Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
170/09.2TBEPS-AN.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
DIVIDAS DA MASSA INSOLVENTE
Data do Acordão: 07/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE
Sumário :

I- O art.º 172º, n.º 2 do CIRE estabelece regras para determinar o modo de pagamento das dívidas da massa.


II- Em primeiro lugar devem responder os rendimentos da própria massa. Na ausência ou insuficiência destes rendimentos, responderá, proporcionalmente, o produto da alienação de cada bem móvel ou imóvel (o que representa uma compressão do produto disponível para pagar aos credores da insolvência).


III- Se esses bens forem objeto de garantias reais, aquela imputação não poderá exceder 10% do produto da alienação de cada um desses bens (o que se sintoniza com a posição privilegiada dos credores que têm créditos garantidos por tais bens).


IV- Se a observância desse limite não permitir o pagamento integral das dívidas da massa, ele pode ser ultrapassado, desde que se demonstre a indispensabilidade do alargamento da contribuição dos bens onerados para se alcançar esse objetivo.


V- Encontrando-se o administrador da insolvência legalmente vinculado ao cumprimento destas regras (e dispondo ele da informação sobre o ativo e o passivo da massa insolvente), deverá demonstrar em que medida se torna indispensável ultrapassar o limite dos 10%, evitando-se contabilizações arbitrárias ou que não respeitem o princípio da igualdade (relativa) de tratamento dos credores.

Decisão Texto Integral:




Processo n.º 170/09.2TBEPS-AN.G1.S1


Recorrente: AA


Insolvente: Barca do Lago Pinhos, S.A.


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


RELATÓRIO


1. O credor AA apresentou um requerimento, nos autos do presente apenso, na primeira instância, no qual formulou o seguinte pedido:


«a) seja esclarecido pelo Senhor Administrador da Insolvência se a algum outro adquirente de bens da massa insolvente, para além do Exponente/Requerente, foi também exigida alguma quantia para pagamento do valor, provável, das custas da responsabilidade da massa insolvente e, em caso afirmativo, seja calculado o montante, proporcional, exigível a cada um e reembolsado o que tiver sido pago em excesso;


b) no caso de tal não haver sucedido, lhe seja feito o reembolso da quantia de € 14.588.00 (catorze mil quinhentos e oitenta e oito euros), por si entregue, em excesso, para pagamento das custas, prováveis, da responsabilidade da massa insolvente, provisoriamente calculadas pela Secretaria deste Tribunal em €30.916,00, definitivamente contadas no montante de €16.328,00».


2. A primeira instância relatou e proferiu a seguinte decisão:


«A questão decidenda é a de saber se o Credor AA tem de depositar, além dos já depositados 53.025,53 €uros, mais a quantia de 145.767,76 €uros para perfazer a quantia que, na proporção do valor da aquisição do Lote 75, lhe cabe no total de 583.107,24 €uros que a tanto ascendem as dívidas da massa; ou se, ao contrário, tem a haver a quantia de 14.588,00 €uros pagos a mais para custas da Massa fixadas em 16.328,00 €uros -fs. 1330 e 1345 v.º


Temos, para tal decidir, a seguinte factualidade:


A - factos julgados assentes pela Relação de Guimarães, no Acórdão de 13.10.2016, processo 170/09.2TBEPS-AI.G1, confirmatório do despacho de dispensa de depósito do preço:


1 - Por sentença já transitada em julgado e proferida na ação de processo comum
que constitui o apenso designado pelas letras “AE” do processo de insolvência acima
identificado, foi a mesma ação julgada procedente e, em consequência:


- a) Foi reconhecido e verificado o crédito do recorrido sobre a insolvência, crédito esse do montante de €897.836,20;


- b) Foi reconhecido e declarado que o recorrido goza do direito de retenção, nos termos do disposto no art.º 755°, n.º 1, alínea f), do Código Civil, sobre o seguinte bem imóvel: prédio urbano destinado a habitação, sito no lugar do ..., composto por casa de rés-do-chão e por logradouro, inscrito na matriz urbana da União das citadas Freguesias sob o artigo ..86 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º .89, da freguesia de ...;


- c) Foi ordenado que o crédito do recorrido seja pago pelo produto da
venda do imóvel anteriormente identificado, após graduação do mesmo crédito em lugar
anterior ao crédito hipotecário de que é titular a “C, S.A.” , crédito esse garantido pela
hipoteca incidente sobre o dito imóvel e registada pela AP. ........31.


