Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P554
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRAFICANTE-CONSUMIDOR
CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
CONTRA-ORDENAÇÃO
Nº do Documento: SJ20060420005545
Data do Acordão: 04/20/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - O n.° 3 do art. 26.° do DL 15/93, de 22-01, estatui que o regime estabelecido no seu n.° l (previsão do tráfico para consumo) não é aplicável se o agente detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual de 5 dias.
II - Por força do regime estabelecido pelo art. 2.º da Lei 30/2000, que considera contraordenação a detenção para consumo de doses de estupefacientes que não excedam o consumo médio individual durante o período de 10 dias, deve considerar-se parcialmente perrogado o disposto naquele n.° 3, por forma a considerar-se que a conduta do agente só não preenche o ilícito de traficante-consumidor quando a quantidade de estupefaciente em causa excede 10 dias.
III - Se uma coisa é a detenção para consumo, e outra a detenção para cedência ou venda, o certo é que detendo em parte para consumir e noutra parte para ceder ou vender a terceiros, mas excedendo as quantidades detidas mais do que o necessário para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, o recorrente não pode considerar-se traficanteconsumidor.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

1. Na 2.ª Vara Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Sintra, foi julgado o arguido AA, identificado nos autos, acusado de crime de tráfico do art. 21.º, n.º 1 do DL 15/93, de 22/1 e condenado por crime de tráfico de menor gravidade, do art. 25.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, na pena de 3 anos de prisão.
2. Inconformado, recorreu directamente para este Tribunal, pretendendo o abaixamento da pena e entendendo que o tribunal «a quo» aplicou incorrectamente os critérios dos arts. 70.º e 71.º do CP, nomeadamente por não atender devidamente a todas as circunstâncias atenuantes: ser toxicodependente, destinar o produto para consumo pessoal, ser de condição económico-social modesta, ter uma companheira empregada num supermercado e auferindo o vencimento mínimo, ter um filho de 4 anos de idade e sendo as exigências de prevenção geral e especial diminutas.

3. Respondeu o Ministério Público no tribunal «a quo», pugnando pela manutenção do decidido.

4. Neste Tribunal, o Ministério Público teve vista dos autos.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência de julgamento.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de que, tendo-se provado que a droga era para consumo pessoal, para cedência e para venda, não foi todavia apurado se a venda – o único dos destinos de onde proviria o rendimento lucrativo - era para financiar ou não exclusivamente o consumo do arguido. Por esse facto, ocorreria insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, dado que, a provar-se tal circunstância, o facto poderia ser integrado no art. 26.º do DL 15/93, de 22/1, devendo o processo ser reenviado para novo julgamento.
A aceitar-se, porém, que dos factos resulta o elemento «exclusividade», o arguido deveria ser condenado nos termos do referido art. 26.º

A defesa pronunciou-se em coincidência com a motivação de recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO
5. Matéria de facto segundo o tribunal «a quo»
5. 1. Factos dados como provados
- No dia 29 de Outubro de 2004, pelas 18H00 o estabelecimento de café denominado “C... F...”, sito em Casal de Cambra, foi alvo de fiscalização levada a cabo por elementos da G.N.R. de Caneças;
- Ao aperceber-se da presença dos elementos em causa o arguido pôs-se em fuga e no decurso desta atirou para longe de si uma bolsa de cor preta que trazia consigo e que continha 67,101 gramas de resina de canabis (haxixe), dividido em 12 “línguas” e mais 12 pequenos pedaços do mesmo produto;
- Na sequência de interrogatório judicial foi-lhe aplicada a medida de prisão preventiva, a 30 de Outubro de 2004;
- A 14 de Dezembro de 2004 foi revista a situação processual do arguido e aplicada ao mesmo, em substituição da medida de prisão preventiva, a de obrigação de apresentação periódica diária no posto policial da área da sua residência, bem como a medida “de proibição de contactar indivíduos conectados com o consumo e/ou tráfico de produto estupefaciente e de frequentar o estabelecimento de café “C... F...”(…)”;
- No dia 4 de Maio de 2005 no decurso de busca domiciliária à residência do arguido foram encontrados na sua posse vários pedaços de resina de canabis com o peso de 4,197gramas e de 11,228 gramas e, no interior da residência foram ainda apreendidos dois pedaços de resina de canabis com o peso de 118,038 gramas e de 67,029 gramas, respectivamente;
- Nas duas datas referidas e no conjunto foi apreendida ao arguido a quantia global de 267,593 gramas de haxixe, quantidade correspondente a 535,186 doses diárias;
- O arguido é toxicodependente e destinava o produto em causa em parte ao seu consumo pessoal e, em parte, à cedência e venda a terceiros;
- Antes de preso era servente de pedreiro, sem emprego certo, recebendo cerca de 25 Euros por cada dia em que trabalhava;
-Tem uma companheira empregada num supermercado que aufere o vencimento mínimo;
- Têm um filho de 4 anos de idade;
- É de condição económica e social modesta;
- Por sentença de 3 de Novembro de 2000, proferida no processo n.º .../00.0GJSNT do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Sintra, foi condenado na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de Esc. 500$00, pela prática, a 2 de Novembro de 2000, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo3º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.

