Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
25/23.8PALGS.E1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
RECURSO
ACÓRDÃO
TRIBUNAL COLETIVO
IMPARCIALIDADE
SUSPEIÇÃO
Data do Acordão: 06/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECURSA
Decisão: PROCEDÊNCIA / DECRETAMENTO TOTAL
Sumário :
I - O incidente processual de escusa de juiz (tal como o de recusa), previsto no art. 43.º do CPP, assenta em princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de direito democrático, visando assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que exige independência e garantia de imparcialidade dos juízes.

II - A relação pessoal e prolongada no tempo, entre o Senhor Juiz Desembargador, sua mulher e a Senhora Juíza da 1ª instância, bem como com o falecido marido desta, é suscetível de pôr em crise a decisão da Relação (a conhecer do recurso do acórdão da 1ª instância), em que aquele Senhor Desembargador viria a participar no âmbito do processo em que a Senhora Juíza interveio (fazendo parte do Coletivo que fez o julgamento e tendo intervenção, como juíza adjunta, no acórdão sob recurso), na medida em que se colocaria a dúvida sobre se aquele atuou de forma serena, imparcial e objetiva, ou se agiu antes motivado pela relação de proximidade com aquela magistrada (que é também sua concunhada), o que faria correr o risco da sua intervenção ser considerada suspeita.

III - Esses factos apurados são suscetíveis de constituir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz e, do ponto de vista da comunidade, há o risco ou aparência do não reconhecimento público da imparcialidade e isenção do Sr. Juiz Desembargador em questão, razão pela qual se impõe deferir o pedido de escusa ora em apreciação (de resto, no seguimento de outras decisões em tudo idênticas à dos presentes autos, também já proferidas por este STJ).

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. AA, ... Desembargador veio pedir escusa de intervir como adjunto nos autos de recurso n.º 25/23.8PALGS.E1, que foram distribuídos no TR ... e que ali estão a correr os seus termos, ao abrigo dos arts. 43.º, n.º 1 e 45.º do CPP, com os seguintes fundamentos (que se transcrevem sem negritos):

O presente processo, oriundo do juízo central criminal de ..., foi distribuído ao signatário como Juiz Adjunto.

Constato que no mesmo a Srª Juíza de direito Drª BB, fez parte do Colectivo que proferiu o acórdão recorrido.

Acontece que a mesma é sua concunhada, uma vez que até há cerca de 34 anos foi casada com um irmão (entretanto falecido) da mulher do solicitante, tendo posteriormente ocorrido o divórcio entre aqueles e tendo depois voltado os mesmos a viver juntos e tido mais um filho (existia já um outro filho nascido na constância do casamento).

Independentemente das referidas variações de relacionamento entre a referida Srª Drª BB e o falecido irmão da mulher do signatário, não existe, nem nunca existiu, entre aquela (Srª Drª BB) e este (o solicitante) o vínculo da afinidade, pelo que não ocorre qualquer impedimento nos termos do artº 39º, nº 3, do C.P.P..

Porém, sempre tiveram, e têm, apesar das já referidas variações, um relacionamento pessoal/familiar próximo, que é público, sendo inclusivamente o solicitante padrinho de baptismo de um dos seus sobrinhos, filho da referida Srª Drª BB e do seu falecido cunhado.

O solicitante exerceu funções, desde ... a ..., sucessivamente, na comarca de ..., no círculo judicial de ... e no tribunal de família e menores de ....

A Srª Drª BB há vários anos que exerce funções em ..., pelo que o seu relacionamento familiar/pessoal com o solicitante é bem conhecido de todos, designadamente dos Srs. Advogados e Funcionários, e certamente de outros.

Ambos são residentes em ... – a Srª Drª BB desde sempre e o solicitante desde ....

No entender do solicitante, tudo o referido consubstancia motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, nos termos do artº 43º, nº 1, do C.P.P.

