Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4141/18.0T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
PRESSUPOSTOS
NEGLIGÊNCIA
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
PERÍCIA
INVENTÁRIO
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A deserção da instância declarativa tem por pressuposto não só o decurso do prazo de seis meses e um dia, mas também um juízo sobre a falta de diligência da parte (culpa da parte) onerada com o impulso processual em promover os termos do processo ou incidente durante tal período.

II. E só se pode falar em ónus de impulsionar os autos quando a lei assim o prever, como ocorre, v.g., com a habilitação de herdeiros. Não prevendo a lei a necessidade de impulso dos autos, para os mesmos prosseguirem os seus regulares termos, incumbe ao juiz diligenciar pelo seu andamento célere, em conformidade com o estatuído no artº 6º, nº1 do CPC.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível

I – RELATÓRIO

AA, residente na Rua dos ..., n.º ..., ..., ..., intentou acção especial de divisão de coisa comum contra BB e mulher CC, tendo em vista a divisão dos bens móveis e imóveis que foram adjudicados à requerente e ao requerido marido, no processo de inventário que correu por óbito dos progenitores de ambos, na proporção de 19,269875% para a primeira e 80,730124% para o segundo, afirmando que nenhum daqueles bens é divisível em substancia.

Juntou um documento, arrolou testemunhas e requereu a realização de perícia aos bens, tendo como objecto a questão da sua indivisibilidade.

Na contestação que apresentaram, os requeridos não questionaram a proporção das quotas alegada pela requerente nem a indivisibilidade dos bens, mas arguiram a ilegitimidade processual da requerida mulher e alegaram que alguns dos bens a dividir foram relacionados em duplicado e que outros podem já não existir, pelas razões que aduzem.

O tribunal a quo julgou improcedente a excepção de ilegitimidade e determinou a realização da perícia colegial requerida, ao abrigo do disposto no artigo 926.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC), «com vista à fixação dos respetivos quinhões, bem como, se necessário, a questão de se saber qual o respetivo valor patrimonial» (cfr. despacho de 03.09.2018).

Pelo colégio de peritos foi junto aos autos relatório de avaliação dos bens imóveis (edifício e jazigo), não se pronunciando sobre a questão da indivisibilidade ou sobre a formação dos quinhões.

O tribunal a quo designou data para conferência de interessados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 929.º, n.º 2, do CPC, na qual:

- Em face da insistência dos requeridos para que o tribunal conhecesse como questão prévia da alegada duplicação e inexistência de alguns dos bens, o tribunal julgou extemporânea essa questão;

- Perante a falta de acordo das partes, julgou imprescindível a avaliação dos bens móveis.

Os autos prosseguiram nesses termos, tendo o perito nomeado junto aos autos o relatório de avaliação das joias que se encontram depositadas na Caixa Geral de Depósitos e, posteriormente, dos bens que se encontram em ... ..., acrescentando que tentou várias vezes que os restantes lhe fossem disponibilizados mas que isso sempre lhe foi recusado (cfr. requerimento de 29.09.2022).

Depois de ouvidas as partes, o tribunal notificou o perito para esclarecer «a quem solicitou esses bens para avaliar, quem recusou, o concreto argumento da recusa e o demais circunstancialismo relevante».

Em resposta, o perito começou por informar que quem concedeu o acesso aos bens a avaliar «foi o Sr. Eng. DD».

O Tribunal ordenou a notificação das partes para se pronunciarem e para requererem o que tivessem por conveniente, recordando que os autos havia tido o seu início há 5 anos.

Perante o silêncio das partes, em 29.03.2023 proferiu o seguinte despacho:

«Em face do silêncio das partes quanto ao teor do requerimento do Sr. Perito, de 28/02, aguardem os autos que algo seja requerido, sem prejuízo do disposto no artigo 281º do CPC».

Em 24.05.2023, para além de requerer a fixação dos seus honorários, o perito veio complementar a informação que havia prestado, esclarecendo que avaliou os bens que lhe foram apresentados pelo Sr. Eng. DD, marido da requerente destes autos, os quais estavam depositadas num prédio em ..., ..., e que os demais bens a avaliar, na posse do requerido, foram a este solicitados, tendo o mesmo dito que não os tinha.

Os autos foram apresentados ao Sr. Juiz a quo com termo de conclusão de 26.05.2023, tendo este fixado os honorários do perito, nada mais dizendo.

Em 21.09.2023, DD apresentou um requerimento onde pede a fixação da remuneração que lhe é devida pelo exercício do cargo de depositário dos bens móveis que se encontram no imóvel sito em ..., ..., para o qual foi nomeado no processo de execução que identifica, mais solicitando a remoção desse cargo.

Por despacho de 25.09.2023, o tribunal ordenou a notificação das partes para se pronunciarem quanto ao requerido pelo fiel depositário, nada tendo sido dito ou requerido por estas.

Em 17.10.2023 o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

«No seguimento do despacho de 29/03, e mantendo-se o silêncio das partes, e nos termos do artigo 281º, n.º 1 e 4 do CPC, julgo deserta a instância.

Custas pela requerente.

Registe e notifique e, oportunamente, arquivem-se os autos».


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Inconformada, a requerente apelou desta decisão, vindo a Relação do Porto, em acórdão, a revogar a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos.