6. Factos dados como não provados
Dos factos constantes da acusação e com relevo para a decisão da causa, não se provou que desde Junho de 2004 o arguido se dedicasse à venda de haxixe na zona de Casal de Cambra, concretamente no estabelecimento de café “C... F...” e suas imediações. Não se provou também que entre 14 de Dezembro de 2004, data em que foi restituído à liberdade e 4 de Maio de 2005, data da busca domiciliária à sua residência, se viesse dedicando à venda de produto estupefacientes. Finalmente, não se provou que tivesse vendido produto estupefaciente a BB e a CC

7. Questões a decidir:
- A qualificação dos factos
- A medida da pena.
7. 1. O recorrente questiona unicamente a medida da pena, que acha exagerada, pugnando por uma pena inferior, situada mais próximo do mínimo da moldura penal abstracta.
Antes, porém, no seguimento do alegado pelo Ministério Público na audiência de julgamento, impõe-se verificar se o acórdão recorrido padecerá de algum dos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP, nomeadamente do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Alegou o senhor Procurador- Geral Adjunto que o tribunal «a quo» não investigou como devia se aquela parte da droga que o recorrente destinava a venda tinha ou não como escopo exclusivo financiar o seu consumo – facto de inegável relevo para a qualificação jurídica correcta da conduta do arguido.
Não nos parece, porém, que o Ministério Público tenha razão.
É que o recorrente, da primeira vez que foi surpreendido com resina de cannabis», era portador de 67,101 grs e, posteriormente, da quantidade de 198,492 grs, o que, em qualquer dos casos, excedia a dose média individual para um período de 10 (dez) dias. No total, o arguido deteve 267,593 grs. do produto, que dariam para 535,168 doses diárias.
Estatuindo o n.º 3 do art. 26.º do DL 15/93, de 22/1, que o regime estabelecido no seu n.º 1 ( previsão do tráfico para consumo) não é aplicável se o agente detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual de 5 (cinco) dias (actualmente, 10 dias, por força do regime estabelecido pelo art. 2.º da Lei n.º 30/2000, que considera contra-ordenação a detenção para consumo de doses de estupefacientes que não excedam o consumo médio individual durante esse período, assim se devendo considerar derrogado parcialmente o disposto naquele n.º 3), a conduta do recorrente não pode ser subsumida ao tipo legal do traficante-consumidor, dado que as quantidades referidas ultrapassam aquele limite.
Na verdade, sendo o consumo médio individual de 0,5 grs. para a resina de «canabis», de acordo com o art. 9.º da Portaria 93/96, de 5 de Março e mapa que lhe está anexo, as quantidades detidas pelo recorrente ultrapassavam em muito a dose média diária para o período de 10 dias.
Por conseguinte, estando desde logo excluída, pela materialidade provada, a aplicação ao caso do art. citado 26.º, n.º 1, não se pode dizer que a matéria de facto provada era insuficiente para a decisão de direito.
E não se diga que uma parte da droga era para consumo pessoal, outra, para cedência e só uma terceira parte para venda, só esta relevando para efeitos de aplicabilidade do n.º 1 do art. 26.º
É que, por um lado, ao dar-se como provado que uma parte era para consumo pessoal e o resto era para cedência ou venda, não são discerníveis, aqui, três partes, mas, quando muito, apenas duas: consumo individual e cedência ou venda a terceiros, não significando aquela cedência mera doação. E mesmo que significasse, era o mesmo para efeitos legais, que considera ambos os actos como tráfico. Mais do que isso: a simples detenção já é tráfico, dentro dos parâmetros definidos pelo tipo (exaurido), de tutela antecipada, que é o art. 21.º do DL 15/93. E se uma coisa é a detenção para consumo, e outra, a detenção para cedência ou venda, o certo é que, detendo em parte para consumir e noutra parte, para ceder ou vender a terceiros, mas excedendo as quantidades detidas mais do que o necessário para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, o recorrente não pode considerar-se traficante-consumidor.
De onde que a decisão recorrida não peque, como já se disse, por insuficiência da matéria de facto.

