Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ROSA TCHING | ||
Descritores: | PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DOCUMENTO PARTICULAR CONFISSÃO FORÇA PROBATÓRIA PLENA DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL CONTRADIÇÃO INSANÁVEL BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO OPOSIÇÃO DE JULGADOS | ||
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Data do Acordão: | 03/31/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I. Inscrevendo-se a atividade de valoração das declarações de parte e dos depoimentos das testemunhas, no âmbito da livre apreciação da prova pelo Tribunal da Relação, arredada fica a possibilidade de formulação, por parte do Supremo Tribunal de Justiça, de quaisquer juízos de valor acerca da livre convicção formada pelo Tribunal da Relação. II. A força probatória da declaração confessória inserida em documento particular, cuja veracidade esteja reconhecida, é a fixada pelo artigo 358º, nº 2, do Código Civil, ou seja, considera-se provada nos termos aplicáveis ao documento de que consta ( força probatória formal) e, tendo sido feita à parte contrária, reveste-se de força probatória plena contra o confitente ( força probatória material). III. De acordo com o disposto no art. 359º, do Código Civil, o confitente não pode impugnar a confissão produzida alegando e provando, simplesmente, que o facto confessado não é verdadeiro, pelo que, para destruir a força probatória da confissão, terá que alegar e provar o erro ou outro vício de que tenha sido vítima.
IV. A contradição entre factos dados como provados capaz de inviabilizar a decisão jurídica do pleito e, por isso, relevante para efeitos do disposto no artigo 682º, nº 3 do Código de Processo Civil, é aquela que traduz a existência entre eles de uma relação de exclusão, no sentido de estarmos perante factos inconciliáveis. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2ª SECÇÃO CÍVEL *** I. Relatório
1. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que AA e BB instauraram contra CC, DD e outros, com base no documento particular intitulado declaração de dívida e no qual estes assumem ser devedores, pessoal e solidariamente com a sociedade José Rodrigues e Filhos, Lda, da quantia da quantia de € 762.800 decorrente de dívida resultante do incumprimento do designado Protocolo de Reembolso de Suprimentos, vieram os executados CC e DD, deduzir os presentes embargos. Alegaram, para tanto e em síntese, que o exequente é acionista da executada José Rodrigues e Filhos, S.A e que a dívida em causa refere-se a suprimentos/empréstimos que o mesmo fez a esta sociedade, não podendo, por isso, pedir à referida sociedade, nos termos e circunstâncias em que o fez, o pagamento de tais suprimentos e muito menos pode exigir aos embargantes o seu pagamento. Mais alegaram que a declaração de dívida foi redigida a pedido insistente do exequente e que jamais quiseram vincular-se pessoalmente ao pagamento de tais suprimentos, tendo assinado aquela declaração de dívida a pedido do seu falecido pai e sogro, EE, e porque o exequente garantiu ser apenas uma “pró-forma”. 2. Contestaram os exequentes, alegando, em suma, que a declaração de dívida que serve de fundamento à presente execução foi livremente assinada pelos executados ora embargantes, correspondendo à sua vontade expressa naquele documento, e teve por fonte da respetiva obrigação um contrato de mútuo que celebraram com o EE, a executada FF e os embargantes CC e DD, por forma a possibilitar que o executado CC e a sociedade co-executada realizassem o empreendimento que se propunham construir. Por razões contabilísticas e para melhor justificar o empréstimo assim contratado nas contas da sociedade co-executada, celebraram com esta o designado “contrato promessa de compra e venda de ações” e o denominado “ protocolo para reembolso de suprimentos”, e, já na qualidade de “acionistas”, celebraram uma escritura para aumento de capital social da empresa. Celebraram todos estes negócios apenas porque foi-lhes dito pelo seu advogado e pelo CC que esta era a melhor forma de formalizar o empréstimo realizado, em beneficio da sociedade co-executada, sendo que nunca quiseram ser sócios desta sociedade. 3. A final, foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes. 4. Inconformados com esta decisão, dela apelaram os embargantes para o Tribunal da Relação ... que, por acórdão proferido, em 20.04.2021, julgou procedente a apelação e, revogando a sentença apelada, declarou extinta a execução. 5. Inconformados com este acórdão, os exequentes/ embargados dele interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que por acórdão proferido em 8 de setembro de 2021, julgou parcialmente procedente a revista e, consequentemente, decidiu: «A- eliminar as respostas afirmativas dadas pelo Tribunal da Relação à factualidade constante das alíneas d), e), f) e g) dos factos dados como não provados e supra descrita nos nºs 19, 20, 21 e 22, mantendo-se as respostas negativas dadas pelo Tribunal de 1ª instância a esta mesma factualidade; B- mandar baixar os autos ao Tribunal da Relação para decidir da impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelos embargados no que respeita aos factos dados como provados pelo Tribunal da 1ª Instância no nº 18 e aos factos constantes das alíneas a) e c) dos factos não provados, e, na decorrência disso, julgar em conformidade.». 6. Baixados os autos em 09.11.2022, o Tribunal da Relação proferiu acórdão que julgou procedente o recurso e revogando a sentença apelada, declarou extinta a execução. 7. Inconformados com esta decisão os embargados interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem: « A- Cumpre antes de mais consignar que foi com grande surpresa que os recorrentes receberam a decisão de que se recorre e que é um acórdão produzido na sequência de um douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que mandou descer os autos para nova decisão. B- Sucede que na anterior decisão, o tribunal recorrido considerou provado (nos factos 19 a 22) que os embargantes efectivamente deviam a quantia exequenda aos embargados, não por via de suprimentos, mas antes por causa de um mútuo celebrado entre aquelas partes. C - É certo que o tribunal ad quem revogou a decisão nesta parte, eliminando esses factos, mas não o fez com base numa qualquer avaliação dos meios de prova produzidos, mas antes com fundamento numa violação da lei de processo. D - Sucede que o tribunal a quo, numa inesperada reviravolta quanto à apreciação da matéria de facto, entende agora que afinal o dito mútuo foi realizado a favor da sociedade e não aos embargantes, o que é no mínimo estranho, tendo presente que o tribunal que se pronunciou sobre essa matéria e considerou provados uns e outros é o mesmo. E - Há, por isso, contradição de julgados claríssima, que se invoca para todos os devidos e legais efeitos. F - O Tribunal a quo considerou provado no ponto 18 dos factos provados que os embargantes assinaram o documento referido em 2 de forma livre e espontânea, G - E sob no facto 3B que os executados não quiseram vincular-se ao teor do documento referido em 2. H- O tribunal a quo, contudo, não detalha ou explica na sua decisão, porque é que considera que os executados não se quiseram vincular ao teor do documento, I - Afirmando que da prova produzida os dois juízes desembargadores criaram a convicção de que foi realizado um simples mútuo e não suprimentos e de que esse mútuo foi feito à sociedade e não às pessoas singulares embargantes. J - Ora, com o devido respeito, estas conclusões não são suficientes para fundamentar a ausência de vontade de os executados se vincularem ao documento e designadamente à confissão de divida. K - E sobre essa alegada vontade ou a falta dela, a decisão recorrida nada diz, não explicando de onde retira que ela não existiu. L - Esta omissão constitui uma nulidade, nos termos e para os efeitos do art. 615º, nº 1, alínea b) do CPC, que expressamente se invoca, para todos os efeitos legais, M - Uma vez que não se fundamenta a razão de ser de se considerar aquele facto provado. N - Além disso, o título executivo, em si, é composto por várias declarações e manifestações de vontade, como bem faz notar o sr Juiz Desembargador que votou vencido, O - Designadamente o segmento em que os executados declaram “Pela presente declaração os