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Por sua vez inconformados, vêm os recorrentes BB e CC interpor recurso de revista, apresentando alegações que rematam com as seguintes

CONCLUSÕES

1. Da análise preconizada pelo Tribunal da Relação no acórdão proferido, resulta que o mesmo fez uma errada interpretação e análise daquela que foi a sequência de atos praticados nos presentes autos, bem como do impulso processual (ou falta dele) que incumbia às partes – neste caso, à Recorrida –, e das consequências legais impostas à luz do regime da deserção da instância, previsto no artigo 281.º do CPC.

2. Contrariamente ao entendimento do tribunal recorrido, entende o Recorrente ser manifesto e por demais evidente que os presentes autos estiveram parados mais de seis meses; questão diversa será, por ora, proceder ao enquadramento processual dos aludidos atos que foram sendo praticados dentro deste cômputo de seis meses.

3. Não pode, para este efeito, perder-se de vista que depois de notificadas as partes quanto ao esclarecimento propriamente dito do perito, primeiramente prestado pelo perito em 28.02.2023, nada foi por estasrequerido ou pronunciado.

4. Note-se que, para além disso, nenhum daqueles atos em causa poderá ser concebível como um ato processual praticado por qualquer das partes em juízo, porque, desde logo, não o são.

5. Se o primeiro daqueles actos respeita a um esclarecimento so perito, já o segundo respeita ao despacho de fixação de honorários de perito – que pela sua natureza deve, inclusive, ser concebido como sendo de mero expediente.

6. O mesmo cumpre dizer, aliás, quanto ao “requerimento apresentado em 21.09.2023 pelo depositário dos bens, pedindo a fixação da sua remuneração e a sua remoção do cargo”, pois que, também este não poderá ser concebível como um ato processual praticado por qualquer das partes em juízo.

7. Acresce que, é o próprio tribunal recorrido quem aponta que o “teor desse requerimento [de 21.09.2023, apresentado pelo depositário dos bens] se revele estranho ao presente processo, devendo ter sido apresentado no processo de execução em que o fiel depositário foi nomeado”.

8. Entender, como entendeu o tribunal recorrido, que “foi o próprio tribunal que determinou a sua notificação às partes para os referidos fins” e que seria “incoerente desconsiderar essa notificação”, é uma solução que, além de desequilibrada, subverte em absoluto o instituto da deserção da instância.

9. Se a lei comina a inércia (negligente) das partes com a extinção da instância, sob um escopo que é claramente compulsório e de matriz objetiva, para promoção da celeridade e eficiência processuais, admitir que os termos do processo se possam considerar promovidos – ou, pelo menos, que não se consideram parados – por força da apresentação de um requerimento que se “revel[a] estranho ao presente processo”,

retiraria toda e qualquer eficácia ao instituto da deserção da instância.

10. Seguindo de perto o raciocínio do tribunal recorrido, dir-se-ia então que qualquer requerimento deduzido nuns concretos autos, ainda que desprovido de contexto, mérito ou propósito processuais, serviria o propósito de interromper a contagem de seis meses fixada e, com isso, acabar por frustrar a decisão de declarar deserta a instância.

11. Tentar extrair da atual lei, pela redação do art.281.º do CPC, um entendimento semelhante ao que operou o tribunal recorrido, provocaria um desequilíbrio e a ab-rogação deste instituto jurídico, tal qual efetivamente desenhado pelo legislador.

12. Simultaneamente, tornaria a manutenção das instâncias permeável e dependente da verificação de ocorrências estranhas – como sucede in casu, através de um requerimento de terceiro que nem sequer figura como interveniente nos autos.

13. No que concerne à sucessão de atos processuais praticados, vejamos:

a. Por despacho de 07/09/2018, e nos termos do disposto no art.924.º, n.º 4 do CPC, determinou o tribunal de 1.ª instância que “para realização de perícia com vista à fixação dos respetivos quinhões, bem como, se necessário, a questão de se saber qual o respetivo valor patrimonial”;

b. Por despacho de 22/03/2019, determinou o tribunal de 1.ª instância que “Os Peritos deverão pronunciar-se a respeito da fixação dos respetivos quinhões, realidade que não se encontra retratada no relatório que submeteram aos autos”;

c. Despacho esse que o tribunal de 1.ª instância voltou a repetir em 24/04/2019;

d. Em 17/04/2019, responderam os Peritos dando nota de que “a nossa função no processo foi a avaliação dos bens imóveis e agora o Meritíssimo Juiz e os Exmos. Mandatários obterão o valor do quinhão que cabe a cada irmão.” – posição que, aliás, entendemos ser ajuizada;

e. Por despacho de 11/06/2019, notificou o tribunal de 1.ª instância que “resta agora designar a conferência de interessados (...) agendando-se para o efeito o próximo dia 2JUL2019, pelas 14 horas” – a qual veio a ter lugar na data designada, conforme a ata de conferência de interessados junta aos autos;

f. Na data de 30/09/2019 e no seguimento da segunda diligência promovida em sede de conferência de interessados, “prosseguem os autos e, no caso dos autos, em face da natureza e característica dos diversos bens móveis (artigos em ouro, prata, mobiliário, etc. etc.), impõe-se, para obtenção do seu justo valor, uma avaliação (destacado nosso);

g. Por despacho de 19/05/2020, determinou o tribunal de 1.ª instância que “indique a secção entidades idóneas à avaliação dos bens, considerando-se a sua natureza e características”;

