Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2734/19.7T8LSB.L1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: PRESCRIÇÃO
CONTAGEM DO PRAZO
SUSPENSÃO DE PRAZO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
CABEÇA DE CASAL
ADMINISTRADOR
HERANÇA
PODERES DE ADMINISTRAÇÃO
HERDEIRO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
NULIDADE DO ACÓRDÃO
ARGUIÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
FALTA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 10/29/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. Nos termos do artigo 318.º, al. c), do Código Civil, a prescrição não começa, nem corre entre as pessoas cujos bens estejam sujeitos por lei à administração de outrem, até serem aprovadas as contas finais.

II. As razões que justificam a existência da norma do artigo 318.º, al, c) do Código Civil são aplicáveis nas relações entre o cabeça de casal e os herdeiros, quanto à administração dos bens da herança.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. A presente acção foi intentada pela apelante AA, em 6/2/2019, com vista à apresentação das contas referentes à administração que BB (BB) efectuou do acervo hereditário de CC (CC), no período compreendido entre 23/06/1986 e 15/02/1999.

A Requerente alegou, em síntese, que:

- É herdeira de CC, falecida em Lisboa, em 23/06/1986, no estado de viúva.

- BB, falecido em Almada, em 15/02/1999, no estado de casado com a R. DD também foi herdeiro.

- BB assumiu as funções de cabeça-de-casal desde a data do óbito daquela, ocorrido em 23/06/1986 até à data do seu próprio óbito em 15/02/1999, após o que a requerente desempenhou funções de cabeça de casal até à partilha.

- O cabeça de casal BB nunca prestou contas relativamente ao período em que administrou a herança da falecida CC.

Concluiu a Requerente que a obrigação do cabeça de casal, BB, de prestar contas da administração dos bens da herança se transmitiu para os respectivos herdeiros: os requeridos.

2. Foram deduzidas nos autos duas oposições, respetivamente, por EE e FF, e por DD e GG.

Nas referidas oposições, os requeridos arguiram:

- a excepção de ilegitimidade processual passiva, por preterição de litisconsórcio necessário;

- a prescrição parcial da obrigação de prestação de contas;

- a prescrição parcial dos direitos de créditos decorrentes da Prestação de Contas;

- o cumprimento da obrigação pelo obrigado BB;

- o abuso de direito da Requerente, por haver criado a convicção de que não iria solicitar a prestação de contas.

3. Foi elaborado saneador e realizado julgamento, após o que foi proferida sentença julgando improcedente a acção e absolvendo os requeridos.

4. A requerente da acção, inconformada com a decisão do tribunal de primeira instância, apelou.

5. Os apelados responderam ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão.

6. No Tribunal da Relação, foi proferido acórdão (1º acórdão, para facilitar a identificação) julgando o recurso improcedente e mantendo a decisão recorrida.

7. Na sequência de recurso de revista para o STJ, a decisão do Tribunal da Relação foi revogada, tendo os autos sido remetidos para conhecer das questões que haviam sido tidas por prejudicadas.

8. Foi então proferido novo acórdão no Tribunal da Relação (segundo acórdão, sobre o qual incide a presente revista), que teve por objecto as seguintes questões:

- Impugnação da matéria de facto.

- Prescrição.

- Abuso de Direito.

9. Neste acórdão veio a decidir-se:

“Pelo exposto, acordam as juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o presente recurso, revogando a decisão impugnada e determinando que os requeridos/apelados, na qualidade de herdeiros de BB são obrigados a prestar contas à requerente/apelante, do cabecelato por aquele exercido entre a data do falecimento de CC, em 23/6/1986 e a data do seu falecimento, em 15/2/1999.”

10. Não se conformando com a decisão, dela apresentaram novo recurso de revista os requeridos, no qual formulam as seguintes conclusões (transcrição):

O presente recurso visa impugnar o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que revogou a decisão de 1ª instância e condenou os Réus a prestar contas por terceiro.

Os Recorrentes sustentam que o acórdão recorrido enferma de erros na aplicação da lei, nomeadamente na apreciação da matéria de facto e na análise da exceção de prescrição;

A excepção de prescrição foi alegada pelos Réus tendo a Autora oposto invocando o disposto no artº 318º al. c) do Código Civil.

