Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA DO CARMO SILVA DIAS | ||
Descritores: | RECURSO DE DECISÃO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA PRESSUPOSTOS JURISPRUDÊNCIA OBRIGATÓRIA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA REVOGAÇÃO ACÓRDÃO RECORRIDO | ||
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Data do Acordão: | 05/29/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL) | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário : |
I. O recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, previsto no art. 446.º do CPP, tem por finalidade a “unidade do direito”, visando manter a uniformidade da jurisprudência já fixada, sendo um meio de corrigir divergências infundadas dessa jurisprudência fixada, que não tiverem sido corrigidas em recurso ordinário. II. Pressuposto material deste recurso extraordinário é que a decisão recorrida tenha sido proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ. III. Tendo em atenção a eficácia definida no art. 445.º do CPP da decisão do STJ que resolve o conflito de jurisprudência, a fundamentação divergente de Acórdão de Fixação de Jurisprudência tem de ser nova, não se bastando com a “repetição” (mesmo por outras palavras) de argumentos já discutidos nesse acórdão de fixação de jurisprudência, nomeadamente, invocados em declarações de voto ou em votos de vencido. IV. Caso contrário, estar-se-ia perante uma desobediência ao ali decidido, sendo inutilizada indevidamente a eficácia legal consagrada no art. 445.º, n.º 3, do CPP, esquecendo-se, igualmente, que existe mecanismo próprio para ser reexaminado pelo Pleno do Supremo Tribunal de Justiça a jurisprudência fixada anteriormente (art. 446.º, n.º 3, do CPP), o qual não pode ser substituído por acórdão proferido por tribunal de categoria inferior. V. Ao sindicar a decisão recorrida, se esta for do próprio STJ, visto o disposto no art. 445.º, n.º 1 e n.º 2, do CPP, o STJ pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada (art. 446.º, n.º 3, do CPP) e, tratando-se de decisão de tribunal inferior (v.g. acórdão do Tribunal da Relação, como aqui sucede), determina o seu reenvio para aplicação da jurisprudência fixada no segmento que não foi observado (caso em que é revogada a decisão recorrida e determinada a sua substituição por outra que aplique a jurisprudência fixada, injustificadamente contrariada). | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 1092/19.4T9PRD.P1-A.S1 Rec. de decisão proferida contra jurisprudência fixada Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório 1. O Ministério Público interpôs recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, nos termos do artigo 446.º, n.º 3, do CPP, por considerar que o Ac. do TRP de 11.10.2023, proferido no processo n.º 1092/19.4T9PRD.P1, que negou provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, já transitado em julgado, desrespeitou ou não observou o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 02/2015 de 19 de fevereiro, publicado no D.R. n.º 35/2015, I.ª Série de 19 de fevereiro. 2. Para o efeito, apresentou as seguintes conclusões (transcrição, sem negritos, nem sublinhados): 1.ª - O presente recurso obrigatório insurge-se contra o Acórdão datado de 11/10/2023 (proferido nos autos) que desrespeitou ou não observou o A.F./U.J. - Acórdão de Fixação ou Uniformização de Jurisprudência n.º 02/2015 de 19 de fevereiro, publicado no D.R. n.º 35/2015, I.ª Série de 19 de fevereiro. 2.ª - Este Acórdão estabeleceu com valor persuasivo reforçado a doutrina ou corrente jurisprudencial que impõe ao aplicador da lei e do Direito a leitura ou entendimento que no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, número 1, e 105º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5º, número 2, do mesmo diploma. 3.ª - O Acórdão recorrido em desrespeito a este comando jurisprudencial interpretou o crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto, sancionado e punido pelos artigos 107.º, número 1, e 105º, números 1 e 5, do Regime Geral ou Organização Quadro das Infrações Tributárias R.G.I.T. aprovado e editado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de junho no sentido e em síntese, de que a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, começa somente a correr a partir do termo do prazo de 90 dias estabelecido na alínea a) do número 4 do citado artigo 105º, na redacção introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29.12, e concluiu no sentido de que o crime em causa não deve considerar-se consumado antes de decorrido o referido prazo de 90 dias estabelecido naquela alínea a) do número 4 do artigo 105 do Regime Geral ou Organização Quadro das Infrações Tributárias R.G.I.T. aprovado e editado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de junho. 