h. E, novamente por despacho de 15/06/2020, notificou o tribunal de 1.ª instância que “Em face do silêncio das partes, pode iniciar-se a avaliação determinada”;

i. Ainda por despacho datado de 24/09/2020, notificou o tribunal de 1.ª instância de que “Diligencie-se conforme determinado no despacho proferido a 15JUN2020”;

j. Por e-mail datado de 27/11/2020 e que se encontra junto aos autos, comunicou o perito nomeado que “relativamente ao estado da diligência no âmbito do processo 4141/18.0T8PRT, embora tenha contactado ambos os advogados, apenas o Dr. EE [mandatário dos Recorrentes] se mostrou disponível, apesar da minha insistência, não obtive retorno nem me foi devolvida qualquer chamada da outra parte [Recorrida], mesmo depois de vários pedidos para o seu escritório e chamadas para o número particular que não foram atendidas ou devolvidas” (destacado nosso);

k. Na data de 14/12/2020, e em face da informação prestada pelo perito, notificou o tribunal de 1.ª instância a Recorrida “para se pronunciar, no prazo de 10 dias, esclarecendo em conformidade”;

l. Em resposta, veio a Recorrida comunicar que “nunca deteve fisicamente um qualquer bem integrante dos acervos patrimoniais de FF e GG” e que “dos bens a dividir nos presentes autos, a requerente não tem nenhum”, sendo certo que foi o marido da Recorrida, DD, em 24-10-2018, foi constituído fiel depositário dos bens móveis – mobiliário” (destacado nosso);

m. Por despacho datado de 07/06/2021, determinou o tribunal de 1.ª instância que “Quanto aos bens móveis cuja divisão foi igualmente requerida, as partes encontram-se em dissenso (... ) não obstante, determinou-se uma avaliação, que, por força da situação de pandemia, não se iniciou ainda. (...) Para tanto e naturalmente, quer a Requerente quer os Requeridos deverão colaborar e indicar ao Avaliador os bens que dispõem e onde se encontram (destacado nosso);

n. Posteriormente, por despacho datado de 22/11/2021, determinou o tribunal de 1.ª instância que “A diligência terá então lugar na data consensualizada, ou seja, dia 30NOV2021, pelas 10 horas. (...) Quanto à pretensão da Requerente (...) as partes podem assistir à diligência”;

o. Na data de 20/05/2022, foi pelo tribunal de 1.ª instância proferido despacho no sentido de não se verifica a nulidade reclamada pela Requerente [reclamação que havia deduzido com base no facto de não ter estado presente na perícia] porquanto o agendamento da perícia foi-lhe comunicado, sem qualquer reparo. (...) Também não se vislumbra qualquer deficiência, obscuridade ou contradição ou falta de fundamentação das conclusões alcançadas pelo Perito”;

p. Por despacho datado de 23/01/2023, foi determinado que “no seguimento do despacho de 15/11, insista junto do encarregado de venda pelo envio das informações em falta”;

q. Na senda desse despacho, veio o perito em 23/02/2023 “informar Vª. Exa. que concedeu o acesso aos bens avaliar foi o Sr. Eng. DD [marido da recorrida], que os mesmos se encontravam em ... (destacado nosso);

r. Em 29/03/2023, veio o tribunal de 1.ª instância, por via de despacho, constatar que “Em face do silêncio das partes quanto ao teor do requerimento do Sr. Perito, de 28/02, aguardem os autos que algo seja requerido, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º do CPC”;

s. Na data de 21/09/2023, veio o fiel depositário dos bens nomeado nos autos (marido da Recorrida), requerer a sua remoção daquele cargo;

t. Na data de 17/10/2023, veio o tribunal de 1.ª instância determinar que “mantendo-se o silêncio das partes, e nos termos do artigo 281.º, n.º 1 e 4 do CPC, julgo deserta a instância.”

14. Note-se que, a última intervenção da Recorrida nos presentes autos, por via de requerimento, data de 14/10/2022.

15. Contrariamente ao sufragado no aresto recorrido, não se vislumbra como poderia o tribunal de 1.ª instância ter determinado a concreta fixação dos quinhões, porquanto, nem por um lado se conhecia o paradeiro, ou, sequer, a real existência de alguns dos bens móveis que integram o processo de inventário, como, por outro, e em resultado disso, não estava o tribunal de 1.ª instância em condições de determinar o valor patrimonial de tais bens.

16. Sabe-se que, a Recorrida, enquanto cabeça-de-casal, não cuidou de promover, em tempo útil, a conservação dos bens sobre os quais deveria ter exercido as competências que lhe estão acometidas; sendo que, a outra parte dos bens móveis a dividir encontra-se armazenada num imóvel sito em ... (..., que foi adjudicado à Recorrida no processo de inventário.

17. Além de ser a Recorrida quem, desde 2018, tem acesso (ou deveria ter, se sobre esses bens tivesse atuado em conformidade com o papel de cabeça-de-casal assumido) aos aludidos bens móveis, na sequência da entrega do imóvel promovida por agente de execução, no âmbito do processo de execução para entrega de coisa certa,

18. É também, precisamente, o marido da Recorrida, DD, quem assumiu o papel de fiel depositário do recheio que se encontrava naquele imóvel sito em ..., e que, sabe-se agora, fruto do requerimento por este interposto, não terá assumido adequadamente as vestes de fiel depositário–tudo conforme documentos juntos aos autos com o requerimento deduzido pelo Recorrente.