Conforme ensinam Pires de Lima e Antunes Varela em comentário ao artº 318º, al. c) do Código Civil, in Código Civil Anotado, Coimbra editora, 1967, volume 1.º, página 206:

“3. Na alínea c) são considerados apenas os administradores designados por lei, pelo tribunal ou por terceiro. Ficam de fora os administradores investidos por procuração. Quando à administração designada por terceiro, vide os art.ºs 1967º e seguintes.”

O Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu a pretensão dos Recorrentes quanto à adição de um novo facto (Facto 11), alegando falta de fundamentação, apesar de os Recorrentes terem apresentado argumentos claros e sustentados com base no artigo 636.º do Código de Processo Civil;

A decisão de indeferimento carece de fundamentação suficiente, o que configura nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil;

Deve por isso ser aditado um novo facto com o seguinte teor:

Facto 11 – BB viveu com a avó desde que se divorciou da ré HH até 1981/1982, a Autora recorrente viveu com a avó e vivia com ela à data do seu falecimento.

O Tribunal da Relação não apreciou devidamente a questão essencial sobre a sujeição legal da Autora à administração exercida pelo seu irmão BB, confundindo um exercício de facto do cabecelato com um exercício de direito essencial para a aplicação do artigo 318.º do Código Civil.

Os Recorrentes alegaram a inexistência de factos alegados e inexistência de factos provados que permitissem concluir pela verificação do exercício do cabecelato por imposição legal.

10ª Alegaram que não tinham sido alegados quaisquer factos que permitissem concluir que o cabecelato tinha sido exercido nos termos e ao abrigo do disposto no artº 2080 do Código Civil.

11ª A decisão recorrida não se pronunciou sobre esta questão, começando mesmo por não permitir o aditamento de um facto útil para esse efeito.

12ª A omissão de pronúncia sobre esta distinção constitui nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.

13ª A Relação fixou genericamente a obrigação de prestação de contas a todos os herdeiros de BB, sem individualizar quem tem essa obrigação, ignorando que tal encargo não é solidário e recai sobre quem administrou os bens da herança.

14ª Os filhos de BB nunca exerceram a administração da herança do pai, pelo que não lhes pode ser imposta a obrigação de prestar contas.

15ª A decisão recorrida não garante a utilidade da lide, uma vez que não define adequadamente os sujeitos passivos da obrigação, perpetuando a incerteza jurídica.

16ª A decisão recorrida violou, entre outras disposições legais, o disposto no artº 615º, nº 1, als. b) e d) do Código do Processo Civil, e artº 318º al. c) do Código Civil”

11. Houve lugar a contra-alegações, onde se conclui (transcrição):

1ª. Os ora Recorrentes interpuseram o presente recurso de revista por entenderem que o acórdão recorrido enferma de erros na aplicação da lei, nomeadamente na apreciação da matéria de facto e na análise da exceção de prescrição;

2ª. Porém, tão bem andou o Tribunal a quo quando, fazendo a melhor aplicação do Direito aos factos considerados provados, condenou os ora Recorrentes na prestação de contas à ora Recorrida;

3ª. Referem os ora Recorrentes nas suas conclusões 7ª e 8ª que deve «(…) ser aditado um novo facto» uma vez que, segundo entendem, o Tribunal a quo confundiu «(…) um exercício de facto de cabecelato com um exercício de direito, essencial para a aplicação do artigo 318.º do Código Civil»;

4ª. Ora, essas conclusões carecem de qualquer fundamento porquanto o aditamento de um novo facto é irrelevante para efeitos de aplicação do disposto no artigo 318.º, alínea c), do CC;

5ª. A aplicação do artigo 318.º, alínea c) do CC apenas pressupõe a existência de uma imposição legal de que determinados bens estejam sujeitos à administração de outrem – sendo indiferente quem concretamente exerce essa administração;

6ª. A lei é clara, os bens têm de estar sujeitos «(…) por lei ou por determinação judicial ou de terceiro, à administração de outrem (…)» (cfr. artigo 318.º do CC), cabendo essa obrigação de «(…) administração da herança, até à sua liquidação e partilha (…)» ao cabeça de casal (cfr. artigo 2079.º do CC);

