Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
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No processo nº 2644-09.6STABRG.G1 do Tribunal da Relação de Guimarães, Secção Penal AA e BB, Assistentes no processo, vêm, nos termos do disposto nos artigos 437º, nº 2 a 5 e 438º do Código de Processo Penal (“CPP”) interpor RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
“nos termos e com os fundamentos seguintes:
I. INTRÓITO
a) Ponto Prévio
1. O Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães de que se pretende recorrer extraordinariamente invalidou o douto Despacho de Pronúncia proferido pelo Meritíssimo Juiz de Instrução que, por sua vez, pronunciou o Arguido BB (“Arguido CC Gonçalo”), como autor, pela prática de um crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1 alíneas a) e c) e nº 3 do Código Penal (“CP”), e, como co-autor, em concurso efectivo, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punido pelo artigo 205º, nº 1 e 4, alínea b) do mesmo Diploma, por referência ao artigo 202º, alínea b) do CP, e ainda,
2. Os Arguidos DD Rito dos Santos Duarte da Silva, EE da Silva e FF de Lemos Cardoso Teixeira Duarte da Silva, em co-autoria, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado (cfr. artigos 205º, nº 1 e 4, alínea b) do CP, por referência ao artigo 202º, alínea b) do mesmo Diploma).
Com efeito,
3. De forma liminar e que se afigura absolutamente ininteligível para os Assistentes (aqui Requerentes), o Douto Tribunal da Relação de Guimarães declarou nulo o Requerimento de Abertura de Instrução (“RAI”) por si apresentado, por o mesmo, alegadamente, não conter a narração dos factos necessários à afirmação da consciência da ilicitude dos Arguidos (cfr. Acórdão de 21/11/2016, com a ref. 4614556), invalidando, por conseguinte, toda a Fase de Instrução.
[…]
II. DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
37. O artigo 437º, nº 1 do CPP determina que “Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.”.
Por sua vez,
38. O nº 2 desse mesmo preceito legal estabelece ainda que “É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.”.
[…]
a) Da Irrecorribilidade Ordinária do Acórdão a quo
41. Como supra se referiu, o Acórdão de que se pretende recorrer extraordinariamente foi proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães a 21 de Novembro de 2016, e declarou nulo o RAI apresentado pelos Assistentes por alegadamente não conter a enunciação dos factos necessários à afirmação da consciência da ilicitude dos Arguidos, na narração que aí foi efectuada (cfr. Acórdão com a ref. 4614556).
[…]
42b) Da Oposição de Acórdãos sobre a mesma Questão de Direito
45. A Lei estabelece, ainda, como pressuposto de admissibilidade do Recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência que o Acórdão de que se pretende recorrer consagre uma solução jurídica que esteja em oposição/contradição com a solução anteriormente adoptada num outro Acórdão que tenha sido proferido pela mesma, ou por outra Relação, e que verse sobre a mesma questão de Direito, desde que ambas as decisões tenham sido proferidas no domínio da mesma legislação (cfr. artigo 437º, nº 1 a 4 do CPP).
i. Do decidido no Acórdão a quo
46. No caso concreto, o Acórdão prolatado pela Veneranda Relação de Guimarães declarou a nulidade do RAI apresentado pelos Assistentes, por suposta insuficiência de alegação dos factos necessários à afirmação da consciência da ilicitude Arguidos (elemento subjectivo), não obstante a descrição dos factos objectivos que aí foi efectuada pelos Assistentes e os concretos crimes que pelos mesmos foram aos imputados aos Arguidos (cfr. artigos 283º, nº 3 e 287º, nº 2 do CPP).
Assim é que,
47. Conforme resulta da mera leitura do Acórdão em análise, o Tribunal da Relação considerou que “A omissão da descrição de algum elemento do tipo subjectivo de ilícito na acusação não pode, portanto, ser integrada em julgamento com recurso ao mecanismo do artigo 358º, nº 1 do Código de Processo Penal, por a tanto se opor a jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 1/2015. Por isso ela não pode deixar de constar da acusação e deve constar igualmente do requerimento de abertura de instrução e da pronúncia que têm a mesma estrutura da acusação e que, para efeitos de definição do objecto do processo, desempenham a mesma função processual (artigo 283º, nº 3, 287º, nº 2, in fine e 308º, nº 2 do Código de Processo Penal). No caso, tratando-se, como se trata, de uma deficiente ou incompleta definição do tipo subjectivo de ilícito no âmbito do requerimento de abertura de instrução, a questão não se coloca na indiciação do facto subjectivo mas antes num momento logicamente anterior, que é o da alegação, legalmente exigida, do facto subjectivo a indiciar.” (cfr. Pág. 78 do Acórdão a quo – sublinhado e realces nossos), pelo que,
48. E conforme resulta do teor da parte dispositiva do Acórdão de que se pretende recorrer decidiu a final: “Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar verificada a nulidade do requerimento de abertura de instrução e, por via disso, decDDr a sua invalidade, assim como a invalidade de todos os actos que se lhe seguiram, incluindo a decisão instrutória, com o consequente arquivamento dos autos.” (cfr. Pág. 81 do Acórdão a quo).
[…]
ii. Do decidido no Acórdão fundamento
58. Se atentarmos no teor do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães a 9 de Janeiro de 2017 (Cfr. cópia simples do referido Aresto, que ora se junta como Documento nº 1, tendo já os Assistentes, aqui Requerentes, solicitado ao certidão desse mesmo Acórdão, como se alcança pelo teor do Requerimento que também se junta como Documento nº 2) e que versou sobre a mesma questão de Direito que foi analisada nos presentes autos – a saber, a (in)validade do RAI por (in)suficiência de alegação do elemento cognitivo e volitivo do dolo, tendo em consideração a factualidade descrita no RAI – constatamos que nesse mesmo Acórdão foi decidido que:
“I) É do conhecimento geral, do senso e experiência comum, que os elementos volitivo e cognitivo do dolo emanam, na generalidade dos casos, da mera narração da ação típica objectivamente imputada ao arguido.
II) O elemento volitivo do dolo emana da factualidade alegada no requerimento de abertura da instrução, quando nele se descrevem ações voluntárias e conscientes por parte do arguido.
III) Quanto ao elemento cognitivo do dolo, o conhecimento da ilicitude resulta da imputação ao arguido de condutas a que qualquer cidadão, com um mínimo de integração social, associa um caráter proibido e de reprovação social.”.
59. E ainda que:
“(…) Tais afirmações são por sua vez suscetíveis de preencherem, sem esforço, o dolo específico exigido no crime de abuso de poder, na medida em que delas se retira a intenção de o agente obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, concretamente a intenção de obter benefício para a empresa compradora, causando prejuízo aos executados.
O que efetivamente não consta do requerimento de abertura da instrução é a alegação expressa e direta do dolo genérico, também exigido pelo tipo subjectivo do crime de abuso de poder, que se reporta ao conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, que mais não é do que a afirmação dos elementos cognitivo e volitivo do dolo.
A alegação factual deste dolo genérico é vulgarmente feita através de uma fórmula antiga, repetidamente empregue na prática judiciária, do tipo: «O arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei».
Contudo, não é obviamente necessária a utilização desta fórmula ou de outra equivalente, para a afirmação da realidade que com ela se pretende transmitir.
É do conhecimento geral, do senso e experiência comum, que os elementos volitivo e cognitivo do dolo emanam, na generalidade dos casos, da mera descrição do iter criminis do arguido, ou seja, da narração da ação típica que lhe é objetivamente imputada, a não ser que se afirmem circunstâncias excecionais, suscetíveis de contrariar esse entendimento (…)”.
[…]
“Por sua vez, no que ao elemento cognitivo do dolo respeita, o conhecimento da ilicitude resulta da imputação ao arguido de condutas a que qualquer cidadão, com um mínimo de reintegração social, associa um caráter proibido e de reprovação social, como é, in casu, a venda de um prédio penhorado, no âmbito de uma execução, sem de tal dar conhecimento ao executado, cujo paradeiro é conhecido, omitindo-se esse conhecimento em todo o processo e agindo como se ele se encontrasse em parte incerta, com o objectivo de beneficiar o comprador, possibilitando a aquisição por preço inferior.
(…) Nada impedindo assim que, quanto a este ponto, se vier a ser caso disso, em sede de decisão instrutória possa vir a introduzir-se uma formulação típica e mais conseguida do elemento subjetivo da infração, sem que seja cometida qualquer irregularidade, nos termos do artigo 303.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (…)”.
60. Do teor do Acórdão acabado de citar resulta pois que o Tribunal da Relação considerou que a alegação da consciência da ilicitude dos Arguidos resulta da circunstância de (i) terem sido descritos no RAI factos que preenchem acção típica que é objectivamente imputada ao arguido, e (ii) cujo carácter proibido e de reprovação social é conhecido pela generalidade dos Cidadãos, sendo certo que,
61. No Acórdão proferido nos presentes autos, a Veneranda Relação de Guimarães declarou a nulidade do RAI, não obstante os Assistentes terem preenchido esses mesmos requisitos.
Com efeito,
62. E como se disse, no Acórdão transitado em julgado nos presentes autos foram, por completo, desconsiderados os factos objectivos que foram descritos pelos Assistentes no RAI e os concretos crimes que foram imputados Arguidos, cuja ilicitude e proibição era impossível não conhecerem, por se tratar de crimes cuja relevância axiológica é do conhecimento da Sociedade em geral.
Ademais,
63. Tal como é referido no Acórdão fundamento supra citado, não existem formas sacramentais de alegação do elemento subjectivo da consciência da ilicitude, sendo que,
64. In casu, a factualidade objectiva alegada pelos Assistentes no RAI é suficiente para o preenchimento dos requisitos necessários de alegação desse mesmo elemento, porquanto não resultam do caso concreto, nomeadamente, do tipo de crimes imputados aos Arguidos, quaisquer circunstâncias excepcionais susceptíveis de afastar a sua consciência da ilicitude quando praticaram a factualidade que vertida no RAI (i.e., as condutas objectivas que consubstanciaram os crimes que lhes são imputados).
65. Do exposto resulta claro que, nos dois Acórdãos que vem de se referir, o Douto Tribunal da Relação de Guimarães procedeu à aplicação das mesmas normas legais (i.e., os artigos 287º, nº 2 e 283º, nº 3 do CPP) e dos mesmos Institutos Jurídicos (i.e., nulidade do RAI) em sentido divergente, tendo decido a mesmíssima questão de Direito – (in)validade do RAI, por insuficiência/ausência de alegação do elemento subjectivo da consciência da ilicitude dos Arguidos, quando aí são descritos e alegados pelos Assistentes os factos objectivos que consubstanciam a prática pelos Arguidos dos concretos crimes que lhes são imputados e em relação aos quais existe uma consciência social generalizada da ilicitude da sua prática – de forma diametralmente oposta, o que determina a admissibilidade do presente Recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência nos termos do disposto no artigo 437º do CPP.
66. De tudo o que vem de se expor resulta claro, a existência de um conflito entre ambos os Acórdãos proferidos, os quais consagram soluções díspares para o mesmo tema, e cujas consequências jurídicas e pragmáticas são absolutamente distintas os respectivos intervenientes processuais, designadamente, para os Assistentes que apresentaram os RAI’s analisados em ambos os Acórdãos.
Dito isto,
67. Importa ainda referir, nos termos do disposto no artigo 438º, nº 2 do CPP, que o Acórdão fundamento supra citado está publicado no Portal DGSI e disponível para consulta através do endereço www.dgsi.pt, sob o nº processo 207/14.3T9VNF.G1.
Ademais,
68. Cumpre ainda salientar que, durante o intervalo da prolação dos dois Acórdãos opostos, não ocorreu qualquer modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de Direito controvertida.
Com efeito,
[…]
70. Como se disse, o Acórdão recorrido transitou em julgado a 28 de Março de 2017, sendo que o Acórdão fundamento do Tribunal da Relação de Guimarães que se invoca transitou em julgado a 26 de Janeiro de 2017, donde resulta inequívoco não ter ocorrido qualquer alteração legislativa nas normas objecto de aplicação nos dois casos.
c) Da Jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça
71. Muito embora a questão de Direito analisada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça – a saber, se a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjectivo de ilícito a que nela se faz referência, podia ser integrada pelo tribunal de julgamento, sem cometer uma alteração substancial dos factos (cfr. artigo 358ª do CPP) – não seja coincidente com a questão de Direito sobre que versam os Acórdãos cuja oposição se expôs,
72. Ainda assim, a Veneranda Relação de Guimarães procurou fundamentar a Decisão proferida nos presentes autos no teor desse mesmo Acórdão de Fixação de Jurisprudência.
