Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
132/07.4JBLSB.L2.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: ARMÉNIO SOTTOMAYOR
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
PROFANAÇÃO DE CADÁVER
IN DUBIO PRO REO
MATÉRIA DE DIREITO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
EXEMPLOS-PADRÃO
COMPREENSÍVEL EMOÇÃO VIOLENTA
CIÚME
MOTIVO FÚTIL
MEIO INSIDIOSO
FRIEZA DE ÂNIMO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
Data do Acordão: 05/30/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL – CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / HOMICÍDIO QUALIFICADO / HOMICÍDIO PRIVILEGIADO.
Doutrina:
- Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, p. 570;
- Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, p. 215 ; O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, 1969, p. 191, 318 e 434 e ss.;
- Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II, Os Homicídios, p. 114;
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, p. 63.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 132.º, N.º 2, ALÍNEAS E), I) E J) E 133.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 1.º E 26.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 19-04- 2009, PROCESSO N.º 434/07.0PAMAI.S1;
- DE 31-01-2012, PROCESSO N.º 894/09.4PBBRR.S1.
Sumário :
I - Embora o princípio in dubio pro reo seja caracterizado como um princípio geral do processo penal, a sua violação configura uma verdadeira questão de direito que, como tal, integra os poderes de cognição do STJ no âmbito do recurso de revista. II - Contudo, não compete ao STJ sindicar a concreta utilização do princípio in dubio pro reo, a menos que seja evidente, por análise do texto da própria decisão, que o tribunal recorrido ficou em dúvida quanto a elementos que permitiriam estabelecer o grau de culpabilidade do recorrente, e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Ou seja, só através da análise da matéria de facto e da sua fundamentação poderá o Supremo avaliar da eventual infracção deste princípio, mas nunca pelo exame das próprias provas que estejam recolhidas nos autos. III - Os tipos legais dos arts. 132.º e 133.º do CP constituem formas agravada e privilegiada de homicídio doloso, onde se fez acrescer ao tipo-base circunstâncias que ou qualificam o crime por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da exigibilidade. IV- Sendo conceitos indeterminados, a especial censurabilidade ou perversidade são representadas por circunstâncias que denunciam uma culpa agravada, sendo descritas como exemplos-padrão, cuja ocorrência não determina, por si só e automaticamente, a qualificação do crime, tal como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. V - Perante um estado de perturbação psicológica do agente desencadeado por determinadas circunstâncias, o art. 133.º do CP estabelece uma cláusula legalmente concretizada de exigibilidade diminuída, cuja razão de ser é a diminuição sensível da culpa do autor. VI - Da factualidade provada não resulta que tenham diminuído as resistências éticas do arguido e a sua capacidade para se conformar com o Direito, a ponto de se poder considerar provado que resultou uma emoção violenta da circunstância de ter escutado a conversa entre o seu cônjuge e a vítima, formando “a convicção de que ML manteria uma relação amorosa com MM, sentindo-se enganado, traído, humilhado” e de “nessa altura, (ter decidido) matar ML”. VII - Os autos não contêm a menor prova de que a emoção da descoberta da eventual relação amorosa tenha prevalecido no arguido de forma a fazê-lo perder o autodomínio, determinando-o à prática do crime. VIII - Mesmo que estivesse provada a existência de emoção violenta, esta, para poder configurar o elemento privilegiador do crime de homicídio, teria de ser compreensível. Ora, jamais seria possível considerar a emoção do arguido como compreensível para o homem médio, pois, na tarde em que escutou a conversação da MM com a vítima e veio a cometer o crime, cessara, há 9 meses, a coabitação entre os cônjuges, com saída do cônjuge mulher e respectivas filhas do lar conjugal e iniciara-se, entretanto, o processo de divórcio litigioso, que estava a ser de grande conflitualidade. A relação conjugal estava, portanto, desfeita e haviam cessado, de facto, deveres como os de respeito, de fidelidade, de coabitação e de cooperação.
IX - Por via da conversação escutada criou-se, ou exacerbou-se no espírito do arguido o sentimento de ciúme. Contudo “a valorização do ciúme como motivação, em termos atenuativos, é incompatível com um dos valores básicos em que assenta a nossa comunidade política: o respeito pela autonomia individual, pela liberdade de escolha de um projecto de vida por parte de cada pessoa (arts. 1.º e 26.º da CRP)” (Ac. do STJ de 19-04- 2009 - Proc. 434/07.0PAMAI.S1 - 3.ª). Não se verificando por parte do arguido uma “compreensível emoção violenta”, que o tenha levado à prática do crime, é de afastar o preenchimento do tipo legal do art. 133.º do CP. X - Tendo o arguido, ouvida a conversa, formado a convicção de que existiria uma relação amorosa entre a vítima e a MM, o que o fez sentir-se enganado, traído e humilhado, vindo a praticar o crime levado por sentimentos de traição, não se tem por integrado o exemplopadrão da al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP (motivo fútil), não se podendo caracterizar, com base nesta concreta factualidade, a conduta do arguido como especialmente censurável. XI - A dissimulação da conduta do arguido, aguardando emboscado do outro lado da rua, entrando na garagem às escondidas da vítima antes de o portão automático se fechar e atacando a vítima sentada no lugar do condutor, portanto antes dela sair do veículo, o que não lhe possibilitou esboçar outra defesa senão o levantar do braço esquerdo ou o procurar resguardar-se com as mãos, tornou mais eficaz e mais censurável a agressão. XII - A circunstância de a agressão ter sido levada a efeito com um instrumento gravemente perigoso (não tendo sido apuradas, em concreto, as características do instrumento letal, pôde dar-se como provado que se tratou de um instrumento corto-perfurante com uma lâmina de aproximadamente 10 cm de comprimento) tornou mais difícil a defesa da vítima e transformou em irreparáveis as consequências da investida, contribuindo para o modo insidioso da agressão. XIII - Deve, pois, ser tido por preenchido o exemplo-padrão da al. i) do n.º 2 do art. 132.° do CP (meio insidioso) e, em consequência, ser considerado que a morte da vítima ocorreu em circunstâncias que revelam especial censurabilidade. XIV - O período de 2 h num agente perturbado pelo sentimento de traição e de ciúme não deve ser tido como especialmente revelador de frieza de ânimo, pelo que não deve ter-se por comprovada a existência do exemplo-padrão da al. j) do n.º 2 do art. 132.° do CP, nem, com este fundamento, verificada uma especial censurabilidade da conduta do agente. XV - Atendendo a todo o circunstancialismo que rodeou o crime, às características psicológicas do arguido, ao tempo entretanto decorrido para o qual o recorrente não contribuiu (5 anos), considera-se a pena de 17 anos de prisão, como satisfazendo as necessidades de prevenção, quer geral, quer especial, estando contida no limite da culpa. XIV - A alteração na medida da pena respeitante ao crime de homicídio (de 20 para 17 anos de prisão), far-se-á repercutir na medida da pena única (fixada pelas instâncias em 20 anos e 6 meses de prisão) e havendo uma evidente correlação entre os dois crimes, tendo o de profanação de cadáver por finalidade ocultar a prática do homicídio, é de fixar a pena única em 17 anos e 6 meses de prisão.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            AA, acusado pelo Ministério Público da prática de factos integradores de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º nºs 1 e 2 al.s. e) e j) e de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art. 254º nº 1 al. a), todos do Código Penal, veio a ser pronunciado, após instrução que requereu, pelos factos e qualificação constantes da acusação.

            Nos autos constituiu-se assistente BB, viúva da vítima CC, que por si e em representação de seus filhos menores DD e EE, deduziu pedido de indemnização civil por danos não patrimoniais no montante de € 95.000,00 sendo pela perda do direito à vida a quantia de € 50.000,00, pelo sofrimento suportado pela assistente a quantia de € 20.000,00 e pelo sofrimento causado aos filhos menores a quantia de € 12.500,00 a cada um deles.

            Também FF, filha e herdeira da vítima, deduziu pedido de indemnização civil, peticionando a quantia de € 62.500,00, sendo pela perda do direito à vida € 50.000,00 e pelo sofrimento que o falecimento lhe causou a quantia de € 12.500,00.

            Realizada a audiência na 3ª Vara Criminal de Lisboa, veio o arguido a ser absolvido do crime de homicídio qualificado, mas condenado pela prática do crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131º do Código Penal, na pena de 12 anos e 6 meses de prisão e pelo crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo art. 254º nº 1 al a) do Código Penal, na pena de um ano de prisão; cumuladas as duas penas, foi condenado na pena única de 13 anos de prisão.

            Foi ainda condenado no pagamento à demandante civil BB, por si e em representação dos filhos menores, DD e EE da quantia de € 89.000,00 por danos não patrimoniais e à demandante civil FF, da quantia de € 33.000,00, também por danos não patrimoniais.

            Da decisão recorreram o Ministério Público, a assistente e o arguido.

            Dando provimento aos recursos do Ministério Público e da assistente, a Relação de Lisboa, por acórdão de 3-11-2009, determinou o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto, tendo considerado prejudicado o recurso do arguido.

            Na audiência de julgamento que se realizou em 16-01-2012, o tribunal colectivo da 3ª Vara Criminal de Lisboa, perante o enquadramento jurídico levado a efeito pela assistente, comunicou ao arguido poder ser reponderada a qualificação jurídica dos factos, perante o disposto na al. i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal.

            Por acórdão de 5-03-2012, foi o arguido condenado como autor material do crime de homicídio qualificado, praticado na pessoa de CC, p. e p. pelos arts. 131º e 132º nºs 1 e 2 als. e), i) e j) do Código Penal, na pena de 20 anos e pelo crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo art. 254º nº 1 al a) do Código Penal, na pena de um ano de prisão e, feito o cúmulo, na pena única de 20 anos e 6 meses de prisão.     

            Foi o arguido e demandado civil AA condenado a pagar à demandante civil BB, por si, na qualidade de viúva do falecido, e em representação dos filhos menores de ambos, DD e EE, a quantia global de € 95 000 (noventa cinco mil euros), a título de indemnização civil por danos não patrimoniais, sendo € 37 500 (trinta e sete mil e quinhentos euros) correspondentes a três quartas partes do montante atribuído pelo sofrimento do falecido e pelo direito à vida, € 20 000 (vinte mil euros) pelo sofrimento da viúva e € 18 750 (dezoito mil setecentos e cinquenta mil euros) o montante a atribuir a cada um dos filhos menores do falecido pelo seu próprio sofrimento, acrescida de juros de mora vincendos desde a data da decisão até efectivo e total pagamento, à taxa de 4% ao ano (Portaria 291/2003, de 08-04), se outra taxa não for entretanto de aplicar, improcedendo o demais pedido quanto a juros; e a pagar à demandante civil FF, na qualidade de filha do falecido, a quantia global de € 32 500 (trinta e dois mil e quinhentos euros), a título de indemnização civil por danos não patrimoniais, sendo € 12 500 (doze mil e quinhentos euros) correspondentes a uma quarta parte do montante atribuído pelo sofrimento do falecido e pelo direito à vida e € 20 000 (vinte mil euros) pelo próprio sofrimento da demandante, acrescida de juros de mora vincendos desde a data da presente decisão até efectivo e total pagamento, à taxa de 4% ao ano,  se outra taxa não for entretanto de aplicar, improcedendo o demais pedido.

            Inconformado, o arguido recorreu, de facto e de direito, para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 25-10-2012,  negou provimento ao recurso, confirmando integralmente a decisão recorrida.
 
              Continuando irresignado, recorre o arguido ao Supremo Tribunal de Justiça, tendo extraído da respectiva motivação, as conclusões a cuja transcrição se procede:

                1. Surgem confirmados como provados na decisão recorrida factos que, efectivamente, não correspondem à realidade e cuja prova não foi, nem podia ter sido, feita em audiência de discussão e julgamento e isto apenas na consideração passível de ser feita nos termos do disposto no artigo 410º do Código de Processo Penal.

2. E, em consequência da matéria de facto erroneamente fixada ou apreciada, também o enquadramento jurídico-penal dos factos se mostra inteiramente desprovido de rigor, sem atenção e sem correcção, como se pode retirar até das regras da experiência comum.

