Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P583
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: CARMONA DA MOTA
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DO ÁLCOOL
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: SJ200203070005835
Data do Acordão: 03/07/2002
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Sumário :

I - «O tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena (...) de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena (...) de substituição se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição» (FIGUEIREDO DIAS, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, § 497). Pois que «são finalidades de prevenção especial de socialização que justificam todo o movimento de luta contra a pena de prisão» (§ 500). Donde, assim, que «o tribunal só deva negar a aplicação de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da
prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas» (idem).
II - No caso - condenação do arguido, por factos de 14-02-99, como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292.º, do CP) e de um outro de homicídio grosseiramente negligente (art. 137.º, n.º 2, do CP), nas penas parcelares de 4 meses de prisão e de 18 meses de prisão, respectivamente, na pena principal única de 20 meses de prisão e na pena acessória de 8 meses de inibição de conduzir veículos automóveis -, as especiais condições pessoais do arguido (que, embora gozasse de um confortável apoio familiar, não retirava dele o proveito que poderia retirar e por que, atenta a sua situação de liberdade
condicional, deveria esforçar-se), o seu comportamento anterior (que o levara em 1996, por tráfico de drogas, à cadeia, donde saíra, em liberdade condicional, em 20Dez98, ou seja, menos de dois meses antes), o seu comportamento entre a libertação condicional e o crime ora ajuizado (com «saídas no período nocturno até horas tardias, fazendo-se acompanhar por indivíduos associados ao consumo de estupefacientes», sendo ainda de salientar que, cerca de meia hora antes do acidente mortal em que interveio, o arguido interviera noutro acidente de trânsito em circunstâncias muito semelhantes e, igualmente, com «fuga») e o seu comportamento ulterior (por um lado, o arguido, logo após o atropelamento, «abandonou o veículo automóvel que conduzia e dirigiu-se a pé a ...»; por outro, em Janeiro do ano seguinte, interveio em «novo acidente de viação» - cuja responsabilidade, porém, «atribui ao outro condutor, que, alega, conduzia alcoolizado»; e, enfim, «a associação do arguido, na comunidade, a indicadores de ingestão excessiva e regular de bebidas alcoólicas e, eventualmente, de produtos estupefacientes, nomeadamente no período nocturno») não permitem concluir - muito pelo contrário - que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 50.1 do CP).
III - Tanto mais que é preciso não descaracterizar «o papel da prevenção geral como princípio integrante do critério geral de substituição», a funcionar aqui «sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico» e«como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização» (F. Dias, ob. cit., § 501). E daí que a pena de substituição, mesmo que «aconselhada à luz de exigências de socialização» (o que até nem é o caso), não seja de aplicar - como já é, manifestamente, o caso - «se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias» (idem).
IV - Aliás, não se provou nenhum dos pressupostos em que o arguido funda o seu pedido de substituição da pena. Com efeito, não se provou que «actualmente trabalhe», nem que seja «um cidadão integrado socialmente, consciente e arrependido dos factos praticados no passado
e que pretende levantar a cabeça e constituir família». E os seus 36 anos de idade não lhe conferem, apropriadamente, o estatuto, que ainda reivindica, de «jovem».
Decisão Texto Integral:

1. OS FACTOS («Não resultou provado que o arguido se tenha apercebido que do acidente descrito e em que teve intervenção tenham resultado ferimentos graves na pessoa da condutora do ciclomotor; que o arguido tenha abandonado o local do acidente indiferente à sorte da conduta do ciclomotor e com o propósito de não lhe prestar qualquer assistência»)

Cerca das 06:10 do dia 14 de Fevereiro de 1999, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ...-...-JB pela metade direita da faixa de rodagem na Estrada Municipal n.º 578, atento o sentido de marcha Almeirim > Fazendas de Almeirim. Fazia tempo seco, não existiam quaisquer obstáculos na faixa de rodagem e naquele local a via desenvolvia-se numa longa recta, tendo a faixa de rodagem a largura de cerca de seis metros com bermas de dois metros de largura. O arguido conduzia tal veículo sendo portador de uma taxa de álcool na sangue de 1,80 gramas por litro de sangue. A determinada altura do percurso, por imperícia sua relacionada com o facto de conduzir sob a influência da mencionada taxa de álcool no sangue, o arguido perdeu o controle do veículo que conduzia e invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem, por onde passou a circular. O arguido foi então embater com a parte da frente do lado esquerdo do veículo automóvel que conduzia na parte da frente do ciclomotor de matrícula 1-ALR-...-... que circulava em sentido contrário , pela metade direita da faixa de rodagem, e era tripulado por A (-19Mar81). O embate deu-se a cerca de 4 metros e 80 centímetros do limite do lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha do arguido e a cerca de 1 metro e 20 centímetros do limite do lado esquerdo, considerando o mesmo sentido de marcha. Após o embate, o veículo conduzido pelo arguido veio a imobilizar-se na faixa de rodagem a cerca de 31 metros do local e com a parte da frente a cerca de 5 metros e 40 centímetros do portão de entrada da Quinta das Lilas. Com o impacto, o ciclomotor foi projectado para a berma do lado esquerdo, considerando o sentido Almeirim > Fazendas de Almeirim, ficando imobilizado a cerca de 12, 50 metros do local do embate no sentido de Almeirim. Do embate acima descrito resultaram para a condutora do ciclomotor A as lesões que se mostram descritas no relatório de exame e autópsia de fls. 27 e 28, nomeadamente traumatismo craniano e vértebro-medular (fractura da coluna ao nível da 5ª vértebra cervical) e que foram causa directa e necessária da sua morte ocorrida pelas 6:35 desse mesmo dia 14 de Fevereiro. Após o acidente, e apesar de dele se ter apercebido, o arguido não prestou qualquer assistência à falecida A, e, quando já se encontravam no local outras pessoas, o arguido abandonou o veículo automóvel que conduzia e dirigiu-se, a pé, em direcção a Fazendas de Almeirim, vindo a ser encontrado pouco depois pela Guarda Nacional Republicana de Almeirim. Ao agir como se descreve o arguido previu e quis conduzir o veículo automóvel supra identificado, sabendo bem que se encontrava sob o efeito da ingestão de bebidas alcoólicas durante a noite e madrugada anterior. O arguido confessou que se encontrava sob o efeito da ingestão de bebidas alcoólicas, tendo consciência de que no estado de embriaguez em que se encontrava não lhe era permitido pela lei conduzir veículos automóveis. Ao iniciar a condução no estado de embriaguez em que se encontrava o arguido não previu a possibilidade de causar um acidente de viação nem a morte de eventuais intervenientes. O arguido sabia que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei e agiu de forma voluntária e consciente. Na data dos factos, o arguido encontrava-se na situação de liberdade condicional desde 20 de Dezembro de 1998, tendo sido colocado em regime de prova até 16 de Novembro de 2000.

