Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2702/15.8T8VNG.C.P1.S2
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
RECURSO DE APELAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DO RECORRENTE
ÓNUS DE CONCLUIR
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
REJEIÇÃO DE RECURSO
PROCESSO EQUITATIVO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO
Sumário :
I. Os factos provados podem incluir, até por mera remissão, os anteriormente apurados como provados no anterior debate judicial.

II. Não autoriza, pois, a segunda instância a descaracterizar a natureza de “factualidade -provada” - conferida pela decisão a quo, ao rejeitar com esse fundamento a impugnação da matéria de facto.

III. A rejeição da impugnação com tal fundamento, em razão da técnica de enunciação dos factos provados e não provados pelo tribunal a quo, qualificação transposta ipso verbis para o acórdão da Relação, seria no caso uma solução desproporcionada e formalmente excessiva para a parte, alheia à circunstância.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. Itinerário processual

1. O Ministério Público intentou processo para promoção dos direitos e proteção da criança BB, nascida em ... de ... de 2013, filha de CC e de AA, por a mesma se encontrar em situação de perigo.

2. Por decisão proferida em 15 de julho de 2016, foi aplicada a favor da menor BB a medida, provisória, de confiança da mesma à Segurança Social ..., com vista a seu encaminhamento familiar, pelo período de seis meses e a executar de imediato, até à identificação de família idónea.

3. Não tendo sido possível obter o acordo dos pais da criança, encerrada a instrução, procederam-se às notificações de lei. Realizado o debate judicial, produzida as provas, o tribunal, integrando juízes sociais, proferiu em 29.06.2017, o acórdão com o seguinte dispositivo: “A) - Aplicar à criança BB, a medida de promoção e de protecção de "acolhimento familiar", pelo período de seis meses, prevista no artigo 35. °, n.º 1, alínea e), da LPCJP.B) - Paralelamente à medida de "acolhimento familiar", o CDSS, através da EMAT, em colaboração com a Equipa local de RSI e outras entidades de proximidade (eventualmente o CAFAP ...), desenvolverá um plano, o qual contemplará as seguintes áreas:- a realização de um trabalho de educação parental junto da mãe e da avó da menor, tendo em vista o reforço da sua autonomia e a aprendizagem de competências pessoais, familiares e sociais para o melhor exercício da função parental, incidindo nos cuidados básicos de saúde, alimentares, de higiene, de afecto, de segurança, de estimulação e de imposição de regras e acompanhamento psicológico da progenitora e da avó".

A medida foi sucessivamente prorrogada em sede revisão.

4. Nos relatórios elaborados pelos serviços da Segurança Social e da equipa técnica da Associação ..., de acompanhamento da execução da medida, foi sugerido a sua substituição pela medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção, ao abrigo do estatuído nos artigos 35.°, n.º 1, alínea g), 38.°-A, 62.°, n.ºs 1 e 3, alínea b) e 62.°- da LPCJP , por se considerar que os pais da criança não constituírem garante da promoção dos direitos e proteção de BB e inexistente alternativa na família alargada.

5. Os pais da menor opuseram-se à aplicação da medida proposta pela EMAT. Social.

Realizado o debate judicial com produção de prova, o tribunal proferiu o acórdão datado de 16.03. 2023, com o seguinte dispositivo :«Acordam os Juízes que constituem este Tribunal Coletivo Misto, ao abrigo das disposições supra citadas: A)- Aplicar à criança BB, a medida de promoção e de protecção de "acolhimento familiar", a executar junto de DD e EE, pelo período de 1 (um) ano, prevista no artigo 35.°, n.° 1, alínea e), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo)- De forma a garantir a estabilidade da BB, no seu superior interesse, decide-se que apenas deverão ocorrer visitas e contactos telefónicos entre a criança e os progenitores e/ou a avó materna, se essa for a vontade da BB.(…).

6. Foram apresentadas duas apelações, a saber, pela mãe da menor, que pugnou pela revogação da decisão de primeira instância e consequente entrega da filha aos seus próprios cuidados; e pela menor BB que no prosseguimento da medida de acolhimento vigente, pugnou pela sua futura adopção.