3. Porém, mais grave ainda é verificar, uma vez lida e relida a decisão recorrida, que a mesma nada decide verdadeiramente e que em tudo remete para o texto da decisão proferida na primeira instância, sendo que nenhuma das questões invocadas pelo recorrente no seu recurso antecedente foi, pois, ponderada e apreciada de forma crítica pelo tribunal a quo.

4. Desse modo, de transcrição em transcrição, o Tribunal da Relação de Lisboa cometeu a hábil proeza de chegar ao fim do seu aresto sem que nele tenha decidido, verdadeiramente, qualquer questão.

5. O tribunal a quo incorre em erro ao não considerar como manifestamente atenuada a culpa do arguido.

6. Os factos que constituem o objecto do presente processo não se mostram, de todo, susceptíveis de integrar a previsão típica dos arts. 131.º e 132.º, n.o  1 e 2, als. e), i) e j), do Código Penal.

7. É errado interpretar as circunstâncias em que a morte de CC foi causada como reveladoras, por parte do arguido, de uma atitude de profundo desrespeito e desprezo pelo bem jurídico vida, e de especial distanciamento em relação a uma determinação normal do comportamento de acordo com determinados padrões e valores de ordem social.

8. Não se negando, evidentemente, a manifesta gravidade do acto cometido, e das circunstâncias que o envolveram, o certo é que o caso concreto não evidencia a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente apta a qualificar a sua conduta nos termos do n.º 1 do art. 132.º, do CP.

9. É entendimento unanimemente consagrado na doutrina e na jurisprudência que a verificação de um dos exemplos-padrão do n.º 2 do art. 132.º não implica, mas somente indicia, a existência de especial censurabilidade ou perversidade.

                10. Tais indícios têm, sempre, de ser confirmados através de uma ponderação global das circunstâncias do facto e da atitude do agente nelas expressa, e isso exige uma ponderação final da atitude deste no momento da prática do facto e dos motivos presentes na sua origem.

                11. O que o aplicador tem de fazer é, tão só, partir da situação tal como ela foi representada pelo agente e, a partir dela, perguntar se a situação, tal como foi representada, corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.

                12. Na origem dos fatais acontecimentos está um estado de afecto do arguido motivado por circunstâncias várias e pelo desespero.

                13. Na al. e), motivo torpe ou fútil significa que o motivo da actuação do agente, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado como pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto criminoso aparente ser produto de um desprezo profundo pelo bem jurídico vida.

                14. Encaixar nesta classificação o acto cometido pelo arguido AA é, no mínimo, olhar o caso concreto à margem daquelas que foram as verdadeiras motivações do agente.

                15. Como bem tem decidido o douto tribunal ad quem, estados de afecto motivados pelo ciúme e pela ira não integram o exemplo-padrão constante da aI. e) do n.º 2 do art. 132.º, do CP.

                16. Na al. i) - meio insidioso - a qualificação deriva, essencialmente, da circunstância de os meios utilizados pelo agente tornarem especialmente difícil a defesa por parte da vítima, sendo que insidioso é o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assume características análogas às do veneno, do ponto de vista do seu carácter enganador, sub­reptício, dissimulado ou oculto.

                17. Neste particular, parece pretender-se atribuir um carácter dissimulado e sub-reptício ao facto de o arguido ter aguardado pelo ofendido junto ao prédio onde este reside e, após a sua chegada, ter entrado na garagem do prédio sem que o ofendido tivesse dado por isso, antes de o portão se fechar automaticamente na sequência da sua passagem a bordo do seu veículo automóvel.    18. Imputa-se ao arguido, assim, a vontade de apanhar o ofendido desprevenido e sem hipótese de reacção. Nada mais falso.

                19 . O ofendido avistou perfeitamente o arguido e possivelmente até lhe abriu a janela ou a porta do seu carro.

                20. E, como é lógico, o meio nunca pode ser dissimulado se o ofendido necessariamente avistou em tempo o seu agressor, sendo igualmente certo que tão pouco o ofendido ter-se-á visto "especialmente indefeso" apenas pelo facto de o arguido ter entrado na garagem sem ter sido imediatamente visto.

                21. Na al. j) do n.º 2 do art. 132.º, do CP, o efeito agravante da premeditação associa-se à firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução, indiciada pela sua persistência durante um apreciável lapso de tempo e, como tal, reveladora de uma forte intensidade da vontade criminosa.             22. Entende o tribunal a quo que o arguido revelou frieza de ânimo e reflexão quanto aos meios empregados ou, na sua expressão, «sangue-frio e muita eficiência».

                23. Mas esquece, aparentemente, que no ofendido foram detectados mais de 21 golpes e feridas causados pelo arguido, o que é claramente incompatível com a qualificação de (sangue-frio e muita eficiência» utilizada pelo tribunal para se referir aos actos do arguido.

                24. É evidente que o arguido não demonstrou frieza de ânimo e reflexão quanto aos meios empregados.

                25. O modo por que o crime veio a consumar-se expressa, aliás, de forma inequívoca, o estado de intensa alteração psico-emocional que então consumia por completo o arguido no momento da concretização dos factos criminosos, estado esse se iniciou no momento em que o arguido escutou por telefone a conversa entre a sua ainda esposa e o ofendido e, claramente, somente cessou no momento em que o arguido vem a si e interioriza o acto homicida que acabara de cometer.

                26. O arguido esteve, durante todo esse lapso temporal, fora de si, pelo que irreleva por completo, para efeitos da aplicação ao caso concreto da al. j), o facto de o arguido ter aguardado pela chegada a casa do ofendido.

                27. Ou seja, nenhum dos exemplos-padrão constantes das als. e), i) e j) do n.º 2 do art. 132.º se mostra aplicável no caso concreto.

                28. Quando da prática dos factos, o recorrente atravessava um período difícil da sua vida pessoal, por se encontrar no decurso de um injusto, tenso, penoso e litigioso processo de divórcio, que lhe provocava, sobretudo em face das dificuldades de contacto com as filhas, uma forte instabilidade, desgaste e debilidade emocional, chegando mesmo a apresentar manifestações depressivas e a ter necessidade de ser medicado.

                29. E é no quadro deste contexto de conflito que não criou e intensa instabilidade emocional que o arguido ouve, por telefone, a já referida conversa entre a sua esposa e o ofendido CC, na qual "presenciou" longas e intermináveis manifestações de carinho e intimidade entre o ofendido e a sua esposa, não sendo difícil imaginar o impacto que essa conversa teve no arguido.      30. O arguido não delineou qualquer plano para assassinar o ofendido CC.                31. Esse acto cometeu-o, pois,  irreflectida e impensadamente, motivado por sensações que não pôde controlar mas que, pelo contrário, o controlaram a si.

                32. Assomado pelo desespero, o arguido apenas procurou o ofendido com o intuito de a este pedir satisfações pelo que acabava de ser descoberto.

                33. O acto imputado ao arguido foi, porém, um acto de defesa e de reacção desesperada e cega, sem racionalidade e sem pinga de intencionalidade.

                34. É a real natureza e a diversidade das lesões verificadas no corpo do ofendido que plenamente comprovam, que o arguido não agiu com frieza e premeditação, mas antes dominado pelo desespero e pela perturbação, e em reacção descontrolada e excessiva.

                35. O arguido demonstrou tudo menos frieza. Apenas desejava, confrontando o ofendido, obter esclarecimentos, perceber o porquê da traição de que era alvo.

                36. O artigo 133.º do Código Penal, referindo-se ao homicídio privilegiado, consagra uma atenuação especial da culpa e da pena do agente que pratica o facto numa das circunstâncias típicas nele previstas.

                37. O privilegiamento assenta aí, numa cláusula de exigibilidade diminuída legalmente concretizada, num especial tipo de culpa: estados de afecto ou motivações socialmente atendíveis e não censuráveis que provoquem, em concreto, uma diminuição sensível da culpa do agente.

                38. Em suma, na especial intensidade do estado emocional que se apodera do agente e nas limitações que esse mesmo estado traz à sua capacidade psicológica para dominar os seus impulsos e determinar a sua vontade em conformidade com os ditames do Direito e ordem social.

                39. Por compreensível emoção violenta deve entender-se um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e que limita a sua capacidade de se motivar concretamente pela proibição, produzindo no agente uma momentânea e violenta perturbação do seu psiquismo, com alterações somáticas e fenómenos neurológicos e motores bem patentes.

                40. É evidente e resulta amplamente demonstrado nos presentes autos que o arguido se encontrava, no momento da consumação do facto num estado psicológico que não corresponde ao seu estado normal e que afectou a sua vontade, a sua inteligência e diminuiu as suas resistências éticas e a sua capacidade para se conformar com o Direito.

                41. Nesses termos, a emoção sentida pelo recorrente e que o catapultou para o cometimento do acto criminoso é, naturalmente, uma emoção violenta para efeitos do artigo 133.º do CP.

                42. Além de violenta, a emoção tem, pois, de ser compreensível, i.e., socialmente tolerável ou respeitável.

                43. Para avaliar a compreensibilidade da emoção, a mesma de ser avaliada na perspectiva de um observador objectivo e correspondente ao mesmo tipo social do agente, analisando­se se a situação vivenciada pelo agente é ou não adequada a produzir uma emoção violenta numa pessoa do mesmo tipo social.

                44. Nestes termos, será de entender menos exigível o controlo emocional a quem fica "fora de si" numa determinada situação se concluirmos que uma pessoa do mesmo tipo social experimentaria uma reacção emotiva em tudo semelhante se colocada numa situação idêntica.

                45. O arguido é militar e, enquanto criança, foi alvo de uma educação conservadora, rígida e assente em valores tradicionais de lealdade, honra, dignidade, respeitabilidade e fidelidade.

                46. Mais relevante, o arguido encontrava-se, como já se disse, no seio de um quadro de intensos conflitos emocionais, motivados pelo conturbado processo de separação em que também se encontrava, que lhe impuseram a necessidade de ser medicado e de suspender o exercício da sua profissão

                47. Tudo isto foi exponenciado pela chocante descoberta daquela tarde e causou no arguido uma verdadeira explosão emocional que lhe roubou por completo o discernimento e o auto-domínio sob si próprio.

                48. O arguido entrou num estado passional de curta duração mas durante o qual ficaram perturbadas as relações entre a consciência de si mesmo e a do mundo exterior.

                49. Como refere Fernanda Palma, «As situações têm de ser interpretadas de acordo com o significado particular da honra para a dignidade da pessoa, em função da capacidade de resistência ao meio, dos valores socialmente dominantes e da oportunidade de resistência ao meio, dos valores dominantes e da oportunidade de o agente se desvincular do meio ou aceder aos valores essenciais de respeito pelo outro, próprios de uma sociedade democrática e solidária».

                50. Falamos, no caso concreto, de um estado de afecto que tanto pode ser explicado por uma ruptura da estrutura cognitiva e emocional do arguido, como por um processo de agudização da sua incapacidade de resolução de conflitos numa situação de extrema vulnerabilidade passional.

                51. O arguido AA tem, por tudo isto, de ver a sua culpa atenuada não apenas em função da situação objectiva que viveu, mas principalmente em função do real estado emocional em que se encontrava.

                52. O crime perpetrado pelo arguido foi-o, efectivamente, no âmbito de emoção violenta compreensível que, mais do que isso, e à luz de tudo o que deixou exposto, atenua sensivelmente a sua culpa.

                53. E, como decidido pelo douto tribunal ad quem em decisão proferida em 28.05.1986, Proc. n.º 038425, «Verifica-se "compreensível emoção violenta", para os fins do artigo 133 do Código Penal, se o réu estava "dominado" perante a desconfiança do adultério da mulher com um homem de quem era amigo e face ao abandono dos filhos que tanto precisavam da mãe».

                54. É, por fim, evidente que situações podem existir em que concorram, ao mesmo tempo, elementos privilegiadores do art. 133.º com elementos constitutivos de um exemplo-padrão previsto no art. 132º.

                55. No entanto, a natureza das cláusulas previstas no art. 133.º do Código Penal faz, pois, com que o preceito, uma vez preenchido, como sucede in casu, impeça a aplicação do art. 132.º do mesmo Código.

                56. As cláusulas de culpa diminuída são materialmente incompatíveis com a culpabilidade exigida implicitamente pelo art. 131.º e, positivamente, pelo art. 1[3]2.º, n.º 1.