Assim é que,
73. O Acórdão de Jurisprudência supra identificado versa sobre a possibilidade de se corrigir, ou não, em sede de julgamento, uma deficiente acusação pelo facto de nela não constarem todos os elementos – subjectivos e/ou objectivos – dos tipos de crime de que o arguido vem acusado, bem como a susceptibilidade de, em caso de resposta afirmativa a essa questão, ocorrer uma alteração substancial dos factos de que esse arguido vinha acusado.
Contudo,
74. O Acórdão proferido nos presentes autos não declarou a nulidade do Despacho de Pronúncia por o mesmo ter alterado substancialmente os factos que eram imputados aos Arguidos no RAI apresentado pelos Assistentes,
75. Tendo ao invés, e como supra se disse, decDDdo o RAI nulo por o mesmo conter uma insuficiente alegação do elemento da consciência da ilicitude, questão essa que é bem diferente da analisada do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, porquanto se situa num momento logicamente anterior que é o do preenchimento do ónus de alegação do elemento da consciência da ilicitude.
Ou seja,
76. Por outra palavras, e como se referiu, a questão de Direito sobre a qual versa o Recurso Extraordinário cuja admissão aqui se requer, e cuja oposição de Acórdãos supra se expôs, versa sobre a (in)validade do RAI, por insuficiência/ausência de alegação do elemento subjectivo da consciência da ilicitude dos Arguidos, quando aí são descritos e alegados pelos Assistentes os factos objectivos que consubstanciam a prática pelos Arguidos dos concretos crimes que lhes são imputados e em relação aos quais existe uma consciência social generalizada da ilicitude da sua prática – i.e., sobre o preenchimento do ónus de alegação da consciência da ilicitude em crimes comummente conhecidos e cuja proibição e ilicitude é do conhecimento generalizado da Sociedade –,
77. O que é totalmente díspar da questão de Direito analisada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015.
Todavia,
78. O próprio Acórdão de Fixação de Jurisprudência que vem de se referir infirma terminantemente o entendimento formalista que foi sufragado no Acórdão de que se pretende recorrer, salientando expressamente que a necessidade de imputação e de alegação dos factos tendentes a afirmar consciência da ilicitude dos arguidos:
“[…] faz-se sentir sobretudo a nível do direito contra-ordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à protecção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social. Então, faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo.
Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significação da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que actuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, actuou ou não com conhecimento da proibição legal, isto é, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, SUBTRAIR COISA ALHEIA PARA DELA SE APROPRIAR, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efectivamente vivia neste mundo ou se não seria um extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg.
A essa pressuposta exigência responde o acórdão do STJ de 07/10/92, referido supra, 9.2.1., que à questão colocada de inexistir qualquer referência, na matéria de facto, ao conhecimento que o arguido, autor de um crime de homicídio, teria ou não teria da proibição legal, considerou que, «tendo [o arguido] agido livre e conscientemente com o intuito de tirar a vida ao filho, não podia deixar de conhecer o desvalor da sua conduta.”
79. Do teor do segmento acabado de citar resulta, portanto, inequívoco que o Acórdão proferido nos presentes autos pelo Tribunal da Relação de Guimarães, não está em consonância com a Jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça ora citada, porquanto aí explicitamente se refere que necessidade da expressa alegação da consciência da ilicitude dos Arguidos apenas se coloca nos crime cujo desvalor da conduta não é do conhecimento da generalidade dos Cidadãos, podendo, nessa medida, também ser desconhecida pelos respectivos arguidos.
[…]
82. O Acórdão que verdadeiramente se coaduna com o entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça é o Acórdão fundamento supra mencionado, e não o Acórdão que foi proferido nos presentes autos.
III. CONCLUSÕES
1.ª O presente requerimento de interposição de Recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência é apresentado, nos termos das disposições conjugadas constantes dos artigos 437º e 438º do Código de Processo Penal (“CPP”), relativamente ao Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães datado de 21 de Novembro de 2016 que, liminarmente, declarou nulo o Requerimento de Abertura de Instrução (“RAI”) apresentado pelos Assistentes por suposta deficiente e/ou incompleta alegação do elemento subjectivo da consciência da ilicitude dos Arguidos, invalidando, por conseguinte, toda a Fase de Instrução,
2.ª Nomeadamente, o Despacho de Pronúncia que havia sido proferido pelo Meritíssimo Juiz Instrução que pronunciou o Arguido BB (“Arguido CC Gonçalo”), como autor, pela prática de um crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1 alíneas a) e c) e nº 3 do Código Penal (“CP”), e, como co-autor, em concurso efectivo, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punido pelo artigo 205º, nº 1 e 4, alínea b) do mesmo Diploma, por referência ao artigo 202º, alínea b) do CP, e os Arguidos DD Rito dos Santos Duarte da Silva, EE da Silva e FF de Lemos Cardoso Teixeira Duarte da Silva, em co-autoria, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado (cfr. artigos 205º, nº 1 e 4, alínea b) do CP, por referência ao artigo 202º, alínea b) do mesmo Diploma).
3.ª De acordo com o preceituado nos artigos 437º e 438º do CPP supra mencionados, é admissível a interposição de um Recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência quando se esteja perante (i) um Acórdão que não seja passível de ser objecto de recurso ordinário; (ii) que consagre uma solução jurídica que esteja em oposição/contradição com a solução adoptada por um Acórdão anterior (nº 4), que tenha sido proferido pela mesma ou por outra Relação, no domínio da mesma legislação (nº 3), e sobre a mesma questão de Direito; (iii) desde que, o entendimento sufragado no Acórdão recorrido não esteja de acordo com Jurisprudência anterior fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
4.ª No caso concreto, importa salientar que os Assistentes interpuseram um recurso ordinário do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães a 21 de Novembro de 2016, por o mesmo ter versado sobre uma questão processual nova, e que nunca antes havia sido conhecida/suscitada nos presentes autos – a saber, a (in)validade do RAI – , e que, nessa medida, foi apreciada e decidida em sede de primeira instância por esse Venerando Tribunal.
5.ª Esse recurso ordinário não foi admitido pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr. Notificação de 10 de Março de 2017, com a ref. 6840744), tendo, em consequência, transitado em julgado, no passado dia 28 de Março de 2017, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães datado de 21 de Novembro de 2016, pelo que se impõe concluir que está verificado o primeiro pressuposto legalmente estabelecido para a interposição de um Recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência de irrecorribilidade do Acórdão recorrido (cfr. artigo 437º, nº 1 e 2 do CPP).
Acresce que
6.ª Como supra se disse, o Acórdão de que se pretende recorrer extraordinariamente declarou a nulidade do RAI apresentado pelos Assistentes, por suposta insuficiência de alegação dos factos necessários à afirmação da consciência da ilicitude Arguidos (elemento subjectivo), não obstante a descrição dos factos objectivos que aí foi efectuada pelos Assistentes e os concretos crimes que pelos mesmos foram aos imputados aos Arguidos (cfr. artigos 283º, nº 3 e 287º, nº 2 do CPP).
7.ª Com efeito, a questão de Direito analisada pela Venerada Relação nessa mesma Decisão versou sobre a (in)validade do RAI, por suposta deficiente e/ou incompleta alegação do elemento subjectivo da consciência da ilicitude dos Arguidos, não obstante os Assistentes terem procedido à alegação a) dos factos objectivos que consubstanciaram a prática pelos Arguidos dos concretos crimes que lhes foram imputados e, bem assim, b) de existir uma consciência social generalizada da ilicitude da sua prática.
8.ª Sem prejuízo de, os Assistentes terem alegado expressamente no RAI que apresentaram a consciência da ilicitude dos Arguidos, a verdade é que, essa mesma consciência resulta, em qualquer caso evidente, do facto de lhes terem sido imputadas no referido RAI, condutas que qualquer Cidadão Comum associa um carácter proibido e de reprovação social.
9.ª Neste contexto, cumpre salientar que, analisando o RAI apresentado pelos Assistentes verificamos que os crimes que foram perpetrados pelos Arguidos consistiram na (i) apropriação da globalidade do património financeiro de duas Senhoras de idade, no valor de € 5.000.000,00 – bens esses que bem sabiam não lhes pertencer – e, ainda, ii) na falsificação de assinatura num cheque bancário pelo Arguido CC Gonçalo, pelo que, ainda que se considerasse que a alegação da consciência da ilicitude dos Arguidos não havia sido efectuada pelos Assistentes no RAI em termos claros e suficientes – no que não se concede, e apenas a benefício de raciocínio se equaciona – em face das condutas descritas no RAI e dos crimes praticados, essa mesma pretensa deficiente alegação nunca poderia determinar a decDDção de nulidade do RAI, porquanto,
10.ª A factualidade descrita no RAI apresentado contém, em si mesma, ínsita a enunciação/descrição de crimes em relação aos quais existe uma consciência social generalizada e premente relativamente ao desvalor das condutas praticadas – i.e., abuso de confiança na apropriação de património alheio, falsificação de documento – , donde resulta inequívoco o preenchimento do elemento volitivo e cognitivo do dolo por parte dos Arguidos.
11.ª Por outro lado, importa salientar que não existem formas sacramentais de alegação da consciência da ilicitude, pelo que, essa mesma alegação pode resultar – como sucedeu precisamente in casu ¬ – da enunciação e narração de factos concretos e objectivos que representam e demonstram essa mesma consciência por parte dos Arguidos.
12.ª Contudo, de acordo com o entendimento sufragado pelo Tribunal da Relação de Guimarães no Acórdão de que se pretende recorrer, o que determinou a decDDção de nulidade do RAI apresentado pelos Assistentes foi a circunstância de – apesar de terem alegados todos os factos objectivos praticados pelos Arguidos e de existir uma consciência social premente relativamente ao desvalor dessas suas condutas –, não ter sido afirmado que os Arguidos sabiam que ao terem-se apropriado, conscientemente, de elevadas quantias em dinheiro que sabiam não lhes pertencer, ao desviarem dinheiro pertencente a terceiros para o seu próprio património, e/ou ao falsificar uma assinatura, praticavam uma conduta proibida e punida por lei, o que
13.ª Consubstancia um entendimento formalista e ilegal, que não tem assento em normas substantivas ou processuais, designadamente no disposto nos artigos 283º e 287º do CPP, como, inclusivamente, é manifestamente contrário à posição que foi sufragada por essa mesma Veneranda Relação no Acórdão prolatado a 9 de Janeiro de 2017.
14.ª De acordo com o entendimento que foi sufragado pelo Tribunal da Relação de Guimarães neste último Acórdão (e cuja citação foi efectuada nos pontos 58. e 59. supra e aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais), a alegação da consciência da ilicitude dos arguidos resultou da circunstância de (i) terem sido descritos no RAI apresentado pelo assistente, factos que preenchem acção típica que é objectivamente imputada ao arguido, (ii) cujo carácter proibido e de reprovação social é conhecido pela generalidade dos Cidadãos.
15.ª Contudo, tal posição é diametralmente oposta à que foi seguida pelo Veneranda Relação nos presentes autos que, não obstante os factos objectivos praticados pelos Arguidos que foram descritos pelos Assistentes no RAI apresentado, e os concretos crimes que lhes foram imputados, cuja ilicitude e proibição era impossível desconhecerem, ainda assim, levou este Douto Tribunal a decDDr nulo o RAI que foi por estes apresentado.
16.ª Como é expressamente referido no Acórdão fundamento que se invoca, não existem formas sacramentais de alegação do elemento subjectivo da consciência da ilicitude, sendo que, a factualidade objectiva alegada pelos Assistentes no RAI é suficiente se ter por alegado esse mesmo elemento, porquanto não resultam do caso concreto, nomeadamente, do tipo de crimes imputados aos Arguidos, quaisquer circunstâncias excepcionais susceptíveis de afastar a sua consciência da ilicitude quando praticaram a factualidade que aí vem descrita (i.e., as condutas objectivas que se encontram narradas no RAI e que consubstanciam os crimes que lhes são imputados).