primeiros outorgantes declaram expressamente, para todos os devidos efeitos legais, que são devedores aos segundos outorgantes da quantia de € 545.000 euros (quinhentos e quarenta e cinco mil euros).” P - Mas também o segmento dessa mesma declaração onde se lê “ Os outorgantes têm pleno conhecimento do teor da presente declaração, e abaixo a assinam e rubricam em cada uma das quatro páginas por que é composta, de livre e espontânea vontade, na presença de duas testemunhas que abaixo igualmente assinam, dando como verdadeiros todos os factos nela descritos. (…)” Q - O tribunal a quo nada diz sobre porquê, como ou de onde retira ou considera – através de que meio de prova- que os executados não quiseram declarar-se devedores aos exequentes ou não quiseram reconhecer como verdeiros os factos descritos na declaração ou não quiseram declarar ter tido conhecimento do teor da declaração. R - Mais, o tribunal não diz e mesmo que dissesse não se pode compreender como qualquer prova testemunhal pode inverter ou infirmar o sentido de uma declaração que é tão cristalinamente evidente, manifesta, objectiva, concreta e definida. S - E assim, ao considerar provado este facto 3B, o tribunal a quo violou o art. 236º do Código Civil, que determina que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. T - Na verdade, o conteúdo da declaração é bastante claro e inequívoco, quer no que tange ao reconhecimento pessoal da divida pelos executados, quer no que tange à afirmação de que compreendem o conteúdo dessa declaração e têm conhecimento do seu teor. U - E o tribunal a quo não logrou explicar como chegou à conclusão de que os executados não se quiseram vincular ao conteúdo, V - No que constitui conclusão que tem implícito o afastamento, ou antes, a violação do art. 236º do Código Civil. W - Constitui matéria de facto saber qual foi o sentido efetivamente pretendido pelo declarante (a sua vontade real) e o eventual conhecimento da mesma pelo declaratário. X - Mas a interpretação em si é uma operação jurídico-valorativa («supra», I) e, desse modo, uma «questão de direito». Sobre o assunto e também conexa questão dos poderes de revista do STJ, cf. a Introdução, notas V, IX e X, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, 1987:224, VAZ SERRA, RLJ, 104º, p. 112s, e a anotação ao art. 238º. Y - Ora, seguindo os doutos ensinamentos do Prof Evaristo Mendes, e para proceder à correcta aplicação do art. 236º do CC, o tribunal a quo devia desde logo ter concluído pela clareza do conteúdo do documento, Z - E logo de ser -para o declarante ou para qualquer outro colocado na sua posição-muito claro que estava, ao assinar aquele documento, a assumir pessoalmente uma divida, mas também a declarar que tinha conhecimento do teor desta declaração e que os respectivos factos são verdadeiros. AA - Por outro lado, quanto ao contexto negocial, deixaram os exequentes muito claro que emprestaram o dinheiro aos executados e não à empresa BB - Sendo certo que quando lhes foi pedido para assinar a declaração de divida, como disseram os exequentes que descreveram a negociação feita até à decisão de elaboração e assinatura do documento dado à execução, foi o executado o interlocutor, circunstância que não permite ao mesmo defender a ignorância quanto ao acordado e vertido no documento, que lhe foi entregue dias antes da respectiva assinatura CC - Ora, de tudo o supra citado resulta que os executados trabalhavam numa empresa de construção civil, assinavam declarações de divida várias vezes, conheciam o funcionamento da Banca, dos empréstimos e das garantias, bem como a forma de serem as garantias pessoais activadas. DD - O texto da declaração é claro e objectivo EE - Pergunta-se, então, como pode o tribunal a quo ter considerado provado que os executados não quiseram vincular-se ao conteúdo do titulo executivo? FF - Uma correcta aplicação do art 236º do CC obriga a conclusão oposta, necessária e obrigatoriamente. GG - Ou seja, o facto 3B jamais devia ter sido considerado provado. HH - Ora, no titulo executivo, designado declaração de divida, os embargantes, que assinaram esse documento, declaram-se devedores aos embargados nos seguintes termos:” Pela presente declaração os primeiros outorgantes declaram expressamente, para todos os devidos efeitos legais, que são devedores aos segundos outorgantes da quantia de € 545.000 euros (quinhentos e quarenta e cinco mil euros) “ II - Trata-se, assim e desde logo, de uma confissão de divida, nos termos e para os efeitos do art. 458º do CC. JJ - De acordo com este artigo se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário. KK - Ora, no caso concreto, não só os credores, gozavam desta presunção, como ao contrário do que é dito no Acórdão, não foi feita prova em contrário da inexistência de relação fundamental, pelo que em rigor estava o credor dispensado de a provar. LL - Na verdade, a melhor interpretação do art 458º, nº 2 do CC aponta para o entendimento de que esta presunção só se ilide mediante a prova de que nenhuma relação negocial existe na base da declaração de reconhecimento emitida. MM - Mas, no caso concreto, quando muito e na tese do Acórdão recorrido, provou-se que a relação fundamental era outra e não que ela não existia de todo. NN - Tal seria, portanto, suficiente, para se considerar que o titulo executivo era válido, sendo desnecessária a prova da relação fundamental, que estava legalmente presumida. OO - Mas se ainda assim não se entender, sempre se dirá que se tem admitido, todavia, que possam valer como títulos executivos documentos que reconheçam a obrigação exequenda, embora de forma não expressa ou categórica, e que, por isso, careçam de ser conjugados com elementos fácticos complementares, ainda que estranhos ao próprio título. PP - Elementos esses que seriam adquiridos processualmente, mediante a respectiva alegação feita pelo exequente no requerimento executivo, e posterior prova a seu cargo. “ QQ - Esta perspectiva acerca da delimitação do elenco dos títulos executivos extrajudiciais mereceu expressa consagração na reforma da acção executiva operada pelo DL nº38/2003, de 8/3. RR - Assim, nos termos do art. 810º, nº 3, al. b), do C.P.C., na redacção que lhe foi dada por aquele DL, o requerimento executivo deve conter, além do mais, uma exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo (cfr. o art. 810º, nº 1, al. e), na redacção do DL nº226/2008, de 20/11, e o actual art. 724º, nº 1, al. e)). SS - Dir-se-á que os requisitos necessários exigidos pela lei para que o título tenha força executiva, se destinam a estabelecer a garantia ou a dar a segurança de que onde está um título executivo está, ao mesmo tempo, um direito de crédito. TT - Ora, isto lograram os exequentes alegar e provar, mesmo na tese do Acórdão Recorrido, e concretamente conseguiram alegar e provar que existia uma causa para a divida confessada, qual seja, a existência de um mútuo entre os exequentes e os executados. UU - Na verdade, como acima se deixa claro, o que o legislador pretendeu e essa será a melhor interpretação do art 46, alínea c) do CPC, foi que o conceito de título executivo oferecesse garantias de segurança e certeza jurídicas tais que não permitisse conferir exequibilidade a circunstâncias que deixassem duvidas sobre a existência efectiva de uma obrigação incumprida. VV - No caso concreto, essa garantia é efectiva, comprovada nos autos e considerada como tal por ambos os tribunais que a julgaram-ainda que com diferentes fundamentos-, WW - Pelo que não há dúvida nenhuma que o título executivo é válido. XX - Aliás, isso mesmo, considerou a ... Secção do Tribunal da Relação ..., que em acórdão proferido em 21 de Março de 2021, e JÀ TRANSITADO EM JULGADO, relativo às mesmíssimas circunstâncias, factos e titulo executivo com o mesmíssimo conteúdo, apenas com credores distintos (naquele caso o irmão do ora exequente a e mulher) YY - Confirmou a sentença da primeira instância, declarando improcedentes os embargos deduzidos e mandando prosseguir a execução, considerando o titulo executivo válido. – vide doc nº1 que se junta e dá por reproduzido para todos os efeitos legais». Termos em que requerem seja declarado nulo o acórdão recorrido, ou se assim não se entender, que o mesmo seja revogado e, em sua substituição, seja determinada a validade do titulo executivo e o prosseguimento dos autos de execução.