Assim sendo, nos termos do artº 45º, nº 1, al. a), do C.P.P., solicita a V. Exªs escusa de intervenção no referido processo, escusa essa já anteriormente concedida pelo S.T.J., pelos mesmos motivos no âmbito dos procºs 119/13.8JAPTM.E1-A.S1, 12/16.2GAPTM.E1-A.S1, 30/18.6PBPTM.E1-A.S1, 2362/20.4T8M.E1-A.S1, 362/19.6GESLV.E1-A.S1, 819/17.3T9ABF.E1-A.S1, 193/20.0GAABF.E1-A.S1, 159/19.3T9FAR.1-A.S1, 41/20.1JAFAR.E1-A.S1, 231/20.7GBABF.E1.


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Face ao exposto, deverá ser aberta nova conclusão ao Exmº Juiz desembargador relator a fim de, conforme for entendido, se dar seguimento ao presente incidente de escusa.

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2. Cumpridos os vistos legais, realizou-se depois a conferência, incumbindo agora apreciar e decidir.

II. Fundamentação

3. Factos

Extrai-se dos elementos constantes dos autos, com interesse para a presente decisão, o seguinte:

i)- no processo comum (tribunal coletivo) n.º 25/23.8PALGS do Juízo Central Criminal de ..., ... 4, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., foi proferido acórdão em ........2024, no qual participaram os Senhores Juízes que constituíam o Coletivo, a saber, o Sr. Dr. CC (na qualidade de ... Presidente) e a Srª Dra. BB, bem como a Srª. Dra. DD (na qualidade de Juízas Adjuntas);

ii)- desse acórdão foi interposto recurso, o qual foi distribuído no Tribunal da Relação de ..., sendo 2º Adjunto do respetivo Relator, o Senhor Desembargador AA;

iii)- sucede que a Senhora Juíza BB (que participou como adjunta no acórdão sob recurso) é concunhada do Senhor Desembargador AA (que vai participar como 2.º Adjunto na decisão a proferir na Relação de Évora, a qual irá conhecer do referido recurso do dito acórdão), uma vez que até há cerca de 34 anos foi casada com um irmão (entretanto falecido) da mulher daquele Senhor Desembargador e, apesar de, posteriormente ter ocorrido o divórcio entre aqueles, depois voltaram a viver juntos e tiveram mais um filho (existindo já um outro filho nascido na constância do casamento), sendo certo que sempre tiveram um relacionamento pessoal/familiar próximo, que é público e, inclusivamente, o Senhor Desembargador AA é padrinho de batismo de um dos seus sobrinhos, filho da referida Srª Drª BB e do seu falecido cunhado;

iv)- além disso, o Senhor Desembargador AA exerceu funções, desde ... até ..., sucessivamente, na comarca de ..., no Círculo judicial de ... e no Tribunal de Família e Menores de ..., enquanto a Srª Drª BB há vários anos que exerce funções em ..., pelo que o relacionamento familiar/pessoal entre ambos é bem conhecido de todos os que os conhecem, designadamente dos Srs. Advogados e Funcionários, tanto mais que, também residem em ..., sendo a Srª Drª BB desde sempre e o Senhor Desembargador AA desde ....

4. Apreciação

O incidente processual de escusa de juiz (tal como o de recusa), previsto no art. 43º do CPP, assenta em princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de direito democrático, visando assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que exige independência e garantia de imparcialidade dos juízes (ver, entre outros, arts. 2, 8, 20, 202 e 203 da CRP; art. 6 § 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ; art. 10 da Declaração Universal dos Direitos do Homem ; art. 14 nº 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos ; e art. 47 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ).

As regras da independência e imparcialidade são inerentes ao direito de acesso aos tribunais (art. 20 nº 1 da CRP), constituindo ainda, no processo criminal português, atenta a sua estrutura acusatória (art. 32 nº 5 da CRP), uma dimensão importante do princípio das garantias de defesa (art. 32 nº 1 da CRP) e mesmo do princípio do juiz natural (art. 32 nº 9 da CRP).

Pretende-se «assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de “administrar a justiça”. (…) Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais ao “administrar a justiça”, actuem, de facto, “em nome do povo” (cf. art. 205 nº 1 da Constituição)» .