19. É de realçar a total falta de cooperação e ostensivo silêncio que a Recorrida assume nos presentes autos, na medida em que, mesmo interpelada para o esclarecimento do paradeiro, da existência ou para a viabilidade de avaliação dos bens, com vista a prosseguir com as finalidades da conferência há muito iniciada, nada veio a Recorrida acrescentar.

20. Não deveriam, nesta fase, e em circunstâncias processuais ditas normais, estarem os autos a aguardar por um qualquer impulso processual das partes, mas a verdade é que o estão e há muito, por sinal, há bem mais do que seis meses.

21. Sendo que o único interveniente com capacidade para a promoção desse mesmo impulso era a Recorrida, ao conceder, nos autos, o necessário acesso aos bens que detém, bem como àqueles que durante anos estiverem à guarda do seu marido, na qualidade de fiel depositário, a fim de determinar a concreta fixação dos respetivos quinhões.

22. Constata-se que foi a Recorrida quem, inicialmente, requereu que fossem solicitados esclarecimentos ao Perito, nomeadamente, de que o “Sr. Perito avaliador deverá esclarecer a quem solicitou esses bens para avaliar, e quem recusou, bem como o concreto argumento de recusa, o que se requer”, o que fez por via de requerimento datado de 12/10/2022.

23. Sendo que, depois do esclarecimento prestado pelo perito em 23/02/2023 e até à decisão de deserção da instância, datada de 17/10/2023, não praticou a Recorrida mais qualquer ato nos autos.

24. Tendo a Recorrida sido por diversas notificada para se pronunciar nos presentes autos, mantendo o seu sepulcral silêncio, sempre será de presumir, em toda a linha, o seu desinteresse na continuação da presente instância.

25. Resultado com o qual, de resto, acabou por se conformar e aceitar, com todas as implicações legais que daí decorrem, quando, notificada em 29/03/2023, das possíveis consequências da sua conduta omissiva, ainda que por mera referência ao artigo 281.º, n.º 1 do CPC, optou por manter a mesma.

26. Nesta linha, veja-se a decisão perfilhada no douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/01/2023, proferido no Proc. n.º 13761/18.1T8LSB.L2-2.

27. Como também o Supremo Tribunal de Justiça, no recente acórdão de 20/04/2021, no âmbito do Proc. n.º 27911/18.4T8LSB.L1.S1.

28. Impõe-se, de resto, afirmar e propugnar que os princípios da cooperação e da gestão processual não podem ser percebidos como se obrigassem a uma intervenção subjetivista, tutelar, paternalista ou assistencial do juiz, nem podem ser interpretados por forma a que deles decorra uma total desresponsabilização da parte.

29.A este respeito, refere o Tribunal Central Administrativo do Norte, em acórdão de 11/09/2015, que “gerir o processo, no âmbito do dever ínsito no 1 do artigo do CPC de 2013, não implica que o juiz deva substituir as partes nos deveres que sobre elas impendem, nem afasta o princípio da autorresponsabilidade das partes que a ressalva do n.º 1 do artigo 6.º e o artigo 7.º, n.º 1, continuam a prever. Se sobre o juiz impende o dever de gestão do processo, não menos sobre as partes impende o dever de cooperação e de proactividade na prática dos actos processuais impulsionadores do processo, especialmente quando a lei prevê expressamente os passos, incidentais ou outros, que devem ser seguidos, segundo pauta processual definida, e quando a lei de forma igualmente expressa comina com a deserção a sua inércia”.

TERMOS EM QUE SE CONCLUI PELA PROCEDÊNCIA DO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, PELA REVOGAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA QUE, CONFIRMANDO A DECISÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL DE 1.ª INSTÂNCIA.


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Não foram presentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida e pelas conclusões das alegações de recurso (sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha), atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), a única questão a decidir consiste em saber se bem andou, ou não, a 1ª instância na prolação do despacho de 17.10.2023, que julgou deserta a instância (nos termos ínsitos no artº 281º, nºs 1 e 4 do CPC).

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III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. FACTOS PROVADOS

A matéria de facto provada e relevante para a apreciação da revista é que no Relatório supra ficou descrita.

III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

A revista vem interposta do acórdão da Relação que revogou a decisão da 1ª instância, de 17.10.2023, a qual, “no seguimento do despacho de 29.03, e mantendo-se o silêncio das partes, e nos termos do artigo 281º, nºs 1 e 4 do CPC”, julgou “deserta a instância”.

Considerou, em suma, a Relação que, por um lado, não se deve considerar que o processo esteve parado mais de seis meses e, por outro, que o prosseguimento da instância não dependia do impulso das partes (dessa forma, entendeu não se verificarem, in casu, os pressupostos de que depende deserção da instância).

A deserção da instância é uma das formas de extinção da instância (ut art.º 277º, c) do CPC). Reza o art.º 281º do CPC:

“1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual mais de seis meses.

(…)

4 - A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.

Com a deserção da instância, foi intenção do legislador eliminar os factores de morosidade da justiça, encurtando em seis meses o prazo de inércia das partes – mas sem o sacrifício, em primeira linha, do princípio do contraditório, evitando-se, nomeadamente, decisões surpresas1 (contraditório que, in casu, ocorreu, com a prolação do despacho de 29.03.2023).