8. Os embargantes não responderam.
9. Após os vistos, cumpre apreciar e decidir. *** II. Delimitação do objeto do recurso Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação dos recorrentes, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1]. Assim, a esta luz, as questões a decidir consistem em saber se: 1ª- existe contradição de julgados; 2ª- o acórdão recorrido padece de nulidade, por falta de fundamentação; 3ª- ocorreu erro de apreciação da prova; 4ª- a declaração de dívida constitui título executivo. *** III. Fundamentação 3.1. Fundamentação de facto Após apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, os Factos dados como Provados são os seguintes: 1 - No dia 30.03.2017, AA e BB requereram a execução, além dos demais, de DD e CC, com vista ao pagamento da quantia de € 762.800,00 (setecentos e sessenta e dois mil e oitocentos euros), o que constitui os autos principais; 2 - No processo referido em 1, os exequentes, ora embargados apresentaram, como título executivo, um documento intitulado “Declaração de Dívida”, datado de 13 de Dezembro de 2010, onde constam como primeiros outorgantes EE, FF, CC e DD e como segundos outorgantes BB e AA, com o seguinte teor: “ (…) 1. Pela presente declaração os primeiros outorgantes declaram expressamente, para todos os devidos efeitos legais, que são devedores aos segundos outorgantes da quantia de € 545.000 euros (quinhentos e quarenta e cinco mil euros). 2. Tal dívida resulta do incumprimento do designado “Protocolo para Reembolso de Suprimentos”, celebrado pelos primeiros e segundos outorgantes em 19 de Novembro de 1999, onde se estabelece que até Dezembro de 2003 seria entregue aos segundos outorgantes a quantia de 475 mil euros que fora por estes emprestada à sociedade “José Rodrigues e Filhos, S.A” de que os primeiros outorgantes são únicos responsáveis e administradores, bem como dos juros acordados e entretanto não pagos, no montante de 70 mil euros. 3. Tal dívida é assumida pessoalmente pelos primeiros outorgantes e solidariamente com a sociedade “José Rodrigues e Filhos, Lda.” porque estes reconhecem expressamente que a quantia emprestada foi utilizada para o exercício do comércio por estes em benefício da economia comum dos respectivos casais. 4. 1- Os primeiros outorgantes obrigam-se e comprometem-se a pagar aos segundos outorgantes a importância de € 475 mil euros (quatrocentos e setenta e cinco mil euros) até ao dia 31 de Dezembro de 2010, vencendo-se a partir dessa data juros sobre a quantia devida, juros estes no montante de 30 (Trinta) mil euros ao ano. 2- Caso não seja cumprido o prazo de pagamento estabelecido no número anterior, os juros que se vencerem a partir de 31 de Dezembro de 2010 relativos à quantia em dívida identificada no número um da presente cláusula serão pagos pelos primeiros outorgantes aos segundos em prestações mensais de 2500 euros (dois mil e quinhentos euros). 3- Quanto aos juros vencidos e devidos até agora no montante de 70 mil euros, serão pagos pelos primeiros aos segundos outorgantes em duas prestações iguais de 35 mil euros, nos meses de Junho de 2011 e Dezembro de 2011. 4 - O não cumprimento de qualquer dos pagamentos estabelecidos no número dois determina o vencimento integral da quantia que se mantiver em dívida e o pagamento de juros convencional de 6% ao ano sobre tal quantia. 5. Ficarão a cargo dos primeiros outorgantes devedores, todas as despesas judiciais que os segundos outorgantes façam para manter, garantir e haver este crédito. 6. Os outorgantes têm pleno conhecimento do teor da presente declaração, e abaixo a assinam e rubricam em cada uma das quatro páginas por que é composta, de livre e espontânea vontade, na presença de duas testemunhas que abaixo igualmente assinam, dando como verdadeiros todos os factos nela descritos. (…)” ; 3 - Os embargantes assinaram o documento referido em 2; 3-A – O documento referido em 2. e 3. não corresponde à realidade, uma vez que apenas foram feitos empréstimos à sociedade e não aos executados para o exercício do comércio pelos mesmos, por si e enquanto casal [aditado pelo Tribunal da Relação que deu como parcialmente provada a factualidade constante da alínea a) dos factos dados como não provados pelo Tribunal de 1ª Instância]; 3-B - Os executados não quiseram vincular-se ao teor do documento referido em 2. e 3. [aditado pelo Tribunal da Relação que deu como parcialmente provada a factualidade constante da alínea c) dos factos dados como não provados pelo Tribunal de 1ª Instância]; 4- Os exequentes alegaram em sede de requerimento executivo: «(…)1- Exequentes e executados celebraram em 13 de Dezembro de 2010 acordo que se junta como doc nº 1 e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, 2 - ao abrigo do qual os executados se reconheceram devedores para com os exequentes da quantia de 545.000,00€ (quinhentos e quarenta e cinco mil euros)-vide clausula primeira do doc nº 1. 3 - Mais se obrigaram os executados a pagar aos exequentes a importância de € 475 mil euros (quatrocentos e setenta e cinco mil euros) até dia 31 de Dezembro de 2010, vencendo-se a partir dessa data juros sobre a quantia devida de 30 mil euros ao ano. 4 - Ainda acordaram que, caso não fosse cumprido o prazo de pagamento estabelecido no numero anterior, os juros que se vencessem a partir de 31 de Dezembro de 2010 relativos à quantia em divida identificada no numero um da presente clausula seriam pagos pelos executados aos exequentes em prestações mensais de 2500 euros (dois mil e quinhentos euros). 5 - Mais estabeleceram que os juros vencidos e devidos até àquele momento, no montante de 70 mil euros, seriam pagos pelos executados aos exequentes em duas prestações iguais de 35 mil euros, nos meses de Junho de 2011 e Dezembro de 2011. 6 - Por ultimo, acordaram as partes que o não cumprimento de qualquer dos pagamentos estabelecidos no numero quatro do presente articulado, determinaria o vencimento integral da quantia que se mantivesse em divida e o pagamento de juro convencional de 6% ao ano sobre tal quantia. 7 - EE, FF, CC e DD assinaram o titulo executivo, por si e na qualidade de accionistas e administradores da também executada, José Rodrigues e Filhos, S.A. 8 - Entretanto, EE faleceu no dia 30 de Dezembro de 2012, conforme certidão de óbito que se junta como doc nº 2 e dá por reproduzido para todos os efeitos legais; 9 - tendo deixado como herdeiros FF, DD, GG e em representação do filho anteriormente falecido HH, II e JJ 10 - Sucede que, até hoje, nenhum dos executados liquidou a divida que tem para com os exequentes. 11 - Apesar de variadíssimas insistências pelo cumprimento das obrigações que haviam assumido, sendo que os ora exequentes chegaram mesmo a enviar uma carta de interpelação aos executados - que se junta como doc nº 3 e se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.- concedendo-lhes prazo peremptório de oito dias para o pagamento integral da divida; 12 - que uma vez mais os executados não cumpriram, não tendo até ao momento pago qualquer quantia do montante em divida. 13 - Assim, devem os executados aos exequentes as seguintes quantias: a) 475.000,00€ até 31 de Dezembro de 2010; b) 180 mil euros, a titulo de juros pelo incumprimento do pagamento da quantia referida na alínea a); c) 70 mil euros de juros já vencidos até 31 de Dezembro de 2010; 14 - A este montante acrescem, ainda, juros de mora vincendos, desde a propositura do presente requerimento executivo até efectivo e integral pagamento. 15 - À presente execução serve de base o documento particular que importa o reconhecimento de uma obrigação, e que constitui titulo executivo nos termos do art. 46º, nº 1, alínea c) do CPC, na sua versão do DL 329-A/95 e em obediência ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 408/2015 de 14/10 onde se "Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo a Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior a sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho." 16. A dívida é certa, líquida e exigível. 17. Sendo que os executados devem aos exequentes a quantia total de 762.800,00 euros (setecentos e sessenta e dois mil e oitocentos euros). (…)”; 5 - Por escritura pública celebrada em 19 de Novembro de 1999, no ... Cartório Notarial de ..., foi aumentado o Capital Social da empresa J..., Lda., para cinquenta e cinco milhões de escudos, sendo a importância do aumento de cinco milhões de escudos subscrita em partes iguais pelo ora Exequente e por KK, através da emissão de cinco mil acções ao portador de mil escudos cada. 6 - Em 19 de Novembro de 1999, HH, CC, DD, EE e FF, na qualidade de primeiros outorgantes, e KK e BB, na qualidade de segundos outorgantes, firmaram documento intitulado “Protocolo para reembolso de suprimentos”, com o seguinte teor: “ (…)1º Primeiros e segundos outorgantes são os actuais e únicos accionistas da sociedade comercial denominada “José Rodrigues e Filhos, S.A, (…) 3º Os segundos outorgantes, por escritura pública celebrada na presente data no ... Cartório Notarial de ..., subscreveram em partes iguais o aumento de capital da referida sociedade comercial no montante de cinco milhões de escudos, distribuídos por cinco mil acções ao portador no valor individual de mil escudos. 