                57. Há, por tudo, que proceder-se a uma alteração da qualificação jurídica atribuída aos factos em discussão, subsumindo-os à previsão do artigo 133.º do Código Penal e, nesse sentido, condenando-se o arguido AA não num crime de homicídio qualificado, mas num crime de homicídio privilegiado ou, no limite, num crime de homicídio simples.

                58. O princípio in dubio pro reo, enquanto corolário fundamental do princípio da presunção de inocência, encontra-se intrinsecamente ligado ao princípio da culpa e é violado se, não estando o juiz convencido sobre a existência dos pressupostos de culpabilidade do agente, ele pronuncia uma sentença de condenação.

                59. E, no caso concreto, de forma alguma poderia o tribunal a quo ter-se recu[s]ado a admitir a verificação de uma dúvida razoável sobre a existência de um estado de afecto que diminua sensivelmente a culpa do arguido e a exigibilidade que sobre si impendia de se conformar com um comportamento fiel ao direito.

                60. A existência, pelo menos, de uma dúvida quanto a esse respeito é inegável, porquanto nele, efectivamente, se mostram verificados, pelo menos, fortíssimos indícios de algumas das cláusulas do art. 133.º do CP.

                61. Tais indícios devem, evidentemente, beneficiar da aplicação do princípio in dubio pro reo, quanto mais não seja porque, subsistindo uma dúvida sobre a verificação das circunstâncias do art. 133.º, assente em indícios materiais, é materialmente impossível fundamentar-se a convicção necessária para aplicar ao caso concreto os arts. 131.º e 132.º do CP.

                62. O princípio in dubio pro reo, quando aplicado a normas favoráveis, faz com que as dúvidas sobre a sua verificação conduzam a que as respectivas cláusulas favoráveis produzam o seu efeito tal como se tivesse logrado produzir sobre elas uma prova completa.

                63. A existência de dúvidas fundadas sobre a aplicação das cláusulas do art. 133.º mostra-se mais do que suficiente para afastar a aplicação quer do regime do homicídio simples, quer do regime do homicídio qualificado.

                64. Em síntese, a incompatibilidade material dos artigos em causa implica [.::] que verificada a existência de indícios das cláusulas do art. 133.º não existirá a "convicção para além de qualquer dúvida razoável" sobre o grau de culpa necessário para aplicar o art. 131.º ou o art.132º.

                65. Por tudo isto, na dúvida sobre a verificação das cláusulas privilegiantes do art. 133.º do CP, sempre deveria o tribunal a quo ter decidido pro reo, qualificando a conduta do arguido no quadro do homicídio privilegiado ou, no limite, no crime de homicídio simples.

                66. É também excessiva a medida da pena concretamente fixada ao arguido, principalmente tendo em conta a seguinte factualidade confirmada como provada no acórdão recorrido:
«70) - O arguido é ... efectivo há vinte e oito anos na Marinha, graduado de sargento-ajudante, e encontra-se colocado, desde 2003, na Direcção de ...;
71) - O arguido é pessoa trabalhadora, um profissional muito dedicado, sempre empenhado em ajudar os outros e com uma atitude pró-activa face ao serviço, às necessidades de mudança ou de melhoria, e de quem todos gostavam; [ ... ]
79) - O arguido é considerado por familiares uma pessoa inteligente, com capacidade de análise, focalizado e extremamente investido nas questões profissionais e familiares e é tido como excelente amigo;

80) - O arguido tem problemas de saúde crónicos ao nível da articulação da anca (sinuvite vilonodural) e ao nível respiratório (doença pulmonar crónica obstrutiva), que obrigam a acompanhamento clínico periódico; [ ... ]
82) - O arguido não tem antecedentes criminais, mas tem um processo pendente (nº2 139/07.1PZLSB), a correr termos nos Juízos Criminais de Lisboa, sendo-lhe imputada a prática de um crime de maus tratos a cônjuge».
                67. Discorda-se, pois, da medida concreta da pena, porquanto esta extravasa largamente a medida da culpa do ora recorrente, bem como as particulares exigências de prevenção especial e, mesmo, geral - violando, por isso, o disposto nos arts. 40.º n.º 1 e 2 e 70.º n.º 1, ambos do CP.
                68. Com efeito, não só o arguido agiu num estado de exigibilidade diminuída, como actuou num quadro de uma solicitação de uma situação exterior que diminuiu gravemente a culpa, pelo que a pena de vinte anos e seis meses, mais a mais num arguido primário neste, ou em qualquer outro, tipo de crimes, se afigura como manifestamente exagerada.
                69. Porque pena excessiva, inadequada, desproporcionada e desprovida de qualquer finalidade ressocializadora, antes visando, salvo melhor opinião, finalidades primacialmente retributivas, mesmo aí excedendo-as, e, como tal, gravemente violadoras do princípio da culpa e da razoabilidade.
                70. A conduta do arguido anterior e posterior à prática dos factos é imaculada, assim como o foi também a sua conduta processual, cumprindo pontual e escrupulosamente os seus deveres.
                71. Mais a mais, o próprio arguido confessou, no essencial, a prática dos factos, e essa circunstância não parece que tenha sido minimamente valorada em sede de determinação da medida concreta da pena.
                72. Tudo visto, face às gravíssimas condições exógenas e endógenas em que os mesmos foram praticados, bem como ao arrependimento demonstrado pelo arguido em sede de julgamento (o qual foi desvalorizado e ignorado em sede de determinação da medida da pena), entende-se que a sua pena deverá ser claramente reduzida.
                73. Olvida-se a história pregressa do arguido e lança-se mão de um pré-juízo entretanto já desmentido na medida em que o arguido foi já justamente absolvido do crime de violência doméstica que se lhe imputava e serviu, neste caso, para "pintar as cores mais negras" sobre a sua personalidade e conduta (cfr. sentença, já proferida, mas ainda não transitada em julgado - sem que porém tivesse havido recurso da assistente - e cuja cópia se junta e dá aqui por integralmente reproduzida).
                74. A pena unitária que lhe foi aplicada, tal pesadíssima condenação, ultrapassa mesmo as penas mais severas aplicadas em situações de concursos de infracções similares, e torna-se tanto mais insólita quando o tribunal recorrido não enumera quais as circunstâncias pessoais que extravasam a prática dos crimes pelos quais o recorrente foi condenado e que justificam este desmesurado agravamento, mais a mais relativamente ao primeiro acórdão proferido que entendeu fixar a pena única nos treze anos de prisão.
                75. Incumbia ao tribunal recorrido não se limitar a ignorar a ausência de antecedentes criminais e as características humanas supra elencadas, mas antes a valorá-las positivamente, encontrando, na determinação da pena unitária a aplicar ao recorrente um ponto de equilíbrio entre as exigências de prevenção, a gravidade dos factos e a personalidade do agente, pelo que a pena única a aplicar ao concurso de infracções deverá situar-se próxima do já fixado anteriormente nos treze anos de prisão ou, pelo menos, com uma redução significativa.

            Respondeu o Ministério Público que concluiu do seguinte modo:
                1 - A lei foi aplicada e a prova foi valorada em conformidade com os poderes de cognição do Tribunal da Relação.
                 2 - Não se confrontando o Tribunal com dúvidas sobre a matéria de facto provada, sobre a verificação das circunstâncias qualificativas do crime, sobre a inexistência de causas justificativas do facto ou de exclusão da culpa ou sobre a não verificação de crime privilegiado, não há que aplicar em benefício do arguido o princípio In dubio pro reo.
                3 - Comete o crime de homicídio voluntário qualificado, p. p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131 ° e 132°, n. 1), todos do Código Penal, por revelar especial censurabilidade, frieza de ânimo, motivo fútil e uso de meio insidioso, o agente que, esperando a vítima para a matar (no interior de uma garagem de um prédio), mal ela aparece, abeira-se dela e desfere-lhe 21 golpes, em várias partes do corpo, sabendo-as vitais, com um instrumento corto-perfurante que levava consigo, sem que a vítima tenha podido reagir, defender-se ou fugir.
                4 - A lei ao considerar o homicídio qualificado quando cometido com especial censurabilidade ou perversidade (n. 1 do art° 132° Código Penal) utilizou uma indicação do que se pode denominar "exemplos-padrão" segundo a qual as circunstâncias referidas no nº 2 do artº 132º do C.Penal constituem apenas indícios ou factores da existência dessa especial censura ou perversidade, isto é, não são automáticas, taxativas ou exaustivas.
                5 - É legalmente admissível que a Relação, ao conhecer recurso e caso concorde com os fundamentos da questão decidida na 1ª instância, efectue a respectiva remissão, assim alicerçando a sua decisão.
                O Acórdão recorrido não merece   qualquer censura, pelo que deve ser mantido e confirmado nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso do arguido.
                           
Também a assistente se pronunciou no sentido de ser negado provimento ao recurso, embora tenha limitado o seu direito de resposta à questão da verificação do crime de homicídio privilegiado, que é afastado por, no seu entender, não se verificar uma situação de menor exigibilidade.

Por haver sido requerida pelo recorrente, procedeu-se à realização da audiência, com observância das legais formalidades.
Por haver sido requerida pelo recorrente, procedeu-se à realização da audiência, com observância das legais formalidades.
A defesa centrou a sua intervenção no sentido de pôr em causa, uma por uma, as circunstâncias agravativas do crime de homicídio, de molde a que condenação se viesse a operar dentro do tipo legal de homicídio simples e respectiva moldura penal.
Quer o Ministério Público, quer a assistente pronunciaram-se no sentido da manutenção integral da decisão, quer quanto à sua qualificação jurídica, quer quanto à pena aplicada pelas instâncias. 

2. As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1) - O arguido foi casado com GG entre ...de 2000 e ... de 2011, mês em que foi decretado o respectivo divórcio;

2) - Porém, desde Março de 2007 os dois deixaram de co-habitar, por decisão de GG, que abandonou a residência de morada de família, acompanhada pelos filhos mais velhos e pelas duas filhas do casal;

3) - O arguido, contudo, nunca se conformou com tal separação, alimentando a esperança de uma reconciliação;

4) - No dia ..., GG foi almoçar com CC, num restaurante, em Lisboa;

5) - No decurso do almoço, o arguido efectuou inúmeras chamadas para o telemóvel de GG, que nunca as atendeu;

6)  -  Pelas 16h49, o arguido efectuou uma nova chamada para a mesma;

7) - GG, sem disso se aperceber, accionou o botão de atendimento de chamadas, tendo deixado em aberto a referida ligação telefónica que não atendeu, mas que permaneceu em directo durante cerca de 47 (quarenta e sete) minutos;

8) - Desse modo o arguido pôde ouvir, durante todo esse lapso de tempo, a conversação que GG mantinha com CC;

9) - O arguido identificou, desde logo, a voz de CC, uma vez que o mesmo era conhecido do casal;

10) - Do teor de tal conversa o arguido formou a convicção de que CC manteria uma relação amorosa com GG, sentindo-se enganado, traído, humilhado;

11) - Nessa altura, o arguido decidiu matar CC e arquitectou um plano para executar tal intento;

12) - Na execução desse plano, o arguido muniu-se de um instrumento cortoperfurante, de características não concretamente apuradas, mas com uma lâmina de aproximadamente 10 cm de comprimento;

13) - Acto contínuo, deslocou-se ao edifício onde residia CC, sito na Rua ..., em Lisboa, ficando, emboscado, a aguardar a chegada do ofendido junto ao passeio contrário ao do prédio;

14) - Então, cerca das 19h20, chegou ao local CC, ao volante do veículo de matrícula ...-BB-..., dirigindo-se à garagem do edifício e accionando a abertura automática do respectivo portão;

15) - Nessa altura, o arguido conseguiu introduzir-se na dita garagem antes de o portão se fechar;

16) - Entretanto, o ofendido CC estacionou a viatura num dos lugares da garagem;

17) - Encontrando-se ainda o referido ofendido sentado no interior do veículo, o arguido abeirou-se dele, empunhando o referido instrumento corto-perfurante que trazia consigo;

18) - Apercebendo-se da intenção do arguido, o ofendido levantou o braço esquerdo, numa atitude defensiva;

19) - Acto contínuo, o arguido desferiu-lhe cerca de 21 facadas nas regiões sub-axilar esquerda, tronco, mãos e pescoço;