Em termos legais realça-se o facto de a declaração de deserção deixar de operar “ope legis” para operar “ope judicis”, deixando, portanto, de ser automática para obrigar a uma decisão do juiz.

Efectivamente, no novo Código Processo Civil deixou de existir a figura da interrupção da instância, que pressupunha a prolação de um despacho a declarar essa interrupção. Pois que na vigência do disposto no art. 291º, n.º 1 do CPC de 1961, aprovado pelo Decreto-Lei nº 44129, de 28 de Dezembro, a deserção era de funcionamento automático, isto é, a instância considerava-se deserta, independentemente de qualquer decisão judicial – devendo porém aquele normativo ser compaginado com o art.º 285º, que estatuía: “A instância interrompe-se, quando o processo estiver parado durante mais de um ano por negligência das partes em promover os seus termos ou os de algum incidente do qual dependa o seu andamento”, e com o art.º 286º que dispunha, por sua vez, que “cessa a interrupção se o autor requerer algum acto do processo ou do incidente de que dependa o andamento dele, sem prejuízo do disposto na lei civil quanto à caducidade dos direitos”, normativos que não contêm correspondência no actual CPC de 2013.

Como já acima observámos – se bem que tal tenha gerado e continue a gerar alguma controvérsia –parece ser de exigir a prolação de despacho que advirta para a possibilidade de deserção referindo, dessa forma se observando o dever de prevenção de que fala LEBRE DE FREITAS2

Ou seja, o novo Código, nas acções declarativas passou a exigir a prolação de despacho a declarar a deserção, que, como vimos, antes operava automaticamente decorridos 2 anos após o despacho a declarar interrompida a instância.

Sem embargo, porém, no novo CPC, o art. 281º, nos seus vários números, mesmo na acção executiva, estabelece que a deserção tem como requisito a negligência das partes.

Assim, a deserção não ocorre automaticamente pelo decurso do prazo de 6 meses, antes só opera quando resultar do processo que este esteve parado por esse período por culpa da parte, sobre quem recai esse ónus, em regra, o A.

Temos, pois, que a deserção da instância declarativa tem por pressuposto não só o decurso do prazo de seis meses e um dia mas também um juízo sobre a falta de diligência da parte onerada com o impulso processual em promover os termos do processo ou incidente durante tal período.

Assim, para que possa declarar-se deserta a instância, impõe-se se verifiquem os seguintes requisitos ou pressupostos:

- Que o prosseguimento da instância dependa do impulso das partes oneradas com o impulso processual;

- Que a ausência desse impulso processual se mantenham por período de mais de seis meses;

- Que tal ausência do impulso processual ocorra por negligência das partes.

A que acresce, como acima ficou dito e vem sendo dito pela jurisprudência e doutrina, pelo menos nos casos em que seja menos evidente que o prosseguimento da instância está dependente do impulso das partes, a prévia prolação de despacho judicial que sinalize a necessidade desse impulso e as consequências da sua falta3.


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Regressando aos autos.

Os factos que os autos ostentam são de molde a poder concluir-se que o processo esteve parado mais de seis meses?

Escreveu-se no acórdão recorrido:

« Resulta dos autos que, tendo sido solicitado ao perito que esclarecesse melhor as razões pelas quais não procedeu à avaliação de todos os bens comuns, este respondeu em 28.02.2023, essa resposta foi notificada às partes para que se pronunciassem e requeressem o que tivessem por conveniente e, face ao silêncio destas, por despacho de 29.03.2023, foi determinado que os autos aguardassem que algo fosse requerido, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º do CPC.

Mas também resulta que, posteriormente, em 24.05.2023, o perito requereu o pagamento dos seus honorários e complementou a resposta que havia dado anteriormente; todavia, o tribunal limitou-se a fixar os honorários devidos ao perito, conforme despacho de 26.05.2023, nada determinando a respeito dos esclarecimentos adicionais prestados por aquele perito, não ordenando, designadamente, a sua notificação às partes.

Posteriormente, perante o requerimento apresentado em 21.09.2023 pelo depositário dos bens, pedindo a fixação da sua remuneração e a sua remoção do cargo, o tribunal ordenou a sua notificação às partes, para se pronunciarem, por despacho de 25.09.2023.

Não obstante, em 17.10.2023, o tribunal a quo considerou que o silêncio das partes se mantinha há mais de seis meses e, por isso, julgou deserta a instância.

Não cremos que o tribunal pudesse ter concluído que o processo estava parado há mais de seis – e, muito menos, por negligência das partes – quando se absteve de notificá-las dos esclarecimentos adicionais prestado pelo perito durante esse período de seis meses e quando, durante o mesmo período, as notificou para se pronunciarem sobre um requerimento que, entretanto, havia sido apresentado. Embora o teor desse requerimento se revele estranho ao presente processo, devendo ter sido apresentado no processo de execução em que o fiel depositário foi nomeado, a verdade é que foi o próprio tribunal que determinou a sua notificação às partes para os referidos fins, pelo que se revela, no mínimo, incoerente desconsiderar essa notificação”.

Embora com algumas reservas, cremos poder dizer que o processo esteve parado mais de seis meses.