4ºTambém na presente data, na qualidade de accionistas (…) e a título de suprimentos, os segundos outorgantes emprestam à sociedade a quantia de cento e noventa e cinco milhões de escudos. 5º Os primeiros outorgantes, enquanto accionistas e únicos titulares dos actuais órgãos da identificada sociedade aceitam para esta o referido suprimento, obrigando-se a reembolsá-lo a partir de 31 de Dezembro de 2000 e até 31 de Dezembro de 2002, Por acordo entre primeiros e segundos outorgantes o prazo atrás estipulado poderá prorrogar-se até 30 de Junho de 2003. 6º O reembolso acima referido, a efectuar na residência de cada um dos segundos outorgantes, ou por outra forma que ambos encontrem mais conveniente, será subordinado aos seguintes requisitos: a) Prefere a qualquer outro reembolso, de outros eventuais suprimentos. b) O capital emprestado vence juros a uma taxa anal, nominal, de 5%, a pagar aos segundos nos dias 31 de Dezembro de 2000, 2001, 2002 e 2003. c) Nas operações de loteamento a levar a cabo na vila e concelho ... (as únicas que actualmente a identificada sociedade tem em curso nesta localidade), os segundos outorgantes receberão uma percentagem de vinte por cento, no total dos lucros realizados com a venda pela sociedade dos lotes para construção urbana, de que esta é ali proprietária. (…)”; 7 - Em 19 de Novembro de 1999, KK, LL, BB e AA, na qualidade de primeiros outorgantes, e HH, CC, DD, EE e FF, na qualidade de segundos outorgantes, firmaram documento intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, com o seguinte teor: “(…) 1º Os primeiros outorgantes maridos são donos e legítimos possuidores, em partes iguais, de cinco mil acções ao portador no valor individual de mil escudos, que fazem parte do capital social da sociedade comercial denominada “José Rodrigues e Filhos, S.A”(…). 3º Pelo presente contrato, os primeiros outorgantes maridos prometem vender aos segundos, na proporção que neste momento todos os segundos outorgantes detêm na identificada sociedade, as mencionadas cinco mil acções ao portador. Os segundos outorgantes, por sua vez, prometem comprar aos primeiros, na mesma proporção que estes determinarem, as mesmas cinco mil acções. (…)”; 8 - O irmão do ora embargante, KK, é amigo de CC há mais de 50 anos; 9 - Este trabalhava na empresa co-executada nos presentes autos; 10 - Sendo que todos eles viviam exclusivamente dos proveitos obtidos com a actividade dessa empresa; 11 - Após algum período de afastamento, os dois reencontraram-se em 1995, tendo-se reaproximado e passado a conviver diariamente, com as respectivas famílias; 12 - Solidificando uma forte amizade, baseada na confiança e cumplicidade mútuas; 13- Em Outubro de 1999 os embargados venderam uns terrenos, tendo arrecadado cerca de um milhão de euros, o mesmo tendo sucedido o irmão do embargado, KK; 14 - O irmão do embargado/exequente comentou então com o amigo CC a venda que havia realizado; 15 - Na sequência de tal conversa, vieram a ser celebrados os acordos mencionados em 5, 6 e 7; 16 - O embargado é ... e o irmão ...; 17 - O exequente nunca acompanhou em pormenor a actividade da empresa co-executada; 18 - Os embargantes assinaram o documento referido em 2 de forma livre e espontânea [alterado pelo Tribunal da Relação que deu como não provada a demais factualidade dada como provada pelo Tribunal de 1ª Instância, ou seja, «garantindo aos exequentes o cumprimento do que ali acordaram, com recurso ao património da empresa ou com recurso ao seu próprio património»]. * Factos não provados: a) Os empréstimos foram feitos aos executados para o exercício do comércio pelos executados, por si e enquanto casal [ redação dada pelo Tribunal da Relação][2] b) O documento referido em 2 e 3 foi redigido por imposição do exequente ao falecido EE; c) Os executados assinaram o documento referido em 2 e 3 a pedido do falecido pai e sogro e porque o exequente garantiu ser apenas uma “pró-forma [ redação dada pelo Tribunal da Relação] [3] d) O documento referido em 2 e 3 teve como fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre EE, FF, CC e DD; e) Em razão do mencionado em 14, CC propôs ao irmão do exequente que lhe fosse emprestado dinheiro, empréstimo esse ao qual o exequente também anuiu; f) Acertados os detalhes do acordo de mútuo, os documentos referidos em 5, 6 e 7 foram apenas celebrados por razões contabilísticas, por ser a melhor forma de justificar e formalizar o empréstimo nas contas da empresa; g) Nunca o exequente quis ser sócio da empresa co-executada; h) O exequente desconhecia o ramo e negócio da empresa co-executada e os respectivos contornos. * 3.2. Fundamentação de direito Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se, essencialmente, com as questões de saber se existe contradição de julgados; o acórdão recorrido padece de nulidade por falta de fundamentação; ocorreu erro de apreciação da prova e se a declaração de dívida constitui título executivo. 3.2.1. Contradição de julgados Sustentam os embargados/recorrentes que existe contradição de julgados, porquanto o Tribunal da Relação, no acórdão proferido em 20.04.2021, considerou provado (nos factos 19 a 22) que os embargantes deviam a quantia exequenda aos embargados, não por via de suprimentos, mas antes por causa de um mútuo celebrado entre eles, e, no acórdão ora recorrido, considera provado que o mútuo foi realizado apenas a favor da sociedade e não aos embargantes. Mas, em nosso entender, a situação supra descrita não constitui contradição de julgados, pois o que aconteceu foi que, no acórdão proferido em 20.04.2021, o Tribunal da Relação decidiu alterar, oficiosamente, a decisão da matéria de facto quanto às alíneas d), e), f) e g) dos factos não provados, que passaram a integrar, respetivamente, os nºs 19, 20, 21 e 22 dos factos provados, fundamentando essa alteração na confissão judicial feita pelos embargados nos artigos 18º a 41º da sua contestação. Todavia, em sede de recurso de revista interposto pelos embargados, no acórdão proferido em 8 de setembro de 2021, considerou este Supremo Tribunal que, contrariamente ao defendido naquele acórdão da Relação, a factualidade alegada nos referidos artigos não consubstanciava qualquer reconhecimento, por parte dos exequentes/embargados, de factos que lhes eram desfavoráveis e favoráveis aos executados/embargantes, configurando, antes, impugnação motivada dos factos alegados pelos embargantes. Mais considerou que a Relação não podia proceder, oficiosamente, à alteração das respostas negativas dadas pelo Tribunal de 1.ª instância à factualidade vertida nas alíneas d), e), f) e g) dos factos dados como não provados e responder afirmativamente a esta mesma factualidade, pelo que decidiu eliminar as respostas afirmativas dadas no acórdão recorrido à sobredita factualidade, descrita nos nºs 19, 20, 21 e 22, mantendo as respostas negativas dada pelo Tribunal de 1ª instância à factualidade constante das alíneas d), e), f) e g) dos factos dados como não provados. E porque o Tribunal da Relação não conheceu da impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelos embargados no que respeita aos factos dados como provados pelo Tribunal da 1ª Instância no nº 18 e aos factos constantes das alíneas a) e c) dos factos não provados, por ter considerado, face à matéria dada como provada nos nºs 19, 20, 21 e 22, que a apreciação de tal impugnação tornara-se inútil, por ficar prejudicada pela solução de direito dada ao presente litígio, e porque essa falta de pronúncia inviabilizava a decisão jurídica da causa por parte deste Supremo Tribunal, determinou-se, de harmonia com o disposto no art. 682º, nº 3 do CPC, a baixa do processo ao Tribunal recorrido para aí ser decidida a impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelos embargados no que respeita aos factos dados como provados pelo Tribunal da 1ª Instância no nº 18 e aos factos constantes das alíneas a) e c) dos factos não provados, e, na decorrência disso, julgar em conformidade. Ora, tendo o Tribunal da Relação dado como provados, sob os nºs 19, 20, 21 e 22, os factos que o Tribunal de 1ª Instância havia dado como não provados nas alíneas d), e), f) e g) com base única e exclusivamente na confissão judicial feita pelos embargados nos artigos 18º a 41º da sua contestação (que este Supremo Tribunal de Justiça considerou inexistir), evidente se torna que isso em nada contende com a convicção formada pelo Tribunal da Relação quanto à factualidade constante dos nºs 3-A, 3-B e 18 dos factos provados e das alíneas a) e c) dos factos não provados. Daí carecer de fundamento a invocada contradição de julgados, improcedendo, quanto a este segmento, o presente recurso. * 3.2.2. Nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação Sustentam os recorrentes padecer o acórdão recorrido da nulidade prevista no art. 615º, nº1, al. b), do CPC, por falta de fundamentação decisão da matéria de facto no que respeita ao ponto 3-B dos factos provados, porquanto a maioria do coletivo limitou-se a afirmar que com base na prova produzida criou a convicção de que foi realizado um simples mútuo e não suprimentos e de que esse mútuo foi feito à sociedade e não aos embargantes, sem explicar as razões por que considera que os executados não se quiseram vincular ao teor do documento. Segundo a al. b), do citado art. 615º, aplicável aos acórdãos da Relação por via da norma remissiva do n.