é de equacionar a hipótese de, mais do que contrariedade à ordem pública, estar em causa ofensa aos bons costumes. Confirmando a ideia de que o (des)respeito da deontologia profissional se associa (mais) à ofensa dos bons costumes, diz António Menezes Cordeiro que “os bons costumes exprimem a Moral social, nas áreas referidas da actuação sexual e familiar e da deontologia profissional, proibindo os actos que a contrariem”9. Mas será que o que contraria os bons costumes não ofende também a ordem pública10? A verdade é que a contrariedade à ordem pública e a ofensa aos bons costumes são as duas dimensões em que, no modelo português (dualista), se desdobra um princípio que, hoje em dia, é enunciado, em grande parte dos ordenamentos jurídicos do círculo romano-germânico, por referência exclusiva a uma ou a outra das cláusulas. Observa a propósito Manuel Carneiro da Frada que “o sistema português diferenciou (…) entre ordem pública e bons costumes, o que constitui uma especificidade que o distingue de outros sistemas que, como o alemão, não dispõem desse par de noções. A linha de fronteira entre ambas elas é fluída. Não podem evitar-se zonas de sobreposição, porque há comportamentos que, ademais de ofenderem os bons costumes, representam também uma violação da ordem pública”11. Mas, voltando ao caso dos autos, a verdade é que, seja qual for o específico fundamento (contrariedade à ordem pública ou ofensa dos bons costumes), o contrato é nulo nos termos do artigo 280.º, n.º 2, do CC. Não é, de facto, conforme aos princípios estruturantes do sistema jurídico a celebração de um acordo segundo o qual o autor se compromete, mediante contrapartida, a exercer influência sobre entidade com quem mantém um vínculo laboral com vista a favorecer os interesses da ré, terceira em relação ao contrato de trabalho, e com o risco de comprometer o dever de lealdade / dever de actuação de acordo com a boa fé (cfr. artigo 762.º, n.º 2, do CC) para com aquela entidade. Cada posição / função profissional está associada a certas atribuições, compreendendo os direitos e obrigações, alguns dos quais de origem ética ou reflectindo regras morais, que são necessários e adequados ao seu correcto e cabal desempenho. O uso (aproveitamento) da posição profissional e, consequentemente, o exercício de tais direitos e obrigações para fins distintos daqueles para que foram concebidos e que, inclusivamente, conduzam ao sacrifício dos seus fins naturais não é – não pode ser – uma situação tolerada pelo sistema jurídico. Quer isto dizer, enfim, que se acompanha o Tribunal recorrido na conclusão de que o contrato entre o autor e a ré é desconforme ao Direito e, consequentemente, a sua nulidade deve ser declarada. Do abuso do direito por parte da ré Pede o recorrente, por fim, que, caso se mantenha – como se mantém – a decisão de nulidade do contrato, se aprecie se não houve comportamento abusivo por parte da ré. Note-se, antes de mais, que o abuso do direito é questão de conhecimento oficioso, por isso, não obstante não abordada pelas instâncias, nada impede – e tudo impõe – que seja apreciada aqui, posto que dentro do quadro dos factos adquiridos nos autos12. O recorrente alega, em particular, quanto a esta questão, que: “20 - O abuso de direito é de conhecimento oficioso, daí que este Supremo Tribunal dele deva conhecer e alterar a decisão recorrida. 21 - O que resultou da prova produzida (e a Relação só levemente se pronuncia sobre o assunto) é que os acordos celebrados entre A. e R. foram propostos pela própria R. que pretendia ver as suas propostas aprovadas e beneficiar da “posição estratégica e influente” – na expressão da apelante utilizada nas alegações de recurso – do autor, na qualidade de funcionário, primeiro, do Grupo M..., e depois, do Centro popular ... , passível de ser usada, designadamente, para a obtenção da aprovação das propostas de prestação de serviços e fornecimento de bens apresentadas pela ré, respetivamente, ao Grupo M... e ao Centro popular ... .” 22 - A R. não pode ser beneficiada com uma posição que ela própria criou e eximir-se a uma responsabilidade que ela própria assumiu, por sua iniciativa e de livre vontade. 23 - A vingar o entendimento sufragado pelo Tribunal da Relação estaríamos a premiar o infractor !!! 