17.ª Do confronto do Acórdão fundamento e do Acórdão proferido nos presentes autos resulta evidente que, a Veneranda Relação de Guimarães procedeu à aplicação das mesmas normas legais (i.e., os artigos 287º, nº 2 e 283º, nº 3 do CPP) e dos mesmos Institutos Jurídicos (i.e., nulidade do RAI) em sentido divergente, tendo decido a mesmíssima questão de Direito – (in)validade do RAI, por insuficiência/ausência de alegação do elemento subjectivo da consciência da ilicitude dos Arguidos, quando aí são descritos e alegados pelos Assistentes os factos objectivos que consubstanciam a prática pelos Arguidos dos concretos crimes que lhes são imputados e em relação aos quais existe uma consciência social generalizada da ilicitude da sua prática – de forma antagónica, oposição essa que determina a admissibilidade do presente Recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência nos termos do disposto no artigo 437º do CPP.
18.ª O Acórdão fundamento invocado está publicado no Portal DGSI e disponível para consulta através do endereço www.dgsi.pt, sob o nº processo 207/14.3T9VNF.G1 (cfr. artigo 438º, nº 2 do CPP), sendo certo que,
19.ª Durante o intervalo da prolação dos dois Acórdãos opostos (i.e., o Acórdão recorrido transitou em julgado a 28 de Março de 2017, sendo que o Acórdão fundamento do Tribunal da Relação de Guimarães que se invoca transitou em julgado a 26 de Janeiro de 2017), não ocorreu qualquer modificação legislativa dos artigos que estarão em causa no âmbito da questão de Direito em análise no Recurso Extraordinário cuja admissibilidade se requer – a saber, os artigo 287º, nº 2 do CPP e 283º, nº 3 alíneas b) e c) do mesmo Diploma – que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de Direito controvertida.
20.ª Por último, importa ainda salientar que muito embora a questão de Direito analisada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça – a saber, se a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjectivo de ilícito a que nela se faz referência, podia ser integrada pelo tribunal de julgamento, sem cometer uma alteração substancial dos factos (cfr. artigo 358ª do CPP) – não seja coincidente com a questão de Direito sobre que versam os Acórdãos cuja oposição se expôs, a Veneranda Relação de Guimarães procurou fundamentar a Decisão proferida nos presentes autos no teor desse mesmo Acórdão de Fixação de Jurisprudência.
21.ª Com efeito, o Acórdão proferido nos presentes autos não declarou a nulidade do Despacho de Pronúncia por o mesmo ter alterado substancialmente os factos que eram imputados aos Arguidos no RAI apresentado pelos Assistentes, tendo ao invés, decDDdo o RAI nulo por o mesmo conter uma insuficiente alegação do elemento da consciência da ilicitude, questão essa que é bem diferente da analisada do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, porquanto se situa num momento logicamente anterior que é o do preenchimento do ónus de alegação do elemento da consciência da ilicitude.
22.ª Em qualquer caso, o próprio Acórdão de Fixação de Jurisprudência que vem de se referir infirma terminantemente o entendimento formalista que foi sufragado no Acórdão de que se pretende recorrer, salientando expressamente que a necessidade de imputação e de alegação dos factos tendentes a afirmar consciência da ilicitude dos arguidos faz-se sentir nos crimes de menor relevância axiológica, pelo que,
23.ª O Acórdão proferido nos presentes autos pelo Tribunal da Relação de Guimarães, não está em consonância com a Jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, porquanto aí explicitamente se refere que necessidade da expressa alegação da consciência da ilicitude dos Arguidos apenas se coloca nos crime cujo desvalor da conduta não é do conhecimento da generalidade dos Cidadãos, podendo, nessa medida, também ser desconhecida pelos respectivos arguidos.
24.ª O que não é, repete-se, o caso dos presentes autos, em que os Arguidos vinham justamente pronunciados por crimes cujo desvalor axiológico e jurídico é, consabidamente, conhecido por todos os Homens, que sabem ser proibido e contrário à Lei apropriar-se, indevidamente, de património alheio (abuso de confiança qualificado), bem como falsificar a assinatura de uma pessoa em documento bancário (falsificação de documento) com vista à consumação dessa apropriação de património alheio.
Termos em que se requer a Vossas Excelências, Excelentíssimos Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça se dignem admitir o presente Recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência do Acórdão proferido nos presentes autos, por se verificarem todos os pressupostos legalmente exigíveis para a sua interposição, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 437º e seguintes do CPP.
Mais se requer, a Vossas Excelências, Excelentíssimos Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça que, uma vez admitido o presente Recurso, sejam os ora Requerentes notificados para apresentar, no prazo legal, as suas Alegações, tal como se dispõe no artigo 442º do CPP, seguindo-se os demais ulteriores trâmites legais.
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Respondeu o Ministério Público à motivação de recurso, alegando:
“No processo de Instrução n.º 2644/09.6TABRG-N, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, por decisão de 15/11/2013, foi o arguido BB pronunciado pela prática, como autor, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.°, n.º 1, alínea a) e c) e n.º 3, do Código Penal e, como co-autor, em concurso efectivo, de um crime de abuso de confiança qualificada, p. e p. pelo artigo 205.°, n.º 1, e 4, alínea b), do Código Penal e foram os arguidos DD Rito dos Santos Duarte da Silva, EE da Silva e FF de Lemos Cardoso Teixeira Duarte da Silva pronunciados como co-autores de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.°, n.º 1, e n.º 4, alínea b), por referência ao art. 202.°, b) do Código Penal (fls, 2241-2289).
*
Não se conformando interpuseram recurso o arguido BB(fls. 2345 e ss.), bem como os arguidos DD, EE e FF para este Tribunal da Relação (fls. 2380 e ss.].
Responderam os assistentes GG e AA(fls, 2403 e ss.) no sentido da improcedência.
Na lª instância, a Ex.ma Procuradora-Adjunta, respondeu também às motivações de recurso dos arguidos, pronunciando-se pela sua improcedência (fls, 2498-2511).
*
Em devido tempo, através do parecer de 31/10/2014 (fls. 2553-2556), pronunciámo-nos no sentido da improcedência dos recursos.
Por acórdão de 21/11/2016, desta Relação (fls. 2770-2810), foi decidido «julqar verificada a nulidade do requerimento de abertura de instrução e, por via disso, decDDr a sua invalidade, assim como a invalidade de todos os actos que se lhe seguiram, incluindo a decisão instrutória, com o consequente arquivamento dos autos,».
De tal aresto foi interposto recurso, pelos assistentes, para o STJ, em 11-1-2017, o qual não foi admitido, por despacho do Ex.mo Desembargador Relator de 2/2/2017.
Houve reclamação de tal despacho para o STJ, que foi indeferida, por despacho do Ex.mo Cons.º Vice- Presidente do STJ de 9/3/2017.
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No presente recurso de fixação de jurisprudência (art. 437.° e 438.° do CPP), os assistentes invocam, expressamente, a oposição entre o aresto recorrido e o Ac. desta mesma Relação de 9/1/2017, Proc. 207/ 14.3T9VNF.Gl, Rel. Fátima Furtado (aresto fundamento).
No essencial, nós não faríamos melhor, concorda-se com o teor do presente recurso que, em nosso entender, deverá ser admitido.”
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Neste Supremo, na vista aludida no art. 440.º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal, o Digmo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer onde assinala:
“I
a) Os assistentes AAe BB, em 5 de Maio de 2017, vieram interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido a 26 de Janeiro de 2017 nos autos de Recurso Penal supra identificados, alegando que se encontra em oposição com o acórdão da mesma Relação, de 18 de Abril de 2012, no processo n.º 430/11.2TBMLD.C1.
Alegam, em síntese, que, para o acórdão fundamento, «a alegação da consciência da ilicitude dos arguidos resultou da circunstância de (i) terem sido descritos no RAI apresentado pelo assistente, factos que preenchem acção típica que é objectivamente imputada ao arguido, (ii) cujo carácter proibido e de reprovação social é conhecido pela generalidade dos cidadãos», enquanto o acórdão recorrido decidiu que, «não obstante os factos objectivos praticados pelos Arguidos que foram descritos pelos Assistentes no RAI apresentado, e os concretos crimes que lhes foram imputados, cuja ilicitude e proibição era impossível desconhecerem, ainda assim levou este Douto Tribunal a decDDr nulo o RAI que foi por estes apresentado.»
b) Respondeu o magistrado do Ministério Público na Relação (84-85), concordando com o teor do recurso, entendendo que deve ser admitido.
c) Segundo a certidão de fls. 87, após despacho de não admissão de recurso ordinário do acórdão recorrido, o despacho que incidiu sobre a reclamação da não admissão, foi notificado aos sujeitos processuais, por via postal expedida em 10.03.2017.
II
a) Como preceitua o artigo 438.º, n.º 1, do CPP, o recurso é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão.
Presumindo-se notificado em 15 de Março de 2017 (terceiro dia útil posterior), transitou a 27 de Março do mesmo ano.
Tendo sido interposto em 5 de Maio de 2017 inscreve-se dentro deste prazo (no último dia; 9 a 17 de Março, inclusive, Férias Judiciais de Páscoa), pelo que o recurso é tempestivo.
b) Da oposição.
b.1 Como é jurisprudência pacífica, para que ocorra a oposição prevista no artigo 437.º do CPP, é necessário, não só que o preceito seja aplicado diferentemente aos mesmos factos, mas também que uma das decisões contrarie de forma expressa a doutrina fixada na outra.
A oposição terá que ser expressa não sendo suficiente uma inferida oposição tácita.
Vejamos o caso dos presentes autos.
O acórdão recorrido, tratando da nulidade do requerimento de abertura de instrução, em recurso dos arguidos do despacho que os tinha pronunciado pela prática de um crime de falsificação (um dos arguidos) e outro de abuso de confiança qualificado (todos os arguidos), decidiu que não constando do requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes factos que consubstanciem a consciência da ilicitude dos arguidos em relação aos crimes que lhes foram imputados, daqui resulta a sua nulidade.
Considerou que a consciência da ilicitude é o momento constitutivo do dolo…, o seu momento emocional, sendo, portanto, uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do tipo, e, Como tal deve constar da acusação e deve constar igualmente do despacho de pronúncia na medida em que, para efeitos de definição do objecto do processo, desempenham, este e aquela, a mesma função processual…, o que, como vimos, não sucede no caso em apreço.
Atrás, referira que essa descrição (do tipo subjectivo dos crimes) levada ao despacho de pronúncia não abrange… os factos necessários à afirmação da consciência da ilicitude dos arguidos, isto é, o despacho de pronúncia não contém qualquer menção ao conhecimento por parte dos arguidos da ilicitude da sua conduta.
Em suma, o acórdão recorrido decidiu que do RAI não constavam factos que consubstanciem a consciência da ilicitude dos arguidos em relação aos crimes de falsificação e abuso de confiança qualificado, decDDndo a sua nulidade.
O acórdão fundamento, em apreciação do RAI para apurar se contém a narração, ainda que sintética, dos factos… susceptíveis de integrarem os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime imputado ao arguido, considerou que não consta do requerimento de abertura da instrução…a alegação expressa e direta do dolo genérico…, que se reporta ao conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, que mais não é do que a afirmação dos elementos cognitivo e volitivo do dolo.
A alegação factual deste dolo genérico é vulgarmente feita através de uma fórmula antiga, empregue na prática judiciária, do tipo: «O arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.».
Contudo, não é obviamente necessária a utilização desta fórmula ou de outra equivalente, para a afirmação da realidade que com ela se pretende transmitir.
E considerou, para o que importa, que a factualidade descrita no RAI, nomeadamente a que destacou, satisfaz as exigências legais de indicação do crime imputado ao arguido e da narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança, uma vez que o conhecimento da ilicitude resulta da imputação ao arguido de condutas a que qualquer cidadão, com um mínimo de integração social, associa o carácter proibido e de reprovação social, como é, in casu, a venda de um prédio penhorado, no âmbito de uma execução, sem de tal dar conhecimento ao executado, cujo paradeiro é conhecido, omitindo-se esse conhecimento em todo o processo e agindo como se ele se encontrasse em parte incerta, com o objetivo de beneficiar o comprador, possibilitando a aquisição por preço inferior.
Em síntese: Não obstante não ter sido usada a formulação usual, o acórdão entendeu que os factos descritos no RAI eram bastantes consubstanciar a consciência da ilicitude do arguido em relação ao crime de abuso de poder.