7ª. Ora, consta como assente que «(…) as funções de cabeça-de-casal da herança de CC, falecida em 23/06/1986, foram exercidas por BB até à data do falecimento daquele, ocorrido em 15/02/1999»;

8ª. Aliás, consta também como assente que BB foi, efetivamente, cabeça-de- casal, sendo-lhe deferida, por lei (cfr. artigo 2079.º do CC), à luz do disposto no artigo 2080.º, n.º4 do Código Civil, não se tendo tratado de uma administração de facto;

9ª. Logo, tendo-lhe a administração dos bens da herança sido deferida por lei, é-lhe aplicável a suspensão da prescrição prevista no artigo 318.º, alínea c), do Código Civil, pelo que improcedem as conclusões 9ª e 10ª apresentadas pelos ora Recorrentes;

10ª. Contudo, ainda que de uma administração de facto se tratasse, o que por mera cautela e dever de patrocínio se equaciona, sem conceder, são a Jurisprudência e a Doutrina unânimes em afirmar que «(…) o cabeça-de-casal de facto, desde que efectivamente administre bens da herança, tem a obrigação de prestar contas aos herdeiros» (Ac. da Relação de Guimarães de 26/04/2018, proc. n.º 1280/17.8T8VNF.G1), pelo que sempre improcederiam os argumentos invocados pelo ora Recorrentes;

11ª. Logo, sempre se aplicaria o regime de suspensão da prescrição, porquanto, salvo melhor opinião, não se afigura razoável, nem tão pouco compreensível, militar-se a aplicação desse regime exclusivamente ao cabeça-de-casal formalmente investido, quando o cabeça-de-casal de facto está sujeito às mesmas obrigações que o cabeça-de-casal de direito:

12ª. Alegam ainda os ora Recorrentes, nas suas conclusões 13ª a 15ª, que a decisão recorrida «(…) não garante a utilidade da lide, uma vez que não define adequadamente os sujeitos passivos da herança (…)» porquanto «(…) fixou genericamente a obrigação de prestação de contas a todos os herdeiros (…)»;

13ª. Ora, tendo falecido o cabeça-de-casal que administrava os bens da herança, a obrigação de prestação de contas transmite-se hereditariamente, como aliás já decidiu este Colendo Tribunal, em acórdão proferido a 10/12/2024 no âmbito do presente processo, «(…) a obrigação de prestação de contas tem carácter patrimonial, pelo que a mesma se transmite aos herdeiros do cabeça-de-casal, nos termos dos arts. 2024.º e 2025.º n.º1 (a contrario), também do Código Civil», «(…) a transmissibilidade da obrigação de prestação de contas relativas ao exercício do cabeçalato, que é de natureza patrimonial, e pode (…) ser realizado pelos herdeiros, sob pena de se ficar numa situação inadmissível de falta de informação» (sublinhados nossos);

14ª. Obrigação essa que se transmitiu para todos os herdeiros, como, aliás, já decidiu este Colendo Tribunal no Acórdão de 22/03/2018, proferido no âmbito do processo n.º 861/08.5TBBCL-E.G1.S1: «(…) a obrigação de prestar contas transmite-se para todos os herdeiros, (como resulta da economia dos art. 2087.º a 2091.º do C. Civil) da herança aberta por morte do administrador que faleceu sem prestar contas.» (negrito nosso);

15ª. Sendo também esse o entendimento perfilhado pela doutrina, nomeadamente pelo Dr. Lopes Cardoso (ln Partilhas Judiciais, Vol. III, pág. 57, 3.ª ed.) que sublinha que a obrigação de prestar contas «é transmissível via hereditária, incumbindo, pois, aos herdeiros do cabeça-de-casal que dela não se desobrigou»;

16ª. Logo, tão bem andou o Tribunal a quo ao decidir que são os ora Recorrentes, enquanto herdeiros do cabeça-de-casal, obrigados a prestar contas, pelo que improcedem as conclusões 13ª a 15ª por eles apresentadas;

17ª. Assim, carecendo as conclusões da Recorrente de qualquer fundamento, deverá ser negado provimento ao presente recurso de revista, confirmando-se integralmente o douto acórdão proferido, que fez uma correta apreciação e aplicação do Direito aos factos provados.”