Atentemos nos factos:

a. Por despacho de 07/09/2018, e nos termos do disposto no art.924.º, n.º 4 do CPC, determinou o tribunal de 1.ª instância que “para realização de perícia com vista à fixação dos respetivos quinhões, bem como, se necessário, a questão de se saber qual o respetivo valor patrimonial”;

b. Por despacho de 22/03/2019, determinou o tribunal de 1.ª instância que “Os Peritos deverão pronunciar-se a respeito da fixação dos respetivos quinhões, realidade que não se encontra retratada no relatório que submeteram aos autos”;

c. Despacho esse que o tribunal de 1.ª instância voltou a repetir em 24/04/2019;

d. Em 17/04/2019, responderam os Peritos dando nota de que “a nossa função no processo foi a avaliação dos bens imóveis e agora o Meritíssimo Juiz e os Exmos. Mandatários obterão o valor do quinhão que cabe a cada irmão.” – posição que, aliás, entendemos ser ajuizada;

e. Por despacho de 11/06/2019, notificou o tribunal de 1.ª instância que “resta agora designar a conferência de interessados (...) agendando-se para o efeito o próximo dia 2JUL2019, pelas 14 horas” – a qual veio a ter lugar na data designada, conforme a ata de conferência de interessados junta aos autos;

f. Na data de 30/09/2019 e no seguimento da segunda diligência promovida em sede de conferência de interessados, foi despachado: “prosseguem os autos e, no caso dos autos, em face da natureza e característica dos diversos bens móveis (artigos em ouro, prata, mobiliário, etc. etc.), impõe-se, para obtenção do seu justo valor, uma avaliação” (destacado nosso);

g. Por despacho de 19/05/2020, determinou o tribunal de 1.ª instância que “indique a secção entidades idóneas à avaliação dos bens, considerando-se a sua natureza e características”;

h. E, novamente por despacho de 15/06/2020, notificou o tribunal de 1.ª instância que “Em face do silêncio das partes, pode iniciar-se a avaliação determinada”;

i. Ainda por despacho datado de 24/09/2020, notificou o tribunal de 1.ª instância de que “Diligencie-se conforme determinado no despacho proferido a 15JUN2020”;

j. Por e-mail datado de 27/11/2020 e que se encontra junto aos autos, comunicou o perito nomeado que “relativamente ao estado da diligência no âmbito do processo 4141/18.0T8PRT, embora tenha contactado ambos os advogados, apenas o Dr. EE [mandatário dos Recorrentes] se mostrou disponível, apesar da minha insistência, não obtive retorno nem me foi devolvida qualquer chamada da outra parte [Recorrida], mesmo depois de vários pedidos para o seu escritório e chamadas para o número particular que não foram atendidas ou devolvidas” (destacado nosso);

k. Na data de 14/12/2020, e em face da informação prestada pelo perito, notificou o tribunal de 1.ª instância a Recorrida “para se pronunciar, no prazo de 10 dias, esclarecendo em conformidade”;

l. Em resposta, veio a Recorrida comunicar que “nunca deteve fisicamente um qualquer bem integrante dos acervos patrimoniais de FF e GG” e que “dos bens a dividir nos presentes autos, a requerente não tem nenhum”, sendo certo que foi o marido da Recorrida, “DD, em 24-10-2018, foi constituído fiel depositário dos bens móveis – mobiliário” (destacado nosso);

m. Por despacho datado de 07/06/2021, determinou o tribunal de 1.ª instância que “Quanto aos bens móveis cuja divisão foi igualmente requerida, as partes encontram-se em dissenso (...) não obstante, determinou-se uma avaliação, que, por força da situação de pandemia, não se iniciou ainda. (...) Para tanto e naturalmente, quer a Requerente quer os Requeridos deverão colaborar e indicar ao Avaliador os bens que dispõem e onde se encontram” (destacado nosso);

n. Posteriormente, por despacho datado de 22/11/2021, determinou o tribunal de 1.ª instância que “A diligência terá então lugar na data consensualizada, ou seja, dia 30NOV2021, pelas 10 horas. (...) Quanto à pretensão da Requerente (...) as partes podem assistir à diligência”.

p. Por despacho datado de 23/01/2023, foi determinado que “no seguimento do despacho de 15/11, insista junto do encarregado de venda pelo envio das informações em falta”;

q. Na senda desse despacho, veio o perito em 23/02/2023 “informar Vª. Exa. que quem concedeu o acesso aos bens avaliar foi o Sr. Eng. DD [marido da Recorrida], que os mesmos se encontravam em ...” (destacado nosso).

r. Em 29/03/2023, veio o tribunal de 1.ª instância, por via de despacho, constatar que “Em face do silêncio das partes quanto ao teor do requerimento do Sr. Perito, de 28/02, aguardem os autos que algo seja requerido, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º do CPC”;

s. Na data de 21/09/2023, veio o fiel depositário dos bens nomeado nos autos (marido da Recorrida), requerer a sua remoção daquele cargo;

t. Na data de 17/10/2023, veio o tribunal de 1.ª instância determinar que “mantendo-se o silêncio das partes, e nos termos do artigo 281.º, n.º 1 e 4 do CPC, julgo deserta a instância.”