2 - O imóvel antecedentemente identificado, figura na descrição do ativo da insolvente como “lote n.º 75”.


3 - Em 11 de fevereiro de 2016, o Sr. Administrador da Insolvência comunicou ao
Tribunal que o citado imóvel se encontrava por liquidar e que estava a diligenciar pela
venda mediante negociação particular, mais comunicando que, tendo sido publicado
anúncio para venda, não surgiu qualquer interessado;


4 - Por requerimento apresentado no Tribunal em 27 de abril de 2016, o recorrido requereu a adjudicação do imóvel antecedentemente identificado, pelo preço de € 323.000,00;


5 - No aludido requerimento foi requerido pelo recorrido que, em virtude de o crédito garantido de que é titular ainda não se achar graduado, fosse dispensado de proceder ao pagamento ou ao depósito do preço, como decorre do preceituado nos n.º s 1 e 2 do art.º 815º, do Cód. Proc. Civil, com observância do disposto nos n.ºs 3 e 4 do citado artº da lei processual civil.


6 - Por requerimento apresentado no imediato dia 28 de abril, o recorrido reiterou o pedido de adjudicação do identificado imóvel, elevando o preço oferecido para a quantia de € 500.000,00;


7 - Notificada a Comissão de Credores, pronunciou-se apenas a C, no sentido de que o proponente deveria depositar à ordem da massa insolvente 10% do valor da proposta, ficando dispensado do depósito do remanescente.


8 - Por requerimento apresentado no Tribunal no dia 2 de maio de 2016, o Senhor Administrador da Insolvência requereu que o apelado fosse notificado para depositar à ordem da massa insolvente a quantia de € 100.000,00, correspondente a 20% do valor da proposta apresentada;


9 - Tal foi indeferido pelo despacho recorrido.


B:


9 - O credor AA depositou a favor da massa a quantia de 53.025,53 Euros que o Sr. Administrador lhe exigiu, antes de outorgar a escritura de venda do Lote 75 a seu favor - afirmado pelo credor a fs. 1345 v.º e aceite pelo AI a fs. 1353, aquando da apresentação do mapa de fs. 1352 v.º.


10 - Conforme mapa de rateio final e liquidação de fs. 1341 e 1352 v.º as despesas da massa insolvente ascendem ao total de 583.107,24 €uros, sendo 543.999,02 de despesas, 22.780,22 de honorários do Administrador e 16.328,00 de custas judiciais.


11 - As imputações das despesas à venda de cada um dos bens apreendidos para a Massa resulta do cálculo aritmético constante do quadro junto a fs. 1352. (...).


(...)


Os factos e o Direito


Sendo certo que


- as receitas da Massa ascendem a 1.466.616,96 €uros,


- as dividas da Massa ascendem a 583.107,24 €uros,


- o lote 75 foi adquirido pelo Credor AA por 500.000,00 €uros, ele que é titular de crédito no valor de 897.836,20 €uros, garantido por direito de retenção sobre tal lote 75, daquele preço depositou o credor AA, apenas, a quantia de 53.025,53 Euros com vista à satisfação de encargos da Massa, àqueles 500.000,00 €uros corresponde, na proporção de 34,09% das despesas da Massa, a quantia de 198.793,29 Euros, terá ele depositar a diferença entre o devido – 198.783,29 Euros – e o já depositado – 53.025,53 Euros – ou seja, os reclamados 145.767,76 Euros.


Decisão


Vistos aqueles factos e o disposto nos art. 165.º do CIRE, 541.º e 815.º do CPC, por um lado, a ressalva constante do n.º 1 do 174.º e os comandos ínsitos nos n.ºs 1 e 2 do art. 172.º do CIRE, por outro,


a) indefiro o requerido pelo Credor AA.


b) mando se notifique este Credor para, em vinte dias, proceder ao depósito a favor da Massa Insolvente da quantia de cento e quarenta e cinco mil e setecentos e sessenta e sete €uros e setenta e seis cêntimos (145.767,76 €).»