Inexiste assim oposição de julgados já que não há divergência na interpretação e aplicação do artigo 283.º, n.º 3 e 287.º, n.º 2 do CPP, mas apenas a apreciação diferenciada de duas realidades factuais distintas.
III E assim, perante a inexistência de identidade das situações de facto subjacentes a cada um dos acórdãos, deve ser rejeitado o recurso - artigos 440.º, n.ºs 3 e 4 e 441.º, n.º 1, do Código de Processo Penal”
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Foi o processo a vistos, seguindo depois para a sessão.
Cumpre apreciar e decidir:
Nos termos do artigo 437º nº 1 do Código de Processo Penal, quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou as partes civis podem recorrer, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.
É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.- nº 2 do preceito.
A lei processual faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência da existência de determinados pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial.- artsº 437º nºs 1, 2 e 3 e 438º nºs 1 e 2 do CPP.
Entre os primeiros, a lei enumera:
- A interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito em julgado do acórdão recorrido;
- A identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre e oposição
- E, se este estiver publicado, o lugar da publicação.
- o trânsito em julgado de ambas as decisões.
- Os recorrentes com legitimidade.
Entre os segundos, conta-se:
- a justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito de jurisprudência;
- a verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões.
A exigência de oposição de julgados, de que não se pode prescindir na verificação dos pressupostos legais de admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art. 437.º, n.º 1, do CPP, é de considerar-se preenchida quando, nos acórdãos em confronto, manifestamente de modo expresso, sobre a mesma questão fundamental de direito, se acolhem soluções opostas, no domínio da mesma legislação.
A estes requisitos legais, o STJ, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito. - Acº do STJ 10-01-2007 , Proc. n.º 4042/06 - 3.ª Secção
Se ocorrer motivo de inadmissibilidade ou o tribunal concluir pela não oposição de julgados, o recurso é rejeitado; se concluir pela oposição, o recurso prossegue - artº 441º nº 1 do CPP.
Se, porém, a oposição de julgados já tiver sido reconhecida, os termos do recurso são suspensos até ao julgamento do recurso em que primeiro se tiver concluído pela oposição - Artº 441º nº2 do CPP.
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Após vicissitudes processuais, que culminaram com o despacho de 9 de Março de 2017, do indeferimento de reclamação do despacho de não admissibilidade de recurso ordinário para este Supremo, veio a decisão da reclamação a ser notificada ao Ministério Público por termo nos autos em 10 de Março de 2017 e por via postal expedida na mesma data aos demais sujeitos processuais
Ora, como refere o Ministério Público neste Supremo :
“Como preceitua o artigo 438.º, n.º 1, do CPP, o recurso é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão.
Presumindo-se notificado em 15 de Março de 2017 (terceiro dia útil posterior), transitou a 27 de Março do mesmo ano.
Tendo sido interposto em 5 de Maio de 2017 inscreve-se dentro deste prazo (no último dia; 9 a 17 de Março, inclusive, Férias Judiciais de Páscoa), pelo que o recurso é tempestivo.”
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Consta do acórdão recorrido, proferido 21 de Novembro de 2016, no Processo n.º 2644/09.6TABRG.GI, em, na parte com interesse para os presentes autos:
“Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães
I - RELATÓRIO
1. Nos autos de instrução nº 2644/09.6TABRG que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Braga - Instância Central - I a Secção de Instrução Criminal- J1 foi proferido despacho de pronúncia do arguido BB pela prática, como autor, de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256.°, nOs 1, a) e c) e 3 do Código Penal (ao tempo dos factos previsto no artigo 256.°, n.ºs a) e 3 do CP) e, como co-autor, em concurso efectivo, de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.°, nºs 1 e 4, b), por referência ao artigo 202.°, b), ambos do Código Penal, e dos arguidos DD, EE e FF pela prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.°, nºs 1 e 4, b), por referência ao artigo 202.°, b), ambos do Código Penal, no termo da instrução requerida pelos assistentes GG e AA - visando a pronúncia do arguido CC pela prática, como autor material, de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256.° do Código Penal, um crime de burla qualificada, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 218.° do Código Penal, e de um crime de abuso de confiança, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 205.° do Código Penal, e dos arguidos DD, EE e FF pela prática dos mesmos crimes, na qualidade de co-autores ou, pelo menos, cúmplices, ou, se assim se não entendesse em relação ao crimes de burla e abuso de confiança, a pronúncia de todos os arguidos pela prática do crime de infidelidade, na forma continuada, sendo este imputado ao arguido CC, a título de autoria, e aos arguidos DD, EE e FF, na qualidade de co-autores ou, pelo menos, cúmplices - na decorrência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.
2. Inconformados com a decisão, recorreram os arguidos BB, DD, EE e FF, retirando das suas motivações as seguintes conclusões:
[…]
2.2. Passemos, então, a conhecer dos recursos interpostos pelos arguidos BB, DD, EE da e FF
Dispõe o artigo 412.°, nº 1 do Código de Processo Penal) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso(4).
Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua even¬tual procedência:
_ nulidade do requerimento de abertura de instrução;
- ilegitimidade dos assistentes;
- suficiência dos indícios.
2.2.1. Da nulidade do requerimento de abertura de instrução
A instrução é uma fase intermédia e facultativa do processo penal na forma comum que tem por finalidade exclusiva a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento - artigo 286.° n.º 1.
A comprovação judicial é realizada através da conjugação e ponderação dos meios de prova produzidos - em sede de inquérito e na própria instrução - em ordem a ajuizar-se da existência ou não, de indícios suficientes de estarem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança sendo, a final, formalmente explicitada na decisão instrutória.
Assim, estatui o artigo 308.°, n.o I que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Por outro lado, consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança - n.o 2 do artigo 283.°, aplicável ex vi, n.o 2 do artigo 308.°.
No caso em apreciação, tendo a instrução sido requerida pelos assistentes, visaria a comprovação judicial da decisão que ordenou o arqtúvamento do inquérito, uma vez que o procedimento não é dependente de acusação particular.
Dispõe o 287.°, com a epígrafe, «Requerimento para abertura da instrução», no seu n.º 2 e na parte que ora releva:
“( ... )
2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmu!a, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de ins¬trução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n. º 3 do artigo 283. o (. • .)".
Embora não esteja sujeito a formalidades especiais, o requerimento de abertura da instrução deve conter sempre, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância quanto à acusação ou não acusação.
No que especificamente respeita ao requerimento do assistente, a lei impõe ainda que dele constem as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 283°. Assim, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente - que se destina, como ficou dito, a obter a comprovação judicial da decisão do Ministério Público em se abster de acusar em procedimento por crime público ou semi-público - deve obrigatoriamente conter, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e ainda, a indicação das disposições legais aplicáveis.
Daqui decorre que, no segmento da narração dos factos e indicação das disposições legais aplicáveis, o requerimento de abertura de instrução do assistente deve estruturar-se, substancialmente, como uma verdadeira acusação, como uma acusação alternativa à que, na perspectiva do requerente, foi e não devia ter sido omitida pelo Ministério Público.
Esta exigência resulta da circunstância de o objecto do processo ser definido, simplificadamente, pela acusação, pública ou privada, que nele tenha sido deduzida e portanto, pelos concretos factos imputados ao arguido (cfr. artigo 339.°, n.o 4).
A estrutura acusatória do processo penal e a salvaguarda das garantias de defesa do arguido impõem a definição do thema decidendum e a sua tendencial imutabilidade. Ora, se o Ministério Público se absteve de acusar por crime público ou semi-público e o assistente pretende, ao requerer a instrução, que o arguido seja levado a julgamento, é evidente que será o respectivo requerimento a definir o objecto da instrução e portanto, a balizar, não só o âmbito da investigação a levar a efeito pelo juiz de instrução, como o da decisão instrutória. Por isso, a sujeição do juiz de instrução à vinculação temática definida pelo requerimento de abertura de instrução, enquanto acusação alternativa, determina a nulidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos naquele Requerimento (artigo 309.°, n.o 1).
Em suma, o requerimento de abertura de instrução do assistente deve estruturar-se como uma acusação, dele tendo que constar a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido fundamentadores da aplicação de pena ou medida de segurança ou seja, os factos preenchedores do tipo, objectivo e subjectivo, do crime pelo qual pretende ver este pronunciado.
No, caso em apreço, os assistentes estruturaram o requerimento de abertura de instrução em quatro partes, a saber: i) nota prévia; ii) razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação quanto aos crimes de falsificação de documentos, de infidelidade, de burla qualificada e de abuso de confiança agravado; iii) narração dos factos que levam os assistentes a considerar que foram cometidos os crimes de falsificação de documentos, de infidelidade, de burla qualificada e de abuso de confiança agravado; iv) actos de instrução a requerer.
No que respeita ao preenchimento dos elementos subjectivos dos vários tipos de crime imputados aos arguidos não resulta claramente vertida no requerimento de abertura de instrução, designadamente na parte relativa à narração dos factos que levam os assistentes a considerar que foram cometidos os crimes de falsificação de documentos, de infidelidade) de burla qualificada e de abuso de confiança agravado) a pertinente factualidade, como, aliás, logo se assinalou no despacho de abertura de instrução (fIs. 2163), entendendo-se, contudo, que «em sede de realização do debate instrutório, terão os assistentes oportunidade de esclarecer oralmente de entre a factualidade que consta do requerimento, e apenas desta, aquela que consideram indicada e pertinente, tendo ainda os arguidos a possibilidade de contraditar, querendo) a posição dos mesmos».
Realizado que foi o debate instrutório, o Mmo. Juiz de Instrução pronunciou o arguido CC pelo cometimento, em autoria, de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256.°, nas 1, a) e c) e 3 do Código Penal (ao tempo dos factos previsto no artigo 256.0, n.os a) e 3 do CP) e, em co-autoria e em concurso efectivo, de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.0, nas 1 e 4, b), por referência ao artigo 202.0, b), ambos do Código Penal, e os arguidos DD, EE e FF pelo cometimento, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.°, nºs 1 e 4) b), por referência ao artigo 202.0, b), ambos do Código Penal, fazendo constar do artigo 100° do despacho de pronúncia que: «Os arguidos agiram como dolo, ou seja agiram de forma livre e voluntaria com a intenção de se apropriarem e fazerem seu~, como fizeram, os montantes supra referidos e pertencentes às assistentes.».
Ora, ainda que se entenda que existe apenas uma menor clareza narrativa no requerimento de abertura de instrução quanto à descrição do tipo subjectivo dos crimes imputados aos arguidos - como refere o Mmo. Juiz de Instrução a fIs. 2338 Vº -, certo que essa descrição levada ao despacho de pronúncia não abrange - como apontam os recorrentes - os factos necessários à afirmação da consciência da ilicitude dos arguidos, isto é, o despacho de pronúncia não contém qualquer menção ao conhecimento por parte dos arguidos da ilicitude da sua conduta.
É sabido que a estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação, pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito - o tipo objectivo de ilícito - e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo, a saber: o dolo directo - a intenção de realizar o facto - o dolo necessário - a previsão do facto como consequência necessária da conduta - e o dolo eventual - a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta.
Do que antecede decorre que a afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática do facto. Ao nível do processo, esta exigência satisfaz-se com a prova e, consequentemente, com a menção no elenco do s factos provados, do conhecimento do agente da ilicitude da sua conduta, seja pela fórmula habitual, e algo conclusiva de «bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei», seja por qualquer outra forma que descreva com objectividade este facto da vida interior do agente. O que não pode acontecer é ter-se por praticado o crime sem a prova da consciência da ilicitude.
Na lição de Figueiredo Dias, a culpa jurídico-penal revela-se através de tipos de culpa: o tipo de culpa doloso e o tipo de culpa negligente, verificando-se o primeiro quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas.
Esta atitude íntima, de sobreposição dos interesses do agente do facto ao desvalor do ilícito pressupõe que este, para além de representar e querer a realização do tipo objectivo (dolo do tipo) actue também com consciência do ilícito, isto é, representando que o facto era proibido pelo Direito, em suma, actuando com consciência da ilicitude.
Assim, a consciência da ilicitude é momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa, o seu momento emocional, sendo, portanto, uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do tipo.
Como tal deve constar da acusação e deve constar igualmente do despacho de pronúncia na medida em que, para efeitos de definição do objecto do processo, desempenham, este e aquela, a mesma função processual, se bem que em diferentes fases, o que, como vimos, não sucede no caso em apreço.