º 1 do art.º 666.º do mesmo Código, é nula a sentença «quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão». Trata-se de um vício, que corresponde à omissão de cumprimento do dever contido no art. 205º, nº 1 da CRP que impende sobre o juiz de indicar as razões de facto e de direito que sustentam a sua decisão. E, tal como é jurisprudência pacífica[4], traduz-se na falta absoluta de motivação, quando haja total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, e não na motivação deficiente, medíocre ou errada. Assim, ocorre falta de fundamentação de direito quando não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão. E ocorre falta de fundamentação de facto, quando o juiz omite totalmente a especificação de todos os factos que julgue provados. Neste sentido, escrevem Antunes Varela e outros[5] que, “Para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considerou provados e coloca na base da decisão”. Significa isto que, ao contrário do que argumentam os recorrentes, os “fundamentos de facto” a que alude esta alínea b), consistem apenas na descrição ou enumeração dos factos provados, tal como refere o art. 607º, nº 3 do C. P. Civil, e não na indicação dos fundamentos (motivação) dos factos dados como provados. E se assim é, impõe-se, então, concluir que a falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, ou seja, a falta de fundamentação do juízo de valoração da prova que formulou sobre cada um dos pontos da matéria de facto, nunca dá azo à nulidade prevista na dita alínea b) do nº 1 do citado art.615º. Improcede, por isso, a invocada nulidade. * 3.2.3. Erro de apreciação da prova Defendem os recorrentes que a factualidade constante do ponto 3B, jamais podia ter sido dada como provada, pois uma correta aplicação do disposto no art. 236º do C. Civil conduz, obrigatoriamente, a uma conclusão oposta, ou seja, que os executados quiseram vincular-se ao conteúdo do titulo executivo.
No caso em apreço, o Tribunal de 1ª instância, na alínea c) dos factos dados como não provados na sentença, considerou não provado que «Os executados não quiseram assinar e vincular-se ao documento referido em 2 e 3, fazendo-o apenas a pedido do falecido pai e sogro e porque o exequente garantiu ser apenas uma “pró-forma”» E fê-lo com base na seguinte fundamentação: « Relativamente à factualidade vertida nos pontos 18 dos factos provados e a), b) e c), dos factos não provados, aos executados/embargantes incumbia a demonstração do alegado quanto à falta de correspondência com a realidade do documento que sustenta a pretensão executiva dos exequentes, bem como o facto de ter sido redigido por imposição do exequente ao falecido sogro e à falta de vontade de se vincularem ao mesmo, tudo nos termos do preceituado nos artigos 342.º e 376.º, n.º 1 e 2, ambos do Código Civil. Não obstante, produzida a prova, verificou-se que apenas o executado CC de pronunciou sobre tal factualidade – alegando a sua verificação – porém, de forma contraditória e desprovida de qualquer coerência e frontalmente contrariada pelas declarações do exequente, bem como das testemunhas MM e KK, sendo que todos estes se mostraram claros, objectivos e seguros nos factos que narraram, logo, indiscutivelmente credíveis aos olhos do Tribunal. Efectivamente, BB e KK, descreveram a negociação feita até à decisão de elaboração e assinatura do documento dado à execução, atribuindo ao executado o papel de interlocutor, circunstância que não permite ao mesmo defender a ignorância quanto ao acordado e vertido no documento, que lhe foi entregue dias antes da respectiva assinatura. Também a testemunha MM confirmou o ambiente descontraído e de amizade em que decorreu a assinatura do documento dado à execução, em casa dos próprios executados e no decurso de um lanche entre amigos. Já o executado alega o desconhecimento do seu teor, por não o ter lido de forma atenta e não o ter interpretado como uma assunção pessoal de dívida, ao mesmo tempo que afirma tê-lo lido em voz alta ao sogro, no dia em que foi assinado, esclarecendo ainda que várias vezes deu garantias pessoais perante instituições bancária, com consciência de tal acto. Ora, afigura-se que as afirmações de CC são elas próprias insusceptíveis de suportar o que defende, além de serem frontalmente contrariadas pelas declarações e depoimentos antes referidos, cuja coerência e credibilidade não podem ser questionadas, bem como pela clareza do teor do documento, numa redacção que não deixa margens para dúvidas quanto à assunção pessoal da dívida (“Tal dívida é assumida pessoalmente pelos primeiros outorgantes e solidariamente com a sociedade “José Rodrigues e Filhos, Lda.” porque estes reconhecem expressamente que a quantia emprestada foi utilizada para o exercício do comércio por estes em benefício da economia comum dos respectivos casais.”)». Por sua vez, o Tribunal da Relação, em sede de decisão da impugnação da matéria de facto, decidiu que o facto não provado c), passava a parcialmente provado, com a seguinte redação sob 3-B «Os executados não quiseram vincular-se ao teor do documento referido em 2. e 3», com base na seguinte fundamentação, que se transcreve: «O embargado/exequente no seu depoimento de parte e declarações de parte, disse que o CC era funcionário da sociedade José Rodrigues e Filhos S.A., e que a DD era administradora da mesma sociedade. O casal, que saiba, não tinha outra fonte de rendimento, era da empresa que eles viviam. O empréstimo que fez foi aos embargantes e sogros, não à sociedade, pois não empresta dinheiro a sociedades, e destinava-se a um loteamento na .... Eles garantiram-lhe o reembolso do empréstimo. A assinatura da declaração de dívida foi em casa dos embargantes, e não foi pró-forma nenhum. Não existiram quaisquer suprimentos, os advogados e o revisor de contas é que tiveram a ideia de titular o empréstimo através dessa forma. Recebeu juros do empréstimo da parte dos embargantes nos primeiros 2/3 anos. O que foi acordado é o que está na declaração de dívida. Nunca falou com o senhor EE acerca da declaração de dívida, apenas com os embargantes. Nunca o embargante lhe disse para não usar a declaração de dívida para nenhum efeito. O embargante levou a declaração com ele e passado uns dias disse, sim, senhora, aceitamos assinar e combinaram a assinatura em casa do embargante. Todas estas negociações e conversas foram sempre e apenas com o embargante. O embargante no seu depoimento de parte referiu que tanto os seus sogros, como ele e a sua esposa, viviam, na altura, exclusivamente da actividade da empresa. Nós tínhamos o nosso ordenado quando havia dinheiro para receber. O dinheiro do exequente e do irmão foi um empréstimo à firma, para um investimento numa obra desta na ..., e, por isso, eles entraram como accionistas para a mesma. Pagou-se ao exequente e irmão juros desse empréstimo. Assinaram aquele documento de dívida, porque partiram do princípio que era para salvaguardar que assim que começasse a haver dinheiro, que houvesse a venda de lotes, a outra parte começaria a ser ressarcida do dinheiro que investiu na empresa, que seriam os primeiros a receber. Esse documento leu, mas se calhar com pouca atenção, foi mal lido, porque não era, não poderia ser de maneira nenhuma nós a assumir a responsabilidade do pagamento, quando eu a priori não tenho. Assinou o documento a pedido do sogro, que estavam todos juntos e assinámos para dar essa garantia de que assim que houvesse dinheiro eles seriam as primeiras pessoas a ser ressarcidas. Era essa a intenção que nós tínhamos com esse documento. A primeira vez que viu o documento foi no dia que o assinou, em casa do sogro. O dinheiro não era para benefício dos casais porque o dinheiro foi todo entregue e consumido pelo loteamento. O dinheiro foi colocado na empresa para a realização da obra. Ele e a mulher jamais se quiseram vincular pessoalmente ao pagamento dos suprimentos, assinando aquela declaração de dívida a pedido do seu falecido pai e sogro e porque o exequente garantiu ser apenas um pró-forma. Nunca entendeu o documento como estar a assumir individualmente o pagamento desse montante que fora colocado na empresa, ainda por cima com a agravante de eu não o ter. Entendeu que era uma segurança para que depois, assim que fosse realizado algum tipo de capital na empresa, se começasse a liquidar. O exequente e irmão eram pessoas amigas e eles contavam pagar, que eles seriam os primeiros a ser ressarcidos. Nós inclusivamente, muito antes desse documento, já fomos fazendo entregas e pagamentos ao exequente, nunca se quis obrigar pessoalmente, porque