3. Contra a decisão da primeira instância o requerente interpôs recurso de apelação, mas o TRG julgou esse recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.


O apelante requereu a reforma desse acórdão, pedindo que fosse clarificado o alcance da aplicação do artigo 172.º, n.º 2 do CIRE ao caso concreto. Porém, o TRG, em acórdão proferido em conferência, manteve inalterada a decisão reclamada.


4. O autor-apelante, interpôs recurso de revista.


Nas suas alegações de recurso, o recorrente formulou as seguintes conclusões:


«1ª - A “questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica”, é “claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, é a da determinação do exato sentido da norma do artigo 172º do CIRE, em especial do seu nº 2, de modo a precisar o que nele se regula quanto aos meios ou recursos com os quais são pagas as dívidas da massa insolvente, bem como a respetiva medida.


2ª - As razões pelas quais a “apreciação” dessa “questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito” são as que se justificam pela necessidade de definição de um critério rigoroso na interpretação da norma e respetivos conceitos, que conduza à certeza e à segurança jurídicas, requeridas na sua aplicação em concreto, de modo a que seja fiel à sua letra e ao seu espírito, e, dessa maneira, seja alcançado o fim que preside à intervenção de quem tem a missão de julgar segundo o direito, que mais não é do que o da realização da Justiça.


3ª - O artigo 172º, nº 1, do CIRE ordena a que o administrador da insolvência, “Antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência”, deduza “da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta”.


4ª - “A satisfação das dívidas da massa é realizada”, em primeiro lugar, “à custa dos rendimentos da massa”.


5ª - Não sendo os rendimentos da massa suficientes para o pagamento integral das dívidas da massa, e “no excedente”, não pago, destas, “e na devida proporção”, é chamado a responder o “produto de cada bem, móvel ou imóvel”.


6ª - O “produto de cada bem, móvel ou imóvel” é o valor realizado ou recebido, a receita ou o proveito arrecadados com a venda de cada um desses bens, realizada no âmbito do processo de insolvência.


7ª - “A vinculação dos bens livres às dívidas da massa assume, em regra, uma dimensão bem mais significativa do que sucede com os bens onerados”, dada “a tutela particular conferida, por princípio, aos credores garantidos, exatamente por serem eles, de entre todos os titulares de créditos sobre a insolvência, os que, até à concorrência do valor dos bens objeto da garantia, são pagos em primeiro lugar”.


8ª - Os bens onerados com garantia real respondem “derradeiramente” pelas dívidas da massa, depois de verificada a insuficiência dos respetivos rendimentos e de esgotados os proveitos obtidos com o produto da venda dos bens livres.


9ª - A imputação das dívidas da massa ao produto da liquidação de bens objeto de garantias poderá ser superior ao limite de 10%, fixado no nº 2 do artigo 172º do CIRE, desde que tal seja “indispensável à satisfação integral” daquelas “ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos”.


10ª - Na sua fundamentação, o Acórdão recorrido acolhe e parte dos pressupostos, imperativos, ditados pelo artigo 172º do CIRE, maxime no seu nº 2, mas, não obstante, conclui, a final, pela obrigação de realização de um depósito de uma quantia calculada aritmeticamente por referência ao valor do produto da venda do bem, integrante da massa, objeto de direito de retenção a favor do recorrente, a ele adjudicado.


11ª - O artigo 172º do CIRE não prevê a exigência de um qualquer depósito, nomeadamente aos credores garantidos adquirentes de bens da massa insolvente, destinado ao pagamento das dívidas desta.


12ª - O artigo 815º do Código de Processo Civil não dá suporte à exigência desse mesmo depósito para pagamento de dívidas da massa, nem a ele o Acórdão recorrido faz apelo, apenas prevendo um depósito para o pagamento a credores graduados antes dos “credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real”.


13ª - O Acórdão recorrido faz uma leitura errada do nº 2 do artigo 172º do CIRE, lendo “depósito” onde se encontra escrito “produto”, exigindo o que esta norma não prevê nem comporta, não indicando nenhum preceito legal em que, porventura, encontre fundamento ou que preveja tal exigência.


14ª - Ainda que fosse correta a interpretação da obrigação do depósito, por referência àquele nº 2 do artigo 172º do CIRE, sempre importaria respeitar o critério nele enunciado, que “contém (…) um regime mais favorável para os credores com garantia real”.