A questão de saber se, perante a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito a que nela se faz referência, nomeadamente do dolo, o tribunal do julgamento pode, por recurso ao artigo 358.° do Código de Processo Penal, integrar os elementos em falta, dividiu a jurisprudência, tendo o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão n.o 1/2015, in DR, la Série, n.º 18, de 27 de Janeiro de 2015), acabado por fixar a seguinte jurisprudência uniformizadora:
«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358. o do Código de Processo Penal.»
Na Fundamentação do Acórdão Uniformizador, ponto 10.2.3.1., 7° parágrafo, lê-se o seguinte:
«Escreve Figueiredo Dias, cujas ideias básicas, muito pela rama, intentamos transpor para aqui, que a razão de ser da diferença entre o regime do erro sobre proibições, cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para o agente tomar conhecimento da ilicitude (art. 16. j, conduzindo à exclusão do dolo do tipo, e o erro sobre o carácter ilícito do facto (art. 17. j, fundamentador do dolo da culpa, está em que «neste último caso, o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência intencional ( .. ]), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores ( ... ), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger», ao passo que, no primeiro caso, trata-se da «falta de conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito'(Direito Penal, cit., pp. 356 e ss. e 531 e ss.)>>.
Também na Fundamentação do Acórdão Uniformizador, ponto 10.2.4., se pode ler:
<<Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido referido, englobando a consciência ética ou a consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de co-nhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim,conscientemente contra o direito.».
Ainda na Fundamentação do Acórdão Uniformizador, ponto 11., pode ler-se:
«Conexionado com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou de alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjectivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrado no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358. o do CP P. Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.
11.1. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua vfalta a nulidade do libelo (art. 283. ~ n. o 3, alínea b) do CPP).
Por conseguinte, tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respectivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do arl. 311. ~ n. Os 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP - não conter a narração dos factos.
Claro que uma tal visão implica que os factos em falta na descrição constante da acusação (pressuposto que ela contém uma descrição relativa a outros factos) são essenciais, imprescindíveis, e o que falta corresponde à falta de narração a que se refere o normativo referido. Ou seja: a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objectivo do ilicito, sejam ao tipo subjectivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos, a propósito, nomeadamente, das teorias do objecto do processo, e a vaIoração especifica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.».
Como resulta da leitura dos referidos segmentos da Fundamentação do Acórdão Uniformizador, a jurisprudência fixada não tem exclusivamente por objecto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjectivo do crime imputado.
Com efeito, se a utilização, no texto da jurisprudência fixada, da frase «[a] falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem ( ... )>> é, por si, suficientemente abrangente para nele se incluir, para além da falta absoluta de descrição do tipo subjectivo, a falta relativa do mesmo tipo, entendida esta como a omissão de qualquer elemento dele constitutivo, a leitura dos segmentos da Fundamentação, supra transcritos, toma claro ter sido este o propósito do Supremo Tribunal de Justiça?
A consciência da ilicitude é uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do facto típico, a qual acresce, como elemento emocional, ao conhecimento e vontade de realizar o facto típico (elementos do dolo do tipo), traduzindo-se na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso).
Como se salienta na Fundamentação do Acórdão Uniformizador, ponto 10.2.3., último parágrafo, «[t]udo isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente Q ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou dever-ser jurídico, voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (cons¬ciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude). ».
A omissão da descrição de algum elemento do tipo subjectivo de ilícito na acusação não pode, portanto, ser integrada em julgamento com recurso ao mecanismo do artigo 358., n.º 1 do Código de Processo Penal, por a tanto se opor a jurisprudência fixada pelo Acórdão n.o 1/2015.
Por isso ela não pode deixar de constar da acusação e deve constar igualmente do requerimento de abertura de instrução e da pronúncia que têm a mesma estrutura da acusação e que, para efeitos de definição do objecto do processo, desempenham a mes¬ma fi..ão processual (artigos 283.º, n. 3,287.º, n.º 2, in fine e 308.º, n.º 2 todos do Código de Processo Penal).
No caso, tratando-se, como se trata, de uma deficiente ou incompleta definição do tipo subjectivo de ilícito no âmbito do requerimento de abertura de instrução, a questão não se coloca na indiciação probatória do facto subjectivo mas antes num momento logicamente anterior, que é o da alegação, legalmente exigida, do facto subjectivo a indiciar. o nosso processo penal tem uma estrutura basicamente acusatória, sendo o seu objecto definido, conforme exista ou não instrução, pela acusação, pelo requerimento para abertura da instrução e pelo despacho de pronúncia, sendo este objecto que delimita os poderes de cognição do tribunal com vista a assegurar uma defesa eficaz e um processo equitativo.
Tendo a instrução sido requeri da pelos assistentes, ao respectivo requerimento, por força da parte final do n.o 2 do artigo 287.°, é aplicável o disposto no artigo 283.°, n.o 3, alíneas b) e c), o que significa que o mesmo terá de conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança, assim como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Daqui decorre que a falta ou omissão dos factos preenchedores do tipo, objectivo e subjectivo, dos crimes por que os assistentes pretendem ver os arguidos pronunciados faz incorrer o requerimento de abertura de instrução em nulidade, tendo em vista o disposto no artigo 283.°, n,o 3, alínea b).
Esta nulidade não faz parte do elenco de nulidades descritas nas alíneas a) a f) do artigo 119.° do Código de Processo Penal.
Ainda assim, admitimos que, quando referida ao requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, tal nulidade - por omissão ou deficiência da descrição dos factos preenchedores do tipo, objectivo e subjectivo, dos crimes imputados aos arguidos - seja considerada insanável, tendo em vista a lógica do sistema.
Realmente, se a falta de narração dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, levando à rejeição desta como manifestamente infundada [artigo 311.°, n.o 3, alínea b)], não faria sentido que a falta de factos no requerimento de abertura de instrução do assistente, que materialmente deve estruturar-se como uma verdadeira acusação, como uma acusação alternativa, não pudesse ser objecto do mesmo tipo de conhecimento em sede de recurso,
Por outras palavras: os casos referidos no n.o 3 do artigo 311.° que se contêm nas previsões das alíneas do n.º 3 do artigo 283.° reconduzem-se a uma forma de nulidade "sui generis", insanável e de conhecimento oficioso.
Os demais casos do n.o 3 do artigo 283.°, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.
Seja como for, considere-se aquela falta ou deficiência da descrição uma nulidade absoluta ou relativa, a verdade é que a mesma toma inválido o requerimento para a abertura da instrução (artigo 122.°, n.o 1).
Os actos inválidos por efeito da nulidade podem e devem ser repetidos quando possível (artigo 122.°, n.o 2).
No caso vertente, no entanto, não é possível a repetição do acto, isto é, a elaboração e junção de novo requerimento para a abertura de instrução, posto que findou, há muito, o prazo para a sua apresentação (artigo 287.°, n.O 1).
Por outro lado, a deficiência no cumprimento do ónus de adequada formulação do requerimento para abertura da instrução não dá lugar a convite para aperfeiçoamento, conforme acórdão de fixação de jurisprudência n.° 7/05, de 12 de Maio de 2005, publicado no DR, I Série - A, de 4 de Novembro de 2005.
Em suma, não constando do requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes factos que consubstanciem a consciência da ilicitude dos arguidos em relação aos crimes que lhes foram imputados, daqui resulta a sua nulidade.
Por conseguinte, nos termos do disposto no artigo 122.°, n.º 1, o requerimento de abertura de instrução é inválido, como inválidos são todos os actos que se lhe seguiram, incluindo a decisão instrutória,.deterninando-se o canse quente arquivamento dos autos.
Em face do exposto fica prejudicado o conhecimento das demais questões
(artigo 608.º, n. º 2, 1 a parte do N CPC ex- vi artigo 4.º do CPP).
*
lV - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar verificada a nulidade do requerimento de abertura de instrução e, por via disso, declarar a sua invalidade, assim como a invalidade de todos os actos que se lhe seguiram, incluindo a decisão instrutória, com o consequente arquivamento dos autos. “
*
Recursos sem tributação. “
<>
Por sua vez, consta do acórdão fundamento proferido em 9 de Janeiro de 2017, no processo nº 207/14.3T9YNF.G1:
“Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
No processo de instrução nº 207/14.3T9VNF, da instância central de Guimarães, 2ª secção de instrução criminal, juiz 1, da comarca de Braga, em que é arguido HH, com os demais sinais dos autos, foi, em 7 de março de 2016, proferido despacho de rejeição, por inadmissibilidade legal, do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente GG
*
Inconformada, a assistente GG interpôs recurso, apresentando a competente motivação,
[..]
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães por despacho datado de 2 de maio de 2016.
O Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pelo provimento do recurso, por entender que requerimento de abertura de instrução observa o disposto nos artigo 287.º, n.º 2 e 283., n.º 3, als. b) e c), do Código de Processo Penal, já que contém todos os elementos objetivos e subjetivos típicos do crime de abuso de poder da previsão do artigo 382.º que nele é imputado ao arguido, inexistindo qualquer causa que determine a sua rejeição.
Nesta Relação, a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral adjunta proferiu douto parecer, igualmente no sentido de que o recurso merece provimento.
*
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer Cf. artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, v..
*
1. Questão a decidir
Face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação apresentada, a questão a decidir é a de saber se é admissível o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente GG
*
2. A decisão recorrida tem o seguinte teor:
«Requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente GG a fls. 488 e ss
Não se conformando com o despacho de arquivamento proferido a fls. 475, a assistente GG, veio a fls. 488 e ss requer a abertura de instrução.
Alegou, para tal e em síntese, que:
- discorda em absoluto do despacho de arquivamento;
- Após, procede aos motivos pelos qual discorda dos fundamentos do despacho de arquivamento, e elenco os factos que, na sua perspectiva se encontram indiciado, concluindo que o denunciado omitiu todas as diligências que estava obrigado, com intenção descarada de beneficiar a empresa compradora, conduta que era proibida e punida por lei.
Conclui pela imputação ao arguido de um crime de abuso de poder p. p. pelo artº 382º do CP.
***
Cumpre proferir despacho liminar, sendo certo que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução – artigo 287º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
O tribunal é competente.
O requerimento é tempestivo.
O requerente tem legitimidade – artigo 287º, n.º 1, al. b), do CPP.
Importa, agora, apreciar a admissibilidade legal da instrução.
Findo o Inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento (cfr. Fls. 475).
Inconformado, a denunciante, constituída assistente, veio requerer, a fls. 488 e ss, abertura de instrução, com a invocação do supra referido.
Apreciemos.
A instrução, como fase intermédia entre o inquérito e o julgamento « visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» ( art. 286.°, n.º 1 do Código de Processo Penal – são deste Diploma legal os demais preceitos citados em menção expressa de proveniência).
Estatui o art. 287.°, n.º 2, do CPP referindo-se ao requerimento de abertura de instrução do assistente, que o mesmo deve conter «em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for o caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar», sendo certo que a tal requerimento, quando formulado pelo assistente, é aplicável «o disposto no artigo 283.°, n.º 3, alíneas b) e c) (...)».
Quer isto dizer que o requerimento de abertura de instrução do assistente está sujeito ao formalismo da acusação, isto é, equipara-se-lhe (vid. Ac. da Rel. Lisboa de 12.05.1998, BMJ n.o 477.°, pág. 555; da Rel. Porto de 15.04.1998, BMJ n.o 476.°, pág. 487; da Rel. Lisboa de 02.12.1998, BM] n.º 482.°, pág. 294; da Rel. Lisboa de 21.10.1999, CJ, XXII pág. 158; Rel. Lisboa de 09.02.2000, CJ, XXIII, 1.°, 153).
Sendo assim, poderemos concluir que, por força da conjugação dos arts. 287.°, n.º 2 o art. 309.°, n.º 1, a instrução requerida pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público – aquele que importa ter em conta – não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho, sendo certo que tal exigência, formalismo e equiparação não se pode afirmar ou exigir ao requerimento formulado pelo arguido (cfr. artigo 287º, n.º 2, in fine, a contrario sensu).
O requerimento do assistente para abertura da instrução deve, pois, conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar (artigo 287º, nº 2).
No requerimento para abertura de instrução, o assistente tem de indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida.