4.ª - Razão pela qual a condição de punibilidade, de acordo com o disposto nos art.º 119°n.º 1 e 120° n.º 1 alínea a) do Código Penal C.P., relevaria para efeitos de obstar ao início do prazo de prescrição do procedimento criminal, bem como, para a sua suspensão, já que o termo inicial do prazo de prescrição contar-se-ia apenas a partir do 91.° dia posterior ao termo do prazo legal de entrega da prestação tributária concluindo que só após os 90 dias, ou subsequentemente os 30 dias depois da notificação para o efeito, verificando-se a condição de punibilidade, é que, existiria crime, poderá ser instaurado procedimento criminal (e não antes), só assim se iniciando o decurso do prazo prescricional para o crime em equação. 5.ª Porém, como já se deixou ventilado, o Acórdão recorrido deveria ter interpretado o crime em equação de acordo e integral consonância com a corrente jurisprudencial já anteriormente uniformizada e por conseguinte considerar que no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, número 1, e 105º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5º, número 2, do mesmo diploma. 6.ª - O travejamento essencial em que assentam as razões caraterizadoras ou modeladoras do Acórdão recorrido louvam-se, sobretudo, na retórica argumentativa dos votos de vencido do A.F./U.J. - Acórdão de Fixação ou Uniformização de Jurisprudência n.º 02/0215 que desautorizou e não apresentou qualquer argumento novo e relevante que pudesse infirmar a validade da corrente jurisprudencial anteriormente firmada. 7.º - O Acórdão revidendo violou de forma ostensiva o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 205.º da Constituição Política da República Portuguesa, 97.º e 379.º do Código de Processo Penal C.P.P. em articulação com o preceituado nos artigos 107.º, n.º 1, 105.º, n.º 1 e 5, do Regime Geral ou Organização Quadro das Infrações Tributárias R.G.I.T. aprovado e editado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de junho. 8.ª - Razões pelas quais deverá o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que conheça e decida a causa e o presente pleito de acordo com os pergaminhos dogmáticos e axiológicos inerentes ao A.F./U.J. - Acórdão de Fixação ou Uniformização de Jurisprudência n.º 02/2015 de 19 de fevereiro, publicado no D.R. n.º 35/2015, I.ª Série de 19 de fevereiro que desautorizou. 3. Notificados os sujeitos processuais (arguidos) interessados nada responderam. 4. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer apresentando as seguintes conclusões: “3.1. O presente recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça foi interposto por quem tem legitimidade e interesse em agir e é tempestivo. 3.2. O AFJ n.º 2/2015 publicado no DR n.º 35, Série I, de 19 2 2015, fixou jurisprudência, obrigatória para os Tribunais Judiciais nos seguintes termos, relativamente à questão de direito aí apreciada: «No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º, número 1, e 105.º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5.º, número 2, do mesmo diploma». 3.3. No acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no processo comum singular n.º 1092/19.4T9PRD.P1, transitado em julgado em 26 10 2023, decidiu se expressamente pela não observância obrigatória da jurisprudência firmada nesse AFJ n.º 2/2015, ao fazer constar na respetiva fundamentação as razões da divergência (transcritas na motivação), que epilogaram na seguinte decisão: «…Pelos fundamentos expostos, não se pode acatar o entendimento do referido acórdão do STJ nº2/2015, dado que o início do prazo prescricional deve contar na temporalidade prevista no nº4 do art.105º do RGIT, considerando-se que o crime “in casu” ainda não prescreveu, assim improcedendo as conclusões do recurso, a este respeito…» 3.4. Independentemente das razões invocadas, facto é que no acórdão recorrido não só se diverge, como expressamente não se acata a jurisprudência constante do AFJ n.º 2/2015, apresentando se uma argumentação que se reconduz à que ficou vencida no mesmo AUJ, não sendo, assim, argumentação inovatória. 3.5. A eficácia da jurisprudência obrigatória fixada pelo AFJ n.