7. 2. Passando agora à segunda questão, ou seja, a única que foi colocada pelo recorrente.
A determinação da pena concreta obedece a parâmetros rigorosos, que têm como elementos nucleares de referência a prevenção e a culpa, tudo nos termos dos números 1 e 2 do art. 71.º do CP.
Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º n.º 1 do CP).
Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.
Neste sentido é que se diz que a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 227 e ss.).
Quer isto dizer que as exigências de prevenção traçam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime, definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função limitadora do máximo de pena. Entre tais limites é que vão actuar, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 231).
Ora, os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no referido n.º 2 do art. 71.º do CP e (visto que tal enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infracção do princípio da proibição da dupla valoração.
O recurso é directo para o STJ, funcionando este com a sua vocação essencial de tribunal de revista, pois a revisão da pena aplicada traduz-se na aplicação de matéria de direito. Os poderes cognitivos do STJ, como se sabe, abrangem, no tocante a esta matéria, entre outras, a avaliação dos factores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou da moldura da culpa, a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, ao menos quando se mostrarem violadas regras da experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Ob. Cit., p. 197). No caso, a moldura penal abstracta cabível aos factos provados é a do art. 25.º do DL 15/93 (tráfico de menor gravidade), a que corresponde a pena de 1 a 5 anos de prisão. É a partir dessa moldura penal abstracta que devem ser consideradas as circunstâncias relevantes para a determinação concreta da pena.

De acordo com a avaliação feita pelo tribunal «a quo», o grau de ilicitude é médio e o dolo com que o recorrente agiu, sendo directo, não oferece qualquer particularidade em relação ao dolo do tipo. Por outro lado, quanto à qualidade dos produtos, tratando-se «canabis», será de concluir pela sua menor danosidade social, e, pelo que respeita à quantidade, também será de salientar a sua pequena dimensão, além de que parte do estupefaciente era para consumo pessoal, sendo o arguido toxcicodependente.
É certo que o recorrente, mesmo depois de substituída a prisão preventiva por medida coactiva não detentiva, continuou a actividade delituosa, mas há que considerar a sua toxicodependência, que certamente lhe diminuiu a capacidade para se decidir de acordo com o direito. E se é certo que, por um lado, isso aponta para uma maior exigência do ponto de vista da prevenção especial, como concluiu a decisão recorrida, por outro, é preciso ver que a prisão não é em si o meio mais eficaz de prevenir este tipo de comportamento.
Acresce que o recorrente trabalhava antes de preso, sendo servente de pedreiro, vive em união de facto com uma companheira, que trabalha num supermercado, onde aufere o vencimento mínimo, e tem um filho de 4 anos de idade.
Ora, todas estas circunstâncias apontam para um relevo de culpa e de prevenção algo atenuado.
É certo que o recorrente tem antecedentes – foi condenado em multa por condução sem carta -, e isso tem de ser levado em conta, mas o seu relevo, em termos de dosagem da pena, também não será de encarecer especialmente, não tendo nenhuma afinidade com o crime aqui em causa e tendo este último sofrido a influência da toxicodependência do recorrente. Aliás, está relacionado com ela.
Neste quadro, não se mostrando particularmente relevantes as exigências de prevenção geral positiva ou de integração, crê-se que a pena de dois anos de prisão é suficiente para as satisfazer, sendo uma pena já considerável, que também se coaduna com as necessidades de prevenção especial e com a culpa do arguido. Uma pena mais elevada poderia ter efeitos negativos na desejada integração social do arguido, do mesmo passo que não acrescentaria mais vantagem à finalidade primeira a que se pretende vincular a aplicação da pena – a tutela dos bens jurídicos.

DECISÃO
8. Nestes termos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, revogando a decisão recorrida quanto à pena imposta e condenado o arguido na pena de 2 (dois) anos de prisão.
Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Abril de 2006

    Rodrigues da Costa (relator)
    Arménio Sottomayor
    Alberto Sobrinho
    Carmona da Mota