O Ministério Público na resposta afirmou a improcedência total de ambos os recursos.

Apreciados, o Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão em 5.06.2023, vindo a decidir-se, julgar “i) -improcedente o recurso da progenitora; e, ii) procedente a apelação da menor BB e, revogando a decisão recorrida, decidem aplicar à criança a medida de promoção e proteção de confiança a família de acolhimento familiar com vista a futura adoção, sendo tal medida executada na família de acolhimento identificada nos autos, onde a mesma já se encontra. Deve, pois, ser solicitado à Segurança Social, o acompanhamento da medida, mediante prévia definição do plano de intervenção junto desta criança, e, sendo o caso, da sua família.”

7. Inconformada com o acórdão da Relação, a mãe da menor pediu revista.

A motivação do recurso finaliza com as conclusões que se transcrevem:

« Não se recorre da decisão em 2ª Instância em como deve a criança sair o mais urgentemente possível do acolhimento provisório em que se encontra na família que a acolheu. A Lei não tolera que os acolhimentos familiares se tornem definitivos na vida das crianças, sendo o regresso à família natural a intenção do legislador. É ilegal a rejeição da reapreciação da matéria de facto, não sendo para o tribunal de recurso um poder, mas um dever legal fazê-lo quando haja recurso nesse sentido, ainda mais em matéria tão drástica como tirar uma filha a uma mãe para a adopção. São inconstitucionais as normas da al. b), do nº1, do art.º 640º, e da al. a), do nº2, do mesmo artigo do Código de Processo Civil, quando interpretadas no sentido de as passagens da gravação só serem consideradas se estiverem nas conclusões, por violarem o art.º 20º da Constituição da República Portuguesa. O direito ao recurso sobre a matéria de facto não pode estar sempre a bater com decisões formais de imensas páginas para justificar a rejeição do seu conhecimento em vez da busca da verdade, a mais importante tarefa na aplicação da justiça.5ªA lide judicial não pode ser uma busca incessante de enredos formais para não se discutir o fundo das questões, sendo a audição das gravações da prova necessária para que a aplicação do direito faça justiça aos factos reais.6ª Para que o recurso sobre a matéria de facto faça sentido, essa audição terá de ser feita não só pelo relator como também por todos aqueles que assinam o acórdão, de acordo com o princípio da plenitude no conhecimento da prova.Aacusação que o acórdão faz à aqui recorrente de não ter condições para receber a filha não implica, por força da lei, que seja encaminhada para a adopção, implica apenas competir aos serviços sociais proporcionar essas condições à recorrente que o tribunal julgue necessárias. O dinheiro gasto, ao longo de tantos anos, com a família de acolhimento e com os serviços da IPSS que lhe serve de retaguarda, já teria dado para adquirir uma habitação em que a mãe pudesse receber a filha nas condições exigidas. Os serviços sociais nunca se dignaram, como é sua obrigação legal, escolher uma instituição e família de acolhimento próximas da mãe da criança e, além disso, nunca lhe ofereceram qualquer subsídio ou ajuda de custo para percorrer as centenas de quilómetros de distância. Necessitando a aqui recorrente de fazer cerca de 700 quilómetros de ida e volta com elevados custos totalmente a seu cargo, não se cumpriu o fim legal de preparar o regresso da criança à sua família de origem.10ª Desde o ano passado em que conseguiu arrendar uma habitação, a recorrente vem declarando nos autos que quer que lhe seja entregue a filha, nunca tendo ninguém dos serviços sociais feito qualquer esforço para visitar a referida habitação depois disso, porque a intenção deles sempre foi e continuará a ser o encaminhamento da criança para a adopção. Não é a mãe que tem de procurar ajuda na Segurança Social para melhorar as suas condições, são os mesmos agentes sociais que tratam do caso da menor que têm de coordenar os seus esforços para propor junto do Tribunal a medida de apoio junto da mãe, prevista na alínea a) do nº1 do art.º 35º da LPCJP. 11ª Os processos de adopção implicam gastos muito avultados do Estado, ao longo de anos, que permitem a todos aqueles que são pagos por esses serviços tirar daí o seu ganha-pão. Os tribunais não podem ignorar essa circunstância na avaliação que fazem dos relatórios sociais que propõem a adopção.12ª Constitui violação da lei a falta de juízo crítico pelos senhores magistrados dos relatórios sociais, cabendo-lhes ordenar o contraditório, continuando a aqui recorrente a desconhecer tais relatórios contra si elaborados que nunca lhe foram notificados, com a cominação do art.