12. Tendo sido invocadas nulidades do acórdão recorrido, houve lugar a 3º acórdão do TR a conhecer das mesmas, indeferindo-as.

13. O Recurso foi assim admitido no Tribunal Recorrido: “Por estar em tempo e ter legitimidade, admito o recurso interposto do acórdão proferido em 18/2/2025, que é de revista, sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. artigos. 629.º, n.º 2, al. d), 671.º, n.º 1, 675.º e 676.º, n.º 1 todos do Código de Processo Civil). Subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.”

Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

De facto

14. Factos PROVADOS nas instâncias:

1. Nos autos que, sob o n.° 896/05.0YXLSB, correram seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 18, procedeu-se a partilha, em inventários cumulados, por óbito de:

CC, falecida em Lisboa, em 23/06/1986, no estado de viúva;

a) II;

b) BB, falecido em Almada, em 15/02/1999, no estado de casado com a ora R. DD (doc. n.° 1, junto com o Requerimento Inicial);

2. As funções de cabeça-de-casal da herança de CC, falecida em 23/06/1986, foram exercidas por BB até à data do falecimento daquele, ocorrido em 15/02/1999;

3. Após o falecimento de BB as funções de cabeça-de-casal foram desempenhadas pela Requerente AA;

(na sequência de julgamento)

4. Após a morte do cabeça-de-casal BB, em Fevereiro de 1999, a Requerida DD, cônjuge de BB, entregou à aqui Requerente AA, toda a documentação da herança em poder do seu falecido marido, para que aquela pudesse exercer devidamente o cabecelato; (eliminado pelo TR)

5. Os requeridos nunca tiveram qualquer intervenção na administração da herança durante o cabecelato de BB ou posteriormente, exceto quanto à DD, cônjuge de BB, que continuou a participar na administração dos bens da herança, juntamente com a Requerente (alterado pelo TR);

6. A Requerente assumiu o cabecelato desde Fevereiro de 1999, recebendo a documentação que lhe foi entregue pela Requerida DD sem que nunca tivesse reclamado contas, e tendo inclusivamente apresentado contas posteriores, os Requeridos confiaram em que o não o iria fazer após a partilha; (eliminado pelo TR)

7. A Requerente AA sempre considerou prestadas as contas entre irmãos e que não haveria outras contas a prestar, com o esclarecimento de que tal posição assentou no facto de ter sido celebrado acordo em 19-11-1998, relativo a partilha dos bens deixados por CC em partes iguais, com BB e no qual o mesmo renunciava à deixa testamentária feita por aquela a seu favor;

8. Anteriormente à 1.a sessão da conferência de interessados, nos autos acima identificados em 1., veio a Interessada AA juntar documento denominado “acordo de partilhas” referente a um acordo celebrado entre si e o seu falecido irmão BB, em 19 de Novembro de 1998, através do qual o mesmo se teria comprometido a partilhar os bens deixados por CC em partes iguais e no qual o mesmo renunciava à deixa testamentária feita por esta em seu favor, requerendo que tal seja tomado em consideração em sede de conferência de interessados (cf. exame da cópia do douto despacho de 11-03-2014);

9. Mediante despacho de 11-03-2014, proferido nos autos referidos em 1, foi indeferido o requerido relativamente à relevância do referido documento para efeitos do inventário;

10. Lê-se na fundamentação do referido despacho que:

Tendo em vista decidir da validade e dos efeitos no presente inventário do documento ora apresentado, importa antes de mais analisar o seu conteúdo, por referência à herança a que o mesmo se refere.

Ora, do respetivo teor resulta que através de documento particular datado de 19 de Novembro de 1998, assinado, sem reconhecimento notarial, os Interessados BB, posteriormente falecido, e AA, declararam serem herdeiros legítimos de CC, falecida em 23 de Junho de 1986, a qual havia deixado testamento através do qual deixou a quota disponível dos seus bens ao referido Interessado, devendo a mesma começar a preencher-se pelo prédio urbano sito na Rua 1 e disposto ainda de um legado em favor da Interessada.