º 2/2015 ainda que apenas obrigatória para os tribunais judiciais foi posta em causa pela decisão recorrida, a qual assentou em solução oposta relativamente à mesma questão fundamental de Direito, de forma expressa e em contradição efetiva e explicita com esse AFJ; o qual, enquanto acórdão fundamento, assentou em matéria de facto semelhante à apreciada no acórdão recorrido, sem que tenha ocorrido entre ambos alteração relevante do quadro normativo subjacente.” Termina pronunciando-se pela procedência do recurso extraordinário, sendo caso em que o Supremo Tribunal de Justiça se pode limitar a aplicar a jurisprudência fixada, nos termos do artigo 446.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, reenviando o processo para nova decisão e ordenando que nela seja observada a jurisprudência fixada. 5. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem cumpridos os vistos legais e, realizada a conferência, incumbe, agora, decidir. II. Fundamentação 6. O recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, previsto no art. 446.º do CPP, tem por finalidade a “unidade do direito”, visando manter a uniformidade da jurisprudência já fixada, sendo um meio de corrigir divergências infundadas de jurisprudência fixada, que não tiverem sido corrigidas em recurso ordinário. Também aqui está em causa «o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito», como se assinala no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006. Pressuposto deste recurso extraordinário é que a decisão recorrida seja proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, o que significa que esta (a jurisprudência fixada pelo STJ) tem de estar já publicada no DR (art. 444.º, n.º 1, do CPP), para ter a eficácia que lhe é conferida pelo art. 445.º do CPP, quando a decisão recorrida é proferida. Compreende-se que as divergências infundadas de jurisprudência fixada pelo STJ possam ser corrigidas através de recurso ordinário e, caso assim não suceda (ou esgotado aquele meio), então, face ao elevado interesse público em jogo, o legislador admita este recurso extraordinário direto para o STJ, para promover a referida correção, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promover a igualdade dos cidadãos, assim como garantir a uniformização da jurisprudência. Por isso, a admissibilidade desta modalidade de recurso extraordinário, que pode ser direto para o STJ, depende desde logo do “trânsito em julgado da decisão recorrida”, como estabelece o n.º 1 do art. 446.º do CPP, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo. Além da tempestividade da interposição do recurso (prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida – art. 446.º, n.º 1, do CPP), é pressuposto da sua admissibilidade a legitimidade do recorrente (definida nos termos do art. 446.º, n.º 2, do CPP), devendo ser ainda indicada a jurisprudência fixada que foi contrariada pela decisão recorrida (o que é subjacente ao próprio recurso e decorre do art. 446.º, n.º 1, do CPP). Ao sindicar a decisão recorrida, se esta for do próprio STJ, visto o disposto no art. 445.º, n.º 1 e n.º 2, do CPP, o STJ pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada (art. 446.º, n.º 3, do CPP) e, tratando-se de decisão de tribunal inferior (v.g. acórdão do Tribunal da Relação, como aqui sucede), determina o seu reenvio para aplicação da jurisprudência fixada no segmento que não foi observado (caso em que é revogada a decisão recorrida e determinada a sua substituição por outra que aplique a jurisprudência fixada injustificadamente contrariada). 7. Feitas estas considerações genéricas, vejamos se, neste caso concreto, estão ou não preenchidos todos os requisitos acima apontados. Assim. 7.1. Requisitos formais Analisados os autos não há dúvidas que o Ministério Público tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário (art.446.º, do CPP) considerando o seu interesse em agir (era recorrido no acórdão proferido pelo TRP de 11.10.2023) e também visto o disposto no art. 446.º, n.º 2, do CPP, por ser para si obrigatório, visto que invoca ser contrário ao decidido no AFJ n.º 2/2015, publicado no DR n.º 35/2015, I.ª Série de 19 de Fevereiro, que ganhou a eficácia indicada no art. 445.º do CPP. Acresce que, nos termos do art. 446.º, n.º 1, do CPP, o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo. Ora, face ao teor das certidões juntas aos autos, verificando-se que o referido Acórdão do TRP de 11.10.2023, transitou em julgado em 26.10.2023 (dado não admitir recurso ordinário, o prazo é de 10 dias, sendo irrelevante para este efeito a data da retificação do mesmo acórdão), é manifesto que o recurso extraordinário em análise interposto pelo Ministério Público em 10.11.2023 entrou tempestivamente porque dentro do prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, aludido no art. 446.º, n.