É “o dever de imparcialidade” que determina o pedido de escusa do juiz, imparcialidade essa que impõe o exercício de facto das suas funções com “total transparência (…). Não basta ser é preciso parecer. Assim o exige o princípio da confiança dos cidadãos na justiça” .

Para sustentar a escusa ou recusa do juiz, atento o disposto no citado art. 43 n.º 1 e n.º 4 do CPP, é necessário verificar :

- se a intervenção do juiz no processo em causa corre “o risco de ser considerada suspeita”;

- e, se essa suspeita ocorre “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

Mas, se é certo que a lei não define o que se deve entender por «motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade» do juiz, cuja recusa ou escusa é requerida ou pedida respetivamente, a verdade é que, para tanto, deverão ser indicados factos objetivos suscetíveis de preencher tais requisitos.

De qualquer modo, a análise terá de ser feita ponderando as circunstâncias de cada caso concreto, a partir de factos objetivos, de acordo com as regras da experiência comum e com “bom senso”.

Como diz Ireneu Barreto, comentando o art. 6 nº 1 da CEDH, «a imparcialidade do juiz pode ser vista de dois modos, numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto, mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês Justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos».

Por isso, bem se compreende que só seja lícito recorrer aos mecanismos processuais das recusas e escusas em “situações limite” em que se verifiquem os respetivos pressupostos.

Debruçando-nos agora sobre o caso concreto, importa ter em atenção as circunstâncias que se apuraram acima descritas.

Ora, o que resulta dos elementos recolhidos é que, na decisão do recurso na qual o Sr. Juiz Desembargador irá participar, o mesmo terá de apreciar aquele acórdão impugnado no qual participou, também, como Juíza adjunta, a sua concunhada, com a qual tem relação próxima, há vários anos.

E, não há dúvidas que a relação pessoal e prolongada no tempo, entre o Senhor Juiz Desembargador AA, sua mulher e a Senhora Juíza BB, bem como com o falecido marido desta, é suscetível de pôr em crise qualquer decisão em que o Senhor Desembargador AA venha a participar no âmbito do processo em que a Senhora Juíza BB interveio, acima referenciado, na medida em que se colocaria a dúvida sobre se aquele atuou de forma serena, imparcial e objetiva, ou se agiu antes motivado pela relação de proximidade com aquela magistrada, o que faria correr o risco da sua intervenção ser considerada suspeita.

Assim, é preciso salvaguardar eventuais dúvidas sobre a forma como é administrada a justiça, nomeadamente em sociedades democráticas como a nossa.

Impõe-se, pois, salvaguardar o sistema de justiça e a forma isenta e imparcial como é administrada a justiça num Estado de direito e democrático, para que o cidadão médio continue a ter confiança nos tribunais.

Com efeito, no plano das representações da comunidade, o que se expôs pode constituir um motivo sério e grave suscetível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão que viesse a ser proferida e, nessa medida, iria criar desconfiança no sistema de Justiça, considerado como um todo, o que também põe em causa o próprio Estado de direito.

E, é compreensível que a intervenção de quem decide em qualquer processo, perante as circunstâncias acima indicadas, seja alvo de um escrutínio muito particular pela comunidade, mormente quanto às condições de objetividade e imparcialidade, precisamente para que haja confiança na administração da Justiça.

Por isso se conclui que, os factos apurados são suscetíveis de constituir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.

Em face do exposto, do ponto de vista da comunidade há o risco ou aparência do não reconhecimento público da imparcialidade e isenção do Sr. Juiz Desembargador em questão.

Impõe-se, pois, deferir o pedido de escusa ora em apreciação (de resto, no seguimento de outras decisões em tudo idênticas à dos presentes autos, também já proferidas por este STJ).

III - Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em deferir o pedido de escusa apresentado pelo Senhor Juiz Desembargador AA.

Sem custas.


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Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 26.06.2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Antero Luís (Juiz Conselheiro Adjunto)

Horácio Correia Pinto (Juiz Conselheiro Adjunto)