Mais resulta terem os mesmos afirmado serem os únicos herdeiros legitimários da mesma, e obrigarem-se a partilhar entre si a totalidade dos bens testados pela falecida na proporção de 50% para cada um, bem como a Interessada a não promover contra o Interessado qualquer ação de prestação de contas e a renunciar à denúncia de qualquer ato que tenham em vista a sonegação ou o incumprimento de obrigações fiscais, ficando o Interessado de praticar os atos necessários à venda da propriedade no prazo de 180 dias.

Ora, da análise do referido documento em confronto com os elementos constantes dos autos, verifica-se, desde logo, referir-se o acordo a uma herança deixada pela avó dos declarantes (e não da sua mãe, como referiu a requerente), da qual não eram apenas herdeiros os mesmos, mas igualmente JJ. (...)”- exame do Inventário.

15. Factos NÃO PROVADOS nas instâncias:

a. BB, que desempenhou funções de cabeça-de-casal, relativamente à herança aberta por óbito de CC, e prestou contas relativas ao período de 23/06/1986 a 15/02/1999;

b. E reunia anualmente com a Requerente AA, sua irmã, para lhe prestar contas da referida herança, entregando-lhe a documentação com ela relacionada;

c. E fez igualmente a repartição do saldo final credor da herança a favor da Requerente, AA, sempre que lhe era devido;

d. A Requerente AA aceitou as contas prestadas pelo cabeça de casal, relativas ao período de 23/06/1986 a 15/02/1999;

e. Não foi entregue à Requerente qualquer quantia transitada do cabecelato anterior, como saldo da herança, nem lhe foi distribuído, enquanto herdeira, qualquer montante referente a esse período;

f. A Requerente AA apenas obteve a documentação relativa à herança junto dos arrendatários dos imóveis que integravam o acervo hereditário;

g. A Requerida DD, cônjuge de BB continuou a participar na administração dos bens da herança, juntamente com a Requerente; (eliminado pelo TR)

h. A Requerente lançou mão da ação especial, por forma a dificultar o acesso aos Requeridos aos rendimentos provenientes dos imóveis que integravam o acervo hereditário e que, entretanto, foram objeto de partilha.

De Direito

16. Objecto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O objecto do presente recurso é o seguinte:

1. Nulidades do acórdão – falta de fundamentação; omissão de pronúncia;

2. Erro de julgamento - Suspensão da prescrição e aplicação ao cabeça de casal de facto; condenação de todos os herdeiros na prestação de contas.

17. Impugnação da matéria de facto

17.1. Na apelação foi conhecida a impugnação da matéria de facto relativa aos pontos:

- Os factos 4 e 6 devem passar para o elenco de factos não provados;

- O facto 5 deve passar a ter a seguinte redação, a qual integra ainda a matéria do atual facto não provado sob a al. g), o qual, por sua vez é removido do elenco de factos não provados:

Os requeridos nunca tiveram qualquer intervenção na administração da herança durante o cabecelato de BB ou posteriormente, exceto quanto à DD, cônjuge de BB, que continuou a participar na administração dos bens da herança, juntamente com a Requerente.

17.2. No acórdão recorrido foi também conhecida a questão sobre o aditamento de um novo facto, que havia sido pedido pelos RR. - Facto 11 – BB viveu com a avó desde que se divorciou da ré HH até 1981/1982, a Autora recorrente viveu com a avó e vivia com ela à data do seu falecimento.

Essa questão teve a seguinte resposta:

“Os requeridos pretendem ver aditado um facto com o seguinte teor:

(…)

Os apelados, porém, não justificam este pedido de aditamento, designadamente, à luz do artigo 636.º, do Código de Processo Civil.

Nessa medida, por manifesta falta de fundamento, deve ser rejeitado o conhecimento deste pedido.”

17.3. Porque a resposta do Tribunal não foi ao encontro da pretensão dos recorrentes, eles invocam na revista nulidade do acórdão:

a) A decisão de indeferimento de aditar um novo facto « (…) carece de fundamentação suficiente (…) o que configura nulidade (…) »;

b) Existiu omissão de pronúncia quantos aos factos «(…) que permitissem concluir que o cabecelato tinha sido exercido nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 2080 do Código Civil»;

17.4. O Tribunal recorrido teve oportunidade de conhecer das invocadas nulidades, dizendo:

“A alegação dos reclamantes quanto à falta de fundamentação evidencia, por si, que a mesma existe, mas que dela os reclamantes discordam.