º 117º da LPCJP.13ªA recorrente foi, telefonicamente, informada pelos serviços sociais de que todos os contactos com a sua filha estavam proibidos a partir da prolação do acórdão aqui em recurso e que, também, lhes foi notificado.14ª Resulta, inequivocamente, da Lei que as decisões judiciais de encaminhamento de crianças para a adopção só têm força legal após o trânsito em julgado, visto que o seu recurso tem efeito suspensivo.15ª Constitui princípio geral do direito processual que uma decisão cujo possível recurso tenha efeito suspensivo só poderá ser executada após o seu trânsito em julgado.16ª É, assim, ilegal a ordem de notificação dos serviços sociais pelo acórdão em revista antes do trânsito, não só porque estes não são sujeitos processuais com capacidade de recurso, como ainda o acórdão só será executável por esses serviços após o seu trânsito em julgado.17ª Não resulta do acórdão em recurso, muito pelo contrário, qualquer proibição de contactos, tendo sido declaradas procedentes as conclusões do recurso em nome da menor, onde se lê a preservação de contactos da menor com a aqui recorrente pela futura família adoptiva.18ªAo declarar totalmente procedente o recurso em nome da menor, o acórdão comete uma omissão grave ao não notificar os serviços sociais da manutenção dos contactos da filha menor com a sua mãe, independentemente do encaminhamento da criança para adopção.19ª O Direito de Protecção de Menores não consente que as crianças sejam tiradas aos pais e enviadas para a adopção com base em conceitos tecnocráticos como “ handicap“, “disfuncionalidades “, “ securizante “ou “ referência afetiva “ . A gravidade de tirar uma filha a uma mãe é tanta que o princípio da segurança jurídica se impõe nestes casos. O que importa saber para o Direito é se a criança gosta ou não gosta da sua mãe e, em diversos factos provados, lemos que a filha gosta da mãe, aqui recorrente, é o que basta para o Direito atestar os vínculos afectivos.20ªAEscola de Direito de Coimbra foi a escolhida pelo legislador para preparar e redigir a formulação actual do Código Civil quanto aos pressupostos de encaminhamento para a adopção. Não há motivos para suspeitar que a doutrina dos professores de Coimbra sobre esta matéria não seja a defendida pelo nosso legislador; ao afastar-se radicalmente dela em direcção a um pensamento malthusiano de que os pobres não podem ter os filhos por deles não saberem nem poderem cuidar, o acórdão em recurso viola o mais sagrado princípio do primado da família natural.21ª De acordo com os dois mais eminentes professores de Coimbra em Direito de Família, a prova da rutura definitiva dos vínculos afetivos é autónoma e cumulativa com a prova de alguma das verificações objectiva das alíneas do art.º 1978º do Código Civil. Se é o próprio acórdão em recurso que não põe em causa, na matéria provada, a filha gostar da mãe, é quanto basta para impossibilitar a aplicação da medida de confiança com vista a futura adopção prevista no art.º 1978.º do Código Civil.22ª Não foi por acaso que o Colectivo em 1ª Instância escreveu que seria uma “crueldade” para a menor encaminhá-la para adopção.23ª Tendo-se apresentado o avô materno da menor em tribunal disponível para a receber, não poderia o acórdão em recurso, de acordo com o primado da família natural, mandar a neta para a adopção.24ª Não havendo nada nos autos contra o avô materno da menor, só não lhe foi entregue a neta por ele ser pobre, violando assim o acórdão o princípio da dignidade humana por haver preconceito contra as pessoas pobres ficarem com filhos e netos a seu cargo. Não é por acaso que o acórdão refere quatro vezes as vantagens patrimoniais para a menor com o seu encaminhamento para a adopção, não se vislumbrando na lei que as pessoas pobres não possam adoptará crianças por não lhes poderem proporcionar as ditas vantagens patrimoniais.25ª Havendo oposição da menor por si declarada nos autos ao encaminhamento para a adopção, constitui um acto cruel a medida de confiança com vista à adopção. No nosso ordenamento, não são permitidas adopções forçadas contra a vontade das crianças, violando a lei o acórdão quando escreve “não se impõe ao julgador que na decisão que venha a tomar acolha a posição assumida pelo menor, bem podendo afastar-se dela “.26ª É inconstitucional o art.º 1978º do Código Civil com a interpretação de que pode ser aplicada a medida de confiança com vista a futura adopção contra a posição assumida pelo menor relativamente a essa medida, por violar o Estado de direito democrático consagrado no art.º 2º da Constituição da República Portuguesa.27ª Pelas estatísticas publicadas do Conselho Nacional da Adopção, a faixa etária onde se insere a menor tem elevada probabilidade de insucesso no processo de adopção, fazendo-se um juízo de prognose de acordo com dados oficiais, a adopção nos autos estará votada ao insucesso, sendo do superior interesse da menor, conceito jurídico e não discricionário, que esta seja poupada a tal processo doloroso.28ª O acórdão em recurso viola o art.º 1978º do Código Civil por não estar preenchido nenhum dos seus pressupostos legais para ser aplicada a medida de confiança com vista a adopção da menor. O encaminhamento para a adopção não é nenhuma medida que garanta o superior interesse da menor, como é argumento do acórdão recorrido, porquanto, apesar de tantos profissionais intervirem na escolha do candidato a adoptar, ocorrem imensos falhanços como aquele descrito no recente acórdão sob revista nº 802/20.1... em que a filha de 18 anos engravidou do pai adoptivo.29ª Mantendo-se o acórdão na parte em que ordena a saída o mais urgentemente possível do acolhimento provisório onde está, que aqui não está em recurso, e sendo ilegal a medida de confiança com vista a adopção, deverá ser ordenada a entrega da criança à mãe.»