nós iniciámos a tentativa da liquidação da dívida alguns anos antes da assinatura desse documento. A intenção sempre foi o mais rapidamente possível e da melhor maneira possível fazer o pagamento daquilo que tinha sido injectado na empresa. A perspectiva não era de que se não pagar o A, pago eu, porque primeiro eu não tenho para pagar e o dinheiro não foi para mim. Entendemos que como o empréstimo não foi para nós, foi para a empresa, a empresa iria liquidar, não teríamos nenhum problema em assinar o documento. Ainda pensaram em garantir o pagamento ao exequente e irmão através de contratos promessa de venda dos lotes, mas não era possível. A testemunha NN, arrolada pelos embargantes, antigo contabilista da empresa, declarou que o casal embargante vivia da vida da empresa, desde sempre. Tinham salário na empresa. Os administradores da empresa ganhariam próximo do salário mínimo embora achasse estranho. O exequente/embargado e o irmão KK prestaram suprimentos à sociedade de acordo com os registos contabilísticos nesta registados. Registou na contabilidade pagamentos, como capital, aos acionistas exequente e irmão KK por ordem da administração, não se recordando em concreto que administrador. A testemunha KK, arrolada pelos exequentes/embargados, irmão dele e cunhada dela, e amigo do embargante, envolvido noutro processo contra os mesmos executados, exactamente com os mesmos contornos, referiu que o embargante era funcionário da empresa e a embargante DD, supunha, era administradora. Não lhes conheceu outra ocupação que não fosse a empresa. Eles viviam da empresa. Que ele e o irmão fizeram um empréstimo ao referido embargante e esposa e sogros, para um loteamento na .... Com rendimento a nível de pagamento de juros de 5%. Como garantia dos empréstimos eles fizeram uma escritura de passagem de acções da sociedade para eles mutuantes, sem que houvesse lugar a pagamento de dividendos como accionistas. Eles foram pagando juros desses empréstimos durante 3/4 anos, e pagavam empréstimos bancários de empréstimos contraídos por ele e irmão, bem como pagaram a quota de uma coutada que ele testemunha frequentava. O embargante sempre disse que ele e o sogro pagavam a dívida. Ele e o irmão fizeram um empréstimo à empresa. A declaração de dívida foi entregue ao embargante e foi combinado que nós iríamos lá a casa. Aliás, foi marcado o dia com os embargantes e nós fomos lá a casa deles tomar café e assinou-se a declaração. O embargante sabia exatamente o que estava a assinar. A testemunha MM, arrolada pelos exequentes/embargados, prima dos exequentes, afirmou o que consta da motivação Analisando (segundo o princípio da livre apreciação, do art. 607º, nº 5, 1ª parte, ex vi do art. 663º, nº 2, ambos do NCPC). De tais depoimentos, declarações e testemunhos resulta desde logo uma primeira convergência unânime no mesmo sentido, a de que o embargante, embora acionista, era funcionário da empresa e a embargante administradora, ou seja, nenhum deles é comerciante ou exerce o comércio por si ou como casal, pois nem o acionista (os embargantes) nem o administrador (a embargante) são juridicamente comerciantes. Pelo que a parte final da cláusula 3. da declaração de dívida executiva não faz sentido, sendo aliás meramente conclusiva de facto e de direito. Verifica-se, de outro lado, que os exequentes/embargados no seu articulado de contestação aos embargos disseram (arts. 18º a 41º de tal peça) que a declaração de divida teve por fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre o exequente EE, a sociedade executada, os embargantes CC e DD, e os sogros/pais destes; o irmão do exequente, KK, é amigo do embargante CC; sendo que este trabalhava na sociedade co-executada, que, por sua vez, era propriedade dos seus sogros, EE e FF e da mulher, embargante DD, todos eles vivendo exclusivamente dos proveitos obtidos com a actividade dessa sociedade; os exequentes venderam uns terrenos, tendo arrecadado com essa venda para si cerca de 1 milhão de euros, o mesmo ocorrendo com o irmão do exequente; o irmão do ora exequente comentou com o CC a venda que haviam realizado, tendo este proposto ao irmão do ora exequente que lhe fosse emprestado esse dinheiro para investir num empreendimento que ele e a empresa co-executada se propunham construir na ...; comprometeu-se não só devolver o montante assim mutuado em curto prazo, como a pagar-lhe juros pela disponibilização dessa quantia; o irmão do ora exequente dirigiu-se ao mesmo, perguntando se também estava interessado em fazer esse empréstimo, mediante o pagamento de juros acordado, tendo o ora exequente, mediante o conhecimento que tinha do CC, de quem também era amigo e a confiança que este lhe merecia, anuído em fazer esse empréstimo à empresa e aos restantes membros da família; por razões contabilísticas e para melhor justificar o empréstimo assim contratado nas contas da empresa, celebraram a co-executada e os exequentes o que designaram por “contrato promessa de compra e venda de acções”, e ainda celebraram no mesmo dia o que designaram por “ protocolo para reembolso de suprimentos”, e ainda celebraram, também, já na qualidade de “accionistas”, uma escritura para aumento de capital social da empresa; todos estes negócios foram celebrados pelos ora exequentes, porque assim lhes foi dito pelo seu advogado e pelo CC que seria a melhor forma de formalizar o empréstimo realizado, em beneficio da empresa; nunca os ora exequentes quiseram ser sócios da empresa co-executada ou sequer empresários; bem sabendo os embargantes CC e a DD que o que esteve em causa nestas operações foi pura e simplesmente um empréstimo que lhes foi concedido e à empresa co-executada pelo ora exequente; para que o dinheiro que haviam recebido dos terrenos fosse rentabilizado através do recebimento de juros; o exequente quis fazer um empréstimo aos amigos e sua empresa familiar e não tornar-se accionista dessa empresa nem configurar esse empréstimo como suprimento; por esta razão, aceitaram EE, FF, e os embargantes CC e DD assinar o acordo de reconhecimento de divida que foi junto como titulo executivo, a título pessoal, de forma livre e espontânea, precisamente porque sabiam que o dinheiro aqui em causa lhes havia sido emprestado a eles próprios e à empresa. Esta alegação dos exequentes demonstra que afinal a causa de pedir que invocaram – prestação de suprimentos à sociedade – não é verdadeira, pois tratar-se-ia de um empréstimo particular ao embargante e à sociedade para investir num empreendimento destinado a construção civil. Duas diferentes realidades, portanto. Assim, os exequentes, acabam por revelar factualidade que, no fim, nada tem a ver com a realidade factual exposta no requerimento inicial executivo e vertida na invocada declaração de dívida. Da audição levada a cabo, resulta que – descontado o depoimento do contabilista NN que só sabia o que os documentos contabilísticos revelavam e o depoimento de MM que confirmou a declaração de dívida – três dos principais intervenientes naquilo que foi negociado revelam versões diferentes. O embargante/executado diz ter ocorrido uma prestação de suprimentos à sociedade pelo exequente e pelo irmão como accionistas, pois para ela entraram nessa qualidade, enquanto os principais interessados o exequente e o irmão dizem que foi um empréstimo. Mas estes com as seguintes diferentes particularidades: o exequente afirmou nas suas declarações que o empréstimo foi feito unicamente às pessoas singulares, embargantes e sogros/pais, não à empresa, o mesmo resultando da carta de interpelação para pagamento dos exequentes aos embargantes, datada de 6.5.2016 (a fls. 120/122 destes autos), mas no referido articulado de contestação já afirmou que o empréstimo também foi feito à empresa, acrescendo que na dita declaração de dívida consta que afinal o empréstimo somente foi efectuado à sociedade, o que revela versões diferentes e ziguezagueantes; o irmão do exequente afirma que o empréstimo foi feito às pessoas singulares e também à sociedade. Afigura-se-nos como certo que afinal foi realizado um simples mútuo, e não suprimentos, como consta da declaração de dívida e no protocolo de suprimentos, como revelaram e nos iluminaram os principais interessados nessa declaração de dívida e título executivo dado à execução, exequente e seu irmão, nas suas declarações e seu depoimento, que nos mereceram suficiente e sólida credibilidade face ao depoimento não convincente do embargante de que seriam meros suprimentos. Também nos convencemos que esse mútuo foi realizado a favor da sociedade, e não às pessoas singulares embargantes e sogros/pais, pois o mútuo destinava-se a investimento da sociedade em lotes para construção civil na ... (e o seu reembolso, além dos juros efectivamente recebidos pelos exequentes, passaria pelo recebimento de uma percentagem no total dos lucros realizados com a venda dos lotes para construção no terreno de que a sociedade era ali proprietária). Inexiste qualquer elemento probatório que aponte para uma falta de liberdade na assinatura da declaração de dívida.».