20) - Com a sua conduta, o arguido infligiu no ofendido, uma ferida corto-contundente transfixiva dos músculos da face lateral esquerda do pescoço e dos grandes vasos esquerdos do pescoço, a artéria carótida primitiva e veia jugular externa, com infiltração sanguínea perifocal; uma ferida cortante do disco inter-somático C5-C6 com diástase dos corpos vertebrais e laceração da medula espinhal e infiltração sanguínea dos músculos pré-vertebrais a este nível; uma ferida cortoperfurante, transfixiva do tecido celular subcutâneo e do 6° espaço intercostal esquerdo, a nível do arco lateral da costela, horizontal, com 2 cm de comprimento; e uma ferida cortoperfurante do pulmão esquerdo, lobo superior, face lateral externa; lesões que foram causa directa e necessária da sua morte;

21) - Da conduta do arguido resultaram, ainda, para o ofendido CC, entre outras descritas no relatório de autópsia, que aqui se dá por integralmente reproduzido:

• ferida cortante na pirâmide nasal, oblíqua para baixo e para a esquerda, com 0,6 cm de comprimento;

• ferida cortante na hemiface esquerda, região jugal, horizontal, com 2,5 cm de comprimento;

• cinco feridas cortantes na hemiface direita, superficiais, localizadas, a superior na região malar e as restantes na região masseteriana, duas delas no mesmo plano horizontal, horizontais, com comprimentos médios de 1,7 cm e a inferior oblíqua para baixo e para a direita, com 0,5cm de comprimento;

• ferida cortante no lábio inferior, à direita da linha média oblíqua para baixo e para a direita, com 2 cm de comprimento;

• ferida cortante no tórax, face anterior, na região supra-clavicular esquerda, horizontal, com 2,3 cm de comprimento;

• três feridas cortantes no tórax, face lateral esquerda, na região infra-axilar, situadas 18 cm, 20,5 cm e 24 cm para baixo do plano horizontal que passa pelo bordo superior do ombro esquerdo, sendo que a ferida mais posterior encontra-se no escavado axilar e as outras duas estão situadas 1 cm para a frente do plano vertical que passa pela linha axilar média; as duas feridas superiores são oblíquas para baixo e para a frente, com 2,3 cm e 2,2 cm de comprimento respectivamente e a inferior é arredondada com 0,7 cm de diâmetro médio;

• ferida cortante no tórax, face anterior, situada 30 cm para baixo do plano horizontal que passa no bordo superior do ombro esquerdo e 10 cm para a esquerda da linha média, vertical, com 2 cm de comprimento;

• infiltração sanguínea do tecido celular sub-cutâneo e nos músculos peitorais esquerdos, perifocal, às feridas supra-descritas;

22) - Depois de ter morto CC do modo supra descrito, o arguido, em execução de plano então delineado, puxou o corpo daquele para o lugar dianteiro direito do veículo de matrícula ...-BB-...;

23) - De seguida, conduziu a referida viatura para o exterior da garagem, deslocando-se pela 2.ª Circular e, posteriormente, pelo IC 19 até Almoçageme;

24) -  Ali, dirigiu-se ao cimo de uma falésia, sita no Lugar do Fogo, junto à Praia da Adraga;

25) - Acto contínuo, saiu da viatura e empurrou-a na direcção do precipício, com o corpo da vítima mortal no seu interior, provocando a queda do veículo no fundo da ravina, com a intenção de que o cadáver de CC não fosse encontrado;

26) - Após, o arguido caminhou, cerca de 6 km, até à Praia Grande, onde chegou por volta das 23h30;

27) - Dali efectuou um telefonema, de uma cabine pública, para a sua ex-mulher, HH, solicitando-lhe que o fosse buscar;

28) - Então, a sua ex-mulher HH foi buscá-lo e levou-o até junto do hipermercado Carrefour, em Lisboa, por solicitação do arguido;

29) - Nessa altura, o arguido dirigiu-se até ao veículo automóvel que havia estacionado junto à morada da vítima mortal e conduziu-o até à sua casa;

30) - Ali tomou banho e recolheu a roupa e calçado que envergara nesse dia num saco de plástico;

31) - Depois, deslocou-se até à Buraca, onde deitou o saco e respectivo conteúdo num caixote do lixo ali existente;

32) - No dia seguinte, 07-12-2007, o arguido acompanhou um amigo enquanto este tratava de assuntos particulares e à noite jantou no Guincho com uma amiga, cuja mãe ia ser operada;

33) - No dia 08-12-2007 foi ter com o seu amigo II, com quem almoçou, e à noite jantou com a ex-companheira, HH, e a filha de ambos;

34) - Pelas 19h00 do dia 08-12-2007, o arguido foi contactado pela Polícia Judiciária para comparência, tendo-se apresentado por volta das 21h00;

35) - No dia 09-12-2007, o arguido acompanhou e indicou a elementos da Polícia Judiciária o local onde havia deixado cair a viatura de CC com o corpo deste lá dentro;

36) - O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, atacando pessoa desprevenida, levado por sentimentos de traição, com o propósito concretizado de causar lesões letais e tirar a vida a CC;

37) - O arguido actuou, ainda, com a intenção de esconder o cadáver da vítima mortal, no intuito de que não fosse encontrado por terceiros;

38) - Bem sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal;

39) - BB, FF, DD e EE são universais herdeiros de CC, sendo, respectivamente, a viúva e os filhos;

40) - Em resultado das descritas lesões provocadas pelo arguido em CC sofreu este dores intensas, aflição, pânico, tendo tido a percepção de que não resistiria aos golpes vibrados no seu corpo, em órgãos essenciais à vida;

41) - BB, FF, DD e EE sofreram um desgosto profundo com a morte do marido e pai, ficando inconsoláveis;

42) - A memória do marido e pai está sempre presente e o quotidiano tem sido difícil de suportar pela ausência, falta e sentimento de perda;

43) - O desassossego, insónias e angústia dos filhos, sobretudo, de DD, tem sido penoso, tornando-se o acompanhamento psicológico imperioso para ultrapassar o estado depressivo;

44) - Acentuaram o sofrimento dos demandantes as circunstâncias em que a morte de CC ocorreu e o abandono decorrente da falta do ente querido e com quem conviviam, de forma equilibrada e estreita;

45) - FF tinha com o pai uma relação estreita, afectuosa e recíproca, comunicando com regularidade;

46) - CC auferia, à data dos factos, como rendimento líquido mensal, a quantia de cerca de € 3200 (três mil e duzentos euros);

47) - CC tinha, à data do óbito, 61 anos de idade, sendo previsível que vivesse durante cerca de 15 anos;

48) - À data dos factos decorria divórcio litigioso entre o arguido e GG, processo que, aliado a diferendos entre o casal sobre visitas e contacto com as filhas e a gestão e partilha de bens decorrente da separação, provocava ao arguido instabilidade e desgaste emocional;

49) - Por tal razão, o arguido andava medicado para reduzir a ansiedade e combater as insónias desde Abril/Maio de 2007;

50) - GG foi apresentada por CC à sua filha, no âmbito da actividade profissional daquela, tendo comentado achá-la uma pessoa interessante;

51) - Os filhos de CC e GG eram muito amigos;

52) - O arguido cresceu num contexto familiar numeroso, de condição socioeconómica humilde mas organizada, sendo as relações entre os vários elementos harmoniosa e caracterizada por sentimentos de afectividade e coesão;

53) - O estilo educativo a que esteve sujeito foi fortemente vincado pela atitude parental rigorosa, disciplinada mas responsabilizadora e assente em valores favorecedores de uma adequada integração social, de uma atitude pró-activa e investida face ao trabalho e de um espírito de entreajuda, união familiar e bem comum;

54) - O arguido viveu integrado no agregado de origem até iniciar o cumprimento  do serviço militar, tendo residido, sensivelmente, até aos nove anos de idade, em ..., no Concelho de Ourém, entre os nove e os vinte anos, em ..., Viana do Castelo, e posteriormente em Lisboa, numa fase em que já era autónomo;

55) - Em Lisboa o arguido encetou união de facto com HH, namorada de longa data, com quem viveu dois anos, período em que nasceu a única filha em comum;

56) - A separação do casal ocorreu em 1996/1997, associada ao desgaste relacional gerado pelo facto de ambos manterem uma vida profissional muito intensa e preenchida, o que limitaria o tempo dedicado à relação afectiva, situação que se agravou com o nascimento da filha, pelos cuidados e disponibilidade que uma criança pequena exigia;

57) - Não obstante, esta ruptura foi gerida de forma equilibrada, o casal chegou a acordo por uma guarda conjunta na regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas à filha, mantendo-se actualmente laços de amizade entre o casal;

58) - Em 1997, o arguido encetou relação afectiva com GG, médica psiquiatra, que conheceu em contexto laboral, e com quem casou em 2000, tendo na vigência deste relacionamento nascido as duas filhas do casal;

59) - O arguido frequentou o ensino até ao 11.º ano, num trajecto escolar regular, sem referências a problemas de aprendizagem;

60) - Aos vinte anos iniciou o cumprimento do serviço militar na Marinha e, nesse período, candidatou-se ao curso de ... na Escola de Serviço de Saúde Militar, que concluiu três anos depois;

61) - Em 1982 optou pela carreira militar e em 1986 passou a integrar os quadros permanentes da Marinha;

62) - Ao longo da sua carreira militar, o arguido cumpriu duas missões no estrangeiro, em 1991 e em 1993, pelo menos numa em cenário de guerra;

63) - Desde 2001, com fundamento em razões de saúde – sinuvite vinodular e doença pulmonar crónica obstrutiva – passou a trabalhar em regime de serviços moderados;

64) - No período entre 1988 e 2001, o arguido acumulou a carreira militar com o exercício da profissão de ... em hospitais civis, concretamente no Hospital Amadora-Sintra e no Hospital Francisco Xavier e, ainda, com actividades de docência na Escola de Serviço de Saúde Militar, onde estudara, obtendo rendimentos na ordem dos       € 4500,00  (quatro mil e quinhentos euros) mensais;

65) - A partir de 2001, por opção assumida no contexto do casamento, o arguido abandonou a actividade privada em hospitais públicos e passou a trabalhar com a mulher na sociedade “... - Medicina, Enfermagem, Investigação e Docência, Lda.”, propriedade do casal;

66) - Até ao início de 2007, o arguido viveu integrado no agregado constituído pela mulher, médica psiquiatra, os dois filhos daquela, nascidos de um anterior relacionamento, e as duas filhas do casal, que actualmente têm 13 e 6 anos de idade;

67) - Neste contexto familiar estava inserida uma empregada doméstica em regime interno, que cuidava da casa, realizava as tarefas domésticas e acabava por ter uma participação relativamente significativa na organização da vida quotidiana;

68) - A relação do casal teve vários focos de instabilidade, tendo ocorrido ao longo desse período três separações temporárias, antes da definitiva em Março de 2007;

69) - Na permanência do casamento, as rotinas diárias do casal foram sendo condicionadas pela vida profissional intensa e pelos horários sobrecarregados de ambos, por uma condição económica resultante de rendimentos médios mensais que rondariam os € 30 000,00 (trinta mil euros) e um estilo de vida correspondente a esses rendimentos;

70) - O arguido é ... efectivo há vinte e oito anos na Marinha, graduado de sargento-ajudante, e encontra-se colocado, desde 2003, na Direcção de ...;

71) - O arguido é pessoa trabalhadora, um profissional muito dedicado, sempre empenhado em ajudar os outros e com uma atitude pró-activa face ao serviço, às necessidades de mudança ou de melhoria, e de quem todos gostavam;

72) - Não obstante o seu profissionalismo, existiam períodos em que se mostrava ansioso e instável pelo que, se confrontado com alguma contrariedade, evidenciava pensamento ruminante e dificuldade em encontrar alternativas para a resolução dos seus problemas;

73) - No período que se seguiu à separação conjugal o arguido evidenciou, no local de trabalho, sinais de agudização de um quadro de instabilidade psicológica (transtorno emocional, tristeza, descuido ou desmazelo na apresentação e sentimentos de angústia e abandono) e alterações do comportamento que foram sendo geridas através do apoio prestado por colegas e superiores;

74) - Devido à situação processual em que se encontra o arguido está suspenso de funções desde finais de 2007, mas mantém o recebimento do seu vencimento que ascende a € 1613,42 (mil seiscentos e treze euros e quarenta e dois cêntimos), encontrando-se penhorado no valor de um terço para pagamento de dívidas;