O Ministério Público pugnou pela integral improcedência do recurso.

8. Por decisão da Relatora de 27.09.2023 consta, inter alia:

«(..)A impugnação da matéria de facto e os ónus legais. (…). Ambas as recorrentes impugnaram a decisão de facto do tribunal a quo tendo por objecto distintos segmentos, e, motivação e conclusões, também, diversas. (..). Sucede que, s. d.r, não acompanhamos os motivos da rejeição da impugnação da decisão de facto provada constante da apelação da progenitora, sendo que, ao que se extrai, o tribunal a quo entendeu, não obstante as apontadas deficiências, reapreciar os pontos impugnados da matéria de facto não provada, que indeferiu. (…) Posto isto, analisada a peça do recurso de apelação apresentada pela ora recorrente AA, não acompanhamos o sentido decisório prosseguido pela Relação, ao rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto. A recorrente identifica nas conclusões de forma directa e clara, primeiro, quais os pontos da matéria de facto provada que pretende submeter à reapreciação da Relação; segundo, qual o juízo probatório alternativo que propõe; terceiro, os elementos de prova que, no seu entender, atestam tal juízo; e, por último sumaria as (suas) razões da divergência, em coerência com a argumentação que desenvolveu no corpo das alegações. Assim, o retiramos em suficiência das conclusões - “1ª- A recorrente impugna os factos provados nos Pontos 6 e 8 da Sentença por terem como fonte a avó da menor que não é credível, já que sempre prejudicou a sua filha, sendo causadora da sua institucionalização aquando adolescente. A recorrente impugna o provado no Ponto 15, tendo sido o motivo de institucionalização da recorrente quando adolescente o que está no Ponto 18 ii) dos factos provados.2ª Os Pontos 27 e 28 dos factos provados não representam a actualidade dos autos e reportam-se há mais de seis anos quando a recorrente ainda era uma jovem adolescente por isso se impugnam. O último parágrafo da página 10 dos factos provados também se impugna por se basear em factos falsos contra a recorrente, nunca a recorrente esteve em casa de prostituição ou foi apanhada a roubar, se tal fosse verdade constaria no seu cadastro criminal e nada consta. 3ª Impugna-se o que está no 2º parágrafo da página 27 dos factos provados, porque nunca a família de acolhimento enviou quaisquer fotos da menina para a mãe e, muitas vezes, impede a própria menina de enviar fotos para a mãe como o depoimento do marido da família de acolhimento atesta. (…)” Por outro lado, não sendo a peça “ideal,” quanto à “análise crítica “da motivação do tribunal de primeira instância, certo é que constam nas alegações da recorrente (e parte nas conclusões) amplas transcrições dos depoimentos que identifica e destaca, naturalmente no interesse da sua posição e interesse que defende. A recorrente não se limitou, de forma genérica e conclusiva, a discordar da apreciação das provas e do sentido da decisão, satisfazendo em suficiência os ónus legais da impugnação da decisão de facto, em termos que viabiliza a reapreciação e valoração da prova produzida adrede, segundo o critério a sua livre e prudente convicção. Cremos, s.m.o., não estarmos, pois, perante simples alegação do inconformismo da recorrente perante a versão dos factos da sentença. Não se verificando a falta de especificação