º 1, do CPP. Mostra-se, pois, preenchido o pressuposto formal da tempestividade da interposição deste recurso extraordinário. Além disso, como se viu, o acórdão sob recurso é posterior à publicação do AFJ n.º 2/2015, publicado no DR n.º 35/2015, I.ª Série de 19 de Fevereiro, que o recorrente invoca ter sido inobservado e contrariado. Estão, pois, preenchidos todos os requisitos formais. Resta, por isso, verificar se está preenchido o pressuposto material da decisão recorrida ter sido proferida contra a referida jurisprudência fixada pelo STJ e, ver o procedimento a seguir. 7.2. Requisito material Como resulta do recurso do Ministério Público, a decisão recorrida contraria a jurisprudência fixada no AFJ n.º 2/2015, sem apresentar argumentação inovatória, uma vez que se limita a sustentar o que foi defendido nos votos de vencido, quando conheceu da questão colocada no recurso relativa à prescrição do procedimento criminal. Vejamos então o que consta da decisão recorrida com interesse para a decisão deste recurso. O Acórdão da Relação do Porto em causa, julgou improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, que foi condenado pela 1ª instância (além do mais) como autor material, na forma consumada e continuada, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punível pelos artigos 30.º, do Código Penal, 6.º e 107.º, n.ºs 1 e 2, por referência ao artigo 105.º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b) e 7, todos do R.G.I.T. na pena de 1 (um) e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, a contar do trânsito em julgado da dita decisão, nos termos do disposto no artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto), condicionada ao pagamento, a efetuar durante esse período, do montante de € 21.046,92 (vinte e um mil e quarenta e seis euros e noventa e dois cêntimos) e acréscimos legais, ao abrigo do preceituado no artigo 14.º, do R.G.I.T.. Uma das questões colocadas no recurso do referido arguido foi precisamente a da prescrição do procedimento criminal. No acórdão recorrido, quando se trata dessa questão, escreve-se o seguinte: Sendo arguida a prescrição do procedimento criminal, quanto ao crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto e punido pelos arts. 107.º “ex vi” art. 105.º, nºs 1, 4, 5 e 7 do RGIT, atenta a moldura de 3 anos ou pena de multa, corresponderá ao prazo prescricional de 5 anos, cfr.art.21º nº1 do RGIT e art.118 nº1 alínea c) do CP, sendo que os factos imputados ao arguido em relação a todos os delitos, vinham sendo cometidos desde 2010, concretizando-se as últimas execuções típicas por omissão em 20 de Março de 2015. Sustentando o recorrente que as retenções discriminadas na acusação e factos provados, intervalam desde 2010 a fevereiro 2015, e a entrega desta última à segurança social devendo ter ocorrido até ao dia 20 de março de 2015, artigo 43º da Lei nº 110/2009 de 16 de setembro e artigo 5º nº 2 do RGIT, face ao que dispõe o art.119º do alínea do CP, imporia que o prazo prescricional se iniciasse desde esse momento, o que, acrescentamos nós, na ausência de qualquer suspensão ou interrupção do prazo, nos cinco anos seguintes, até Março de 2020 (pois o arguido somente veio a ser constituído arguido em 31/05/2021, e antes dessa data não ocorrera outro facto interruptivo ou suspensivo) determinaria a prescrição do procedimento criminal. Considerando que o arguido somente veio a ser notificado a 04 de Outubro de 2019 (fls.213), para no prazo de 30 dias proceder ao pagamento do valor em dívida nos termos e com os efeitos previsto no art.º 105.º n.º 4 do RGIT (cfr.pontos 10 e 11 dos factos provados), questiona-se se, somente a partir do termo desse prazo, se inicia a contagem do prazo de prescrição, que, no caso em concreto, sendo de 5 anos, não se encontra decorrido, como sustenta o MºPº em 1ª instância. O centro desta discussão situa-se na incidência das condições de punibilidade previstas no nº4 do art.105º do RGIT e a sua repercussão na contagem do prazo de prescrição, em particular na alínea b) desse preceito, por ser “in casu” a aplicável, dado que a notificação em causa quando ocorre para além dos 90 dias, nesse caso, serão os subsequentes 30 dias a contar da notificação, os relevantes (neste sentido, ver Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Tributário”, pág. 246, Lisboa, 2009), pois essa temporalidade posterior já não interfere com a ilicitude ou culpa do agente. Porém, insofismável, é que o crime só se torna punível na temporalidade aí prevista, no caso, nos 30 dias após a notificação, dado que esta ocorre após os 90 dias (prazo este previsto na alínea a) do nº4 do art.105º do RGIT). A favor da tese do arguido (embora não invocado pelo mesmo) milita