2. A condenação

Com base nestes factos, o tribunal colectivo do 2.º Juízo Criminal de Santarém (Juízes Aguiar Pereira, Eduardo Azevedo e Duarte Silva), em 17Out01, condenou B (-25Nov65), como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292.º do CP) e de um outro de homicídio grosseiramente negligente (art. 137.2 do CP), nas penas parcelares de 4 meses de prisão e de 18 meses de prisão, na pena principal única de 20 meses de prisão e na pena acessória de 8 meses de inibição de conduzir veículos automóveis:

Comete o crime de condução de veículo em estado de embriaguez quem, pelo menos por negligência, conduzir qualquer veículo na via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 gramas por litro de sangue. Trata-se de um crime de perigo abstracto que se consuma quando o agente, sabendo ser portador daquela taxa conduzir veículo automóvel na via pública (crime doloso), ou quando, sendo-lhe exigível tal conhecimento o agente quer conduzir veículo na via pública (crime negligente). Como vem provado, o arguido, sabendo que se encontrava a conduzir um veículo automóvel na via pública sob o efeito da ingestão de bebidas alcoólicas não se coibiu de o fazer, apesar de bem saber que tal conduta era proibida e punida pela lei. Através do competente exame viria a confirmar-se que o arguido era efectivamente portador de uma taxa de álcool no sangue de 1,80 gramas por litro. Assim agindo o arguido cometeu efectivamente o crime de condução de veículo em estado de embriaguez de que vem acusado. O arguido está também acusado pela prática de um crime de homicídio por negligência, com negligência grosseira. Para que se tenha por verificado o crime de homicídio por negligência importa que, de conduta negligente imputável ao agente tenha resultado para outra pessoa, numa relação causal, a lesão do seu direito à vida. Sobre o conceito de negligência dispõe o artigo 15º do Código Penal que age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que está obrigado e de que é capaz representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actua sem se conformar com tal resultado (negligência consciente) ou nem sequer chegar a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente). Ao lado desta distinção a lei penal atende ainda em diversos preceitos à distinção entre negligência grosseira e negligência simples, punindo quem actue com aquele tipo de negligência de forma mais severa, na medida em que é nela mais elevado o grau de violação do dever de cuidado imposto ao agente fundamento da punição por negligência. Na verdade a negligência grosseira corresponde à chamada negligência temerária, em que o agente actua com violação das precauções exigidas pela mais elementar prudência de forma a criar uma situação de facto altamente potenciadora de, por si só, e no caso dos acidentes de trânsito, criar perigo de verificação de um acidente de viação e das suas eventualmente nefastas consequências. Se é certo que não basta para integrar, em abstracto, o conceito de negligência grosseira a mera violação de normas relativas à circulação automóvel de que venha a resultar um acidente de viação, não é menos certo que, no caso dos autos, tal violação por parte do arguido e a forma como ele se dispôs a conduzir o veículo automóvel que conduzia depois de ingerir bebidas alcoólicas é de tal forma grave, temerária e inconsiderada que, naquelas concretas condições, nela não teria incorrido um condutor normalmente diligente. Salienta-se que o acidente se deu numa estrada com seis metros de largura e bermas, cujo traçado se desenha no local numa extensa recta e que, sendo noite, o arguido, influenciado pelo estado de embriaguez em que se encontrava não foi capaz de controlar o seu veículo e de o conduzir pela metade direita da faixa de rodagem, invadindo a faixa contrária onde circulava, em sentido contrário ao seu, um ciclomotor. Significa isto que o tribunal conclui que da matéria de facto apurada na audiência de julgamento resulta que o arguido, agindo com negligência grosseira na condução de um veículo automóvel causou o acidente a que os autos se reportam, devendo responder pelas suas consequências. Vem provado que o arguido, nas circunstâncias de tempo e de lugar acima descritas, invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem, por onde circulava então um ciclomotor conduzido pela falecida A. Mais vem provado que quando o arguido circulava nessa metade esquerda da faixa de rodagem, considerando o seu sentido de marcha, e nessa metade da faixa, ocorreu o embate entre a parte dianteira esquerda do veículo que conduzia e a parte da frente do ciclomotor. O arguido violou, pois, a norma constante do artigo 13º n.º 1 do Código da Estrada. A norma em questão destina-se a proporcionar aos utentes das vias a segurança necessária para que o tráfego se processe, disciplinando o modo como os condutores devem conduzir na via pública. Ora o embate verificado entre o veículo do arguido e o ciclomotor constitui, precisamente, o tipo de eventos previsto pelo legislador com a criação da norma violada pelo arguido e aqueles que ela se destina a evitar. Assim sendo pode concluir-se pela existência de nexo causal entre a conduta contravencional do arguido, ao circular pela metade esquerda da faixa de rodagem e o acidente objecto destes autos, já que sem aquela conduta ilícita do arguido não estariam criadas as condições de verificação do evento. Do acidente objecto dos autos resultou, de modo directo e necessário, a morte da condutora do ciclomotor. Tal resultado não foi querido pelo arguido mas é-lhe imputável a título de negligência por resultar directamente de violação de regras de cuidado no exercício da condução, que o mesmo é dizer de conduta negligente sua, integradora da contraordenação às regras acima indicadas. O arguido sabia que estava obrigado a circular pela metade direita da faixa de rodagem e estava ciente de que conduzia na metade da faixa de rodagem destinada ao trânsito de sentido contrário ao seu. Deveria assim o arguido ter previsto que do facto de circular nas condições atrás descritas pudesse resultar um embate noutro veículo, como veio a suceder e ainda que dele pudessem resultar nos respectivos condutores lesões graves adequadas a causar como resultado a sua morte, tal como veio a acontecer com a condutora do ciclomotor que circulava em sentido contrário ao seu. Ao assim agir o arguido actuou de forma negligente, sendo-lhe imputável, a esse título, o crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punível pelo artigo 137º n.º 1 e 2 do Código Penal. O arguido está ainda acusado pela prática de um crime de omissão de auxílio, previsto e punível pelo artigo 200º n.