dos requisitos previstos no nº1, alíneas a), b) e c) do artigo 640º , do CPC, a falta ou imprecisão nas conclusões da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, e a proverbial análise critica das provas, estando afinal em causa o conjunto de 6 pontos da decisão de facto, não justifica no caso dificuldade grave para o tribunal a quo exercer os poderes deveres constantes do artigo 662º do CPC ou o exercício do contraditório pelos demais intervenientes . Daí concluir-se, que o acórdão em recurso errou na interpretação e aplicação dos parâmetros processuais que disciplinam os poderes de cognição da decisão de facto impugnada, e, por conseguinte, resulta prejudicado o conhecimento do segundo fundamento do recurso de revista.

III. Decisão: Pelo exposto, decide-se: a) Anular o acórdão recorrido na parte em que rejeitou a impugnação da decisão de facto da ora recorrente; b) E, baixando os autos ao Tribunal da Relação, determinar a reapreciação da matéria de facto rejeitada, procedendo às alterações que entender ajustadas e eventual alcance na solução de mérito. Custas a atender a final.»

9.O Tribunal da Relação do Porto, julgando o mesmo Colectivo, proferiu Acórdão em 13.11.2023.

Nele consta para o tópico que ora releva, o seguinte:

«(…) 1. Da reapreciação da decisão de facto:

- Do erro de julgamento quanto aos factos provados impugnados, cuja apreciação foi determinada pelo STJ (os referidos nas conclusões 1ª a 3ª, da apelação da progenitora). (…) Cumpre, em primeiro lugar, apreciar a impugnação da decisão de facto da progenitora, como determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça. (…)

Sendo elas: “1ª- A recorrente impugna os factos provados nos Pontos 6 e 8 da Sentença por terem como fonte a avó da menor que não é credível, já que sempre prejudicou a sua filha, sendo causadora da sua institucionalização aquando adolescente. A recorrente impugna o provado no Ponto 15, tendo sido o motivo de institucionalização da recorrente quando adolescente o que está no Ponto 18 ii) dos factos provados.2ª Os Pontos 27 e 28 dos factos provados não representam a actualidade dos autos e reportam-se há mais de seis anos quando a recorrente ainda era uma jovem adolescente por isso se impugnam. O último parágrafo da página 10 dos factos.

Conhecendo-se da impugnação da matéria de facto da progenitora quanto aos referidos pontos, como determinado pelo STJ, constata-se que a impugnação fáctica efetuada pela apelante traduz:

i) não como afirma, impugnação de factos dados como provados pelo Tribunal a quo na sentença recorrida, mas mera impugnação de factos que foram dados como provados numa outra, anterior, decisão;

ii) impugnação, efetuada nas alegações de recurso, do que foi feito constar de informação e de relatório conjunto da Segurança Social e da equipa técnica da Associação ..., informação e relatório esses mencionados nos factos provados (v. f.p. 5 e 17). Com efeito, apesar do que consta do corpo das alegações da progenitora com relação aos ditos “factos impugnados” (..). certo é que nenhuns concretos e específicos factos dados como provados na sentença foram, real e efetivamente, impugnados (cfr. conclusões da apelação da progenitora/apelante, supracitadas, que, como vimos, delimitam o âmbito do recurso com os factos provados da decisão recorrida).