O juiz, por seu turno, irá apurar se esses factos se indiciam ou não, proferindo ou não, em consonância, despacho de pronúncia (cfr., neste sentido, os Acs. da RP de 05/05/1993, C], XVIII, 3.°, pág. 243 e da RC de 24/11/1993, CJ, XVIII, 5.°, pág. 61).
Isto significa, portanto, que o requerimento de abertura de instrução equivale, em tudo, à acusação, definindo e delimitando o objecto do processo a partir da sua apresentação; ele constitui, pois, substancialmente, uma acusação alternativa ao despacho de abstenção proferido pelo M.P.
Na verdade, no caso de arquivamento do inquérito, a decisão instrutória só pode recair sobre os factos que foram objecto da instrução, ficando o objecto do processo delimitado pelo conteúdo daquele requerimento (Acórdão da Relação do Porto, de 24/04/2002, processo n.º 0210086, consultado em www.dgsi.pt), pelo que, não se descrevendo os factos que se pretende imputar aos arguidos, qualquer descrição que se venha a fazer numa eventual pronúncia redunda necessariamente numa alteração substancial do requerimento, sendo, então, nula, nos termos do artigo 309.º, 1, do CPP (Acórdão da Relação de Coimbra de 24/11/93, Colectânea de Jurisprudência, Tomo V, p. 61).
Expostos estes princípios jurídicos, abalancemo-nos na análise da situação vertente.
Desde logo, dir-se-á que, percorrendo o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes, facilmente se verifica que o mesmo é omisso quanto à indicação de todos os elementos subjectivos do crime imputado.
Analisando a situação sub judice, verifica-se que o assistente não indicou, como lhe competia, todos os elementos subjectivos do imputado tipo de crime de dano.
«São precisamente os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.(…) Num crime doloso – só esse interessa tratar aqui – da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua acção- o que não se verifica no RAI), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso), e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).» – Ac.R.Coimbra de 30/9/2009, proc. 910/08.7TAVIS, relatado pelo Desembargador Jorge Jacob, disponível in www.dgsi.pt.
Com efeito, compulsado o RAI, verifica-se que o mesmo não refere que o arguido agiu de forma livre e consciente e que sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei punidas por lei (princípio da legalidade).
Assim, o invocado no RAI quanto aos elementos do tipo subjectivo não são suficientes para se considerarem todos as vertentes do elemento subjectivo do tipo de crime.
Na verdade, falta desde logo, que o arguido agiu de forma livre e consciente e que sabia que a sua conduta era punida e proibida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).
Não contendo o RAI a descrição de todos os elementos do tipo de ilícito, os factos narrados não integram qualquer ilícito criminal e como tal nunca poderá ser proferido despacho de pronúncia.
Acresce que o juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes aos elementos objectivos e subjectivos, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido.
Por outro lado, não se pode inferir da materialidade objectiva, o elemento dolo, pois tal traduzir-se-ia numa presunção de iure do dolo, o que é inadmissível. Uma coisa é a alegação dos factos (no caso concreto relativos aos elementos subjectivos) e outra, diferente, é a respectiva prova. O facto do dolo poder ser provado com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da experiência comum, não significa que se possa dispensar a respectiva alegação.
A assistente, no seu requerimento de abertura de instrução, não contemplou na narração dos factos a totalidade daqueles elementos.
Assim, sem uma acusação alternativa não se pode abrir a fase processual da instrução (Vide Ac RE 13.1.98., BMJ 473, 586; Ac RP 23.05.01, p. n.º 0110362, 362/01, 1ª secção, in CJ ano XXVI, t III, pág 238; Ac RP 13.06.0l, p. n.º 0110352, 352/01, 1ª secção; Ac TC 27/2001, Proc. n.º 189/00, in DR II série, n.º 70 de 23 de Março de 2001, pág. 5265; Ac RP 04.04.01, p. n.º 0110047, 047/01, 1ª secção; Ac RG de22 /11/04, proferido no âmbito do P. n.º 157/03.9PBVCT deste 2º Juízo Criminal; Acórdão do STJ n.º 7/2005 (DR I-A, de 4 de Novembro de 2005).
No que diz respeito ao tipo subjectivo de ilícito, que é o que aqui importa analisar, desde já se diga, que o imputado crime de dano é de verificação exclusivamente dolosa.
Nos crimes dolosos, a verificação do tipo subjectivo de ilícito pressupõe, tradicionalmente, (cfr., neste sentido, Tereza Pizarro Beleza, in “Direito Penal – Lições Policopiadas”, Vol. II, AAFDL, pág. 181 e Cavaleiro Ferreira, in “Lições de Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, Editorial Verbo, 1992, pág. 282 e segs.) o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime por parte do agente - o elemento intelectual ou cognitivo e o elemento volitivo.
Como refere Figueiredo Dias, “o dolo é conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo (...)”; “mas o dolo é ainda expressão de uma atitude pessoal de contrariedade ou indiferença (...) perante o dever-ser jurídico-penal”.
Repetidamente o Tribunal da Relação do Porto tem emitido jurisprudência a propósito da falta dos factos integradores do dolo. A título meramente exemplificativo, veja-se o que se escreveu no recurso do Proc. 465 /07, do 1º Juízo Criminal de Matosinhos:
«O STJ, sugestivamente, no acórdão de 22.10.2003, tirado no proc. n.° 2608/033.a, SASTJ, n.° 74, 149, considerou que o dolo deve ser expressamente invocado para poder ser revelado. A ideia de um dolus in re ipsa, que sem mais resultaria da simples materialização da infracção, é hoje indefensável em direito penal.
Veja-se o aresto do Tribunal da Relação do Porto, publicado no site da dgsi datado de 7.1.2009, o qual é explícito sobre a imprescindibilidade da alegação expressa do elemento subjectivo para ser fixado o objecto do processo. E também no mesmo sentido se refere em outro acórdão proferido no Tribunal da Relação do Porto, igualmente desta Secção, no processo n.° JTRP000384I 1, em 19.10.2005, in www.dgsi.pt., “Entendemos que o elemento subjectivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objectivos que são imputados ao arguido; com efeito, no nosso ordenamento jurídico, ninguém sustenta a existência de presunções de dolo.
Com efeito, o STJ, por Acórdão de 20 Nov. 2014, Processo 17/07 fixou s seguinte jurisprudência: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS. É fixada jurisprudência no sentido de que na acusação, a falta de descrição dos elementos subjetivos do crime, particularmente os que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em fase de julgamento com recurso ao mecanismo da alteração não substancial dos factos. Tendo o sistema processual penal uma estrutura basicamente acusatória, é pela acusação ou pela pronúncia que o objeto do processo é delimitado, em obediência ao princípio da vinculação temática. Deste modo, o conteúdo da acusação deverá pautar-se pelos aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, abarcando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal. Ora, na falta de alguns dos elementos caraterizadores do tipo subjetivo do ilícito, a integração de deficiências não consubstancia uma alteração não substancial dos factos, pelo que sendo o processo despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, impõe-se a rejeição da acusação, por a mesma ser nula e por ser manifestamente infundada ao não conter a narração dos factos. (com voto de vencido).
Resulta daqui que, quando o requerimento de abertura de instrução narra factos insusceptíveis de integrarem o tipo não pode haver legalmente pronúncia.
Na verdade, esta, nos termos do art.° 308°, n° 1, do CPP, tem de descrever os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Ora, se a acusação apresentada pelo assistente não contém esses factos, a sua inclusão na pronúncia significaria, repete-se, a pronúncia do arguido por factos que constituiriam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento, sendo tal decisão nula, por força do já falado artº 309°, n° 1, do CPP.
E uma acusação que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido é uma acusação que a lei não pode admitir, até porque seria inútil, e não é licito praticar no processo actos inúteis (artºs 137° do CPC e 4° do CPP).
É, pois, legalmente inadmissível o recebimento de acusação quando seja formulada pelo assistente e este não descreva no seu requerimento os factos integradores do crime pelo qual pretende a pronúncia do arguido, neles se incluindo os elementos subjectivos.
*
Na hipótese de instrução requerida pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo M.P., o requerimento de abertura de instrução deverá revestir todos os requisitos «de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e a elaboração da decisão instrutória.
É que, nessa eventualidade, o requerimento de abertura de instrução tem de constituir uma verdadeira acusação, não só para que o arguido possa, eventualmente, ser pronunciado pelos factos nele descritos, mas também para que fiquem « definitivamente assegurados os seus direitos de defesa» e lhe seja possível « carrear para o processo os elementos de prova que entender úteis» ( cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal. Anotado, 9: edição, pág. 541)- estrutura acusatória e delimitação ou vinculação temática do tribunal, em ordem a assegurar as garantias de defesa do arguido contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e a possibilitar-lhe a preparação da defesa, no respeito pelo princípio do contraditório.
A falta de formulação e enunciação de factos é insuprível ( cfr . neste sentido, o Ac. da Rel. Lisboa de 09/02/2000, CJ XXV- I- 153 e o Acordo Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2005, publicado no DR, S I A, de 04.11.2005), sabido como é instrução, no caso de abstenção da acusação, equivale à acusação e que a decisão instrutória só pode recair sobre os factos que foram objecto de instrução, ficando o próprio objecto do processo delimitado pela indicação feita nesse requerimento e posteriormente aceite no despacho de pronúncia, no todo ou em parte.
Efectivamente, não contendo o requerimento de abertura de instrução o indispensável conteúdo fáctico, «não só se torna inexequível a instrução, ficando o juiz sem saber quais os factos que o assistente gostaria de ver indiciados - e também o arguido, ficando inviabilizada a sua defesa -, como também, caso mesmo assim se prosseguisse a instrução, qualquer despacho de pronúncia que se proferisse na sua sequência sempre seria nulo nos termos do art. 309.° do CPP », e, por isso, «inútil e proibido, tal como os actos eventualmente subsequentes» (cf. o Ac. da RL de 11/10/2001, CJ, XXVI, 4. °, pág. 141 ).
Daí que, se o assistente requerer a abertura de instrução sem a indicação e enunciação dos factos concretos e determinados imputados ao arguido susceptíveis de consubstanciarem a prática de um hipotético tipo legal de crime e sem a delimitação do campo factual sobre que a instrução há-de versar, como sucede in casu, « a instrução será a todos os títulos inexequível » (cfr. Maia Gonçalves, op. cit., pág. 541, e Souto de Moura, « Inquérito e Instrução » in « Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal », ed. do CEJ., Almedina, Coimbra, 1991, pág. 120)».
Paralelamente, se o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento formulado pelo M.P., não obedecer aos requisitos contemplados no art. 283.°, n.º 3, al. b)- aplicável por força da remissão operada pelo art. 287.°, n.º 2 -, que a lei exige para a acusação pública, tal requerimento não pode deixar de considerar-se nulo, tal como ocorre, aliás, com a acusação pública deduzida sem observância de tais requisitos.
É o que sucede, inquestionavelmente, na situação vertente, porquanto no requerimento de abertura de instrução não são de todo em todo respeitadas, como precedentemente se referiu, as exigências legais plasmadas no n.º 3, do citado art. 283º do CPP.
E nem se diga que o juiz deveria proferir, em situação como à destes autos, despacho de aperfeiçoamento do requerimento de abertura da instrução, não obstante tal entendimento ter sido já defendido (cfr. Ac. da Rel. Évora de 16.12.1997, BMJ n.º 472.°, pág. 585, 20.06.2000, CJ III, pág. 153 e de 21.03.2001, CJ, II, pág. 131).
Na verdade o convite ao aperfeiçoamento não está prevista na lei processual penal, para além de que tal convite violaria os princípios da imparcialidade, das garantias de defesa do arguido, da estrutura acusatória do processo e do contraditório (cfr., neste sentido, Acórdãos da Relação do Porto de 14/01/2004, de 31/03/2004, de 05/05/2004, de 16/06/2004, de 23/06/2004, de 15/12/2004 e de 05/01/2005, todos consultados em www.dgsi.pt e Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 12 /05/2005, publicado no DR – I Série-A, de 04/11/2005), solução que não contende com princípios constitucionais (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 27/2001, de 30 de Janeiro de 2001, consultado em www.tribunalconstitucional.pt).