75) - O arguido paga uma pensão de alimentos às filhas nascidas no seio do casamento no valor de € 200 (duzentos euros), tem despesas de saúde no montante de cerca de € 50 (cinquenta euros) mensais, dando apoio económico para as despesas da sua filha mais velha;

76) - Desde Dezembro de 2007 que o arguido fixou residência na casa da mãe em ..., uma freguesia do concelho de Viana do Castelo, contexto onde beneficia de um apoio consistente por parte dos familiares de origem (mãe e irmãos), ao nível emocional e material, havendo entre todos sentimentos de coesão, entreajuda e solidariedade;

77) - O arguido mantém contactos regulares com a filha mais velha, que é visita habitual de casa, em fins-de-semana e períodos de férias;

78) - Desde Dezembro de 2007 que o arguido não mantém contactos com a mais velha das filhas que teve com GG, porque esta se recusa a vê-lo, e desde Setembro de 2010 que não mantém contactos com a mais nova, na sequência de terem sido cessadas as visitas que decorriam sob vigilância no Tribunal de Família e Menores de Lisboa;

79) - O arguido é considerado por familiares uma pessoa inteligente, com capacidade de análise, focalizado e extremamente investido nas questões profissionais e familiares e é tido como excelente amigo;

80) - O arguido tem problemas de saúde crónicos ao nível da articulação da anca (sinuvite vilonodural) e ao nível respiratório (doença pulmonar crónica obstrutiva), que obrigam a acompanhamento clínico periódico;

81) - A partir de Dezembro de 2007 e, sensivelmente, durante um período de cerca de dois anos, esteve em acompanhamento psicológico em regime privado, ao qual deixou de se submeter há cerca de ano e meio;

82) - O arguido não tem antecedentes criminais, mas tem um processo pendente  (n.º 139/07.1PZLSB), a correr termos nos Juízos Criminais de Lisboa, sendo-lhe imputada a prática de um crime de maus tratos a cônjuge.

Com a motivação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o arguido juntou cópia da sentença proferida pelo 5º Juízo Criminal de Lisboa – 3ª Secção, que o absolveu do crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º nº 1 al. a) e nº 2 do Código Penal.

3.  As questões suscitadas pelo arguido, no seu recurso, são as seguintes:
·  vícios do art. 410º - erro notório na apreciação da prova;
· violação do princípio in dubio pro reo;
· qualificação jurídica dos factos;
· medida da pena

4.  Inicia o recorrente as conclusões do seu recurso afirmando que “surgem confirmados como provados na decisão recorrida factos que, efectivamente, não correspondem à realidade e cuja prova não foi, nem podia ter sido, feita em audiência de discussão e julgamento e isto apenas na consideração passível de ser feita nos termos do disposto no artigo 410º do Código de Processo Penal” (concl. 1).

A forma usada mostra ser o recorrente conhecedor da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nos termos da qual, os vícios do art. 410º do Código de Processo Penal, porque dizem respeito à matéria de facto, não podem servir de fundamento de recurso para este Supremo Tribunal que, conforme dispõe o art. 434º do referido Código, visa exclusivamente o reexame da matéria de direito. 

Por isso, não funda o recurso em erro notório na apreciação da prova, embora sugira a sua verificação no claro intuito de que o Supremo Tribunal de Justiça, confrontado com tal erro, oficiosamente reenvie o processo para a Relação, por considerar que, perante a existência do referido vício, se encontra impedido de, com segurança, aplicar o direito aos factos. 

Não obstante a posição assumida pelo recorrente, a matéria de facto fixada pelas instâncias, quando observada sem recurso a elementos exteriores à própria decisão, não revela nem a existência de erro manifesto na apreciação da prova que deva ser corrigido antes de se proceder à aplicação do direito, nem nenhum dos demais vícios previstos no art. 410º.

Assim, devem os factos provados ser considerados como estabilizados e definitivamente assentes.

5.  Alega também o recorrente que o tribunal violou o princípio in dubio pro reo.

Em processo penal, não tem aplicação o ónus da prova formal, nos termos do qual cada uma das partes terá de produzir as provas necessárias a sustentar os factos que alega, porque, vigorando o princípio da investigação, recai sobre o juiz o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento. Em consequência, se, recolhida toda a prova, o tribunal tiver persistido numa dúvida razoável sobre determinados factos, o non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a favor do arguido. Com efeito, sendo o direito penal um direito de culpa, a qual representa um limite intransponível para a decisão, “os princípios da presunção de inocência e de in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta, como suporte axiológico-normativo da pena” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,  vol,. I, pág, 519).

Por isso, embora o princípio in dubio pro reo seja caracterizado como um princípio geral do processo penal, a sua violação configura uma verdadeira questão-de-direito que, como tal, integra os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do recurso de revista. Sem embargo, a jurisprudência tem entendido, todavia, que não cumpre ao Supremo pronunciar-se acerca do uso que as instâncias fizeram dos respectivos poderes de cognição, cumprindo-lhe verificar, através da decisão, se o tribunal permaneceu na dúvida após a produção da prova e se a resolveu de forma favorável ou contrariamente aos interesses do arguido.

            No caso em análise, o arguido apresentou, em audiência, uma versão dos factos, segundo a qual foi atacado pela vítima, tendo agido em sua própria defesa, desarmando-a, num “acto de defesa e de reacção desesperada e cega, sem racionalidade e sem pinga de intencionalidade”, como diz na conclusão 33 do seu recurso. Esta versão não mereceu, porém, credibilidade e, por conseguinte, não corresponde àquela que o tribunal colectivo deu como provada.

            Abandonando a tese de que teria agido em legítima defesa, o arguido sustenta agora, no presente recurso, que os factos que praticou devem ser qualificados como homicídio privilegiado, assente “numa cláusula de exigibilidade diminuída legalmente concretizada, num especial tipo de culpa: estados de afecto ou motivações socialmente atendíveis e não censuráveis que provoquem, em concreto, uma diminuição sensível da culpa do agente”, conforme afirma na conclusão 37. Esse “estado de afecto” resultaria da “verificação de uma dúvida razoável sobre a existência de um estado de afecto que diminua sensivelmente a culpa do arguido e a exigibilidade que sobre si impendia de se conformar com um comportamento fiel ao direito” (concl. 59), dúvida que tem por inegável e da qual diz dever beneficiar.

            É certo que, conforme ensina a doutrina e vem afirmado pelo Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I, pág. 215), “relativamente ao facto sujeito a julgamento, o princípio [in dubio pro reo] aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpa e de exclusão da pena bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais». Em todos estes casos a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido”.       

Contudo, não basta para tanto dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou que derivem da sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. Como se disse, o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Daqui não resulta, porém, que, tendo sido apresentadas em audiência versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser necessariamente beneficiado por aplicação daquele princípio. Com efeito, o princípio in dubio pro reo pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador; por isso,  a sua violação só pode ser afirmada se, por forma evidente, resultar do texto da decisão que o tribunal, perante a dúvida, optou por decidir contra o arguido. (cfr. ac. de 12-07-2005 – proc. 2315/05-5). É, por conseguinte, necessário que o tribunal tenha ficado na dúvida quanto à existência de determinado elemento, o que constitui matéria de facto que escapa aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça. Como se sustentou no ac. 14-12-2006 - proc. n.º 4356/06 - 5.ª Secção, relatado pelo Conselheiro Carmona da Mota, tendo os recorrentes ao seu dispor a Relação para discutir a decisão de facto do tribunal colectivo, vedado lhes ficará pedir ao Supremo Tribunal a reapreciação da decisão de facto tomada pela Relação. E isso porque a competência das Relações, quanto ao conhecimento de facto, esgota os poderes de cognição dos tribunais sobre tal matéria, não podendo pretender-se colmatar o eventual mau uso do poder de fazer actuar aquela competência, reeditando-se no STJ pretensões pertinentes à decisão de facto que lhe são estranhas, pois se hão-de haver como precludidas todas as razões quanto a tal decisão invocadas perante a Relação, bem como as que o poderiam ter sido”. Só assim não é quando seja evidente que houve da parte da Relação uma omissão na apreciação das questões suscitadas, ou quando a decisão se mostre apoiada em prova proibida ou tenha sido tomada contra prova vinculada.

Não compete, pois, ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar a concreta utilização do princípio in dubio pro reo, a menos que seja evidente, por análise do texto da própria decisão, que o tribunal recorrido ficou em dúvida quanto a elementos que permitiriam estabelecer o grau de culpabilidade do recorrente, e que nesse estado de dúvida decidiu contra o arguido. É, assim, mister que o tribunal ad quem deva concluir, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, que o tribunal a quo ficou num estado de dúvida e que a decidiu contra o arguido. O mesmo é dizer que só através da análise da matéria de facto e da sua fundamentação poderá o Supremo avaliar da eventual infracção deste princípio; nunca pelo exame das próprias provas que estejam recolhidas nos autos.

Ora, depois de analisar a fundamentação da matéria de facto, nomeadamente o exame crítico das provas, levada a efeito pelo tribunal colectivo, a Relação pôde afirmar que “o Tribunal a quo, devida e exaustivamente, indicou os fundamentos, mais que suficientes, para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção dos factos dados como provados e não provados, não sendo arbitrário, cumprindo a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, em obediência ao preceituado no art. 374.°, nº 2, do Código de Processo Penal.” Ao reconhecê-lo, a Relação pôde concluir que “não subsistiu no espírito do tribunal a quo, e o mesmo se pode afirmar para este tribunal ad quem, uma dúvida relevante e invencível sobre a prática de factos integradores dos crimes de homicídio qualificado e de profanação de cadáver … por parte do recorrente AA, e que são os descritos na matéria de facto dada por provada.

Não competindo ao Supremo Tribunal de Justiça saber se o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, uma vez que se trata de questão de facto que exorbita o respectivo poder de cognição enquanto tribunal de revista, e manifestando-se as instâncias pela inexistência de dúvida quanto ao apuramento dos factos, é de concluir que não se reconhece como violado o princípio in dubio pro reo.

6.  Consideram as instâncias que integrando os factos praticados pelo arguido os exemplos-padrão previstos nas als. e) i) e j) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, se deve concluir pela especial censurabilidade da sua conduta, que assim preencheria o crime de homicídio qualificado, previsto nos arts. 131º e 132º do Código Penal.

O recorrente sustenta, porém, como se referiu, que agiu sob um “estado de afecto” susceptível se der configurado como “compreensível emoção violenta” para efeito da qualificação dos factos como integradores do crime do homicídio privilegiado, previsto no art. 133º do Código Penal.

6.1 O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito no art. 131º do Código Penal.
Perante casos especiais resultantes da verificação de circunstâncias ligadas à ilicitude e à culpa, o legislador, partindo daquele preceito, previu a existência de tipos com moldura penal diversa, constituindo os tipos legais dos arts. 132º e 133º, formas agravada e privilegiada de homicídio doloso, onde se fez acrescer ao tipo-base circunstâncias que ou qualificam o crime por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da exigibilidade.

6.1.1  Nos termos do nº 1 do art. 132º do Código Penal ,. O homicídio é qualificado se a morte tiver sido produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade.
Acerca dos conceitos de censurabilidade e perversidade diz Teresa Serra (Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 63): “Dominantemente, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto.
A ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No art. 132º, trata-se duma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida, pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.”
 “Importa salientar” – ainda segundo esta autora – “que  a qualificação de especial se refere tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete. No homicídio qualificado o que está em causa é uma diferença essencial de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do art. 132º ao caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou de outra circunstância susceptível de preencher o chamado Leitbild dos exemplo-pradão.”

Para Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 26), “a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente.”  E esclarece que a lei pretendeu imputar “à «especial censurabilidade» aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas e à «especial perversidade» aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas”.
Sendo conceitos indeterminados, a especial censurabilidade ou perversidade são representadas por circunstâncias que denunciam uma culpa agravada, sendo descritas como exemplos-padrão. A ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime, tal como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. Conforme se afirmou em acórdão deste Supremo Tribunal, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa (ac. de 07-07-2005, proc. 1670/05 – 5ª secção): “é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente, não será um maior desvalor da acção do agente ou um aspecto especialmente desvalioso da sua personalidade documentado no facto que dará origem ao preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude se concretize em qualquer dos exemplos-padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga. É que estes são elementos típicos, embora  atinentes ao tipo de culpa e não ao tipo de ilícito e daí que, mesmo no caso de ocorrência de outra circunstância que não a exactamente prevista, esta tenha de assentar numa estrutura valorativa correspondente à do respectivo exemplo-padrão.”