º 1 e 2 do Código Penal. O crime de omissão de auxílio, não é, como resulta da análise dos próprios termos do citado preceito, um crime de perigo abstracto, puramente formal, que abstraia das concretas condições em que são abandonadas as vítimas e que se baste com a mera conduta omissiva do agente. E isto, apesar da bondade dos argumentos expressos, entre outros nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Janeiro de 1995 in C.J. - Ac.s do STJ - 1995 - Tomo 1 a pág. 165, de 3 de Julho de 1991, in BMJ 409 - 355 ou de 1 de Março de 1990 in BMJ 395 - 230, e do enfoque que se possa colocar no pressuposto, que os trabalhos preparatórios do Código Penal de alguma forma confirmam, de que estamos em presença de crimes que tutelam o mero dever de solidariedade social ante situações de catástrofe. Trata-se, porém, em verdade, de um crime de perigo concreto, na medida em que exige a efectiva verificação de perigo para a vida, bem jurídico ali tutelado, ou seja a conduta do agente tem que colocar efectivamente em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade da vítima (cfr. "Comentário Conimbricense ao Código Penal" - Tomo I, ps. 846 e ss.). Ora para se decidir acerca do concreto perigo que a conduta do agente cria para a vida da vítima importa analisar, de um ponto de vista objectivo - que não na simples perspectiva do agente (esta poderia colocar-nos perante situações configuráveis como de tentativa impossível ou de crime putativo) - se a conduta omitida seria ou não idónea a afastar o perigo, conclusão que se extrai do segmento da norma "deixar de prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo" (art. 200.1 do CP). No caso dos autos vem provado que o arguido abandonou o local após o acidente em que tinha sido interveniente quando no local se encontravam já outras pessoas. Mais vem provado que do acidente a que os autos se reportam resultaram para a condutora do ciclomotor, além do mais traumatismo craniano e vértebro-medular a nível da quinta vértebra cervical, vindo a sua morte a ocorrer cerca de vinte e cinco minutos depois no Hospital Distrital de Santarém. O arguido encontrava-se na ocasião em estado de embriaguez pelo que não se antevê que o auxílio que pudesse, em concreto, prestar à vítima fosse adequado a afastar qualquer perigo, seja por acção pessoal seja promovendo o seu socorro. Termos em que o Tribunal considera que não se mostram verificados todos os elementos típicos do crime de omissão de auxílio cuja prática foi imputada ao arguido. Tendo concluído como vem de ser exposto, importa passar à determinação da pena que, em concreto, cabe ao arguido pela prática dos factos descritos. O crime de condução de veículo automóvel em estado de embriaguez é punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até cento e vinte dias. Por sua vez o crime de homicídio por negligência grosseira cometido pelo arguido é punível com a pena de prisão até cinco anos. No que se refere a qualquer dos citados crimes, e porque razões ligas à prevenção geral da sinistralidade rodoviária e às concretas circunstâncias que rodearam o acidente dos autos e as suas consequências desaconselham especialmente a aplicação ao caso dos autos da pena de multa prevista na lei, o Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 70º do Código Penal recorrerá à aplicação da pena de prisão. A determinação da pena a aplicar, em concreto, ao arguido, é feita em função da sua culpa e tendo em conta os fins das penas consignados no artigo 40º do Código Penal, as exigências específicas da prevenção da prática de novos crimes por parte do arguido, por um lado, e, por outro, as exigências da prevenção e da repressão geral da criminalidade, sempre de considerar de modo particular no que se refere aos crimes cometidos no exercício da condução, atentas as suas consequências sociais. É sabido que a culpa define o limite máximo da pena. A finalidade primeira das penas reside na tutela dos bens jurídicos, devendo traduzir a sua aplicação a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da norma violada, sem perder de vista, na medida do possível, a reinserção social do arguido. Da conjugação de tais parâmetros e finalidades decorre ser possível a aplicação de uma pena fixada abaixo da medida óptima de tutela do bem jurídico e das expectativas da comunidade, dentro de um limite mínimo de eficácia quanto à prevenção especial. O Tribunal atenderá aos critérios legais constantes do artigo 71º do Código Penal, e designadamente às circunstâncias que, no caso concreto, ocorrem em favor e contra o arguido. Em favor do arguido milita, ainda que com pouco relevo, a confissão relativamente ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez. Porém, os factos ocorreram quando o arguido se encontrava na situação de liberdade condicional há menos de dois meses, não o tendo tal situação coibido de praticar crime doloso que viria a estar na origem do acidente e do crime negligente. Contra o arguido milita também o facto de o acidente e as suas nefastas consequência se ter ficado a dever exclusivamente a culpa sua (o que nem sempre sucede em matéria de acidentes de viação), relevando quanto ao crime de homicídio a circunstância de a infracção causal ser daquelas que a lei considera especialmente graves no exercício da condução, e quanto ao crime de condução em estado de embriaguez o facto de ter actuado com dolo. Com base em tais circunstâncias entende o Tribunal ser adequada a sancionar a conduta do arguido, por ser essa a medida da censura social que ela suscita, a aplicação da pena de quatro meses de prisão pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez e de dezoito meses de prisão pela prática do crime de homicídio por negligência grosseira. Ao arguido é ainda aplicável a sanção da proibição de conduzir veículos motorizados nos termos do artigo 69º n.º 1 a) do Código Penal na redacção vigente na data dos factos (proibição de conduzir veículos motorizados entre um mês e um ano) ou do mesmo preceito mas na redacção introduzida pela Lei 77/01 de 13 de Julho (proibição de conduzir veículos com motor entre três meses e três anos). Nos termos e para efeito do disposto no artigo 2º n.º 2 e 4 do Código Penal, o tribunal tem por mais favorável ao arguido a aplicação do regime sancionatório nesta parte vigente na data dos factos, por ser de menor duração mínima e máxima o período previsto para a proibição de conduzir a decretar. Assim sendo, e ao abrigo do preceito citado, vista a gravidade dos factos descritos, tem o tribunal por adequada a aplicação da sanção de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de oito meses.