(…) Com efeito, consta dos factos provados o seguinte: “3- Por decisão proferida em 26-09-2017 (referência .......27) (…). Assim, apenas se exarando nos factos provados que em anterior decisão foram dados como provados determinados factos, não pode a impugnação deixar de improceder dado o Tribunal a quo não ter decidido a matéria em causa, limitando-se a exarar vicissitudes processuais reveladas pela análise dos autos e o que do seu teor resulta. Acresce, ainda, que, do mesmo modo, a apelante se apresentou a impugnar o que consta de informação (cfr. parte final da conclusão 2ª) e de relatório (v. conclusão 3ª) apresentados nos autos e não factos dados como provados pelo Tribunal a quo. Na verdade, com relação a esta matéria, os factos que o Tribunal a quo condensou no compósito dos factos provados foram as apresentações efetuadas nos autos de tais elementos – a informação prestada (cfr. f. p. nº54) e o relatório apresentado (cfr. f.p. nº175) -, juntos ao processo, bem tendo o Tribunal a quo exarado tais vicissitudes processuais e citado o que delas consta. Com isso, não está o Tribunal a quo a decidir se provado se mostra ou não, se verdade é ou não o que mencionado vem na informação e no relatório quanto às afirmações em causa que tenham sido efetuadas pela progenitora da apelante e ao envio de fotografias, mas tão só o que dos referidos documentos foi feito constar – a apresentação desses elementos. Destarte, tendo já sido julgadas improcedentes, no demais, as impugnações da decisão da matéria de facto, da menor e da progenitora, como decido no anterior Acórdão, a reafirmar, também, quanto a impugnação de factos provados tem a impugnação da progenitora de improceder. Neste conspecto, improcede, na totalidade, a impugnação da decisão de facto efetuada pela progenitora, assim se mantendo da decisão de facto.»

10. A recorrente AA interpôs recurso de revista, mantendo o pedido de revogação do acórdão da Relação nos termos da posição assumida anteriormente. No tocante ao segmento da impugnação da matéria de facto em apreciação, alegou em síntese que: (..)- A Recusa na Reapreciação da Prova.

A Decisão do STJ, com efeito anulatório, não só prescreveu uma efectiva reapreciação da prova como daí se tirassem consequências. Essa Decisão é cristalina e muito mal se percebe que a instância " a quo " tenha reincidido na recusa que já havia feito de reapreciar a prova de acordo com os elementos apontados não só nas transcrições feitas pela aqui recorrente como também nas transcrições da menor que impugnou o julgamento de facto. O que o acórdão em revista fez, ignorar a fundamentação do que está gravado, tirando assim à recorrente o direito a repor a verdade processual nos autos quanto à prova gravada, é duma frieza fornal ainda pior estando em julgamento tirar uma filha a uma mãe para a adopção. (…) Pelo que se percebe, o acórdão altera o fundamento para não conhecer da matéria de facto provada impugnada, Em vez de rejeitar por falta de requisitos na impugnação, agora muda de figura, afinal não são factos provados, apenas vicissitudes processuais. Em que ficamos, são factos provados ou não provados? Essa coisa de vicissitudes processuais na matéria de facto não existe em Direito Processual Civil, ou são factos provados ou não são factos provados.