15ª - E se fosse devido tal depósito, chamados, em primeiro lugar, os rendimentos da massa, e verificando-se a sua insuficiência, logo responderiam os “bens livres às dívidas da massa”, sem qualquer limite, assumindo “uma dimensão bem mais significativa do que sucede com relação aos bens onerados”, e, “derradeiramente”, então, responderiam os bens onerados, não excedendo, em princípio, a imputação a 10% do seu produto, ressalvado o “indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos”.


16ª - Não sendo devido um qualquer depósito, é, todavia, este exercício que, se o fosse, o Acórdão recorrido não faz.


17ª - É manifesta a violação e a errada aplicação da norma do nº 2 do artigo 172º do CIRE, que o Acórdão faz, alterando o seu sentido e alcance, pelo que, sendo inquestionável a sua relevância jurídica, se impõe a reposição da definição do seu exato âmbito e significado, no sentido de tornar claro e definitivo que “produto” não é “depósito”, que dessa norma não resulta qualquer comando ou obrigação dessa natureza, o que se justifica pela clara necessidade de “uma melhor aplicação do direito”.


18ª - Como tal, deve ser revogado.


19ª Termos em que, bem como em todos os mais, de direito, aplicáveis, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser proferido Acórdão que julgue em conformidade com o alegado, revogando o Acórdão recorrido, o que se fará em obediência à LEI e por imperativo da JUSTIÇA


5. Verificando-se a existência de “dupla conforme” (art.º 671º, n.º 3 do CPC), foram os autos remetidos à Formação a que alude o art.º 672º, n.º 3 do CPC.


*


II. FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objeto do recurso


O recurso foi admitido pela Formação a que alude o artigo 672º, n.º 3 do CPC, como revista excecional, por se entender que se encontra verificada a hipótese prevista no artigo 672º, n.º 1, alínea a), concluindo “pela necessidade de intervenção liderante e clarificadora deste Supremo Tribunal de Justiça”.


O objeto da revista é (assim delimitado pelo âmbito de admissibilidade como revista excecional) a questão de saber se o acórdão recorrido fez a correta interpretação e aplicação do artigo 172.º, n.º 2 do CIRE ao caso concreto.


2. Factualidade apurada


A factualidade relevante para a decisão do presente recurso é a que consta do Relatório supra, e particularmente a factualidade dada como assente pela decisão da primeira instância que se encontra transcrita no ponto n. 2 do Relatório.


3. O direito aplicável


3.1. Na tese do recorrente, o acórdão recorrido terá feito uma leitura errada do n.º 2 do artigo 172.º do CIRE, por ter entendido que o recorrente devia proceder ao depósito de uma quantia calculada aritmeticamente em função do produto da venda do imóvel que ao credor recorrente foi adjudicado.


Entende o recorrente que a decisão recorrida não seguiu os critérios decisórios impostos pelo n.º 2 do artigo 172.º do CIRE ao ultrapassar o valor de 10% daquele bem, sem haver uma concreta justificação sobre a necessidade de tal limite ser ultrapassado.


3.2. Está em causa, no presente recurso, a questão de saber em que medida poderá o recorrente ser chamado a contribuir para o pagamento das dívidas da massa insolvente, tendo presente que se trata de um credor com créditos garantidos sobre um imóvel integrante da massa e do qual é também adjudicatário.


As regras que permitem solucionar a questão decorrem, em primeira linha, do disposto no art.º 172.º do CIRE, com o seguinte teor:


Artigo 172.º (Pagamento das dívidas da massa)


«1 - Antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, o administrador da insolvência deduz da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta, incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo.


2 - As dívidas da massa insolvente são imputadas aos rendimentos da massa, e, quanto ao excedente, na devida proporção, ao produto de cada bem, móvel ou imóvel; porém, a imputação não excederá 10% do produto de bens objecto de garantias reais, salvo na medida do indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos.


3 - O pagamento das dívidas da massa insolvente tem lugar nas datas dos respectivos vencimentos, qualquer que seja o estado do processo.