3. O RECURSO

3.1. Inconformado, o arguido (Adv. Rogério Ribeiro), «sem embargo de reconhecer que os factos praticados são graves, tanto mais que ocorreu a morte de uma adolescente», recorreu em 30Out01 ao STJ, pedindo, relativamente ao crime de condução sob o efeito do álcool, a opção por uma pena de multa ou uma pena de prisão não superior a 3 meses; em relação ao crime de homicídio negligente, uma pena de prisão não superior a 15 meses; quanto ao concurso criminoso, uma pena de 16 meses de prisão suspensa:

O recorrente actualmente trabalha, é um cidadão integrado socialmente, consciente e arrependido dos factos praticados no passado e que pretende levantar a cabeça e constituir família, pelo que a censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidade da punição. Aliás, será de prender um jovem que terá de viver numa prisão em contacto diário com criminosos de alta estirpe que praticaram crimes graves, violentos e dolosos não é mais prejudicial que benéfico? O recorrente não gostaria de voltar a repetir essa má experiência que lhe deu muitos problemas de índole psicológica.

3.2. Na sua resposta de 10Dez01, a assistente/recorrida (Adv.ª Odette Ribeiro Cardoso) apoiou a decisão recorrida:

A conduta culposa e exclusiva do arguido foi a única causa directa do acidente. As penas aplicadas não são demasiado severas. As exigências de prevenção e repressão da criminalidade são de considerar de modo particular nos crimes cometidos no exercício da condução. O arguido, aliás, encontrava-se em liberdade condicional há menos de dois meses. A sociedade já lhe tinha dado a possibilidade de estar em liberdade condicional e o arguido não a soube valorizar.

3.3. Também o MP (Proc. Adj. Francisco Perdigão) , na sua resposta com a mesma data, se pronunciou pela confirmação do acórdão recorrido:

Face à matéria fáctica, outra solução não seria de esperar que a opção do tribunal colectivo pela pena de prisão. As penas parcelares e única mostram-se bem doseadas. Não se mostrando presentes, na sua plenitude, os pressupostos exigidos pelo art. 50.º, não é admissível a suspensão da pena.

4. QUESTÃO PRÉVIA

4.1. Se bem que «a questão do limite ou da moldura da culpa esteja plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção», já assim não será no tocante à «determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena» (a menos, obviamente, que «tenham sido violadas regras da experiência ou a quantificação se revele de todo desproporcionada»):

«Declara expressis verbis o art. 71.3 do CP que "na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos da medida de pena". Este dever jurídico-substantivo de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo (...) da decisão sobre a determinação da pena. De resto, um pouco por toda a parte se revela a tendência para alargar os limites em que a questão da determinação da pena é susceptível de revista. Todos estão de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado. Esta última posição é a mais correcta (...). Mas já assim não será se, v. g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada»
Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 255

4.2. Ora, no caso, o recorrente, não discutindo - na quantificação das penas parcelares - «a questão do limite ou da moldura da culpa» nem «a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção», limitou-se a pedir, dentro daqueles parâmetros e sob o pretexto, simplesmente, de «demasiada severidade», um ligeiro abrandamento do «quantum exacto da pena», sugerindo a fixação em «3 meses de prisão» da pena fixada em 1.ª instância - no âmbito de uma pena abstracta de 1 mês a 1 ano de prisão - em «4 meses de prisão» e a fixação em «15 meses de prisão» da pena ali fixada - no contexto de uma pena até 5 anos de prisão - em «18 meses de prisão». Porém, a quantificação operada em 1.ª instância - é visível - não se revela «desproporcionada» e, muito menos, «de todo desproporcionada». Aliás, o próprio recorrente, ao propor a redução para 3 meses da pena fixada em 4 meses (no quadro de 1 mês a 1 ano) e para 15 meses da pena de 18 meses (no quadro de 1 mês a 5 anos), admite-as (implicitamente) - ainda que as rotule, por dever de ofício, de «demasiado severas» - como «não de todo desproporcionadas».