E, efetivamente assim é. No acórdão posto em crise, foi analisado e rejeitado o pedido de aditamento do facto 11.

Os reclamantes discordam da decisão e dos seus fundamentos.

Evidência, aliás, de que os recorrentes suscitam erro de julgamento sob o enquadramento (errado) da nulidade, é que, conforme formulam na sua conclusão 7, pretendem que seja dado como provado aquele facto. Um tal resultado não é compatível com uma nulidade decisória, que impõe se corrija o erro de atividade verificado e assim fique sanada a nulidade da sentença.

A invocação quanto à falta de pronúncia também não tem razão de ser.

Mais uma vez é evidente da leitura das conclusões que sob a designação de nulidade, os recorrentes pretendem discordar da decisão recorrida. Além disso, conforme vimos, o tribunal não tem que tomar posição sobre todos os argumentos invocados, mas sobre as questões que traduzem o objeto do litígio.

17.5. Efectivamente, como disse o tribunal recorrido – explicitando as normas legais sobre as invocadas nulidades e o seu sentido, cuja reprodução se dispensa, remetendo para o referido no dito acórdão – é evidente que as nulidades invocadas não existem:

- o não aditamento do facto 11 foi decidido e justificado; a justificação não carece de maior desenvolvimento para se tornar perceptível porque assim foi decidido, uma vez que a indicação da norma legal permite tornar claro que não foi respeitada a exigência legal de ampliação do objecto do recurso; a discordância dos recorrentes não significa falta de fundamentação;

- a falta de pronúncia não pode ser assacada a decisão judicial que nega a pretensão dos recorrentes, mas apenas quando estamos perante um não conhecimento de questão de que o tribunal devesse conhecer, não o tendo realizado.

Improcedem as invocadas nulidades.

18. Quanto ao erro de julgamento, o mesmo reportar-se-á, na versão dos recorrentes, a duas problemáticas: aplicação do art.º 318.º, al. c) do CC ao cabeça de casal de facto; condenação solidária de todos os recorrentes mesmo não tendo eles sido todos cabeça de casal da herança.

Vejamos.

19. Quanto à obrigação de prestação de contas

19.1. No contexto da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, o TR aceitou que importava considerar que os requeridos têm a obrigação de prestar contas. Considerando que estes haviam suscitado excepções a essa obrigação, o Tribunal analisou-as: prescrição e abuso de direito.

19.2. Relativamente à questão da prescrição da obrigação de prestar contas, no TR foi decidido que a obrigação de prestar contas não se encontrava prescrita, por se entender que:

- o prazo de prescrição era de 20 anos (art.º 309.º CC);

- esse prazo suspende-se e interrompe-se (art.º 306..º CC); e não corre em certas situação (art.º 318.º CC) – tendo sido considerado que seria de aplicar aos autos a situação da alínea c)

“c) Entre as pessoas cujos bens estejam sujeitos, por lei ou por determinação judicial ou de terceiro, à administração de outrem e aquelas que exercem a administração, até serem aprovadas as contas finais”

- O cabeça de casal deve prestar contas, anualmente e o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido – artigos 2093.º, n.º 1 e 306º, nº 1, do Código Civil.

Seguiu a jurisprudência do Ac. TRE, de 20/5/2004, Pr. 807/04, segundo a qual “o cabeça de casal de uma herança é o legal administrador da mesma pois a administração da herança é-lhe deferida por lei (artigo 2079.º, do Código Civil); o prazo de prescrição da obrigação de prestação de contas pela administração feita pelo cabeça de casal não começa nem corre entre as pessoas cujos bens estejam sujeitos, por lei ou por determinação judicial ou de terceiro, à administração de outrem e aquelas que exercem a administração, até serem aprovadas as contas finais”.

E para esta decisão considerou ao factos provados e aplicou o direito indicado, dizendo:

CC faleceu em 23/6/1986. A partir de 22/6/1987, podiam ser exigidas contas ao cabeça de casal, BB.

Porém, a prescrição não começa, nem corre entre as pessoas cujos bens estejam sujeitos por lei à administração de outrem, até serem aprovadas as contas finais - artigo 318.º, al. c), do Código Civil.