24 - A R. criou no A. a confiança de que respeitaria o que anteriormente assumira, isto é, o pagamento das comissões durante o prazo previsto. 25 - A sufragar-se a tese da nulidade dos acordos celebrados entre A. e R. tal configuraria uma situação de manifesto abuso de direito e violadora do vertido no artº 334º do C.C., na modalidade de “venire contra factum proprium” !!! 26 - Foi a R. quem criou toda esta situação: propondo ao A. o pagamento de comissões e criando-lhe a expectativa e plena confiança de que receberia os montantes acordados. 27 - A R. não pode ser premiada pelo Tribunal por uma eventual nulidade por ela própria criada”. Não tem, tão-pouco desta vez, razão o recorrente. É do conhecimento geral que, enquanto expressão da confiança, o venire contra factum proprium concretiza o princípio da boa fé. Recorda António Menezes Cordeiro que “a locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente”13. De acordo com este autor, existe venire contra factum proprium numa de duas situações: “quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e, depois, o pratique e quando uma pessoa, de modo, também, a não ficar especificamente adstrita, declare pretender avançar com certa actuação e, depois se negue” 14. Não obstante não ser possível falar, rigorosamente, em “pressupostos” do venire contra factum proprium, os casos abrangidos são susceptíveis de ser identificados por referência a determinados elementos. A presença e a intensidade destes varia de caso para caso, funcionando eles num “sistema móvel”, em que a falta de um é susceptível de ser suprida pela intensidade especial que assumam os / alguns dos restantes15. Seguindo Paulo Mota Pinto, deve, em primeiro lugar, existir um “comportamento anterior do agente – o factum proprium a que se refere a expressão –, que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança” 16. Este será um pressuposto cuja presença é essencial para a configuração do venire contra factum proprium, não obstante o grau de intensidade ser variável. Em segundo lugar, deve existir “a imputação ao agente, quer desse comportamento, quer do actual comportamento” 17, o que, em regra, envolve um juízo de censura culposa sobre o agente. Em terceiro lugar, deve verificar-se “a necessidade e o merecimento da protecção do atingido com a conduta contraditória” 18, o que significa que o atingido deve estar de boa-fé, tendo confiado na situação criada pelo acto anterior e não esperando nem podendo esperar um comportamento contrário por parte do agente. Em quarto lugar, deve apurar-se o “investimento de confiança”. Como diz Carneiro da Frada, “como princípio, a ordem jurídica apenas reclama dos sujeitos que respeitem os próprios compromissos e não lesem os bens dos demais. Observados estes limites, há liberdade de comportamento. A cada um assiste evidentemente a faculdade de modificar a sua conduta, quando e como lhe aprouver. Deste modo, aquilo que verdadeiramente se visa no venire é tão-só a protecção da confiança criada, melhor, a tutela do investimento do sujeito feito na convicção de um comportamento alheio"19. Relativamente a este “investimento de confiança”, deve notar-se que alguns autores exigem “[a] sua “irreversibilidade ou a eventual 'afectação da situação existencial' daquele que confiou por virtude da frustração desse 'investimento'” 20. Conta-se entre eles Canaris21. Por fim, é preciso que possa afirmar-se “a contrariedade directa entre o anterior e o actual comportamento” 22, sob pena de não se distinguir o venire contra factum proprium de outras formas de tutela da confiança e de ser duvidosa a sua autonomia dogmática. Todos estes elementos – repita-se – funcionam num sistema móvel, podendo variar em número e em força consoante o caso concreto. Isto obriga a que, em cada caso a decidir, se proceda sempre a uma valoração global de todos os elementos e a um controlo da adequação material da solução. A verdade é que os factos provados não permitem identificar qualquer conduta da ré com notas do tipo descrito em número e com força suficientes para que se conclua pelo abuso do direito. Designadamente, não é possível estabelecer uma ligação entre a declaração de nulidade do contrato e o exercício (abusivo) de