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Ora, perante estes factos, cremos que assiste razão aos recorrentes, quando referem que «foi a Recorrida quem, inicialmente, requereu que fossem solicitados esclarecimentos ao Perito, nomeadamente, de que o “Sr. Perito avaliador deverá esclarecer a quem solicitou esses bens para avaliar, e quem recusou, bem como o concreto argumento de recusa, o que se requer”, o que fez por via de requerimento datado de 12/10/2022.

Sendo que, depois do esclarecimento prestado pelo perito em 23/02/2023 e até à decisão de deserção da instância, datada de 17/10/2023, não praticou a Recorrida mais qualquer ato nos autos.

Silêncio que manteve e perpetuou até à apresentação das suas alegações de recurso, mesmo depois de ter sido notificada pelo tribunal de 1.ª instância – por mais do que uma vez – para se pronunciar, sob a cominação de a presente instância vir a ser julgada deserta, como acabou por acontecer».

Ou seja, estiveram, de facto, os autos parados durante mais de seis meses (pelo menos desde 29.3.23 até 17.10.23 nada foi dito ou requerido nos autos pela Requerida/Recorrida).


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Mas pergunta-se, agora: estiveram parados por negligência da parte (da recorrida)?

Não o cremos.

E pela simples razão de que para que tal se verifique, necessário era que o prosseguimento da instância dependesse do impulso das partes. O que, como melhor se verá, não se verificava in casu.

Ou seja, a deserção não ocorre automaticamente pelo decurso do prazo de 6 meses, só operando quando resultar do processo que este esteve parado por esse período por culpa da parte sobre que recai esse ónus, em regra, o A.

O mesmo é dizer que para ter lugar a deserção da instância, exige-se – além do mais – um juízo sobre a falta de diligência da parte onerada com o impulso processual em promover os termos do processo ou incidente durante tal período.

Sendo que só se pode falar em ónus de impulsionar os autos quando a lei assim o prever, como ocorre com a habilitação de herdeiros. Não prevendo a lei a necessidade de impulso dos autos, para os mesmos prosseguirem os seus regulares termos, incumbe ao juiz diligenciar pelo seu andamento célere (ut artº 6º, nº1 do CPC). Isto é, permitindo o direito substantivo ou processual que o processo prossiga sem a prática do acto da parte – seja porque o tribunal o pode ordenar oficiosamente, seja porque a lei prevê as consequências desfavoráveis para a parte onerada com a sua prática – é ao juiz, que não à parte, que cabe tomar as necessárias diligências para que os autos prossigam os seus termos4.

Ora, no presente caso, não nos parece que se possa falar na incidência desse ónus sobre as partes, sem o cumprimento do qual os autos aguardarão até à deserção da instância, nos termos legais.

Assim entendeu – e bem – a decisão recorrida, pois a avaliação dos bens era irrelevante para o prosseguimento dos autos (como o demonstra o acórdão recorrido).

Escreveu-se, pertinentemente, ali:

« A acção de divisão de coisa comum está regulada nos artigos 925.º e seguintes do CPC.

(…).

As questões suscitadas pelo pedido de divisão são, sem prejuízo de outras que as partes suscitem nos seus articulados, a existência de comunhão, a fixação das quotas de cada consorte e definição da divisibilidade ou indivisibilidade da coisa ou coisas comuns, como decorre explicitamente do artigo 925.º. Na verdade, destas questões depende toda a tramitação ulterior da acção de divisão de coisa comum.

No presente caso, o tribunal a quo não determinou que os autos seguissem os termos do processo comum. Mas, na verdade, também não chegou a proferir qualquer decisão sumária sobre as questões antes enunciadas.

No que concerne à comunhão e à fixação das quotas dos consortes, foi alegado pela requerente e não foi impugnado pelos requeridos que os bens em causa foram adjudicados à requerente e ao requerido marido no processo de inventário que correu por óbito dos progenitores de ambos, na proporção de 19,269875% para a primeira e 80,730124% para o segundo, o que parece ter merecido igualmente a anuência (ainda que implícita) do tribunal.

Quanto à divisibilidade das coisas comuns, a requerente alegou expressamente a sua indivisibilidade em substância, o que também não mereceu qualquer oposição dos requeridos.

Porém, o tribunal a quo determinou a realização de perícia colegial (que havia sido requerida na petição inicial tendo por objecto a questão da indivisibilidade dos bens), ao abrigo do disposto no artigo 926.º, n.º 4, do CPC (o que sugere que aquele tribunal teve dúvidas quanto à indivisibilidade aceite pelas partes), «com vista à fixação dos respetivos quinhões [parecendo assim referir-se à formação dos quinhões em caso de divisibilidade dos bens, nos termos previstos no n.º 5, do mesmo artigo 926.º], bem como, se necessário, a questão de se saber qual o respetivo valor patrimonial», mas sem esclarecer em que se situações esta necessidade poderia ocorrer.

Não obstante esta determinação e a posterior insistência do tribunal para que os peritos se pronunciassem a respeito da “fixação dos quinhões” (cfr. despachos de 22.03.2019 e 23.04.2019), os peritos não se pronunciaram sobre a questão da indivisibilidade ou sobre a formação dos quinhões, limitando-se a avaliar os bens imóveis.

O tribunal deu então por concluída a perícia e designou data para conferência de interessados, para os efeitos do artigo 929.º, n.º 2, do CPC, o que, mais uma vez, pressupõe que os quinhões estão fixados e as coisas comuns são indivisíveis, destinando-se a conferência a obter o acordo das partes na respectiva adjudicação a algum dos consortes, preenchendo-se em dinheiro as quotas dos restantes, sendo ordenada a venda da(s) coisa(s) comum(ns) na falta de acordo.