O artigo 318.º respeita a causas bilaterais de suspensão da prescrição. Na al. c), tal como nas duas primeiras opções (als. a) e b), pretende-se salvaguardar a proteção da confiança, não já no âmbito de relações familiares específicas (a que se referem as al.s a) e b)), mas no âmbito de relações de administração, cuja natureza exige igualmente que se estabeleça uma relação de confiança, particularmente no quadro de uma administração obrigatória por lei ou por decisão judicial, em que as partes não se podem voluntariamente desvincular dessa relação. Isto é, as partes permanecem numa relação cuja manutenção é alheia ao seu controlo. Neste contexto, obrigá-las a desencadear o exercício dos respetivos direitos, por risco de prescrição, atenta contra a própria relação estabelecida, por poder pô-la em questão, miná-la, criar atritos ou dificuldades não desejadas numa relação que se quer franca e transparente e protegida pela confiança que deve existir entre as partes.

Conforme refere Ana Prata, Código Civil anotado, Almedina, vol. 1, em anotação, e a propósito deste artigo, “É ainda a especial relação de confiança, típica das relações de administração, que afasta o curso normal da prescrição. Também aqui, se o administrador é o titular do direito, forçá-lo a exigir a sua observância pelo administrado parece contrariar o sentido da relação estabelecida; na situação inversa, sendo o administrado o titular do direito, receia-se a influência que o administrador possa exercer, impedindo o exercício oportuno”.

Pelos motivos expostos, não pode correr o prazo de prescrição entre pessoas cujos bens são administrados por outrem e esse outrem, até serem aprovadas as contas finais.

As razões que justificam a existência da norma do artigo 318.º, al, c) do Código Civil são aplicáveis nas relações entre o cabeça de casal e os herdeiros, quanto à administração dos bens da herança. Trata-se de uma relação de administração determinada por lei, como se reconhece ser o caso da administração pelo cabeça de casal e as relações de confiança estabelecidas entre o cabeça de casal (administrador) e os herdeiros devem ser protegidas, tanto mais que se tratam, em muitos casos, concomitantemente, de relações familiares que importa salvaguardar.

Além disso, nada impede que este preceito seja aplicável quando o administrador dos bens é também titular dos bens administrados. Não vemos motivos para que assim não seja, à luz da razão de ser do preceito e da leitura do preceito – o cabeça de casal, ainda que também titular em relação aos bens da herança é, em relação aos demais herdeiros, ainda um terceiro que administra os seus bens.

Também o acórdão do TRE citado acima assume sem dificuldade que sim. Conclui expressamente da seguinte forma: “Assim entre os herdeiros e o cabeça de casal, em tudo o que respeite aos bens da herança sob administração do cabeça de casal, não se iniciou nem correu qualquer prazo de prescrição, pelo que esta não pode ter-se como verificada.”

Pelo que, concluímos, que o artigo 318.º, al. c), do Código Civil é aplicável às relações de administração estabelecidas entre o cabeça de casal e os herdeiros.

No Código Civil anotado, Coimbra Editora, 1987, Pires de Lima e Antunes Varela, Vol. 1, p. 286, defendem que dentro do regime de suspensão, duas situações podem distinguir-se:

a) A relação creditícia ainda não existia, ou o crédito ainda não podia ser exercido, na altura em que se constituiu a relação que serve de fundamento à suspensão;

b) O crédito já existia e o direito do credor já podia ser exercido.

No primeiro caso, a prescrição não começa enquanto a causa de suspensão não cessar; no segundo caso, não corre enquanto não se extinguir a causa de suspensão.

A situação destes autos enquadra-se na primeira hipótese enunciada.

Em conclusão, há que considerar que o prazo de prescrição não começou a correr. O período de prestação de contas pretendido situa-se entre 1986 e 1999, enquanto decorreu o cabecelato de BB. À luz do exposto, por se estar no âmbito de uma relação de administração, não se iniciou o prazo. Mas tal prazo também não se iniciou depois, porque foram aprovadas contas finais.

E nem pode considerar-se que as contas finais foram consideradas aprovadas pelo acordo de 1998, a que alude o ponto 7 dos factos provados, na medida em que esse acordo foi desconsiderado pelo tribunal, por decisão de 2014 – factos 9 e 10.