algum direito pela ré, ao contrário do que se sugere nas conclusões do recurso quando se diz que “[a] sufragar-se a tese da nulidade dos acordos celebrados entre A. e R. tal configuraria uma situação de manifesto abuso de direito e violadora do vertido no artº 334º do C.C., na modalidade de “venire contra factum proprium” !!!” (cfr. conclusão 25). Recorde-se que a ré não requereu a declaração de nulidade. A nulidade foi, de facto, declarada oficiosamente, dizendo-se no Acórdão recorrido o seguinte: “Concluímos, deste modo, que os contratos invocados pelo autor como fundamento do pedido de condenação da ré são contrários à ordem púbica – o que é de conhecimento oficioso”. Disto decorre que nunca poderia estar em causa o direito da ré de arguir a nulidade. * III. DECISÃO Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido. * Custas pelo recorrente. * Lisboa, 17 de Junho de 2025 Catarina Serra (relatora) Carlos Portela Emídio Santos _____
1. Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição), pp. 358-359 (itálicos do autor) 2. Cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Em tema de ordem pública”, in Elsa Vaz de Sequeira (coord.), Católica Talks – Conceitos indeterminados e cláusulas gerais, Lisboa, UCP Editora, 2024, p. 193. 3. Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria geral do Direito civil, Coimbra, Almedina, 2019 (9.ª edição), p. 582. 4. Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria geral do Direito civil, cit., p. 586. 5. Cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Em tema de ordem pública”, cit., pp. 206-207 (itálicos do autor). 6. Cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Em tema de ordem pública”, cit., p. 208 (itálicos do autor). 7. Cfr., indicando referências doutrinais e jurisprudenciais, Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Em tema de ordem pública”, cit., p. 210 e nota 167. 8. Cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Em tema de ordem pública”, cit., pp. 210-212. 9. Cfr. António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1997, p. 1223. Em obra mais recente, o mesmo autor aprecia a jurisprudência em tema de bons costumes, dizendo que domina aquilo que chama “inobservância da deontologia comercial” (in António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil comentado, I – Parte geral, Coimbra, Almedina, 2020, p. 823). 10. Cfr. a afirmação de Portalis, autor da parte geral do Code Civil francês de 1804, referida por Nuno Manuel Pinto Oliveira (“Em tema de ordem pública”, cit., p. 224). 11. Cfr. Manuel Carneiro da Frada, “A ordem pública no Direito dos contratos”, in Manuel Carneiro da Frada, Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 88 (itálicos do autor). 12. Veja-se, por todos, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 9.10.2001 (Proc. 02B749), em cujo sumário pode ler-se: “I - A excepção de abuso do direito é do conhecimento oficioso e pode ser levantada ex-novo perante o S.T.J. em sede de recurso da revista”. 13. Cfr. António Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, cit., p. 742 (itálicos do autor). 14. Cfr. António Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, cit., pp. 746-747. 15. Cfr., entre outros, António Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, cit., p. 759 e pp. 1258 e s., e Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório”, in: Volume Comemorativo do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, Universidade de Coimbra, 2003, p. 302. 16. Cfr. Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório”, cit., pp. 302-303 (sublinhados do autor). 17. Cfr. Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório”, cit., p. 303. (sublinhados do autor). 18. Cfr. Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório”, cit., p. 303. (sublinhados do autor). 19. Cfr. Manuel Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Coimbra, Almedina, 2004, p. 420. 20. Cfr. Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório”, cit., p. 304. (sublinhados do autor). 21. Cfr. Claus Wilhelm Canaris, Die Vertrauenshaftung im Deutschen Privatrecht, München, C.H. Beck, 1971, pp. 513-514. 22. Cfr. Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório”, cit., p. 304. (sublinhados do autor). |