Que dizer ? Desde logo que, no que concerne à reapreciação da decisão de facto, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência de erro de julgamento. E que, nesta matéria, cabe apenas ao Tribunal de revista ajuizar se o Tribunal da Relação, no desempenho daquela sua função, observou, quer a disciplina processual a que aludem os arts. 640º e 662º, nº 1, quer o método de análise crítica da prova prescrito no art. 607º, nº 4, aplicável por força o disposto no art. 663º, nº 2, todos do CPC, sem imiscuir-se na valoração da prova feita pelo Tribunal da Relação, segundo o critério da sua livre e prudente convicção. De salientar ainda que não compete a este Tribunal de revista sindicar o erro na livre apreciação das provas, salvo quando, nos termos do artigo 674.º, n.º 3, do CPC, a utilização desse critério de valoração ofenda uma disposição legal expressa que exija espécie de prova diferente para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova, ou ainda quando aquela apreciação ostente juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade. Ora, o que se depreende-se, claramente, da fundamentação acima transcrita é que o Tribunal da Relação formou a sua convicção acerca da veracidade da factualidade constante do ponto 3-B dos factos provados com base nas declarações de parte do embargante/executado, CC e no depoimento da testemunha, NN, a que atribuiu maior credibilidade do que às declarações de parte do embargado/exequente, BB e aos depoimentos das testemunhas, KK e MM. E a verdade é que não se vislumbra que estivesse impedido de dar como provada a referida factualidade com base nestes meios de prova, consabido que a vontade real do declarante constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias e que, de harmonia com o disposto no art. 393º, nº 3, do C. Civil, a mesma pode ser indagada através de quaisquer meios de prova. Mas, para além de, no caso dos autos, estarmos no âmbito de meios de prova, cuja força probatória é apreciada livremente pelo tribunal, como estipulam os arts. 466º, nº 3, do CPC e 396º do C. Civil e, por isso, face a matéria subtraída à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, certo é também não se descortinar que a apreciação do Tribunal a quo colida com o critério de interpretação estabelecido no nº 1 do art. 236º, do C. Civil, ou seja, com a chamada “teoria da impressão do destinatário”, segundo a qual a declaração negocial deve ser entendida com o sentido que lhe atribuiria um declaratário normal, medianamente instruído e diligente, colocado na concreta posição do declaratário real. É que as instâncias só estavam vinculadas a determinar o sentido a atribuir à declaração de dívida em causa em conformidade com o critério estabelecido no nº 1 do citado art. 236º, se, através dos meios de prova produzidos, não tivessem conseguido apurar a vontade real do declarante, o que não aconteceu no caso dos autos, pois, esse sentido ficou estabelecido no ponto 3B dos factos provados, sem que seja lícito a este Tribunal de revista sindicar a convicção formada pela maioria do Coletivo do Tribunal da Relação relativamente a tal factualidade. E isto independentemente de se suscitar a questão de saber se esta factualidade está em contradição com outros factos provados, de que nos ocuparemos, se seguida. Daí improceder também, quanto a este segmento, o recurso interposto pelos embargados. * 3.2.4. – Declaração de dívida enquanto título executivo. Persistem os recorrentes na defesa de que a declaração de dívida subscrita pelos consubstancia uma confissão de dívida por parte dos embargantes/executados, nos termos e para os efeitos do art. 458º do C. Civil, valendo, por isso, como título executivo. Antes, porém, de entrarmos na apreciação desta questão e porque como é consabido e resulta claro do disposto no art. 682º, nº 1 do CPC, ao Supremo Tribunal de Justiça cabe fundamentalmente a aplicação do direito aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, importa relançar um olhar sobre os factos dados como provados, por forma a certificarmo-nos de que os mesmos permitem encontrar, com segurança, a solução jurídica a dar à questão supra enunciada. No caso dos autos, verifica-se que no precedente recurso de apelação, o Tribunal da Relação alterou a decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente no que respeita aos factos que o Tribunal de 1ª Instância havia dados como provados no nº 18 e como não provados, sob as alíneas a) e c). Considerou, assim, que: O facto provado no nº 18 passava a ter a seguinte redação: « Os embargantes assinaram o documento referido em 2 de forma livre e espontânea». O facto não provado a), passa a parcialmente provado, com a seguinte redação sob 3-A « O documento referido em 2. e 3. não corresponde à realidade, uma vez que apenas foram feitos empréstimos à sociedade e não aos executados para o exercício do comércio pelos mesmos, por si e enquanto casal». O facto não provado c), passa a parcialmente provado, com a seguinte redação sob 3-B: « Os executados não quiseram vincular-se ao teor do documento referido em 2. e 3 ». A verdade é que esta factualidade colide com o teor do documento particular que as partes denominaram de “Declaração de dívida” e daí vermo-nos confrontados com a necessidade de indagar o valor probatório deste documento e, consequentemente, com a questão de saber se existe, efetivamente, uma tal contradição. Ora, neste contexto, verifica-se que o documento que as partes denominaram de “Declaração de dívida” foi assinado pelos ora embargados, BB e AA (segundos outorgantes) e pelos ora embargantes, CC e DD ( primeiros outorgantes). E, conforme resulta dos factos provados e supra descritos no nº 2, os ora embargantes, nele declararam que: « 1. Pela presente declaração os primeiros outorgantes declaram expressamente, para todos os devidos efeitos legais, que são devedores aos segundos outorgantes da quantia de € 545.000 euros (quinhentos e quarenta e cinco mil euros). 2. Tal dívida resulta do incumprimento do designado “Protocolo para Reembolso de Suprimentos”, celebrado pelos primeiros e segundos outorgantes em 19 de Novembro de 1999, onde se estabelece que até Dezembro de 2003 seria entregue aos segundos outorgantes a quantia de 475 mil euros que fora por estes emprestada à sociedade “J..., S.A” de que os primeiros outorgantes são únicos responsáveis e administradores, bem como dos juros acordados e entretanto não pagos, no montante de 70 mil euros. 3. Tal dívida é assumida pessoalmente pelos primeiros outorgantes e solidariamente com a sociedade “José Rodrigues e Filhos, Lda.” porque estes reconhecem expressamente que a quantia emprestada foi utilizada para o exercício do comércio por estes em benefício da economia comum dos respectivos casais. 4. 1- Os primeiros outorgantes obrigam-se e comprometem-se a pagar aos segundos outorgantes a importância de € 475 mil euros (quatrocentos e setenta e cinco mil euros) até ao dia 31 de Dezembro de 2010, vencendo-se a partir dessa data juros sobre a quantia devida, juros estes no montante de 30 (Trinta) mil euros ao ano. 2- Caso não seja cumprido o prazo de pagamento estabelecido no número anterior, os juros que se vencerem a partir de 31 de Dezembro de 2010 relativos à quantia em dívida identificada no número um da presente cláusula serão pagos pelos primeiros outorgantes aos segundos em prestações mensais de 2500 euros (dois mil e quinhentos euros). 3- Quanto aos juros vencidos e devidos até agora no montante de 70 mil euros, serão pagos pelos primeiros aos segundos outorgantes em duas prestações iguais de 35 mil euros, nos meses de Junho de 2011 e Dezembro de 2011. 4- O não cumprimento de qualquer dos pagamentos estabelecidos no número dois determina o vencimento integral da quantia que se mantiver em dívida e o pagamento de juros convencional de 6% ao ano sobre tal quantia. 