Sem prejuízo, ainda que se considerasse que por força do falecimento do BB, haveria que considerar iniciado o prazo em 1999, após o falecimento do anterior cabeça de casal, a presente ação entrou em juízo em 6/2/2019, pelo que, atento o disposto no artigo 323.º, n.º 2., do Código de Processo Civil – sempre se teria por interrompida antes de decorrido o prazo de 20 anos.

Em conclusão, importa considerar que não decorreu o prazo prescricional.”

19.3. Os ora recorrentes contestam esta decisão, com base nos seguintes argumentos:

1º - tendo BB actuado como «(…) cabeça de casal de facto (…)» não é aplicável a suspensão da prescrição prevista no artigo 318.º, alínea c), do Código Civil.

2º - o Tribunal a quo «(…) fixou genericamente a obrigação de prestação de contas a todos os herdeiros de BB, sem individualizar quem tem essa obrigação, ignorando que tal encargo não é solidário e recai sobre quem administrou os bens da herança

19.4. A A. respondeu a estes argumentos dizendo:

Quanto ao 1º:

- BB foi, efetivamente, cabeça-de-casal, sendo-lhe deferida, por lei (cfr. artigo 2079.º do CC), a administração dos bens da herança. E foi-lhe deferida à luz do disposto no artigo 2080.º, n.º4 do Código Civil, não se tendo tratado de uma administração de facto;

- Acresce que, ainda que de uma administração de facto se tratasse, o que por mera cautela e dever de patrocínio se equaciona, sem conceder, são a Jurisprudência e a Doutrina unânimes em afirmar que «(…) o cabeça-de-casal de facto, desde que efectivamente administre bens da herança, tem a obrigação de prestar contas aos herdeiros» (Ac. da Relação de Guimarães de 26/04/2018, proc. n.º 1280/17.8T8VNF.G1).

Quanto ao 2º:

- De facto, a obrigação de prestação de contas «(…) recai sobre quem administrou os bens da herança (…)», contudo, tendo falecido o cabeça-de-casal que administrava tais bens, esta transmite-se hereditariamente – pela sua natureza patrimonial.

- Aliás, também este Colendo Tribunal já decidiu nesse sentido, veja-se o acórdão proferido a 10/12/2024 no âmbito do presente processo, «(…) a obrigação de prestação de contas tem carácter patrimonial, pelo que a mesma se transmite aos herdeiros do cabeça-de-casal, nos termos dos arts. 2024.º e 2025.º n.º1 (a contrario), também do Código Civil», «(…) a transmissibilidade da obrigação de prestação de contas relativas ao exercício do cabeçalato, que é de natureza patrimonial, e pode (…) ser realizado pelos herdeiros, sob pena de se ficar numa situação inadmissível de falta de informação» (sublinhados nossos).

19.5. Apreciando a questão suscitada, é de considerar que os recorrentes não têm razão:

- os factos provados nos autos não suportam a sugestão de haver um cabeça de casal de facto;

- não há motivos que justifiquem um tratamento legal distinto entre um cabeça de casal de direito, obrigado a prestar contas, e um cabeça de casal de facto.

As razões justificativas da solução propugnada pelo legislador no art.º 318.º, al. c) do CC abrangem ambas as situações, nos termos explicitados no acórdão recorrido.

20. Quanto a saber se o Tribunal condenou todos os RR. quando apenas devia condenar os que exerceram a função de cabeça de casal, é questão que foi decidida por anterior acórdão deste STJ – e não há que retomar a problemática, nem justificar a decisão do tribunal, oportunamente fundamentada sobre o ponto.

Apenas para situar, o anterior acórdão do STJ disse:

Em síntese, não há que confundir a intransmissibilidade da posição de cabeça de casal, com a transmissibilidade da obrigação de prestação de contas relativas ao exercício do cabeçalato, que é de natureza patrimonial, e pode – abstratamente considerando – ser realizada pelos herdeiros, sob pena de se ficar numa situação inadmissível de falta de informação.”

Improcedem, assim, todas as questões suscitadas na presente revista.

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, é negada a revista.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 29 de Outubro de 2025

Relatora: Fátima Gomes

1º adjunto: Rui Manuel Machado e Moura

2º adjunto: Nuno Pinto Oliveira