Não há nenhum caso julgado na decisão de facto dum debate, muitos anos antes, em que o aqui patrono da progenitora não foi interveniente nem do mesmo lhe foi dado conhecimento em momento nenhum. Estamos, na actualidade, perante um caso de encaminhamento para a adopção em que todos os factos podem ser postos em causa, não constituindo a outrora sentença caso julgado, porque se o fosse, não poderíamos estar agora com outra sentença. Os documentos nos autos, relatórios e informações sociais, são meios de prova sujeitos ao contraditório em audiência, não sendo meras vicissitudes processuais que o tribunal possa transcrever na matéria provada sem direito à impugnação dos progenitores. Havendo depoimentos contraditórios com tais relatórios e informações sociais, caberia ao acórdão em revista ter a sua audição para obedecer à injunção do art 662 do CPC. Ao chamar os factos, em relatórios e informações sociais, dados como provados de meras vicissitudes processuais que a P Instância não decidiu se se mostram ou não provados, o acórdão em revista denega o direito dos progenitores ao contraditório, sendo que, se esta tese vingar, nenhum progenitor poderá impugnar relatórios e informações sociais que lhe retirem algum filho para a adopção.Com este invólucro, o acórdão em revista continua a não dar o direito ao contraditório em matéria de facto, não ouvindo depoimentos em contrário, não atendendo aos transcritos e não exigindo meios de prova justos para retirar, definitivamente, uma filha a uma mãe para adopção. Em nenhum processo, uma decisão de facto constitui caso julgado para outro julgamento, muito menos em jurisdição de menores e muitíssimo menos em matéria posterior de encaminhamento para adopção. A transfiguração de factos provados em meras vicissitudes processuais só serve o propósito de suprimir o direito ao contraditório (…) E, concluiu:

A decisão de facto, muitos anos antes, num julgamento que determinou a institucionalização da menor não constitui caso julgado para a decisão de facto posterior num julgamento em que está em causa o encaminhamento para a adopção em que só neste a assistência jurídica por advogado é obrigatória. Nenhuma decisão de facto tem força de caso julgado nem a sentença anterior tem força de caso julgado, porque se tivesse não poderia ser realizado novo julgamento para proferir uma nova sentença no mesmo processo.

Após a anulação do acórdão anterior por falta de conhecimento das impugnações à matéria de facto provada, não pode o novo acórdão vir dizer que " Com efeito, apesar do que consta do corpo das alegações da progenitora com relação aos ditos "factos impugnados”. certo é que nenhuns concretos e específicos factos dados como provados na sentença foram, real e efetivamente, impugnados. Competia-lhe modificar a decisão de facto, depois de ouvir as provas gravadas, como lhe havia sido ordenado superiormente, não fez uma coisa nem a outra, prejudicando gravemente a aqui recorrente que está a lutar por não perder a sua filha.

É inconstitucional o artº 104º da LPCJP, com a interpretação de que os progenitores não podem impugnar a matéria provada do conteúdo dos relatórios e informações sociais, por serem meras vicissitudes processuais e pelo seu conteúdo não ser objecto duma decisão de facto judicial, por violar o artº 20 da Constituição da República Portuguesa.

4ª A impugnação que a progenitora fez aos factos dos relatórios e informações sociais levados à matéria de facto provada não poderia ser improcedida com o argumento e passamos a citá-lo (..)

Um tribunal " a quo ", que não conheceu da impugnação da matéria de facto provada com o fundamento de a impugnação estar mal feita, não pode, depois da anulação superior desse acórdão pelo tribunal " ad quem " que lhe ordena esse conhecimento, proferir outro com a desculpa de que a matéria de facto impugnada são meras vicissitudes processuais insuscetíveis de impugnação, recusando-se assim ao conhecimento da verdade ou mentira dessa matéria de facto impugnada, em claro prejuízo da recorrente que indicou meios de prova gravados ou registados nos autos que desmentem tal matéria de facto dada como provada e que o tribunal " a quo " se recusou a ouvir mais uma vez, apesar de decisão superior em sentido contrário. Se o primeiro acórdão decidiu que não conhecia por a impugnação estar mal feita, tal argumentação só seria compatível com a impugnabilidade de tais factos que, no segundo acórdão, vem contradizer já não serem impugnáveis por se tratar de meras vicissitudes processuais. Perante isto o tribunal " a quo " negou todos os direitos. (…)”.

11. Proferido despacho de admissão do recurso naquela instância, remeteram-se os autos ao STJ.


*


Conhecendo.