4.3. De resto, o objectivo do recurso é, fundamentalmente, a substituição por «suspensão da execução da prisão» da pena única, fixada em 1.ª instância (nos limites - decerto benévolos - da moldura da culpa e, no quadro da prevenção, de acordo - ainda que pecando porventura por escassez - com os fins das penas) em «20 meses de prisão».

4.4. É certo que «o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena (...) de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação (Ante uma «pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos», há-de o tribunal ficar adstrito a suspender a pena se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior ao crime, à sua conduta posterior e às circunstâncias deste, concluir que «a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» (art. 50 n.1 do CP).), a pena (...) de substituição se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 497). Pois que «são finalidades de prevenção especial de socialização que justificam todo o movimento de luta contra a pena de prisão» (§ 500). Donde, assim, que «o tribunal só deva negar a aplicação de uma pena de substituição quando a execução a prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas» (idem).

4.5. No caso, porém, as especiais condições pessoais do arguido (que, embora gozasse de um confortável apoio familiar («O arguido considera a dinâmica familiar positiva, apenas admitindo alguma conflituosidade com o pai acerca da forma como, durante algum tempo, ocupou os tempos livres no período nocturno» (cfr. relatório social junto aos autos)), não retirava dele o proveito que poderia retirar e por que, atenta a sua situação de liberdade condicional, deveria esforçar-se), o seu comportamento anterior (que o levara em 1996, por tráfico de drogas, à cadeia, donde saíra, em liberdade condicional, em 20Dez98, ou seja, menos de dois meses antes), o seu comportamento entre a libertação condicional e o crime ora ajuizado (com «saídas no período nocturno até horas tardias, fazendo-se acompanhar por indivíduos associados ao consumo e estupefacientes» (Cfr. o relatório social organizado pelo IRS no âmbito do processo de (revogação da liberdade condicional.), sendo ainda de salientar que, cerca de meia hora antes do acidente mortal em que interveio, o arguido interviera noutro acidente de trânsito - v. fls. 76 e ss. - em circunstâncias muito semelhantes e, igualmente, com «fuga») e o seu comportamento ulterior (por um lado, o arguido, logo após o atropelamento, «abandonou o veículo automóvel que conduzia e dirigiu-se, a pé, em direcção a Fazendas de Almeirim»; por outro, em Janeiro do ano seguinte, interveio em «novo acidente de viação» - cuja responsabilidade, porém, «atribui ao outro condutor, que, alega, conduzia alcoolizado»; e, enfim, «a associação do arguido, na comunidade, a indicadores de ingestão excessiva e regular de bebidas alcoólicas e, eventualmente, de produtos estupefacientes, nomeadamente no período nocturno») Cfr. o relatório social organizado pelo IRS no âmbito do processo de (revogação da) liberdade condicional. não permitem concluir - muito pelo contrário - que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 50.1 do CP).

4.6. Tanto mais que é preciso não descaracterizar «o papel da prevenção geral como princípio integrante do critério geral de substituição», a funcionar aqui «sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico» e «como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização» (F. Dias, ob. cit., § 501). E daí que a pena de substituição, mesmo que «aconselhada à luz de exigências de socialização» (o que até nem é o caso), não seja de aplicar - como já é, manifestamente, o caso - «se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não fossem postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias» (idem).

4.7. Aliás, nenhum dos pressupostos em que o arguido funda o seu pedido de substituição da pena encontra eco nos factos provados. Não se provou, com efeito, que o arguido «actualmente trabalhe» (Se bem que, do já citado relatório social, conste que «a nível ocupacional, é referida pelo pai uma evolução, não saindo nos períodos nocturnos até demasiado tarde, na sequência da necessidade de se afastar de situações que o poderiam levar ao consumo de estupefacientes». E que «profissionalmente, continuou a desempenhar trabalho indiferenciado na construção civil, nas obras do pai».). Nem que seja «um cidadão integrado socialmente, consciente e arrependido dos factos praticados no passado e que pretende levantar a cabeça e constituir família» (Antes constando - como já se viu - «a associação do arguido, na comunidade, a indicadores de ingestão excessiva e regular de bebidas alcoólicas e, eventualmente, de produtos estupefacientes, nomeadamente no período nocturno»). E os seus 36 anos de idade não lhe conferem, apropriadamente, o estatuto, que reivindica, de «jovem».

5. OS ACIDENTES DE VIAÇÃO, O ÁLCOOL E A OPINIÃO PÚBLICA

É impressionante ver o número de pessoas que conduzem com mais de 1,2 g/l de alcoolémia (o limite legal é 0,5)! Falamos, a certas horas, em 10% das inspecções realizadas.
Armando Vara, Secretário de Estado da Administração Interna, Público, 6Jul96.

O estado de embriaguez do motorista e um choque ligeiro com outra viatura foram as principais causas do acidente que vitimou, no dia 31 de Agosto de 1997, em Paris, a princesa Diana, o seu companheiro Dodi al-Fayed e o motorista Henri Paul, indica o relatório definitivo dos peritos da polícia francesa. Concluiu-se, através das análises realizadas, que Henri Paul apresentava uma taxa de alcoolemia de 1,75 a 1,80 graus de álcool por litro de sangue. E as análises também revelaram a existência de vestígios de Prozac, um antidepressivo.
DN, Out98.