            6.1.2  Conforme dispõe o art. 133º  do Código Penal, “quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.”

Perante um estado de perturbação psicológica do agente desencadeado por determinadas circunstâncias, o legislador optou por estabelecer uma cláusula legalmente concretizada de exigibilidade diminuída, cuja razão de ser é a diminuição sensível da culpa do autor.

 A norma prevê quatro elementos privilegiadores - compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral – e dois requisitos fundamentais: que o agente actue dominado pelo respectivo elemento, o que significa que é essa circunstância que o leva a cometer o crime, e a diminuição da culpa, fundamento único do privilegiamento. (Cfr. Fernando Silva, Direito Penal Especial – Crimes contra as Pessoas 3, pág. 98).

Sendo o elemento “compreensível emoção violenta” aquele que é invocado pelo recorrente e que poderá estar em causa no caso em apreço, focaremos exclusivamente sobre ele a nossa atenção.

Em termos gerais a emoção violenta é susceptível de ser caracterizada como “qualquer alteração do estado psicológico do indivíduo em relação ao seu estado normal e causada por elementos não essencialmente biológicos” (Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, pág. 95). Ao qualificar a emoção de violenta, a lei reclama que a emoção domine o agente, fazendo com que ele perca o autodomínio, determinando-o à prática do crime. Trata-se de uma questão de facto, como observa Maria Margarida Silva Pereira (Direito Penal II – Os Homicídios, pág. 114), para quem “o saber se estava ou não violentamente emocionado é matéria que deve ser apurada pelas ciências médica, psicológicas ou psiquiátricas, e não através de juízos de valor. Como matéria de facto, a emoção deve ser avaliada face ao agente em concreto e não face a qualquer homem médio.”

Já a compreensibilidade, que qualifica a emoção violenta e não o facto,  constituindo uma exigência adicional ao critério da menor exigibilidade, tem natureza normativa, implicando uma valoração jurídica a avaliar em função de um padrão de homem médio colocado nas condições do agente, como observa a generalidade da doutrina.
    O conceito de “estado de afecto” é descrito por Amadeu Ferreira (op. cit., pág. 102), nos seguintes termos: “Têm como característica fundamental a pré-existência de uma situação de conflito interior inalterável e que, em regra, dura há bastante tempo. É este conflito interior que o agente não consegue resolver e pode dar origem à emoção: através de tentativas infrutíferas de dominar o conflito e que levam o agente a uma perda progressiva de forças, a emoção atinge uma intensidade elevada e conduz ao desenvolvimento de um mundo de fantasia e às acções objectivamente mais insensatas. Esta situação de conflito interior representa a pré-história do afecto, que, por vezes, se prolonga por vários anos. Rasch usa a imagem do balde que se vai enchendo, até quase transbordar. A partir deste momento qualquer mero acaso, em regra insignificante, funcionará como gota de água que faz transbordar o balde.”

           

6.2  Para fundamentar a tese de que os factos integram o crime de homicídio privilegiado, o recorrente alega que “resulta amplamente demonstrado nos presentes autos que o arguido se encontrava no momento da consumação do facto num estado psicológico que não corresponde ao seu estado normal e que afectou a sua vontade, a sua inteligência e diminuiu as suas resistências éticas e a sua capacidade para se conformar com o Direito.” (concl. 40ª).

Todavia, na matéria de facto apenas é feita fazem referência, directa ou indirectamente, ao estado psicológico do arguido nos seguintes pontos: “à data dos factos decorria divórcio litigioso entre o arguido e GG, processo que, aliado a diferendos entre o casal sobre visitas e contacto com as filhas e a gestão e partilha de bens decorrente da separação, provocava ao arguido instabilidade e desgaste emocional” (facto nº 48); “por tal razão, o arguido andava medicado para reduzir a ansiedade e combater as insónias desde Abril/Maio de 2007” (facto nº 49); “não obstante o seu profissionalismo, existiam períodos em que se mostrava ansioso e instável pelo que, se confrontado com alguma contrariedade, evidenciava pensamento ruminante e dificuldade em encontrar alternativas para a resolução dos seus problemas” (facto nº 72); “no período que se seguiu à separação conjugal o arguido evidenciou, no local de trabalho, sinais de agudização de um quadro de instabilidade psicológica (transtorno emocional, tristeza, descuido ou desmazelo na apresentação e sentimentos de angústia e abandono) e alterações do comportamento que foram sendo geridas através do apoio prestado por colegas e superiores” (facto nº 73) e “a partir de Dezembro de 2007 e, sensivelmente, durante um período de cerca de dois anos, esteve em acompanhamento psicológico em regime privado, ao qual deixou de se submeter há cerca de ano e meio” (facto nº 81).

Desta factualidade não resulta que tenham diminuído as suas resistências éticas e a sua capacidade para se conformar com o Direito, a ponto de se poder considerar provado que resultou uma emoção violenta da circunstância de ter escutado a conversa entre o seu cônjuge e a vítima, formando “a convicção de que CC manteria uma relação amorosa com GG, sentindo-se enganado, traído, humilhado” (facto nº 10) e de “nessa altura, [ter decidido] matar CC” (facto nº 11).

            Segundo o recorrente, “encontrava-se … no seio de um quadro de intensos conflitos emocionais motivados pelo conturbado processo de separação em que também se encontrava, que lhe impuseram a necessidade de ser medicado e de suspender o exercício da sua profissão.” (concl. 46ª). “Tudo isto foi exponenciado pela chocante descoberta daquela tarde e causou no arguido uma verdadeira explosão emocional que lhe roubou por completo o discernimento e o auto-domínio sob si próprio.” (concl. 47ª) O arguido entrou num estado passional de curta duração mas durante o qual ficaram perturbadas as relações entre a consciência de si mesmo e a do mundo exterior. (concl. 48ª).

Todavia, não contém os autos a menor prova de que a emoção da descoberta da eventual relação amorosa tenha prevalecido no arguido de forma a fazê-lo perder o autodomínio, determinando-o à prática do crime.

Sendo certo que mesmo que estivesse provada a existência de emoção violenta, esta, para poder configurar o elemento privilegiador do crime de homicídio, teria de ser compreensível.

Ora, jamais seria possível considerar a emoção do arguido como compreensível para o homem médio. Com efeito, na tarde em que escutou a conversação da GG com a vítima e veio a cometer o crime, cessara, há 9 meses, a coabitação entre os cônjuges, com saída do cônjuge mulher e respectivas filhas do lar conjugal e iniciara-se, entretanto, o processo de divórcio litigioso, que estava a ser de grande conflitualidade. A relação conjugal estava, portanto, desfeita e haviam cessado, de facto, deveres como os de respeito, de fidelidade, de coabitação e de cooperação.

O que por via da conversação escutada se criou, ou exacerbou, no espírito do arguido foi o sentimento de ciúme.

Mas, como se afirmou no ac. de 19-04-2009 - Proc. n.º 434/07.0PAMAI.S1-3, “a valorização do ciúme como motivação, em termos atenuativos, é incompatível com um dos valores básicos em que assenta a nossa comunidade política: o respeito pela autonomia individual, pela liberdade de escolha de um projecto de vida por parte de cada pessoa (arts. 1.º e 26.º da CRP).”

Sendo certo que, a existir o relacionamento amoroso que o arguido supôs, mas que não ficou provado, é aplicável, mutatis mutandis na medida em que a vítima era um homem casado, o que no mesmo acórdão se afirmou: “o recorrente, ao vingar-se na pessoa do novo companheiro da sua ex-companheira pelo facto de ela ter posto termo à relação que mantinham, para iniciar uma relação marital com outro homem, sobrepôs o seu ressentimento pessoal ao dever de respeito pela liberdade de escolha que ela detinha sobre a sua própria vida, e também pela liberdade e autonomia do seu novo companheiro. Essa atitude não pode merecer por parte do direito uma valoração positiva, antes implica um agravamento da culpa, pelo desprezo que evidencia pelos valores fundamentais ligados à pessoa humana.”

Não se verificando por parte do arguido uma “compreensível emoção violenta” que o tenha levado à prática do crime, é de afastar o preenchimento do tipo legal do art. 133º do Código Penal.                                                                  

6.3  Com fundamento em que a verificação de qualquer um dos exemplo-padrão do nº 2 do art. 132º do Código Penal não implica, mas apenas indicia, uma especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente, o recorrente defende que não ocorre nenhuma das referidas agravantes qualificativas.

Põe, assim, em causa que tivesse agido por motivo torpe ou fútil, tendo-o feito antes sob um estado de afecto motivado pelo ciúme;  rejeita o entendimento de que o meio utilizado foi insidioso, porque, como afirma, o ofendido avistou-o perfeitamente e até lhe abriu a janela ou a porta do carro; e, por fim, defende que a sua conduta não revela frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregados, pois agiu num estado de intensa alteração psico-emocional, desde que ouviu por telefone a conversa entre a ainda sua esposa e o ofendido, até que interiorizou o acto homicida.


6.3.1 Segundo a decisão recorrida, confirmativa do acórdão de 1ª instância, o homicídio foi praticado com especial censurabilidade, verificando-se a ocorrência de três os exemplos-padrão: ter agido por motivo fútil; ter praticado o crime de forma insidiosa; ter actuado com frieza de ânimo.

6.3.2  O tribunal colectivo sintetizou, do seguinte modo, a caracterização dos factos no exemplo-padrão da al. e): “o arguido está separado de facto há nove meses da sua mulher; inadvertidamente ouve uma conversa da qual concluiu que esta tem uma relação amorosa com a vítima – mas tal relação nem sequer se demonstrou –; experimentando sentimentos de ciúme e traição, decide matar o suposto amante, pai do melhor amigo do seu enteado, e duas horas depois, quando aquele chega a casa, o arguido, que previamente se havia munido de um instrumento corto-perfurante, de forma inesperada, aniquila-o, desferindo-lhe cerca de 21 golpes de forma brutal, conforme resulta da descrição da matéria assente. Esta conduta e os sentimentos e motivação que lhe subjazem revelam uma desproporção inadmissível face à gravidade do crime que cometeu, traduzindo sentimentos de egoísmo, intolerância, prepotência, insensibilidade moral e intenso desprezo pelo valor da vida humana, tanto mais que o casamento e a co-habitação do arguido com a sua mulher haviam cessado há nove meses, tornando evidente que, em concreto, o arguido agiu por motivo fútil, qualificando, por essa via o homicídio que praticou.

Resulta claramente da matéria de facto que o arguido agiu motivado pelo ciúme que se exacerbou por causa da conversa da vítima com a ainda cônjuge do arguido, conversa a que este teve acesso por aquela ter inadvertidamente atendido o telemóvel quando o arguido uma vez mais lhe ligou.

Provado ficou que ao escutar a referida conversa o arguido sentiu-se “enganado, traído, humilhado (facto nº 10) e que agiu “levado por sentimentos de traição” (facto nº 36).
Constituirá a actuação do arguido um motivo fútil, tal como vem caracterizada pelas instâncias?
Para o Prof. Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 32), agir “por qualquer motivo torpe ou fútil significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.”.
E, segundo a jurisprudência, motivo fútil é “o motivo frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática desse grave crime (ac. S.TJ, de 27-05-2010-Proc. nº 58/08.4JAGRD.C1.S1), ou mesmo o motivo que não tem qualquer relevo, o que não chega a ser motivo.
 Dos factos provados retira-se que o arguido, que se encontrava separado de facto há cerca de 9 meses de GG, correndo então um processo de divórcio litigioso, que lhe provocava instabilidade e desgaste emocional, andando medicado para reduzir a ansiedade, escutou, por via do atendimento inopinado de uma chamada de telemóvel, uma demorada conversa pessoal entre a referida GG e a vítima CC, que era conhecido do casal, conversa que permitiu ao arguido formar a convicção de que estes manteriam uma relação amorosa, o que o fez sentir-se enganado, traído e humilhado, tendo nessa altura decidido matar a vítima.
A resolução que se formou no espírito do arguido foi motivada pelo ciúme. Sem dúvida de grande censurabilidade por atentar contra a vida, o bem jurídico mais precioso, a conduta do arguido não é, porém, passível de ser qualificada como “reveladora de um desrespeito acrescido, de um desrespeito extremo, pelo bem jurídico protegido”, conforme o Supremo Tribunal de Justiça caracterizou a especial censurabilidade no acórdão de 18-03-2010 – Proc. 1374/07.8PBCBR.C2.S1.