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Nestes termos e pelos fundamentos expostos, ao abrigo do disposto no art. 287.°, n.ºs 2 e 3, quer porque a instrução é inadmissível - por inexequibilidade e por falta de objecto (cfr., em situações similares, Acórdãos da Relação de Lisboa de 06/11/2001, da Relação de Coimbra de 31/10/2001 e da Relação do Porto de 23/05/2001 e de 24/04/2002, processo n.º 0210078, todos consultados em www.dgsi.pt).-, quer porque o requerimento de abertura de instrução é nulo, atentas as disposições conjugadas dos arts. 287°, n° 2 e 283°, n° 3, al. b), rejeito tal requerimento.
Custas pela assistente, com taxa de justiça que se fixa em uma UC, sem prejuízo de apoio judiciário que beneficia
Notifique.
Transitado em julgado, arquive.»
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
A assistente GG interpôs o presente recurso com o intuito de ver revogado o despacho que rejeitou o requerimento de abertura da instrução por si formulado, no qual, reagindo ao despacho de arquivamento do Ministério Público, considera haver indícios suficientes de que HH praticou um crime de abuso de poder previsto e punível pelo artigo 382.º do Código Penal.
Defende a recorrente que esse seu requerimento de abertura de instrução obedece às exigências das disposições conjugadas dos artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, pelo que não deveria ter sido rejeitado.
Vejamos.
Como é sabido, a instrução é uma fase processual que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, com vista a submeter ou não a causa a julgamento, com base em critérios de legalidade (cfr. artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Podendo ser requerida «pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação» (artigo 287º, nº 1, als. a) e b) do Código de Processo Penal).
No presente caso, é inquestionável ser na qualidade de assistente que a recorrente apresentou o requerimento de abertura da instrução, pretendendo reagir a um despacho de arquivamento do Ministério Público.
Como tal, o requerimento de abertura dessa fase processual tem de corresponder à dedução da acusação, como prescrevem os artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
De tal ordem que a decisão instrutória que vier a ser proferida no final da fase da instrução0 só pode recair sobre os factos descritos no requerimento para a respetiva abertura.
O requerimento de abertura da instrução tem pois de proceder à delimitação clara do objeto do processo, em obediência ao princípio da vinculação temática, corolário do princípio do acusatório, que impede que o tribunal tome a iniciativa de investigar e decidir para além do que lhe é solicitado. Ao mesmo tempo que, por essa via, se consegue também efetivar o princípio do contraditório, bem como o respeito pelas garantias de defesa do arguido, que só assim pode saber de que factos tem de se defender e em função deles delinear a sua estratégia de defesa (cf. artigo 32º, nº 1 e nº 5, da Constituição da República Portuguesa).
Revertendo ao caso sub judice, analisemos pois a conformidade legal do requerimento de abertura da instrução formulado pela recorrente, designadamente se ele contém a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, ou seja, se contém a narração de factos suscetíveis de integrarem os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime imputado ao arguido, que é o crime de abuso de poder, previsto e punível pelo artigo 382.º, do Código Penal. Posto é que o requerimento foi rejeitado pelo senhor juiz de instrução precisamente com o fundamento de que ser omisso quanto à indicação de todos os elementos subjetivos do crime imputado.
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Nos primeiros quarenta e oito artigos do requerimento de abertura da instrução descrevem-se os factos pretensamente praticados pelo arguido e as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram, dos quais decorre que aquele, na qualidade de agente de execução, no âmbito de um processo de execução em que a assistente e o seu falecido marido tinham a qualidade de executados, atuou sempre como se eles estivessem ausentes em parte incerta, não os notificando da data e modalidade da venda judicial do prédio que lhes foi penhorado, nem da aceitação e venda por proposta particular da respetiva compra, embora soubesse onde eles se encontravam. Notificando apenas o Ministério Público para se pronunciar sobre as condições daquela compra e, para justificar que o preço fosse de 15.000,00 €, disse que o prédio estava inacabado, quando nele estavam apenas a ser efetuadas obras de remodelação. Em consequência do que o prédio foi vendido naquele processo executivo por preço muito inferior ao respetivo valor de mercado (que era de 85.000,00 €), em benefício da empresa compradora e prejuízo da assistente e marido.
Ora, esta factualidade é já suscetível de integrar os elementos constitutivos do tipo objetivo do crime de abuso de poder previsto e punível pelo artigo 382.º do Código Penal, que dispõe: «O funcionário que, fora dos casos previstos nos números anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido …».
Por outro lado, pode ainda ler-se no requerimento de abertura da instrução, nomeadamente nos seus artigos 28º, 29º, 37º e 48º, o seguinte:
(sob o nº 28º) «O denunciado, quando notificou o Ministério Público, da venda e respectivas condições, ocultou propositadamente, que sabia que a assistente e seu falecido marido, não estavam ausentes em parte incerta e que tinha conhecimento da sua residência, do seu nº de telefone e do seu e-mail, pelo que violou, conscientemente, a obrigação de os notificar sobre a modalidade da venda…»;
(sob o nº 29º) «O denunciado voltou a violar conscientemente a obrigação de notificar o denunciante e esposa, na qualidade de executados, da aceitação e venda da proposta particular de compra do prédio penhorado pelo preço escandaloso de € 15.000,00…, o que fez em benefício ilegítimo do comprador e em prejuízo dos executados»;
(sob o nº 37º) «O denunciado praticou os referidos factos, no exercício das suas funções de agente de execução, abusando dos poderes e violando os deveres inerentes às suas funções, com manifesta intenção de obter um benefício ilegítimo para a empresa compradora…»;
(sob o nº48) «O denunciado…omitiu todas as diligências a que estava obrigado com a intenção…de beneficiar a empresa compradora, conduta que era proibida e punida por lei».
Tais afirmações são por sua vez suscetíveis de preencherem, sem esforço, o dolo específico exigido no crime de abuso de poder, na medida em que delas se retira a intenção de o agente obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, concretamente a intenção de obter benefício para a empresa compradora, causando prejuízo aos executados.
O que efetivamente não consta do requerimento de abertura da instrução é a alegação expressa e direta do dolo genérico, também exigido pelo tipo subjetivo do crime de abuso de poder, que se reporta ao conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, que mais não é do que a afirmação dos elementos cognitivo e volitivo do dolo.
A alegação factual deste dolo genérico é vulgarmente feita através de uma fórmula antiga, repetidamente empregue na prática judiciária, do tipo: «O arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei».
Contudo, não é obviamente necessária a utilização desta fórmula ou de outra equivalente, para a afirmação da realidade que com ela se pretende transmitir.
É do conhecimento geral, do senso e experiência comum, que os elementos volitivo e cognitivo do dolo emanam, na generalidade dos casos, da mera descrição do iter criminis do arguido, ou seja, da narração da ação típica que lhe é objetivamente imputada, a não ser que se afirmem circunstâncias excecionais, suscetíveis de contrariar esse entendimento Cf., neste sentido, e entre outros, o acórdão do TRE, de 11.07.2013, proferido no processo nº 126/12.8GAMAC.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre..
Nesta perspetiva, e revertendo novamente ao caso sub judice, parece-nos ser indubitável que o elemento volitivo do dolo emana da factualidade alegada no requerimento de abertura da instrução, designadamente quando nele se descrevem ações voluntárias e conscientes por parte do arguido, como acontece quando se afirma: «O denunciado, quando notificou o Ministério Público, da venda e respetivas condições, ocultou propositadamente, que sabia que a assistente e seu falecido marido, não estavam ausentes em parte incerta e que tinha conhecimento da sua residência, do seu nº de telefone e do seu e-mail. (...) Voltou a violar conscientemente a obrigação de notificar o denunciante e esposa, na qualidade de executados, da aceitação e venda da proposta particular de compra»
Por sua vez, no que ao elemento cognitivo do dolo respeita, o conhecimento da ilicitude resulta da imputação ao arguido de condutas a que qualquer cidadão, com um mínimo de integração social, associa um caráter proibido e de reprovação social, como é, in casu, a venda de um prédio penhorado, no âmbito de uma execução, sem de tal dar conhecimento ao executado, cujo paradeiro é conhecido, omitindo-se esse conhecimento em todo o processo e agindo como se ele se encontrasse em parte incerta, com o objetivo de beneficiar o comprador, possibilitando a aquisição por preço inferior.
Efetivamente, e nas expressivas palavras de Cavaleiro de Ferreira Lições de Direito Penal, Parte Geral, 290.: «Conhecer para agir é sempre discernir, ajuizar e não só contemplar cada elemento objectivo do crime, sem simultânea apreciação da sua instrumentalidade, da sua inserção no processo finalístico da vontade. E é também por isso, como veremos, que a representação de todos os elementos componentes do facto pode equivaler, na generalidade dos crimes, à consciência da ilicitude, só se exigindo o conhecimento da proibição legal quando do conhecimento do próprio facto, em todos os seus elementos, não resulte implicitamente essa consciência da ilicitude (cit. art. 16º, nº 1)».
Nada impedindo assim que, quanto a este ponto, se vier a ser caso disso, em sede de decisão instrutória possa vir a introduzir-se uma formulação típica e mais conseguida do elemento subjetivo da infração, sem que seja cometida qualquer irregularidade, nos termos do artigo 303.º, n.º 1 do Código de Processo Penal Cf., no sentido de que o conhecimento da proibição de uma conduta resulta da simples prática dos factos, quando os mesmos são como tal entendidos pela generalidade das pessoas, também o já supra referido acórdão do TRE, de 11.07.2013, proferido no processo nº 126/12.8GAMAC.E1 e demais jurisprudência nele citada.
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De tudo assim decorrendo, que o requerimento de abertura da instrução satisfaz as exigências legais de indicação do crime imputado ao arguido e da narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança. Delimitando de forma suficiente o objeto do processo e, como tal, podendo conduzir, à luz dos princípios básicos constitucionais do acusatório e do contraditório, à pronúncia do arguido.
A instrução é pois legalmente admissível, procedendo o recurso.
***
III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas deste Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e ordenando que o mesmo seja substituído por outro que, na ausência de qualquer outro motivo impeditivo, declare aberta a instrução, seguindo-se os ulteriores termos processuais.
Sem tributação.
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Guimarães, 9 de janeiro de 2017”
<>
Do confronto de ambos os acórdãos, não se verifica identidade de situação de facto, a situação de facto em ambos os acórdãos não é idêntica, mas diferente.
Assim, o acórdão recorrido, considerou: “No que respeita ao preenchimento dos elementos subjectivos dos vários tipos de crime imputados aos arguidos não resulta claramente vertida no requerimento de abertura de instrução, designadamente na parte relativa à narração dos factos que levam os assistentes a considerar que foram cometidos os crimes de falsificação de documentos, de infidelidade) de burla qualificada e de abuso de confiança agravado) a pertinente factualidade, como, aliás, logo se assinalou no despacho de abertura de instrução (fIs. 2163), entendendo-se, contudo, que «em sede de realização do debate instrutório, terão os assistentes oportunidade de esclarecer oralmente de entre a factualidade que consta do requerimento, e apenas desta, aquela que consideram indicada e pertinente, tendo ainda os arguidos a possibilidade de contraditar, querendo) a posição dos mesmos».
Realizado que foi o debate instrutório, o Mmo. Juiz de Instrução pronunciou o arguido CC pelo cometimento, em autoria, de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256.°, nas 1, a) e c) e 3 do Código Penal (ao tempo dos factos previsto no artigo 256.0, n.os a) e 3 do CP) e, em co-autoria e em concurso efectivo, de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.0, nas 1 e 4, b), por referência ao artigo 202.0, b), ambos do Código Penal, e os arguidos DD, EE e FF pelo cometimento, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.°, nºs 1 e 4) b), por referência ao artigo 202.0, b), ambos do Código Penal, fazendo constar do artigo 100° do despacho de pronúncia que: «Os arguidos agiram como dolo, ou seja agiram de forma livre e voluntaria com a intenção de se apropriarem e fazerem seu~, como fizeram, os montantes supra referidos e pertencentes às assistentes.».
Ora, ainda que se entenda que existe apenas uma menor clareza narrativa no requerimento de abertura de instrução quanto à descrição do tipo subjectivo dos crimes imputados aos arguidos - como refere o Mmo. Juiz de Instrução a fIs. 2338 Vº -, certo que essa descrição levada ao despacho de pronúncia não abrange - como apontam os recorrentes - os factos necessários à afirmação da consciência da ilicitude dos arguidos, isto é, o despacho de pronúncia não contém qualquer menção ao conhecimento por parte dos arguidos da ilicitude da sua conduta.