o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2015, que contou com quatro lúcidos e esclarecidos votos de vencido, vindo esse acórdão estabelecer o seguinte sumário: No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, número 1, e 105º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5º, número 2, do mesmo diploma. De entre os argumentos apresentados neste Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, a propósito da alínea b) do nº4 do art.105º do RGIT, com o devido e merecido respeito, a tese aí defendida funda-se, no essencial, na natureza de crime de omissão pura que se consuma no momento em que o agente não entrega à Segurança Social, no prazo estabelecido, as prestações, e desse argumento não se conseguiu libertar o eminente Acórdão. E desta forma, desconsiderou-se a importância e funcionalidade das condições de punibilidade na conceção unitária do crime (enquanto facto digno de pena), assim se criando fortes distorções na dogmática, adiante especificadas. Também se insiste num argumento de ordem prática, que, por essa mesma razão, não pode fugir à natureza casuística dos exemplos dados, concretamente, quando se sustentam os casos em que a administração deixa passar algum tempo até proceder à notificação prevista nessa alínea b). Os votos de vencido sublinharam que, porque a situação tributária nem sempre é de fácil apreensão, não obstante a ilicitude estar consumada com o termo do prazo nos termos do art.5º nº2 do RGIT, por essa circunstância, o legislador no nº4 do art.105º do RGIT aditou elementos que retardam a punição, por forma a facilitar o esclarecimento da situação. Acresce que, antes da temporalidade alargada prevista no referido nº4 do art.105º, logo após o termo do prazo, apenas existe um ilícito de contra-ordenação previsto no art.114º nºs1 e 2 do RGIT, associado a um estado de mora, mas não existe crime, e portanto, não pode ficcionar-se o início do prazo prescricional reportado a um tempo em que o ilícito para o ordenamento jurídico não é criminalmente punível, pois, somente é um ilícito de mera ordenação social, onde, após o termo do prazo previsto no art.5º nº2 do RGIT apenas se iniciou o prazo prescricional para a contra-ordenação. Como diz a Conselheira Drª. Helena Moniz “não pode começar-se a contar um prazo de prescrição do procedimento criminal quando ainda nem sequer é possível instaurar aquele.” Após o decurso do tempo para a entrega da última prestação à segurança social, ocorrida até ao dia 20 de março de 2015, iniciou-se a mora, consubstanciando uma infração tributária punida como contraordenação, e aí, acrescentamos nós, se inicia apenas o prazo prescricional deste ilícito de mera ordenação social; só após os 90 dias, ou subsequentemente os 30 dias depois da notificação para o efeito, verificando-se a condição de punibilidade, é que, existindo crime, pode ser instaurado procedimento criminal (antes não), assim se inicia o decurso do prazo prescricional para o crime. Não é pois concebível ficcionar que após o termo do prazo típico para entrega das contribuições nos termos do art.5º nº2 do RGIT, corram em simultâneo dois prazos prescricionais, um pelo delito de mera ordenação social, e um outro por um delito criminal, que ainda não é punível Portanto, antes de verificada a condição de punibilidade, não só, não pode ser instaurado o procedimento criminal, como inexiste, por isso, qualquer inércia por parte do Estado no exercício do seu poder punitivo, não estando verificados os fundamentos do curso do prazo prescricional, o qual joga com as necessidades de prevenção especial e geral da punição, as quais se mantém, enquanto o agente ainda não praticou um facto punível pela lei penal, e enquanto a lei tributária lhe concede o tempo para cumprir o pagamento da quantia em dívida. O arguido mesmo após o termo do prazo para entregar as contribuições, onde a doutrina vê já fechada a ilicitude e a culpa, no curso dos prazos de 90 dias, ou nos 30 dias após notificação, pode ainda pagar e assim reverter a ilicitude penal, sem que aquela primeira etapa de ilicitude seja determinante para o cometimento do crime. Ou por outra, há quem questione se o nº4 do art.105º do RGIT contempla autênticas condições objetivas de punibilidade, dado que, as condições para proceder ao pagamento, e o seu grau de censura continuam em aferição nesse tempo concedido, pois o arguido, pode bem invocar causas de exclusão da ilicitude ou culpa, ocorridos nesse tempo aditado por lei. A dilação temporal prevista no nº 4, ontologicamente mede o comportamento do arguido durante todo esse período, pois o mesmo pode ainda fazer