            Se bem que a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tenha vindo a entender, como se referiu, que “a valorização do ciúme como motivação em termos atenuativos é incompatível com um dos valores básicos em que assenta a nossa comunidade política: o respeito pela autonomia individual, pela liberdade de escolha de um projecto de vida por parte de cada pessoa (arts. 1.º e 26.º da CRP).” (ac. de 29-04-2009 - Proc. n.º 434/07.0PAMAI.S1-3), tal não significa, como erradamente interpretou o acórdão de 1ª instância, que o ciúme, quando constitua a causa de um homicídio, deva ser considerado como susceptível de integrar o exemplo-padrão da al. e), sendo considerado motivo fútil. Assim não sucedeu no mencionado acórdão de 29-04-2009, nem no ac. de 5-05-2010 – Proc. nº 90/08.8GCCNT.C1 que a decisão do tribunal colectivo igualmente convoca, onde, após se afastar o ciúme como atitude privilegiante, se aceita que tal sentimento haja causado alguma perturbação psicológica, de enervamento, embora não deixe de se recordar que o ciúme já tem sido considerado motivo fútil por traduzir uma reacção desproporcionada relativamente à gravidade da acção penal. Especialmente correcto se nos afigura o modo a questão foi tratada no ac. de 31-01-2012 - Proc. n.º 894/09.4PBBRR.S1-3, ao produzir-se a seguinte afirmação: “a motivação passional não constitui de forma nenhuma um motivo fútil. O estado de paixão (e concretamente o ciúme) envolve necessariamente as energias da pessoa, domina-a, determina em grande medida o seu comportamento, de forma que a ‘futilidade’ do motivo não resulta, submetido à cláusula do n.º 1 do art. 132.°, especialmente censurável ou perverso”

No caso em análise, tendo o arguido, ouvida a conversa, formado a convicção de que existiria uma relação amorosa entre a vítima e a GG, o que o fez sentir-se enganado, traído e humilhado e vindo a praticar o crime levado por sentimentos de traição, não se tem por integrado o exemplo-padrão da al. e) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, não se podendo caracterizar, com base nesta concreta factualidade, a conduta do arguido como especialmente censurável.


6.3.3   Concluíram as instâncias que um outro exemplo-padrão se tinha por verificado – o da al. i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal: - uso de um meio insidioso.

Metodologicamente, começaremos pela definição comum de insidioso. Adjectivo proveniente do latim insidiosus, significa “que arma insídias, ciladas, sendo sinónimo de aleivoso, traiçoeiro, pérfido (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciência de Lisboa, s.v. “insidioso”). Sendo insídia, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a “espera às escondidas do inimigo para investir sobre ele; emboscada, cilada”. 
Segundo a doutrina, “insidioso será todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno, do ponto de vista do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto” (Figueiredo Dias, Comentário, I, pág. 39).

Nelson Hungria (Comentário ao Código Penal) considera meios insidiosos a traição, que caracteriza como “ataque súbito e sorrateiro, atingida a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso”; a emboscada, que descreve como “dissimulada espera da vítima em lugar por onde terá de passar” e a simulação “ocultação da intenção hostil, para acometer a vítima, que, iludida, não tem motivo para desconfiar do ataque e é apanhada desatenta e indefesa”

            Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça,  “a expressão "meio insidioso", usado na alínea f) do n. 2 do citado artigo 132, contem um conceito amplo ou elástico por forma a abranger as hipóteses de uso de meio que, nas circunstâncias concretas, revele a especial censurabilidade ou perversidade do agente que estão na base da qualificação do crime. Por conseguinte, só o apelo a essas circunstâncias pode conduzir ao juízo, positivo ou negativo, sobre a verificação do requisito da agravação especial.” (Acs de 25-06-1987 – Proc 039061 e de 10-10-2002 – Proc. 2577/02).

            De modo semelhante é caracterizada no ac. de 30-10-2003 - proc. 3252/03: “Por meio insidioso entende-se aquele "cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno - do ponto de vista do seu carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto e que, justamente por sê-lo, não poderá deixar de ser também, «especialmente perigoso», justamente por causa da dissimulação e, portanto, da sua acrescida capacidade de eficiência por via da natural não oposição de qualquer resistência por parte da vítima que, em regra, perante a insídia, nem sequer suspeitará de que está a ser atingida.”  Esta maior dificuldade de defesa por parte da vítima é acentuada no ac. de 27-05-2010 - Proc 58/08.4JAGRD.C1.S1, ao referir: “o meio insidioso, conceito de difícil definição, tem subjacente uma ideia de utilização de meio dissimulado em relação ao qual se torna mais precária, ou ténue, uma reacção defensiva. É uma forma de praticar o crime de homicídio que, normalmente, está associado a uma prévia determinação do meio ou instrumento do crime tornando particularmente difícil uma atitude preventiva pela vítima, ou eventualmente, a própria detecção da existência do crime.”

                Esta mesma perspectiva de menor possibilidade de defesa por parte da vítima ligada ao instrumento da agressão é posta em relevo no ac. de 11-12-1997 - Proc. 1050/97, ao referir que “no conceito de meio insidioso - cuja amplitude visa especialmente flexibilizar o conceito ou evitar que se lhe retire elasticidade - cabem todos aqueles que possam rotular-se de traiçoeiros, desleais ou perigosos. Gravemente perigosos, enquanto instrumentos de agressão, nele se devem considerar, em atenção à experiência comum, as armas brancas (facas, punhais, navalhas, etc.) que mais difícil (ou mesmo impossível) tornam a defesa da vítima e de consequências mais graves (ou irreparáveis) a agressão.”

            No acórdão do tribunal colectivo, que a Relação confirmou, afirma-se acerca desta agravante qualificativa:  “o arguido decidiu matar CC munindo-se para tal do instrumento corto-perfurante já caracterizado, resolveu esperá-lo perto do seu prédio, mas emboscado, não se deixando visualizar pela vítima, acedeu à garagem também de forma sub-reptícia, dissimulada, não se deixando, igualmente, ver pela vítima, e é dentro da garagem, com CC ainda sentado no banco do condutor, que o agride mortalmente com cerca de 21 facadas, tornando, através desta execução, ténue, quase nula, a possibilidade de defesa da vítima.

                E não é indiferente a circunstância de a vítima ter entrado na sua garagem. De alguma forma, entrou num perímetro de segurança, porque saiu da rua e acedeu a um espaço fechado que lhe é familiar. Tal contexto leva a uma diminuição das barreiras

defensivas, a algum relaxamento, abrindo o flanco a um ataque surpresa.

                E a posição em que se encontrava na altura do ataque, para além da surpresa àquele inerente, torna ainda mais vulnerável a sua posição.”

            A análise da factualidade que as instâncias levaram a efeito não merece qualquer reserva. Pretendendo pôr em causa a insídia da conduta do arguido, a defesa alega que “parece pretender-se atribuir um carácter dissimulado e sub-reptício ao facto de o arguido ter aguardado pelo ofendido junto ao prédio onde este reside e, após a sua chegada, ter entrado na garagem do prédio sem que o ofendido tivesse dado por isso, antes de o portão se fechar automaticamente na sequência da sua passagem a bordo do seu veículo automóvel. Imputa-se ao arguido, assim, a vontade de apanhar o ofendido desprevenido e sem hipótese de reacção. Nada mais falso. O ofendido avistou perfeitamente o arguido e possivelmente até lhe abriu a janela ou a porta do seu carro. E, como é lógico, o meio nunca pode ser dissimulado se o ofendido necessariamente avistou em tempo o seu agressor, sendo igualmente certo que tão pouco o ofendido ter-se-á visto "especialmente indefeso" apenas pelo facto de o arguido ter entrado na garagem sem ter sido imediatamente visto.” (concl. 17-20)
Nada na matéria de facto provada permite afirmar que “o ofendido avistou perfeitamente o arguido e possivelmente até lhe abriu a janela ou a porta do seu carro”.

            O que ficou provado é que o arguido “deslocou-se ao edifício onde residia CC, sito na Rua ..., em Lisboa, ficando, emboscado, a aguardar a chegada do ofendido junto ao passeio contrário ao do prédio; então, cerca das 19h20, chegou ao local CC, ao volante do veículo de matrícula ...-BB-..., dirigindo-se à garagem do edifício e accionando a abertura automática do respectivo portão; nessa altura, o arguido conseguiu introduzir-se na dita garagem antes de o portão se fechar; entretanto, o ofendido CC estacionou a viatura num dos lugares da garagem;  encontrando-se ainda o referido ofendido sentado no interior do veículo, o arguido abeirou-se dele, empunhando o referido instrumento corto-perfurante que trazia consigo; apercebendo-se da intenção do arguido, o ofendido levantou o braço esquerdo, numa atitude defensiva; acto contínuo, o arguido desferiu-lhe cerca de 21 facadas nas regiões sub-axilar esquerda, tronco, mãos e pescoço. (factos nºs 13-19).

            A dissimulação da conduta do arguido, aguardando emboscado do outro lado da rua, entrando na garagem às escondidas da vítima antes de o portão automático se fechar e atacando a vítima sentada no lugar do condutor, portanto antes dela sair do veículo, o que não lhe possibilitou esboçar outra defesa senão o levantar do braço esquerdo ou o procurar resguardar-se com as mãos, tornando, pois, mais eficaz e mais censurável a agressão.87 Como se escreveu na fundamentação da decisão quanto à matéria de facto: “De acordo com o relatório da autópsia e com a análise trazida a Tribunal pelos investigadores, também documentada nos autos, a vítima estaria sentada no veículo, no lugar do condutor, e é nessa posição que é inesperadamente atacada, de forma brutal e impiedosa, pelo arguido, e é ainda nessa posição que procurou defender-se, com as mãos e levantando o braço esquerdo, mas em vão, considerando o número de golpes e locais atingidos que determinaram de forma directa e necessária a morte do visado. […] No local (garagem) foram encontrados escassos vestígios hemáticos – quase confundíveis com a sujidade, nas palavras da testemunha JJ –, consistentes em alguns pequenos pingos de sangue localizados na zona de contorno do local onde estaria estacionado o veículo automóvel da vítima, o que significa que o ataque ocorreu dentro do habitáculo da viatura e não fora dele. De outro modo haveria poças de sangue. As fotografias de fls. 104 e 105 dão nota de tais vestígios e da sua real exiguidade. […] Apurou-se ainda que a camisa da vítima não apresentava sinais aparentes de luta, tendo, por exemplo, todos os botões fixos, à excepção do penúltimo (ponto III A.), o que infirma ainda mais a versão do arguido. […] A vítima tinha vestígios de feridas defensivas passivas e activas nas mãos, ou seja, resultado de golpes em que apenas procurou resguardar-se da agressão sofrida com instrumento corto-perfurante ou, no segundo caso, em que tentou impedir a agressão.”

            Contribuiu para o modo insidioso da agressão a circunstância de esta ter sido levada a efeito com um instrumento gravemente perigoso, tornando mais difícil a defesa da vítima e transformando em irreparáveis as consequências da investida. E se é certo que não foram apuradas, em concreto, as características do instrumento letal, pôde dar-se como provado que se tratou de um instrumento corto-perfurante com uma lâmina de aproximadamente 10 cm. de comprimento. 

            As instâncias, ao qualificarem a conduta do arguido como meio insidioso, preenchendo o exemplo-padrão da al. i) do nº 2 do art. 132º, integraram-se, assim,  no entendimento constante do acórdão de 02-04-2009 – Proc 3277/08, relatado pelo Conselheiro Souto de Moura, adjunto neste processo, nos termos do qual “o meio insidioso traduz-se, por um lado, num comportamento caracterizado pela traição, por uma acção dissimulada, e, por outro lado, derivado disso, na colocação da vítima numa situação de pouca ou nenhuma possibilidade de defesa.”  