Não tendo havido acordo, o tribunal julgou imprescindível a avaliação dos bens móveis, sem que perceba a razão desta avaliação, designadamente se a mesma se revelava útil para um eventual acordo quanto à adjudicação dos bens ou para a sua venda, sendo certo que, neste último caso, a mesma se revelava prematura ou mesmo precipitada.

Como já vimos, procedeu-se então à avaliação de alguns dos bens móveis, mas gerou-se um impasse quanto à avaliação dos restantes, discutindo as partes a existência dos bens – questão que o tribunal entendeu não lhe caber apreciar nesta sede, sem que as partes tenham questionado esse despacho (cfr. despacho proferido em sede de conferência de interessados) – e quem os detém.

Perante este cenário, considerando o tribunal que nada mais tem a apreciar – seja a fixação dos quinhões e a indivisibilidade das coisas, seja as demais questões suscitadas pelas partes, designadamente a existência e a localização das coisas que não foram avaliadas –, impõe-se que prossiga com as finalidades da conferência que há muito iniciou, ordenando a venda dos bens caso as partes não acordem quanto à sua adjudicação, sem prejuízo de, se assim o entender e considerar possível, ordenar previamente o que tiver por conveniente para ultrapassar o aludido impasse.

O que não pode é julgar deserta a instância porque as partes não deram impulso à conclusão de uma avaliação que a lei não exige, que as partes não requereram – recorde-se que a perícia requerida tinha como objecto a questão da divisibilidade ou indivisibilidade em substância das coisas comuns – e que foi determinada oficiosamente pelo tribunal sem que se perceba a necessidade ou mesmo a utilidade da mesma» - destaques nossos.

Assim se vê que o processo não aguarda qualquer impulso processual das partes, dado que sobre elas não incide qualquer ónus específico desse impulso que não tenha sido observado. O prosseguimento dos autos é incumbência, sim, mas do tribunal (cit. art. 6º nº1 do CPC).


*


É verdade que por despacho de 29.3.2023, o tribunal proferiu decidiu que “aguardem os autos que algo seja requerido, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º do CPC”.

Porém, como bem diz a Relação – citando o ac. do STJ, de 05.07.2018 (Abrantes Geraldes)5 e ac. do TRL de 12.01.2023 (Carlos Castelo Branco)6 – , não é por via deste despacho que se faz recair sobre as partes qualquer ónus cujo incumprimento determine a extinção da instância, por deserção.

Perante o explanado, é claro que a alusão, naquele despacho de 29.3.2023, ao artigo 281.º não tem qualquer conteúdo útil, na medida em que, como dito, o prosseguimento da instância não dependia, de todo, de qualquer impulso processual das partes.

Assim sendo, não se preenchendo (todos) os requisitos ou pressupostos para que seja decretada a deserção da instância, o ac. recorrido não pode deixar de merecer o veredicto da confirmação.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.

Custas da revista a cargo dos Recorrentes.

Lisboa, em 18 de Junho de 2024

Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira 1º adjunto)

Emídio Santos (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)

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1. Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol I, 2ª ed., Almedina, em anotação ao afrtº 281ºº e anotação ao artº 281, pags. 347 a 350; LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, in, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª edição, Coimbra Editora, anotação ao artº 281º, pags. 572 a 573.

2. In Da Nulidade da Declaração de Deserção da Instância sem Precedência de Advertência à Parte, pp. 197-198 - Revista Ordem dos Advogados I-II 2018, ao escrever que “o despacho judicial que advirta a parte para a possibilidade da deserção da instância não é, pois, dispensável, quer se entenda que só a partir dele correm os seis meses do art. 281.º-1, CPC, quer se entenda que basta que o juiz o profira, no decurso desse prazo ou depois dele concluído, desde que a parte tenha a possibilidade de praticar seguidamente o ato omitido (…)”.

3. Neste sentido, ver, ainda, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2019, p. 329 – e doutrina e jurisprudência aí citadas.

4. Assim, v.g., o ac. da Relação do Porto de 12.2.2018, proc. 1805/15.3T8AVR.P1 (Leonel Serôdio), assim sumariado:

  « «I - Nos termos dos art.6º n.º1 do CPC, a partir da propositura da ação cabe ao juiz providenciar pelo andamento do processo e apenas quando preceito especial impuser ao demandante o ónus de impulso subsequente, mediante a prática de determinados ato cuja omissão impeça o prosseguimento da causa, é que há fundamento para lhe ser imputada culpa no não prosseguimento do processo, conducente à deserção da instância. II - A não indicação pelo demandante do objeto da perícia, apesar de notificado com a advertência que os autos ficavam a aguardar nos termos do art. 281º do CPC, tem apenas por consequência legal, a rejeição da perícia, nos termos do art. 475º n.º 1 do CPC, não podendo essa omissão, que não obstava a que o juiz promovesse o andamento do processo, fundamentar a deserção da instância, nos termos do art. 281º n.º 1 do CPC» - destaque nosso.

5. Proc. 105415/12.2YIPRT.P1.S1.

6. Proc. n.º 13761/18.1T8LSB.L2-2.