cessar e reverter a ilicitude criminal. Não se pode esquecer que o tempo e prazo de pagamento (com os seus acrescentos) constituem os parâmetros estruturais e ontológicos das prestações pecuniárias, daí que, no horizonte da dogmática penal, se estreite o espaço entre estas condições de punibilidade e os parâmetros da ilicitude. Pelos fundamentos expostos, não se pode acatar o entendimento do referido acórdão do STJ nº2/2015, dado que o início do prazo prescricional deve contar na temporalidade prevista no nº4 do art.105º do RGIT, considerando-se que o crime “in casu” ainda não prescreveu, assim improcedendo as conclusões do recurso, a este respeito.” * Analisando a referida fundamentação de direito do acórdão recorrido verifica-se que, como bem alega o recorrente, o mesmo se socorreu “da retórica argumentativa convocada pelos votos de vencido do AFJ n.º 2/2015”, a qual já tinha sido devidamente discutida, ponderada e afastada quando naquele acórdão do STJ foi uniformizada a jurisprudência. A fundamentação divergente de AFJ tem de ser nova, não se bastando com a “repetição” (mesmo por outras palavras) de argumentos já discutidos nesse acórdão de fixação de jurisprudência, nomeadamente, invocados em declarações de voto ou em votos de vencido. Caso contrário, estar-se-ia perante uma desobediência ao ali decidido, sendo inutilizada indevidamente a eficácia legal consagrada no art. 445.º, n.º 3, do CPP, esquecendo-se, igualmente, que existe mecanismo próprio para ser reexaminado pelo Pleno do Supremo Tribunal de Justiça a jurisprudência fixada anteriormente (art. 446.º, n.º 3, do CPP), o qual não pode ser substituído por acórdão proferido por tribunal de categoria inferior1. Percebe-se, pois, que para um tribunal poder divergir e afastar a aplicação de jurisprudência obrigatória nos termos do art. 445.º, n.º 3, do CPP, terá de apresentar uma argumentação nova, que não foi apreciada no acórdão de fixação de jurisprudência de que se pretende afastar. Ora, como se viu, neste caso concreto, nem a Relação invocou qualquer argumento novo que justificasse a alegada divergência do AFJ n.º 2/2015 (antes se limitando a repetir argumentos que já decorriam dos votos de vencido), nem tão pouco apontou uma simples razão que conduzisse à necessidade de atualizar a jurisprudência decorrente daquele AFJ e, portanto, que justificasse o seu reexame. No entanto, apesar de não fundamentar minimamente de forma inovadora a sua divergência, foi bem clara e expressa a sua decisão de não acatar o entendimento do referido acórdão do STJ nº 2/2015. Aliás, como bem refere o Sr. PGA a decisão recorrida “(…) assentou em solução oposta relativamente à mesma questão fundamental de Direito, de forma expressa e em contradição efetiva e explicita com esse AFJ, o qual, enquanto acórdão fundamento, assentou em matéria de facto semelhante à apreciada no acórdão recorrido, sem que tenha ocorrido entre ambos alteração relevante do quadro normativo subjacente.” Ou seja, no segmento assinalado (quando conheceu da questão da prescrição do procedimento criminal) o acórdão sob recurso representa um caso nítido de incumprimento, sem qualquer fundamento ou justificação, da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 2/2015, que tem a eficácia assinalada no art. 445.º, n.º 3, do CPP. A Relação deve obediência à jurisprudência fixada no referido Acórdão do STJ n.º 2/2015, pelo que, não havendo motivo para proceder ao seu reexame, impõe-se julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogar o acórdão recorrido no segmento em que injustificadamente divergiu do AFJ n.º 2/2015, publicado no DR n.º 35/2015, I.ª Série de 19 de Fevereiro, determinando que nessa parte seja substituído por outro no qual seja aplicada a jurisprudência ali fixada. * III - Decisão Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente este recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça e, consequentemente, nos termos do art. 446.º, n.º 3, do CPP, revogar o Acórdão recorrido no segmento em que injustificadamente divergiu do AFJ n.º 2/2015, publicado no DR n.º 35/2015, I.ª Série de 19 de Fevereiro, determinando que nessa parte seja substituído por outro no qual seja aplicada a jurisprudência ali fixada. Sem custas. * Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo depois assinado. * Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Maio de 2024 Maria do Carmo Silva Dias (Relatora) José Luís Lopes da Mota (Adjunto) Maria Teresa Féria de Almeida (Adjunta) __________ 1. Maria do Carmo Silva Dias, Comentário Judiciário do Código Processo Penal, tomo V, Almedina, Coimbra, 2024, p. 367. |