Em traços largos, como se viu, no acórdão inicial, o Tribunal da Relação rejeitou a impugnação da recorrente AA, em particular, no tocante aos pontos indicados como factos provados, com o fundamento no incumprimento dos ónus processuais estabelecidos no artigo 640º do CPC.

Apreciando a revista, este Supremo Tribunal não acompanhou semelhante ajuizamento em face do teor das alegações e conclusões da recorrente, em alinhamento com a interpretação prevalecente daquele preceito, recentemente plasmada no AUJ nº 12/2023, de 14 de novembro.

No acórdão ora proferido pelo Tribunal da Relação, subsistiu a decisão de rejeição, considerando-se desta feita que, o objecto da matéria de impugnação indicado pela recorrente, não corresponde a factos provados da decisão recorrida (acórdão do primeiro grau de 16.03. 2023.cfr.6.), outrossim, de anterior decisão nos autos, sendo naquela mera referência; acresce que, reportam meras ocorrências processuais e conteúdo de relatórios.

Primo, não deixa de causar perplexidade este fundamento da rejeição, uma vez que o acórdão proferido por aquela instância em junho de 2023, epigrafou, justamente, o apartado da fundamentação de facto com o seguinte título “II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 1. FACTOS PROVADOS - São os seguintes os factos que foram considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância, com relevância, para a decisão (transcrição) (..)”.

Ou seja, o Tribunal da Relação considerou provados os enunciados “factos” pelo tribunal a quo e impugnados pela recorrente, revertendo agora o seu teor, decisão que se mostra incompatível com aquela outra, que nesse segmento transitou em julgado.

Estaríamos, nessa linha de argumentário, perante uma decisão contraditória com a anterior e cujo conteúdo, além do mais, não podiam as partes contar, afrontando o disposto no artigo 3º, nº3, do CPC, e nessa perspetiva, contender com o acesso à Justiça e à tutela efetiva, consagrada como direito fundamental no artigo 20º da Constituição da República.

Secundo, e não menos crucial, não nos alheando das especificidades dos processos de jurisdição voluntária, como os autos, continuam a reger os princípios legais da prova e da elaboração da sentença.1

Sendo de evitar a técnica de enunciação dos factos provados por referência ao conteúdo de relatórios, pareceres e relatos de técnicos, ou de declarações dos progenitores ou dos diversos intervenientes no percurso de vida da criança, não se divisa exagero da sua utilização na decisão recorrida, que apresenta uma clara alusão aos factos provados e não provados (sequenciação lógica e temporal), suportada na sua convicção.

Os factos provados podem incluir, até por mera remissão, os anteriormente apurados como provados no anterior debate judicial- acórdão do tribunal proferido em 2017.

Não autoriza, pois, a segunda instância a descaracterizar a natureza de “factualidade -provada” - conferida pela decisão a quo, para em passo antecipatório, escusar-se ao conhecimento da impugnação apresentada pela recorrente, com observância do disposto no artigo 640º do CPC.

De resto, a rejeição da impugnação com tal fundamento, em razão da técnica de enunciação dos factos provados e não provados pelo tribunal a quo, qualificação transposta ipso verbis para o acórdão da Relação, seria no caso uma solução desproporcionada e formalmente excessiva para a parte, alheia à circunstância.

Decisão

Pelo exposto, anula-se o acórdão recorrido, determinando a baixa dos autos ao Tribunal da Relação do Porto a fim de dar cumprimento ao anteriormente determinado por este Supremo, i.e.:

a. Apreciar a impugnação da matéria de facto provada formulada pela recorrente AA pontos 6, 8, 15, 27, 28, último parágrafo da página 10 dos factos provados e 2.º parágrafo da página 27 dos Factos Provados constantes da decisão recorrida;

b. Decidir de mérito em conformidade.

Custas a atender a final.

Lisboa, 14.03.2024

Isabel Salgado (relatora)

Emídio dos Santos

Maria da Graça Trigo

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1. Cfr. Artigo 607º, nº4, do CPC e x vi” do art. 33º, nº 1 e, artigo 108º do RGPTC.