            Foi também deste modo que foram caracterizadas outras agressões, tal como a que originou o Proc 758/09.1JABRG.G1.S1 e deu lugar ao acórdão deste Supremo Tribunal de 13-07-2011, em que o arguido, quando a assistente saiu do prédio e se preparava para entrar no táxi, surgiu a poucos metros, munido de uma pistola semiautomática, de calibre 6,35 mm, e, com a intenção de a matar, efectuou seis disparos na direcção desta, atingindo-a no ombro esquerdo, no abdómen e numa carteira que trazia ao ombro a tiracolo, agressão que “nas circunstâncias de tempo e lugar, em espera junto à residência da ofendida e àquela hora da manhã, a acção do recorrente foi inesperada, súbita e sorrateira, imprevista e de surpresa, com todas as características de traiçoeira e desleal, sem dar à vítima uma oportunidade de defesa, revelando-se, assim, insidiosa nos limites valorativos da al. i) do n.º 2 do art. 132.º do CP”. E, bem assim, a do Proc 292/08, onde foi proferido o Ac. de 26-03-2008, quando “já completamente noite, o recorrente apareceu, de surpresa, dirigiu-se ao veículo que a vítima acabara de estacionar, impediu-a de sair da viatura, como ela pretendia, e, estando ela aí bloqueada e sem possibilidade de defesa, sobre ela disparou sucessivamente quatro tiros à queima-roupa.”
Deve, pelo exposto, ser tido por preenchido o exemplo-padrão da al. i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal e, em consequência, ser considerado que a morte da vítima ocorreu em circunstâncias que revelam especial censurabilidade.

6.3.4 De harmonia com a decisão recorrida, o comportamento do arguido encontra-se compreendido também no exemplo-padrão da então al. i) – que após a revisão operada ela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, tomou a letra j) – do nº 2 do art. 132º: agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.

Segundo a opinião de Figueiredo Dias expressa no Comentário Conimbricense do Código Penal, “a al. i) … dá efeito de exemplo-padrão qualificador à tradicionalmente chamada circunstância da premeditação, mas cujo conceito é agora omitido. Circunstância esta que em alguns ordenamentos jurídico-penais é por excelência, quando não unicamente, a determinante de um homicídio agravado”.

Sob esse conceito foram reunidas no Código Penal a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas.

Por frieza de ânimo entende Fernando Silva (op. cit. pág. 83) “uma actuação calculada, em que o agente toma a sua deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima. No fundo, o agente teve oportunidade de reflectir sobre o seu plano e ponderou toda a sua actuação mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto.”

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que a frieza de ânimo é uma circunstância relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, reconduzindo-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução, em suma, um comportamento traduzido na “firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa” (cfr. ac. de 15-05-2008 - proc. 3979/07 e jurisprudência ali citada).

O tribunal colectivo pronunciou-se nos seguintes termos acerca desta circunstância agravativa: “A reflexão sobre os meios empregados traduz-se no «amadurecimento temporal sobre o modo de praticar o crime, a congeminação serena e perdurante, no campo da consciência, da ideação de matar e dos meios a usar (…).»

                É a existência de um «prévio tempo de preparação do homicídio, uma tenacidade no animus necandi, o pressuposto de que ele se deixou motivar então pela intenção criminosa, meditou nos instrumentos a empregar» e ponderou «a escolha preordenada do local à consumação do delito».

                É inegável que no caso concreto a actuação do arguido preenche estes requisitos, pois o mesmo tomou a decisão de acabar com vida de CC logo quando escutou a conversa pelo telemóvel, e, por isso, durante duas horas reflectiu na sua intenção, meditou no modo de executar o crime, escolheu o instrumento, o modo, o local e a hora de matar a vítima.

                A dinâmica dos acontecimentos demonstra que teve tempo para amadurecer a sua ideia, de arrepiar caminho, de ir embora, o que não fez, pois esperou pela chegada da vítima à respectiva garagem, demonstrando com tal espera tenacidade na resolução criminosa e persistência na intenção de matar.

                E o facto de o arguido ter actuado motivado por sentimentos de traição não impede que possa actuar com frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregados, sendo certo também que não ficou demonstrado que actuou dominado pelo desespero e pela perturbação.

                E mesmo neste caso, a ter-se provado tal desvario, sempre se dirá que «Por muito violenta que tenha sido a emoção que influenciou o desatinado comportamento do arguido, essa sua subjugação emocional só mereceria um efeito (sensivelmente) diminuidor da culpa se envolvesse o «reconhecimento de que, naquela situação (endógena e exógena), também um agente normalmente fiel ao direito (conformado com a ordem jurídico-penal) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ser estorvado o normal cumprimento das suas intenções» (Figueiredo Dias, O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, 1969, págs. 191, 318 e 434 e ss.)»36, o que não é o caso, como já vimos.

                A actuação do arguido patenteou não só frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregues, como ainda sangue-frio e muita eficiência, dado que, como já anotado noutro ponto, era hora de regresso das pessoas do trabalho às suas casa, correndo o risco de ser surpreendido, pelo que a sua actuação terá sido rápida e não deixou praticamente vestígios, considerando a brutalidade da agressão e o sangramento que a mesmo terá provocado, principalmente a ferida no pescoço.

                É, assim, de concluir que também pela frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregues, o arguido qualificou o homicídio que praticou.”

Segundo o recorrente, o tribunal entendeu que o arguido revelou frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregados ou «sangue-frio e muita eficiência», mas essa conclusão não só é incompatível com os 21 golpes e feridas causados pelo arguido, como, por outro lado, revela o estado de intensa alteração psico-emocional que consumia o arguido desde o momento em que escutou por telefone a conversa entre a ainda sua esposa e a vítima. Aduz também que as instâncias vieram a valorar para efeito da existência de frieza de ânimo na prática do homicídio, os factos posteriores, ou seja a ocultação do cadáver.

O transcrito segmento do acórdão de 1ª instância, que a decisão recorrida confirmou, evidencia que o tribunal colectivo entende que as duas horas que decorreram entre a altura em que escutou, pelo telefone, a conversa entre a vítima e GG foram tempo suficiente para o arguido reflectir na sua intenção, meditar no modo de executar o crime, escolher o instrumento e o modo, o local e a hora para matar a vítima. Por outro lado, valorou que não se tenha feito prova de que o arguido actuou dominado pelo desespero e pela perturbação.

As instâncias deram assim como preenchido o exemplo-padrão da al. i) e consideraram que a conduta do arguido é reveladora de uma especial censurabilidade capaz de agravar especialmente o crime.

Todavia, não pode deixar de se considerar que o arguido agiu num relativamente curto espaço de tempo a seguir ao momento em que formou a convicção de que o seu cônjuge, de quem se encontrava separado há nove meses tinha uma ligação amorosa com a vítima, o que fez com se sentisse enganado, traído e humilhado e o levou a praticar o crime motivado pela traição. Sabido que, por regra, o decurso do tempo atenua a vontade de o agente praticar o crime e que a frieza de ânimo revela firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da decisão, mais censurável se tornará, portanto, a actuação do arguido e maior a sua culpa quanto mais extenso for o tempo durante se mantém a intenção criminosa.
            Por isso, o período de duas horas num agente perturbado pelo sentimento de traição e de ciúme não deve ser tido como especialmente revelador de frieza de ânimo, pelo que não deve ter-se por comprovada a existência do exemplo-padrão da al. j) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, nem, com este fundamento, verificada uma especial censurabilidade da conduta do agente.

            7.  Resta apreciar a questão da medida das penas, quer da parcelar relativa ao crime de homicídio, quer da pena única conjunta, uma vez que a pena relativa à profanação de cadáver nunca foi objecto de recurso.

                         

7.1  Conforme sustenta Anabela Miranda Rodrigues (A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, pág. 570), “...a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...” .

“É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica.

A prevenção especial, por seu lado, é encarada como a necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes.

“Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...” (ainda a mesma obra, pág. 575). “Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado” (pág. 558).

Em consonância com este entendimento, o art.º 40.º do Código Penal indica, no n.º 1, que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e, no n.º 2, que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Por sua vez, o art.º 71.º do Código Penal dispõe que «1. A determinação da medida da pena, dentro  dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2. Na determinação da pena, o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d)  As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».

            No caso de crime de homicídio qualificado em que concorram diversos exemplos-padrão, um deles qualifica o crime, não sendo de novo considerado para efeitos da medida da pena por respeito ao princípio ne bis in idem, funcionando os demais como agravantes gerais.

            Não estando verificados pelos motivos acima expostos os exemplo-padrão das als. e) e j), apenas a al i) funciona como agravante especial.

            No caso presente, a ilicitude é muito elevada, pois o crime foi planeado de modo a verificarem-se condições susceptíveis de colocar a vítima numa situação de grande dificuldade para se defender, dentro do habitáculo do seu automóvel e num espaço fechado de garagem.

            A culpa é intensa: o sentimento de traição com que o arguido agiu é anulado pela falta de respeito pelos sentimentos alheios, pois, dado por findo o relacionamento amoroso entre o arguido e o seu cônjuge que à cessação de facto dos deveres dos cônjuges e ao processo de divórcio ainda em curso, só pode ter-se à conta de passional, mas não desresponsabilizante, a reacção do arguido à convicção que formou quanto a uma eventual relação de carácter amoroso entre o cônjuge do arguido e a vítima, levando-o a tirar a vida a esta.    

            ..., graduado em sargento-ajudante, embora suspenso de funções por causa da situação processual, é pessoa trabalhadora, profissional dedicado, com uma atitude pró-activa face ao serviço.

            Mostra-se em certos períodos ansioso e instável, evidenciado pensamento ruminante e dificuldades em encontrar alternativas para a resolução dos seus problemas se confrontado com alguma contrariedade.

            Vivendo actualmente em casa da mãe numa freguesia de Viana do Castelo,  tem apoio familiar da mãe e dos irmãos, ao nível emocional e material, sendo considerado pelos familiares como pessoa inteligente, com capacidade de análise, focalizado e extremamente investido nas questões profissionais e familiares e tido como excelente amigo.

            Não tendo antecedentes criminais, mantém-se, contudo, pendente um processo por crime de maus-tratos a cônjuge, do qual, segundo informou a defesa em alegações orais, foi absolvido, estando pendente um recurso.

            Decorreram mais de 5 anos sobre a data dos factos.

            Competem ao Supremo Tribunal de Justiça funções de uniformização de critérios da medida da pena, com vista a um tratamento tão igualitário quanto possível, sem deixar de atender à especificidade dos diversos casos. Assim, numa moldura penal de 12 a 25 anos de prisão, que é aquela que corresponde ao crime de homicídio qualificado, o Supremo Tribunal de Justiça tem fixado, em caso de crimes passionais, penas entre 16 e 20 anos de prisão.

            Atendendo a todo o circunstancialismo que rodeou o crime, às características psicológicas do arguido, ao tempo entretanto decorrido para o qual o recorrente não contribuiu, considera-se a pena de 17 anos de prisão, como satisfazendo as necessidades de prevenção, quer geral, quer especial, estando contida no limite da culpa.

            8.  A alteração na medida da pena respeitante ao crime de homicídio, far-se-á repercutir na medida da pena única.

            Esta, com efeito, tem como limite mínimo a pena respeitante ao crime de homicídio – 17 anos de prisão – e, como máximo, a soma das duas penas – 18 anos de prisão.

            O art. 77º nº 1 do Código Penal determina que na medida da pena única são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. 

            Havendo uma evidente correlação entre os dois crimes, tendo o de profanação de cadáver por finalidade ocultar a prática do homicídio, é de fixar a pena única em 17 anos e 6 meses de prisão

            DECISÃO

            Termos em que acordam no Supremo Tribunal de Justiça em dar provimento parcial ao recurso do arguido AA, alterando a qualificação jurídica, condenando-o pela prática do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132 nºs 1 e 2 al. i) do Código Penal, na pena de 17 (dezassete) anos de prisão.

            Em consequência da alteração da pena parcelar relativa ao crime de homicídio, fixam a pena única em 17 (dezassete) anos e 6 (seis) meses de prisão, no mais mantendo a decisão recorrida.

            Sem custas.

        Lisboa, 29 de Maio de 2013

 

Arménio Sottomayor (Relator)

Souto de Moura