Afinal a estrada não é boa, há problemas de sinalização, mas sobretudo o automobilista aprende a não morrer se for tratado a cacete. O automobilista que não ultrapassa com medo da intolerância da polícia, o automobilista que não bebe com medo do balão, o automobilista que respeita o traço contínuo com medo da multa. Nunca tive dúvidas, pese a propaganda ofuscante que procura apontar noutros sentidos, de que o principal responsável pela tragédia nas estradas portuguesa é o automobilista inculto, arrogante e alarve que mata e morre em nome da aparente salvação da sua auto-estima. E agora, depois da Operação Tolerância Zero, perplexo e inquieto, dou comigo a pensar que para o exercício da cidadania em algumas estradas do País são necessários polícias de moca afiada, zurzindo a torto e a direito. Calo-me por medo. Medo de aplaudir a intolerância que conseguiu reduzir os mortos e baixar o número de acidentes. Mas como posso calar-me, se estou contente porque morreu menos gente e houve menos sinistralidade? Aplaudo a intolerância? Deixo que o velho princípio que dispensa polícias em nome da construção da liberdade seja posto à mercê de contravenções? Vou criticar este avanço da Tolerância Zero a outras estradas do País, conforme foi anunciado? Ou será melhor calar-me, já que se percebe que à força de "castanha" a tragédia diminui? É este o meu problema de consciência.
MOITA FLORES, DN, 23Nov98.

A repressão tem de funcionar e, sobretudo, os processos têm de ser céleres para que, passados dois ou três anos, não sejam entendidos como injustiça. A justiça em Portugal é demasiado branda para com os responsáveis de acidentes. Acontece-lhes pouco. Quase nada. O pior que lhe pode suceder é ficarem inibidos de conduzir durante algum tempo, mas não sofrem qualquer penalização criminal, que também é importante e poderia ajudar a prevenir outros acidentes e a dissuadir condutas menos próprias na estrada.
José Trigoso, Prevenção Rodoviária Portuguesa, Expresso/Economia, 6Jun98.

Cidadãos! Declaremos «tolerância zero» ao fascista que existe dentro de cada um de nós! Continuamos abúlicos ante o conflito não declarado que, por ano, no nosso país, mata mais de dois mil indivíduos. As rodovias de Portugal são hoje dos lugares mais perigosos do mundo. O português pode não ser muito competitivo no trabalho. É-o, contudo, na estrada. O português pode gostar da democracia, mas, ao volante, é um fascista. Ele não vê no carro apenas uma forma de percorrer a distância entre dois pontos. Pelo estatuto que julga adquirir com a «máquina» e, especialmente, pelo modo como a conduz, o português encontra ao volante o que outros procuram no psicanalista. Novos e velhos, mulheres e homens, ricos e pobres, letrados e iletrados, se conduzem, deixam logo de beber o chá da civilidade. Não basta ao governo declarar «tolerância zero» se nós não a declararmos também. Ousemos fazer o 25 de Abril dentro da nossa cabeça!
João Carreira Bom, DN, 25Abr99.

O teólogo italiano Mauro Cozzoli lançou um apelo aos automobilistas no sentido de um "sobressalto de tomada de consciência", convidando-os a reencontrar "o sentido do pecado" mesmo quando se conduz na estrada. "O Código da Estrada tem valor de lei moral, antes de ser uma norma legal. Uma vez que o código defende bens morais - a vida humana, antes de mais -, o seu respeito é obrigatório sobretudo por razões éticas". Também o Catecismo da Igreja Católica, publicado pelo Vaticano em 1992, aponta o incumprimento das regras de condução como uma falta grave.
Público/AFP, 22Jul99.

Enquanto um condutor que causa um acidente grave puder continuar a conduzir como se nada fosse, não há Código da Estrada nem melhores estradas que nos livrem de assassinos involuntários.
Miguel Sousa Tavares, Público, 29Mai98.

O quotidiano abana-me mais que as grandes lições de História. A faceta que mais odeio no fascismo é a do quotidiano. Um carro com seis pessoas, três delas crianças, passa a vala de sete metros que separa as faixa da na A2 e vai bater noutro, com quatro ocupantes. Balanço: sete mortos, três das quais crianças, Não se atravessa tão violentamente uma vala de sete metros se a velocidade é só de 120 km/h, a permitida (mais que pela lei, pelo bom senso ou pela atenção pelos miúdos que se leva no carro). Não catalogo esse acontecimento em acidente. Quando começarmos a respeitar os factos - os factos mesmo e não as ideias que deles fazemos - teremos atitudes mais duras e mais justas. Pedro Caldeira teve cara estampada e a indignação nacional por ter enganado financeiramente um ror de gente. Mas entre Grândola e Alcácer roubou-se imensamente mais do que alguns milhões de escudos - e isso ficará calado pela nossa piedosa interpretação do mundo.
Ferreira Fernandes, Visão, 9Jun98

Muita gente gritou quando o chefe da polícia de Nova Iorque anunciou uma das campanhas mais duras do país contra os que dirigem bêbados. A cidade começou a tomar os carros na hora em que os motoristas não passavam o teste do bafómetro. A primeira estatística deixou os críticos sóbrios. O número de acidentes de trânsito atribuídos a álcool caiu 21% em menos de três meses. Grupos de defesa de direitos civis processaram a cidade e acabam de perder na justiça: um juiz concluiu que quem bebe e guia é tão perigoso quanto um suspeito de homicídio encontrado com uma arma.
Manhattan Connections, DN, 23Mai99.

As coisas mudaram nos EUA quando um pai foi parar à cadeia depois de ter sido condenado por homicídio involuntário por negligenciar a segurança do filho que transportava no carro. A cadeira estava no da mãe e o pai saiu, para comprar o jornal, com o bebé, à balda, dentro do dele. Aquela sentença chocou e dividiu os americanos. Contra os argumentos dos grupos que diziam que o MP não devia perseguir aquele pai, que já tinha uma dor, um sofrimento e uma culpabilidade atrozes, o juiz, na sentença, disse compreender a dor de perder um filho e estar consciente de que aquele pai não desejava a sua morte, mas também disse que estava ciente de que ele sabia perfeita e lucidamente que estava a expor a criança a um risco; que não tinha ido buscar a cadeira por mera preguiça e que, feitas as contas, a vida era da criança. E esta vida era mais importante que a dor dos pais.
Mário Cordeiro, Notícias Magazine, 5Dez99.