4 - Intentada ação para a verificação do direito à restituição ou separação de bens que já se encontrem liquidados e lavrado o competente termo de protesto, é mantida em depósito e excluída dos pagamentos aos credores da massa insolvente ou da insolvência, enquanto persistirem os efeitos do protesto, quantia igual à do produto da venda, podendo este ser determinado, ou, quando o não possa ser, à do valor constante do inventário; é aplicável o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 180.º, com as devidas adaptações.»


Do art.º 172.º emergem as regras de prioridade e a metodologia a que deve obedecer o pagamento das dívidas da massa insolvente.


O n.º 1 deste artigo sintoniza-se com o disposto no art.º 46.º do CIRE, ao determinar que o administrador da insolvência deve deduzir da massa insolvente os meios necessários ao pagamento das dívidas da massa antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência.


Dívidas da massa insolvente são, além de outras especificamente previstas na lei, aquelas que se encontram elencadas no artigo 51.º do CIRE, com o seguinte teor:


Artigo 51.º (Dívidas da massa insolvente)


«1- Salvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código:


a) As custas do processo de insolvência;


b) As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores;


c) As dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente;
d) As dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções;


e) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência;


f) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração;


g) Qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objecto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório;


h) As dívidas constituídas por actos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes;


i) As dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente;


j) A obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do artigo 93.º


2 - Os créditos correspondentes a dívidas da massa insolvente e os titulares desses créditos são neste Código designados, respectivamente, por créditos sobre a massa e credores da massa.»


No art.º 172º, n.º 2, o legislador estabeleceu regras sucessivas (e aplicativamente sucedâneas) quanto à metodologia a seguir para determinar o modo de pagamento das dívidas da massa.


Assim, em primeiro lugar devem responder os rendimentos da própria massa (por exemplo, rendas de imóveis ou receitas da exploração de um estabelecimento comercial). Na ausência ou insuficiência destes rendimentos, responderá, proporcionalmente, o produto da alienação de cada bem móvel ou imóvel (o que, necessariamente, representará uma compressão do produto disponível para pagar aos credores da insolvência).


Todavia, se esses bens forem objeto de garantias reais, aquela imputação não poderá exceder 10% do produto da alienação de cada um desses bens (o que se sintoniza com a posição privilegiada dos credores que têm créditos garantidos por tais bens)1.


Poderá, porém, acontecer que a observância desse limite não permita o pagamento integral das dívidas da massa. Nesta hipótese, dado que os credores da insolvência não poderão ser pagos sem que se encontre garantido o pagamento das dívidas da massa, torna-se indispensável que aquele limite de 10% seja ultrapassado.


Existe, assim, uma regra e uma exceção a essa regra, quando está em causa a imputação das dívidas da massa ao produto de bens que são objeto de garantias reais. Porém, enquanto que a aplicação dessa regra (10%) depende apenas da constatação da ausência ou insuficiência de rendimentos da própria massa, a exceção (valor superior a 10%) implica o preenchimento de um conceito indeterminado, ou seja, a “indispensabilidade” do alargamento da contribuição dos bens onerados para se alcançar a satisfação das dívidas da massa.


Encontrando-se o administrador da insolvência legalmente vinculado ao cumprimento destas regras (e dispondo ele da informação sobre o ativo e o passivo da massa insolvente), deverá demonstrar em que medida se torna indispensável ultrapassar o limite dos 10%, evitando-se contabilizações arbitrárias ou que não respeitem o princípio da igualdade (relativa) de tratamento dos credores.


3.3. No acórdão recorrido foi feita uma diferente interpretação do artigo 172.º do CIRE, e particularmente do disposto no n.º 2 deste artigo. Para além de citações doutrinais e jurisprudenciais, colhem-se na fundamentação deste aresto os argumentos que, em síntese, se extratam:


«Sendo o aqui recorrente adjudicatário e credor garantido, goza da faculdade processual do artº 815º do CPC, por força da remissão operada pelo artº 165º do CIRE, que lhe confere a dispensa de depósito do preço.


Mas, como bem assinala o despacho recorrido, citando diversa jurisprudência e doutrina, a dispensa do depósito do preço não abrange as quantias que sejam necessárias à salvaguarda do pagamento das dívidas da massa insolvente, que saem precípuas do produto do bem. Se é certo que, nos termos do artº 172º, nº 2, do CIRE, a imputação das dívidas da massa não excederá 10% do produto do bem onerado com garantia real, logo a parte final do preceito ressalva “salvo na medida do indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos.”