5. Ficarão a cargo dos primeiros outorgantes devedores, todas as despesas judiciais que os segundos outorgantes façam para manter, garantir e haver este crédito. 6. Os outorgantes têm pleno conhecimento do teor da presente declaração, e abaixo a assinam e rubricam em cada uma das quatro páginas por que é composta, de livre e espontânea vontade, na presença de duas testemunhas que abaixo igualmente assinam, dando como verdadeiros todos os factos nela descritos. (…)». Estamos, assim, na presença de um documento que deve classificar-se como um documento particular (arts. 363º e 373º, do C. Civil) e a declaração que os executados, CC e DD, nele produzem de que «são devedores aos segundos outorgantes da quantia de € 545.000 euros» (facto provado 2.1), integra uma verdadeira e própria confissão extrajudicial, tal como o art. 352º, do C. Civil, a define, ou seja, como «o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária». A força probatória da declaração confessória é a fixada pelo art. 358º, nº 2, do mesmo diploma: considera-se provada nos termos aplicáveis ao documento de que consta (força probatória formal) e, tendo sido feita à parte contrária, reveste-se de força probatória plena contra o confitente (força probatória material). De salientar que a lei apenas permite que a confissão seja anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, sendo que o erro, desde que essencial, e justamente porque a confissão integra uma declaração de ciência, não de vontade, não tem de satisfazer aos requisitos exigidos para a anulação dos negócios jurídicos (art. 359º, nºs 1 e 2, do C. Civil). Vale isto por dizer, na expressão do Acórdão do STJ, de 22.01.2013 ( processo nº 376/08.1TBOFR-A.C1)[6] que «oconfitente não pode impugnar a confissão produzida alegando e provando, simplesmente, que o facto confessado não é verdadeiro: para destruir a força probatória da confissão terá que alegar e provar o erro ou outro vício de que tenha sido vítima» E a verdade é que, no caso dos autos, os embargantes não lograram fazê-lo, pois se é certo terem, neste contexto, alegado na petição inicial bem saber o exequente embargado que tal “Declaração de Dívida” foi redigida « a seu pedido, insistente, e até imposição, ao falecido EE, já muito doente» (artigo 12º) e que « os executados-embargantes jamais se quiseram vincular pessoalmente ao pagamento de tais suprimentos, assinando aquela “Declaração de Dívida”, a pedido do seu falecido pai e sogro, respetivamente, e porque o exequente garantiu ser apenas uma “pró-forma”» (artigo 13º), certo é também que nada disto se provou, conforme resulta claramente dos factos dados como não provados e supra descritos nas alíneas b) e c), resultando, antes, dos factos dados como provados pelo Tribunal da Relação no ponto 18 que « Os embargantes assinaram o documento referido em 2 de forma livre e espontânea », como, aliás, consta do estabelecido no ponto 4.6 da dita “Declaração de Dívida”. Significa isto que a confissão contida no ponto 1, da referida declaração, de que « são devedores aos segundos outorgantes da quantia de € 545.000 euros » subsiste, íntegra, ficando, deste modo plenamente provada este facto. De esclarecer, todavia, que contrariamente ao sustentado pelos recorrentes, não se vê que a denominada “Declaração de Dívida”, corporize uma pura e simples declaração unilateral de reconhecimento de dívida sujeita ao regime previsto no art. 458º, nº 1, do C. Civil, caso em que não há verdadeiramente a confissão dum facto desfavorável ao autor da declaração. Com efeito, enquanto nas situações enquadráveis neste art. 458º, existe apenas uma mera confissão de dívida, presumindo-se até prova em contrário a existência da relação fundamental (causal) e permitindo-se, nos termos do disposto no art. 350º, nº 2, do C. Civil, ao autor da declaração que ilida a presunção, mediante a prova de que nenhuma relação negocial existe na base da declaração de reconhecimento emitida, diversamente, no caso de confissão inserida em documento particular cuja veracidade esteja reconhecida, a que alude o art. 352º do C. Civil, os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte nos termos da declaração confessória efetuada, nos termos do disposto no art. 358º, nº 2, do mesmo diploma. Vale isto por dizer que, no caso dos autos, a força probatória plena da confissão feita na sobredita declaração, mais do que um reconhecimento de dívida ilidível nos termos do citado art. 458º, prova plenamente que os recorridos são devedores aos recorrentes da quantia de € 545.000,00, conforme acima se procurou demonstrar. De resto sempre se dirá que, tal declaração, para além de consubstanciar o reconhecimento por parte dos recorridos de que devem aos recorrentes a quantia de € 545.000,00, não deixa de formalizar um contrato celebrado entre as partes outorgantes, pois bastar atentar no clausulado nos seus pontos 4.1, 4.2, 4.3 e 4.4., para facilmente se constatar que as mesmas, na decorrência do reconhecimento da dívida plasmado na confissão, estabeleceram, por mútuo acordo, o tempo e o modo de realização do pagamento devido pelos embargantes. Aqui chegados, vejamos, então, se existe, efetivamente, contradição entre, de um lado, a confissão feita no documento particular intitulado “Declaração de dívida” de que os embargantes são devedores aos embargados da quantia de € 545.000 e os factos dados como provados no nº 18 (Os embargantes assinaram o documento referido em 2 de forma livre e espontânea) e, de outro lado, os factos dados como provados nos nºs 3-A (O documento referido em 2. e 3. não corresponde à realidade …., » ) e 3-B ( Os executados não quiseram vincular-se ao teor do documento referido em 2. e 3), tendo em conta que, nesta matéria, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que a contradição entre factos dados como provados capaz de inviabilizar a decisão jurídica do pleito e, por isso, relevante para efeitos do disposto no art. 682º, nº 3 do CPC, é aquela que traduz a existência entre eles de uma relação de exclusão, no sentido de estarmos perante factos inconciliáveis. E a este respeito diremos que a nossa resposta não pode deixar de ser afirmativa, pois, não tendo os embargantes contrariado a prova plena do documento particular em causa, com base na falsidade do documento ( arts. 347º e 372º, nº 1, ambos do C. Civil) ou mediante a prova dos alegados factos integrativos de erro ou de vício da vontade ( cfr. facto dados como não provados e supra descritos nas alíneas b) e c) do ponto 3.1), suscetíveis de determinar a nulidade ou anulação da confissão e resultando provado no ponto 18 que “os embargantes assinaram o documento referido em 2 de forma livre e espontânea”, não há dúvida que os factos dados como provados pelo Tribunal da Relação nos pontos 3-A e 3-B, contrariam esta realidade. Daí que, neste contexto e perante uma tal contradição se imponha, ao abrigo do art. 682.º, n.º 3, do CPC, determinar a baixa do processo à Relação para suprir esta contradição em ordem a viabilizar a adequada decisão jurídica do presente litígo. Fica, deste modo, prejudicado o conhecimento da questão supra enunciada.
Termos em que procede, apenas nos termos referidos, as razões invocadas pelos recorrentes.
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IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em conceder parcialmente a revista interposta pelos recorrentes e, consequentemente, anular o acórdão recorrido e determinar a baixa do processo ao Tribunal da Relação para, de harmonia com o disposto no art. 682º, nº 3 do CPC, suprir a contradição factual supra identificada no ponto 3.2.4 e, na decorrência disso, decidir novamente de direito. Custas desta revista pela parte vencida a final. Notifique
Supremo Tribunal de Justiça, 31 de março de 2022
Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)
Catarina Serra Paulo Rijo Ferreira _______ [1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente. |