Acho que temos de entrar por uma via directa e dizer aos pais, claramente: se continuarem a não pôr o cinto atrás, na cidade ou na estrada, seja para qualquer percurso, grande ou pequeno, então, desculpem, mas estão a ser negligentes e a colocar o vosso filho num risco enorme, inadmissível. É um nítido mau trato. Se sabem o grau de perigo e a solução e não a usam, são, para mim, pais maltratantes.
Mário Cordeiro, Notícias Magazine, 5Dez99.

Das contra-ordenações muito graves, 54% correspondem a condução sob o efeito do álcool, 23% a excesso de velocidade e 12% a ultrapassagem pela direita na auto-estrada. No que respeita à fiscalização do álcool, constata-se que 56% dos infractores apresentava uma taxa de álcool igual ou superior a 1,2 g/l, 25% uma taxa superior a 0,8 mas inferior a 1,2 e 19% uma taxa da de alcoolémia superior a 0,5 mas inferior a 0,8. O número de condutores com taxas de álcool superior a 0,5 e inferior a 1,2 tem vindo a diminuir, continuando porém a aumentar o número de condutores com uma taxa de alcoolémia igual ou superior a 1,2 g/l.
Notícias/Magazine, 19Dez99.

Portugal é o país europeu onde se bebe mais álcool por habitante, com uma média de 11,3 litros anuais. Estima-se que existam 1,5 milhões de portugueses a beber excessivamente. Se um terço destes indivíduos for alcoólico e se se tiver em conta que cada um deles é capaz de causar, em média, problemas com mais três pessoas, então tem-se novamente um milhão e meio de pessoas a sofrer indirectamente por causa de outros. E a juntar a todos estes números e preocupações estão os filhos dos alcoólicos, uma população de risco e, pelos vistos, quase desprotegida. O alcoolismo está bastas vezes associado à criminalidade. Dentro desta assume especial relevo a praticada sobre menores, nomeadamente os filhos de alcoólicos: cerca de 40% das molestações sexuais ocorrem em casa, desse número, quase 60% são cometidos pelo pai, que, em quase 40% das ocasiões, é viciado em álcool. Nos EUA, 37% dos crimes de agressão ocorrem em bares.
José Bento Amaro, Público, 26Mai00.

A direcção das urgências do HSM levou a cabo um estudo sobre as substâncias de abuso em vítimas de acidentes. Realizado em 1997, durante três meses, o trabalho mostra que, em 76 politraumatizados graves, 46% tiveram acidentes sob efeito de substâncias psicoactivas (álcool e/ou drogas) e 25% tinham álcool no sangue.
Expresso/Revista, 8Dez00.

Em Portugal, o alcoolismo é a maior das toxicodependências, estimando-se que 1800000 pessoas bebam excessivamente, dos quais cerca de 800000 serão bebedores dependentes, logo potenciais doentes alcoólicos crónicos. Este é o mais grave problema de saúde pública a nível nacional e da U. E.. O consumo per capita de álcool é dos mais elevados do mundo, tendo-se situado em 1998 em 11,2 litros de álcool puro. Em média, cada português gasta 30 contos por ano em bebidas alcoólicas, maios do que na maior parte dos produtos alimentares considerados isoladamente. Este montante sobre para 300 contos no caso de doentes alcoólicos.
Expresso/Revista, 8Dez00.

Os infractores que conduzem com uma taxa de álcool considerada crime - 1,2 g/l ou mais - têm normalmente um castigo mais leve que o aplicado aos condutores com menos álcool no sangue e cuja infracção é considerada apenas uma contra-ordenação. Em 1998, houve 11.301 pessoas julgadas por conduzirem em estado de embriaguez. Dessas apenas 26 (0,23%) forma condenadas em prisão efectiva. Em 1999, a desproporção manteve-se: 49 em 13.669 (0,35%) foram para a cadeia.
Expresso, 6Jan01, apud grupo de trabalho da DGV e estatísticas do MJ

Ter um volante nas mãos é um exercício de enorme responsabilidade pois implica estar ao comando de uma arma mortal. Existindo essa responsabilidade - e confrontados com a irresponsabilidade vigente - não há duas saídas possíveis senão tratar de aplicar a lei com dureza e sem qualquer tolerância. Em todas as estradas do país. E obrigar os infractores a pagar a multa no local da infracção.
JOSÉ MANUEL FERNANDES, Público, 2Mar01.

Não vale a pena insistir na falta de civismo do indígena - que se manifesta na estrada como em toda a parte. Hoje, o indígena, com carros cada vez mais potentes, não resiste a exibir a sua nova riqueza: não se gastam milhares de contos num automóvel de alta cilindrada, com limites de velocidade apertadíssimos, para outra coisa. De qualquer maneira, a essência do problema não é essa: é a falta de fiscalização. Porque, tirando o espectáculo - a "tolerância zero" e meia dúzia de "operações" para sossegar a Pátria -, não há, de facto, fiscalização. Não admira que o sentimento de impunidade seja geral. O sr. ministro escusa de se desentranhar em leis, sem meios para as fazer cumprir. Uma longa experiência ensinou aos portugueses a diferença entre as leis de "propaganda" e as leis que são mesmo a sério. Um assassino entre os milhões de assassinos, que por aí andam a 150 ou 160 à hora, calcula que, em boa lógica, está praticamente a salvo. Só o apanham por azar.
Vasco Pulido Valente, DN, 15Abr01.