E o advérbio salvo faz aqui toda a diferença.


(…)


Tendo o credor recorrente adquirido um lote por € 500.000,00, proporcionalmente correspondente a 34% das despesas da massa (percentagem equivalente a € 198.793,29), e tendo depositado apenas € 53.025,53 para satisfação dos encargos da massa, mostra-se correta a decisão que determinou o depósito dos 145.767,76 em falta.


Não é assim correta a posição defendida pelo recorrente pois, como supra demonstrado, esse limite de 10% pode ser ultrapassado se for indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente, sendo que, esse valor, na hipótese de os rendimentos da massa não serem suficientes para o pagamento daquelas dívidas, é sempre determinado, para efeitos de imputação às referidas dívidas, na devida proporção ao produto da venda de cada bem móvel ou imóvel. O que o tribunal recorrido, corretamente, fez, sem prejuízo do que em sede de rateio final venha a ser apurado


Embora nessa fundamentação se enuncie que o “limite de 10% pode ser ultrapassado se for indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente”, em concreto não se diz como é que, nos presentes autos, essa condição se encontra preenchida. Efetivamente, não existe nenhuma justificação para se concluir que a ultrapassagem do limite de 10% é indispensável para a satisfação integral das dívidas da massa, como exige o n.º 2 do art.º 172º do CIRE.


As regras estabelecidas nessa disposição permitem concluir que a ultrapassagem daquele limite não pode ser arbitrária, nem assentar em puros critérios de conveniência aritmética que remetem para o que vier a ser apurado em sede de rateio final.


Na realidade não se encontra justificada a razão pela qual o credor recorrente tem de suportar 34% das despesas da massa. Não basta que o administrador da insolvência proceda a uma imputação aritmética dessas despesas. Na medida em que tal imputação ultrapasse o limite de 10%, a lei é clara ao estabelecer que tal tem de ser indispensável à satisfação das dívidas da massa. E no caso concreto não se encontra justificada a razão para a ultrapassagem daquele limite.


Deve, portanto, concluir-se que o acórdão recorrido, ao confirmar a decisão da primeira instância, não fez a correta aplicação do disposto no n.º 2 do art.º 172º do CIRE, pois a factualidade que resulta dos autos não fornece a razão pela qual se torna indispensável que o credor recorrente suporte 34% das despesas da massa.


Conclui-se, portanto, que o credor recorrente apenas tem de suportar (pelo menos por agora) as despesas da massa insolvente correspondentes a 10% do produto do imóvel sobre o qual recai a sua garantia.


Tal não significa que, caso venha a ser demonstrada a exceção prevista na última parte do n.º 2 do art.º 172º, o credor não possa vier a ter de suportar uma percentagem superior a 10%. Mas essa necessidade tem de ser concretamente justificada.


3.4. Como decorre da regra estabelecida no art.º 621.º do CPC (aplicável ex vi do art.º 17.º do CIRE), a presente decisão estabelece o direito nos precisos limites e termos em que julga. Assim, não se encontrando demonstrado nos autos, neste momento, ser indispensável ultrapassado o limite de 10%, estabelecido pelo n.º 2 do art.º 172º do CIRE, o credor recorrente não pode ser condenado a proceder a um depósito superior a esse valor, nas concretas circunstâncias em que se aprecia o caso sub judice.


Tal não impede que, caso essa condição (a indispensabilidade) venha a ser demonstrada, o credor recorrente não possa ser chamado a contribuir para o pagamento das dívidas da massa em percentagem superior a 10% do valor do bem sobre o qual o seu crédito se encontra garantido.


*


DECISÃO: Pelo exposto, concede-se a revista e revoga-se o acórdão recorrido, não devendo o recorrente depositar, atualmente, mais de 10% do valor do imóvel sobre o qual tem garantia real para pagamento das dívidas da massa insolvente.


Custas pela massa insolvente.


Lisboa, 09.07.2024


Maria Olinda Garcia (Relatora)


Amélia Alves Ribeiro


Luís Correia de Mendonça








_______________________________________________

1. Vd. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado (3ª ed.), pág. 644 e seguintes.↩︎