[…]
No caso, tratando-se, como se trata, de uma deficiente ou incompleta definição do tipo subjectivo de ilícito no âmbito do requerimento de abertura de instrução, a questão não se coloca na indiciação probatória do facto subjectivo mas antes num momento logicamente anterior, que é o da alegação, legalmente exigida, do facto subjectivo a indiciar. o nosso processo penal tem uma estrutura basicamente acusatória, sendo o seu objecto definido, conforme exista ou não instrução, pela acusação, pelo requerimento para abertura da instrução e pelo despacho de pronúncia, sendo este objecto que delimita os poderes de cognição do tribunal com vista a assegurar uma defesa eficaz e um processo equitativo.
[…]
A omissão da descrição de algum elemento do tipo subjectivo de ilícito na acusação não pode, portanto, ser integrada em julgamento com recurso ao mecanismo do artigo 358., n.º 1 do Código de Processo Penal, por a tanto se opor a jurisprudência fixada pelo Acórdão n.o 1/2015.
[…]
No caso vertente, no entanto, não é possível a repetição do acto, isto é, a elaboração e junção de novo requerimento para a abertura de instrução, posto que findou, há muito, o prazo para a sua apresentação (artigo 287.°, n.O 1).
Por outro lado, a deficiência no cumprimento do ónus de adequada formulação do requerimento para abertura da instrução não dá lugar a convite para aperfeiçoamento, conforme acórdão de fixação de jurisprudência n.° 7/05, de 12 de Maio de 2005, publicado no DR, I Série - A, de 4 de Novembro de 2005.
Em suma, não constando do requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes factos que consubstanciem a consciência da ilicitude dos arguidos em relação aos crimes que lhes foram imputados, daqui resulta a sua nulidade.”
Por sua vez o acórdão fundamento considerou que
“Revertendo ao caso sub judice, analisemos pois a conformidade legal do requerimento de abertura da instrução formulado pela recorrente, designadamente se ele contém a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, ou seja, se contém a narração de factos suscetíveis de integrarem os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime imputado ao arguido, que é o crime de abuso de poder, previsto e punível pelo artigo 382.º, do Código Penal. Posto é que o requerimento foi rejeitado pelo senhor juiz de instrução precisamente com o fundamento de que ser omisso quanto à indicação de todos os elementos subjetivos do crime imputado.
*
Nos primeiros quarenta e oito artigos do requerimento de abertura da instrução descrevem-se os factos pretensamente praticados pelo arguido e as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram, dos quais decorre que aquele, na qualidade de agente de execução, no âmbito de um processo de execução em que a assistente e o seu falecido marido tinham a qualidade de executados, atuou sempre como se eles estivessem ausentes em parte incerta, não os notificando da data e modalidade da venda judicial do prédio que lhes foi penhorado, nem da aceitação e venda por proposta particular da respetiva compra, embora soubesse onde eles se encontravam. Notificando apenas o Ministério Público para se pronunciar sobre as condições daquela compra e, para justificar que o preço fosse de 15.000,00 €, disse que o prédio estava inacabado, quando nele estavam apenas a ser efetuadas obras de remodelação. Em consequência do que o prédio foi vendido naquele processo executivo por preço muito inferior ao respetivo valor de mercado (que era de 85.000,00 €), em benefício da empresa compradora e prejuízo da assistente e marido.
Ora, esta factualidade é já suscetível de integrar os elementos constitutivos do tipo objetivo do crime de abuso de poder previsto e punível pelo artigo 382.º do Código Penal, que dispõe: «O funcionário que, fora dos casos previstos nos números anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido …».
Por outro lado, pode ainda ler-se no requerimento de abertura da instrução, nomeadamente nos seus artigos 28º, 29º, 37º e 48º, o seguinte:
(sob o nº 28º) «O denunciado, quando notificou o Ministério Público, da venda e respectivas condições, ocultou propositadamente, que sabia que a assistente e seu falecido marido, não estavam ausentes em parte incerta e que tinha conhecimento da sua residência, do seu nº de telefone e do seu e-mail, pelo que violou, conscientemente, a obrigação de os notificar sobre a modalidade da venda…»;
(sob o nº 29º) «O denunciado voltou a violar conscientemente a obrigação de notificar o denunciante e esposa, na qualidade de executados, da aceitação e venda da proposta particular de compra do prédio penhorado pelo preço escandaloso de € 15.000,00…, o que fez em benefício ilegítimo do comprador e em prejuízo dos executados»;
(sob o nº 37º) «O denunciado praticou os referidos factos, no exercício das suas funções de agente de execução, abusando dos poderes e violando os deveres inerentes às suas funções, com manifesta intenção de obter um benefício ilegítimo para a empresa compradora…»;
(sob o nº48) «O denunciado…omitiu todas as diligências a que estava obrigado com a intenção…de beneficiar a empresa compradora, conduta que era proibida e punida por lei».
Tais afirmações são por sua vez suscetíveis de preencherem, sem esforço, o dolo específico exigido no crime de abuso de poder, na medida em que delas se retira a intenção de o agente obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, concretamente a intenção de obter benefício para a empresa compradora, causando prejuízo aos executados.”
O acórdão fundamento apenas referiu que “ O que efetivamente não consta do requerimento de abertura da instrução é a alegação expressa e direta do dolo genérico, também exigido pelo tipo subjetivo do crime de abuso de poder, que se reporta ao conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, que mais não é do que a afirmação dos elementos cognitivo e volitivo do dolo.”,(sublinhado nossso)
Porém, na sequência da sua fundamentação concluiu que “revertendo novamente ao caso sub judice, parece-nos ser indubitável que o elemento volitivo do dolo emana da factualidade alegada no requerimento de abertura da instrução, designadamente quando nele se descrevem ações voluntárias e conscientes por parte do arguido, como acontece quando se afirma: «O denunciado, quando notificou o Ministério Público, da venda e respetivas condições, ocultou propositadamente, que sabia que a assistente e seu falecido marido, não estavam ausentes em parte incerta e que tinha conhecimento da sua residência, do seu nº de telefone e do seu e-mail. (...) Voltou a violar conscientemente a obrigação de notificar o denunciante e esposa, na qualidade de executados, da aceitação e venda da proposta particular de compra»
Por sua vez, no que ao elemento cognitivo do dolo respeita, o conhecimento da ilicitude resulta da imputação ao arguido de condutas a que qualquer cidadão, com um mínimo de integração social, associa um caráter proibido e de reprovação social, como é, in casu, a venda de um prédio penhorado, no âmbito de uma execução, sem de tal dar conhecimento ao executado, cujo paradeiro é conhecido, omitindo-se esse conhecimento em todo o processo e agindo como se ele se encontrasse em parte incerta, com o objetivo de beneficiar o comprador, possibilitando a aquisição por preço inferior.
[…].
De tudo assim decorrendo, que o requerimento de abertura da instrução satisfaz as exigências legais de indicação do crime imputado ao arguido e da narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança. Delimitando de forma suficiente o objeto do processo e, como tal, podendo conduzir, à luz dos princípios básicos constitucionais do acusatório e do contraditório, à pronúncia do arguido.”
Como explicita o Digmo Magistrado do Ministério Público em seu Parecer:
“O acórdão recorrido, tratando da nulidade do requerimento de abertura de instrução, em recurso dos arguidos do despacho que os tinha pronunciado pela prática de um crime de falsificação (um dos arguidos) e outro de abuso de confiança qualificado (todos os arguidos), decidiu que não constando do requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes factos que consubstanciem a consciência da ilicitude dos arguidos em relação aos crimes que lhes foram imputados, daqui resulta a sua nulidade.
Considerou que a consciência da ilicitude é o momento constitutivo do dolo…, o seu momento emocional, sendo, portanto, uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do tipo, e, Como tal deve constar da acusação e deve constar igualmente do despacho de pronúncia na medida em que, para efeitos de definição do objecto do processo, desempenham, este e aquela, a mesma função processual…, o que, como vimos, não sucede no caso em apreço.
Atrás, referira que essa descrição (do tipo subjectivo dos crimes) levada ao despacho de pronúncia não abrange… os factos necessários à afirmação da consciência da ilicitude dos arguidos, isto é, o despacho de pronúncia não contém qualquer menção ao conhecimento por parte dos arguidos da ilicitude da sua conduta.
Em suma, o acórdão recorrido decidiu que do RAI não constavam factos que consubstanciem a consciência da ilicitude dos arguidos em relação aos crimes de falsificação e abuso de confiança qualificado, declarando a sua nulidade.
O acórdão fundamento, em apreciação do RAI para apurar se contém a narração, ainda que sintética, dos factos… susceptíveis de integrarem os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime imputado ao arguido, considerou que não consta do requerimento de abertura da instrução…a alegação expressa e direta do dolo genérico…, que se reporta ao conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, que mais não é do que a afirmação dos elementos cognitivo e volitivo do dolo.
A alegação factual deste dolo genérico é vulgarmente feita através de uma fórmula antiga, empregue na prática judiciária, do tipo: «O arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.».
Contudo, não é obviamente necessária a utilização desta fórmula ou de outra equivalente, para a afirmação da realidade que com ela se pretende transmitir.
E considerou, para o que importa, que a factualidade descrita no RAI, nomeadamente a que destacou, satisfaz as exigências legais de indicação do crime imputado ao arguido e da narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança, uma vez que o conhecimento da ilicitude resulta da imputação ao arguido de condutas a que qualquer cidadão, com um mínimo de integração social, associa o carácter proibido e de reprovação social, como é, in casu, a venda de um prédio penhorado, no âmbito de uma execução, sem de tal dar conhecimento ao executado, cujo paradeiro é conhecido, omitindo-se esse conhecimento em todo o processo e agindo como se ele se encontrasse em parte incerta, com o objetivo de beneficiar o comprador, possibilitando a aquisição por preço inferior.
Em síntese: Não obstante não ter sido usada a formulação usual, o acórdão entendeu que os factos descritos no RAI eram bastantes consubstanciar a consciência da ilicitude do arguido em relação ao crime de abuso de poder.”
Não são os pressupostos de argumentação do recorrente que definem de per se a realidade fáctico-legal para efeitos de verificação ou não dos pressupostos do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência,
Tais pressupostos resultam dos critérios legais acima explanados,
Ora, como resulta evidente, dos acórdãos pretensamente colidentes, as situações fácticas são diferentes, e, por isso, os mesmos não se encontram em oposição, inexistindo decisões opostas sobre a mesma questão jurídica.
Uma coisa é a desconformidade da situação de facto e outra a sua consonância, para dela se extraírem soluções jurídicas opostas.
A solução jurídica oposta não se confunde com a crítica à situação de facto, mas decorre da valoração desta.
Para haver idêntica situação de facto e decisões jurídicas opostas mister se tornava, que a situação de facto fosse consensual, considerada identicamente a mesma como bastante na descrição em ambos os acórdãos. para gerar a solução jurídica mas que vieram a gerar soluções jurídicas diferentes,
Ora,
No acórdão recorrido considerou-se que do requerimento de abertura de instrução “não constavam factos que consubstanciem a consciência da ilicitude dos arguidos em relação aos crimes de falsificação e abuso de confiança qualificado, declarando a sua nulidade.”
O acórdão fundamento considerou que a factualidade constante do requerimento de abertura de instrução “satisfaz as exigências legais de indicação do crime imputado ao arguido e da narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança”
A discrepância da situação facto inviabiliza a similitude da consequência jurídica
Por isso e, pelo exposto, na presente situação concreta, - o decidido pelo acórdão recorrido e o julgado pelo acórdão fundamento -, não há identidade de situações de facto, que gerassem decisões de direito diferentes.
Inexistindo identidade de situações de facto, conclui-se pela não oposição de julgados.
Concluindo-se pela não oposição de julgados, o recurso é rejeitado. (artº 441º nº 1 do CPP)
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Daí que, decidindo.
Acordam os da 3ª Secção deste Supremo Tribunal, em rejeitar, de harmonia com disposto no artigo 441º nº 1 do CPP o presente recurso de fixação de jurisprudência.
Tributam o recorrente em 4 Ucs de taxa de justiça, e condenam-no na importância de 5 UCs, nos termos do artº 420º nº 3 do CPP.
Supremo Tribunal de Justiça, 21 de junho de 2017
Pires da Graça (Relator)
Raul Borges
Elaborado e revisto pelo relator.