Apontam-se punições e as pessoas acham bem. Depois ver-se-á como se safam delas. Os portugueses são assim.
Paquete de Oliveira, Jornal de Notícias, 14Abr01.

Para se conseguir começar a resolver o problema da sinistralidade rodoviária, é necessário, antes de mais, responder à pergunta «porquê os portugueses se matam tanto ao volante?». (...) a verdadeira razão é porque ao volante estava uma mau condutor, que não soube avaliar o limite da sua capacidade de condução naquele caso. Os portugueses matam-se ao volante por duas razões: porque são selvagens e porque não sabem conduzir. A primeira razão é a mesma pela qual se deita o lixo para o chão das praias ou se leva o cãozinho a fazer cocó nos passeios à noite. É uma razão de incultura, de falta de civismo, que não é fácil nem expedito de combater. Mas há maneiras de tentar ensinar maneiras a este tipo de condutor: começa nas escolas e acaba na repressão a sério. A segunda razão é a principal: os portugueses matam-se mas estradas porque não sabem conduzir. E não sabem porque ninguém os ensina e ninguém reprime a má condução. Não tendo aprendido nas escolas de condução a conduzir sem perigo, os condutores portugueses contam ainda com a total ausência de fiscalização da sua ignorância. (...) Tudo aquilo que verdadeiramente custa e dá trabalho vai continuar por fazer: investir na modernização da sinalização das estradas, que é em si mesma causa de acidentes; corrigir os locais e traçados que constituem armadilhas mortais; reformular de alto a baio o sistema de ensino rodoviário; fiscalizar a condução perigosa e tirar da estrada definitivamente os assassinos.
Miguel Sousa Tavares, Público, 20Abr01.

O problema da sinistralidade automóvel tem como principal causa a bestialidade dos condutores portugueses. Mais do que uma consequência, é sintoma de uma sociedade subdesenvolvida, culturalmente medíocre, civicamente desleixada. É o tal país real que morres nas estradas. Não aprende, não quer aprender e tem ódio a quem aprende. É o país da fanfarronada, do verniz a esconder o estrume, da boçalidade de fraque, da inveja e do mexerico.
Moita Flores, DN, 23Abr01.

Ainda não há muitos anos, quem tivesse a ousadia de alvitrar que a solução tinha de passar forçosamente por uma repressão eficaz da anarquia reinante, era, de imediato, contraditado por um coro de improvisados sociólogos a garantirem que o problema não estava aí, mas, sim, no mau traçado e no pior piso das estradas, na falta de sinalização adequada, no estado degradado do parque automóvel e, acima de tudo, na falta de sentido cívico dos portugueses. (...) A falta de civismo (porém) não é atávica, mas unicamente uma consequência da incapacidade do aparelho do Estado para levar os particulares a respeitar aquilo que se define como se define como de interesse comum. Se, de facto, se pretende que os condutores se comportem civilizadamente, alguém terá de lhes mostrar, primeiro, que conduzir sem regras é crime. E um crime, em sociedade que se preze, acarreta sanções que sejam, de facto, dissuasórias. Foi esse o processo utilizado para fazer de outros povos, igualmente desprovidos de «consciência cívica», verdadeiros exemplos de civismo nas estradas.
Diogo Pires Aurélio, DN, 17Mai01.

O problema do número impressionante dos acidentes rodoviários assenta na forma como hoje em dia a sociedade portuguesa funciona, como trabalhamos, passeamos e convivemos uns com os outros. Hoje quase todas as actividades centrais da vida do dia a dia pressupõem de uma forma ou outra a utilização do automóvel. É difícil sobreviver como membro de um mundo urbano e global sem contar com o automóvel. A questão de fundo é, pois, a de como acomodar a vida com automóvel que caracteriza a contemporaneidade com um a dia livre das tragédias dos desastres rodoviários que vêm marcando a actualidade. A razão fundamental do actual estado de coisas é a eficácia das organizações em que o país hoje assenta. A modernidade tem vindo a aterrar num país cheio de amadores. O rigor, a competência, a selecção metódica dos melhores para cada função, a avaliação permanente de resultados, é o pano de fundo que pode mudar as coisas, sendo certo que isto não respeita apenas aos assuntos específicos da circulação rodoviária, mas também às variadíssimas áreas que os rodeiam, como os transportes públicos, a gestão das cidades, as leis e os funcionamento da justiça. (...) O automóvel faz parte da moderna sociedade de risco, é certo, mas o nível de acidentes que uma sociedade pode acomodar não é o nível que actualmente é atingido nas estradas portuguesas.
Fernando Ilharco, Público/Economia, 25Jun01.

6. CONCLUSÕES

6.1. Porque «a execução a prisão se revelava, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente», bem fez o tribunal recorrido em «negar a aplicação de uma pena de substituição» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 497.).

6.2. O recurso é manifestamente improcedente e, como tal, de rejeitar (art. 420.1 do CPP).

7. DECISÃO

7.1. Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência para apreciar a questão prévia suscitada pelo relator no exame preliminar, rejeita, porque manifestamente improcedente, o recurso oposto pelo cidadão B à sua condenação, de 17Out01, nas penas de 20 meses de prisão e de 8 meses de inibição de conduzir, por crimes de «homicídio por negligência grosseira» e de «condução de veículo em estado de embriaguez».

7.2. O recorrente pagará, por imposição do art. 420.4 do CPP e a título de sanção processual, «uma importância de quatro UCs».

Supremo Tribunal de Justiça, 07 de Março de 2002

Carmona da Mota,
Pereira Madeira,
Simas Santos.